ANDERSON CAMARGO LOPES
REALITY JOURNALISM A FUSÃO ENTRE REALITY SHOW E JORNALISMO EM UM NOVO FORMATO TELEVISIVO
Londrina 2016
ANDERSON CAMARGO LOPES
REALITY JOURNALISM A FUSÃO ENTRE REALITY SHOW E JORNALISMO EM UM NOVO FORMATO TELEVISIVO
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina. Orientador: Prof. Dr. Rodolfo Rorato Londero
Londrina 2016
ANDERSON CAMARGO LOPES
REALITY JOURNALISM: A FUSÃO ENTRE REALITY SHOW E JORNALISMO EM UM NOVO FORMATO TELEVISIVO
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina.
BANCA EXAMINADORA
____________________________________ Orientador: Prof. Dr. Rodolfo Rorato Londero Universidade Estadual de Londrina
____________________________________ Prof. Me. Emerson dos Santos Dias Universidade Estadual de Londrina
____________________________________ Prof. Me. Luciano Schmeiske Pascoal Universidade Estadual de Londrina
Londrina, _____de ___________de _____.
Ă€ televisĂŁo, que sempre foi companhia.
AGRADECIMENTOS
Ás vesperas do vestibular de Jornalismo, constatemente entrava em pânico toda vez que me imaginava em alguma situação tendo de fazer uma reportagem sobre determinado assunto. Eu não tinha ideia do que fazer! Mas então você sempre dizia que tudo ia dar certo. E deu. Mãe, se não fosse você, nenhuma linha deste trabalho teria sido escrita. Obrigado por ter pagado meu aluguel durante esses quatro anos, ter mandado caixas e caixas de comida, ter viajado 190km para me ver constantemente e pelo apoio incondicional em todas as decisões da minha vida. Seu amor, incentivo e compreensão me fazem seguir em frente. Essa conquista é tua. Acima de tudo, você sempre soube que quando cresce, filho cria asas e quer voar. Obrigado por nunca ter cortado as minhas. “Te amo daqui ao Japão um milhão de vezes!” Agradeço também à meu pai, que, mesmo não estando mais neste plano, tenho certeza que me ajudou na construção deste trabalho. Obrigado pela proteção, iluminação e incentivo nas horas difíceis. A saudade só cessa porque sei que está sempre ao meu lado. Junto a ele, agradeço a todos os outros anjos e entidades de luz que me guiaram durante esses quatro anos. A vocês, minha eterna gratidão. Agradeço ao meu irmão, Caio, pela presença constante. Obrigado pelo carinho, pelos conselhos, broncas, ensinamentos e por me dar a certeza de que sempre terei alguém no mundo com quem posso contar em qualquer circustância. À Tati, avós, tios e primos pela constante preocupação, torcida e incentivo nessa jornada. Agradeço também a meus amigos de Santo Anastácio, que resistiram ao tempo e a distância. A todos meus companheiros de sala. Sem vocês, esses quatro anos não teriam o menor sentido. Agradeço pelas risadas, cumplicidade, festas, brigas, ciladas e por ter encontrado tão rápido uma segunda família. Obrigado por não precisar citar apenas alguns nomes. Vocês serão minha maior saudade e a melhor coisa que a UEL poderia ter me dado. Agradeço também aos bons professores do departamento e a Universidade Estadual de Londrina, pelo ensino de qualidade e por ter concretizado meu sonho de estudar Jornalismo em uma faculdade tão boa. Valeu a pena cada segundo! À Raquel Rodrigues, que deu o primeiro emprego da minha vida. Obrigado pela oportunidade, pelos ensinamentos, broncas, pelo carinho maternal e
pelo privélegio de ter trabalho ao seu lado por mais de um ano. Que outra chefe mandaria um funcionário na casa do estagiário checar se ele estava vivo depois de algumas horas de sumiço? Palavras nunca serão suficientes para expressar minha gratidão por tudo que você me proporcionou. Carregarei sua imagem e exemplo por toda minha carreira. Agradeço também a todos os repórteres da Rádio CBN e Globo Londrina pelo tanto que me ensinaram sobre o funcionamento de uma redação, sobre texto de rádio, sobre a importância da entrevista e a relevância do radiojornalismo na vida das pessoas. O orgulho de hoje poder chamá-los de amigos é gigante. À Fabiola Vicençoni, atual chefe e modelo de profissional. Sua dedicação e entrega ao trabalho me inspiram diariamente. Obrigado pelo acolhimento, pelo respeito e pela liberdade de trabalho que sempre me proporcionou. Obrigado pelas vezes que corrigiu meus textos e gravações minunciosamente me estimulando a sempre melhorar. Aquele garoto do interior de São Paulo que brincava de repórter nos fundos de casa nunca imaginaria tamanha oportunidade. Sentirei falta dos seus gritos e da nossa convivência diária na redação. Aos repórteres, editores e cinegrafistas, obrigado por simplesmente me permitirem conviver e observar o trabalho de vocês de perto. O prazer é inenarrável. Aos pauteiros, Luciano, Francismar e Danilo, agradeço por me ensinarem diariamente e com tanta paciência como o telejornalismo funciona. Sou fã de vocês! À Ana Paula, que a 380km de distância, não contribuiu em absolutamente nada para este trabalho, mas contribui pelo simples fato de ainda ser minha amiga depois de tantos anos, ignorando a distância e a eminente falta de contato. Vou continuar pedindo aos céus você aqui comigo. Meus agradecimentos especiais ao professor Rodolfo, orientador e fio condutor deste trabalho. Obrigado por ter me atendido, ainda em 2014, e ter dado início a essa pesquisa. Agradeço pelas inúmeras reuniões, por ter direcionado um estudante por vezes apavorado e ter dado corpo e forma à este trabalho. Espero que toda liberdade e confiança tenham valido a pena. E por fim, não poderia deixar de agradecer ele que me deu tanta coisa. Casa, amigos, cerveja gelada, pasteis, pizzas, sessões de cinema e muito funk ostentação no último volume, mesmo que a contragosto. Sem você esses quatro anos não teriam tido a menor graça. Obrigado, Beco! Vou morrer de saudades.
Writing is rewriting (Marta Kauffman)
LOPES, Anderson Camargo. Reality journalism: a fusão entre reality show e jornalismo em um novo formato televisivo. 2016. 150 páginas. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Social – Jornalismo) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2016.
RESUMO
Nos últimos anos, o telejornalismo brasileiro vem buscando novas formas de transmitir a notícia e se aproximar cada vez mais do público. Este trabalho tem como objetivo analisar uma das formas encontradas para obter tal resultado: trata-se do reality journalism, um híbrido resultado da fusão entre reality show e jornalismo. Este novo formato televisivo funde características dos dois elementos e permite ao jornalista compartilhar sua intimidade com o público, colocando-se como personagem principal de sua própria reportagem e narrando a história em primeira pessoa. Através das noções de gênero televisivo, infotenimento e jornalismo gonzo, este trabalho identifica e analisa quadros e programas exibidos pela TV Globo nos últimos cinco anos que se enquadram nesta proposta. Palavras-chave: Reality Journalism. Infotenimento. Rede Globo.
Reality
Show.
Jornalismo.
Televisão.
LOPES, Anderson Camargo. Reality journalism: the fusion between reality show and journalim in a new television format. 2016. 150 páginas. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Social – Jornalismo) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2016. ABSTRACT
In the past few years, the Brazilian television journalism has been seeking new ways to transmit the news and approach the audience more and more. This work aims to analyze one of the ways found to get this result: it is the reality journalism, a hybrid result of the fusion between reality show and journalism. This new television format merges features of both elements and allows the journalist to share his intimacy with the public by putting himself as the main character of his own report and telling the story in the first person of singular. Through the notions of television genre, infotainment and gonzo journalism, this study identifies and analyzes attractions and TV shows shown by TV Globo in the last five years which fits this proposal.
Key words: Reality Journalism. Reality Show. Journalism. Television. Infotainment. Rede Globo.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Dica de alimentação antes de exercício..................................................107 Figura 2 - Dica de nutrição......................................................................................108 Figura 3 - Dica para exercício físico………..………………..………………………...108 Figura 4 - Dica para atividade física…………………..……..………………………...108 Figura 5 – Blog do Medida Certa……………………..……..……………………...….111 Figura 6 – Passagem tradicional……..……………………………..……………….....115 Figura 7 – Passagem amadora……..………………………………….……………....116 Figura 8 – Rodrigo Alvarez agonizando no chão depois de tombo…...….…..…….123 Figura 9 – Juliana aprendendo a patinar no gelo ……………………….…..……….128 Figura 10 – Juliana aprendendo a correr de olhos vendados ……….…......………129 Figura 11 – Juliana aprendendo luta olímpica …………………………….......……..129 Figura 12 – Juliana aprendendo a andar de motocross…………………...…...……129 Figura 13 – Entrevistando a lutadora Aline Silva e seu marido na cama................130 Figura 14 – Entrevistando a surfista Maya Gabeira enquanto dirigia......................131 Figura 15 – Entrevistando a nadadora Suzana Schnarndorf enquanto comiam.....131 Figura 16 – Informação sobre alongamento no Mamãe Gentil…...…………...……135 Figura 17 – Benefícios do alongamento no Mamãe Gentil…………………...……..135 Figura 18 – Dica de alongamento no Mamãe Gentil…………………………………136 Figura 19 – O apresentador em uma refeição com amigos antes do desafio….....140 Figura 20 – Fernando registra sua primeira refeição em casa no início da dieta…140 Figura 21 – O jornalista registra uma carona que dá aos amigos de seu filho…....141 Figura 22 – Blog do Fernando Rocha…………………………………………..…......142
LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Modelo de codificação/decodificação de Stuart Hall…………………….21 Quadro 2 – Modelo de comunicação de Stuart Hall………………………………......22 Quadro 3 – Interesse dos Estudos Culturais……………………………………..........26 Quadro 4 – Agrupamento de categoria, gênero e formato……………………….......40
LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Categoria e gêneros de programas brasileiros…………………………...39 Tabela 2 – Editorias de infotenimento………………………………………….............83
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………...13
2 ESTUDOS CULTURAIS………………………………………………………………. 16 2.1 VERTENTE LATINO-AMERICANA……………………………………………....... 24 2.2 TELEVISÃO E MEDIAÇÃO………………………………………………...………. 30 2.2.1 Gêneros televisivos………………………………………………………………... 32 2.2.2 Gêneros na TV brasileira.…………………………………………………………. 37
3 REALITY SHOW……………………………………………………………………….. 42 3.1 INTIMIDADE EXPOSTA ………………………………………………………......... 42 3.2 NEOTELEVISÃO E A REALITY TV ……………………………………….............. 48 3.3 PRÓXIMIDADE COM O PÚBLICO…………………………………………………. 63
4 INFOTENIMENTO……………………………………………………………………… 69 4.1 VIDA E ENTRETENIMENTO……………………………………………………….. 69 4.2 INFORMAÇÃO E ENTRETENIMENTO………………………………………........ 75
5 JORNALISMO GONZO………………………………………................................... 85 5.1 NEW JOURNALISM………………………………………………………………….. 85 5.2 HUNTER THOMPSON E O GONZO……………………………………………….. 89
6 REALITY JOURNALISM……………………………………………………………… 99 6.1 MEDIDA CERTA…………………………………………………………………….. 100 6.2 PLANETA EXTREMO………………………………………………………………. 112 6.3 EXPEDIÇÃO XINGU………………………………………………………………… 118 6.4 MULHERES ESPETACULARES……………………………………………......... 124 6.5 MAMÃE GENTIL ………………………………………………………………….... 132 6.6 AFINA ROCHA ……………………………………………………………………… 138
7 CONCLUSÃO………………………………………………………………………...…143 REFERÊNCIAS………………………………………………………………………..… 145
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1 INTRODUÇÃO
Transformações estruturais, de mercado e principalmente do perfil da audiência vêm influenciando a forma de se fazer jornalismo no Brasil. Se antes dominavam os meios tradicionais – jornal impresso, rádio e televisão – hoje, novas plataformas são desenvolvidas diariamente para facilitar a transmissão da mensagem até o receptor. A internet, hoje consolidada como veículo de comunicação de massa, ajudou a mudar radicalmente o modo como os brasileiros consumem informação. Para não perder a audiência, os meios tradicionais estão promovendo adaptações a fim de encontrar novas maneiras de transmitir a informação em meio a tanta concorrência. O telejornalismo brasileiro, em específico, passa por transformações que podem ser observadas a olho nu. O jeito de dar a notícia está diferente. Emissoras de norte a sul vêm desmontando, gradativamente, o modelo tradicional e “quadrado” de telejornalismo, tanto no modelo de apresentação quanto nas reportagens. A mensagem telejornalística começa a ganhar tons mais claros de informalidade, intimidade e proximidade com quem está assistindo. Como afirmou Martín-Barbero (2009), a televisão deve criar dois mecanismos de comunicação com o público: simular o contato entre eles e aproximá-los, por meio da retórica do direito. Em outras palavras, é preciso criar laços, estabelecer uma relação de intimidade (ROCHA, 2009) e fidelizar a audiência. Por este termo – fidelizar - fica claro que o objetivo aqui é comercial, já que as emissoras pretendem manter ou aumentar o seu público a fim de somar mais receita publicitária. Este trabalho destina-se a estudar uma das formas encontradas pelo telejornalismo de atingir tal objetivo. Trata-se da fusão entre jornalismo e reality show. Esta mistura originou um novo formato na televisão brasileira, algo que classificamos aqui de reality journalism. Este híbrido apresenta características estruturais e de conteúdo de ambos os conceitos e se define como uma nova forma de transmitir a mensagem jornalística. A base teórica do trabalho será apresentada no segundo capítulo, onde será traçado um panorama teórico e conceitual da noção de “gênero”, que nos permitirá uma melhor análise dos objetos em questão. Por gênero entende-se uma estratégia de comunicabilidade que permite o receptor identificar a configuração estrutural e de conteúdo de determinada mensagem ou canal de comunicação. O gênero é a chave para a
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análise de textos massivos, em especial, os televisivos (MARTÍN-BARBERO, 2009). O referencial teórico adotado para o estudo dos gêneros é o dos Estudos Culturais vertente Latino Americana. Optou-se por essa corrente por ser mais próxima da nossa realidade e também pela falta de material da corrente britânica traduzida para o português. Os estudos de Jesús Martín-Barbero - principal nome do movimento sobre televisão, mediação e gênero em si servirão como base desta análise. Feito isso, começa-se a analisar alguns conceitos que ajudam a compor a estrutura do objeto de pesquisa. No terceiro capítulo, será trabalhada a definição do gênero reality show, suas características, formatos e implicações na audiência, tomando como base os artigos publicados pelo pesquisador português Samuel Mateus. O viés crítico-teórico da questão também será abordado, com ênfase nos estudos de Umberto Eco e Jean Baudrillard. No capítulo ganhará destaque, com base nas afirmações de Paula Sibilia (2008), a questão de como a intimidade e a vida pessoal de anônimos e celebridades têm sido expostas cada vez mais nas mídias e atraído a atenção de milhões de pessoas ao redor do mundo. Na quarta parte do trabalho lançaremos um olhar sobre o Infotenimento, conceito criado na década de 1980 nos Estados Unidos para definir a fusão de informação e entretenimento em um mesmo produto. Com base nos estudos da pesquisadora brasileira Fábia Dejavite (2006), pretende-se identificar o que é a notícia de infotenimento e como podemos encontrá-la dentro do cenário jornalístico atual. Esta análise se faz importante para o trabalho, pois a junção de informação e entretenimento é um dos pilares do objeto desta pesquisa. O quinto capítulo fica destinado à discussão do Jornalismo Gonzo, estilo criado e eternizado pelo jornalista norte-americano Hunter Thompson. Esse tipo de jornalismo é praticado quando o repórter passa a ser personagem da própria reportagem, para assim, reportar determinada situação com maior veracidade. É também permitido a esse jornalista narrar sua matéria em primeira pessoa. Serão apontadas as raízes dessa vertente no New Journalism e como ela se tornou um segmento importante, polêmico e divisor de águas dentro do jornalismo. No último capítulo, por fim, indicaremos alguns programas e quadros que podem ser classificados dentro do formato reality journalism. São eles: Medida Certa, Expedição Xingu, Planeta Extremo, Mulheres Espetaculares, Mamãe Gentil e Afina Rocha, exibidos entre 2011 e 2015 pela TV Globo. Optou-se por analisar as produções desta emissora pelo fato de ser a maior rede de televisão do país e por
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ter criado o “padrão globo de jornalismo”. Entendemos que se a mais respeitada e tradicional emissora do país está adotando novos formatos, trata-se então de um importante marco para a televisão brasileira. Ainda pode-se esperar que outras redes sigam seu exemplo futuramente. Optou-se também pela escolha da TV Globo por observarmos que outras emissoras de sinal aberto pouco ou ainda não apresentaram produtos que se apliquem ao objeto desta pesquisa. Já em determinados canais de sinal fechado é possível constatar algumas produções de reality journalism, mas optou-se por deixá-los de fora pois trata-se de um leque muito amplo de canais, o que dificultaria a pesquisa, além de não abrangerem toda a população1. O objetivo deste trabalho, portanto, é analisar esses programas a fim de caracterizá-los como pertencentes ao formato reality journalism, seguindo as propostas desta pesquisa. Importante ressaltar que o objetivo geral da pesquisa é apontar a existência deste formato hoje na televisão brasileira, em um caráter exclusivamente demonstrativo. Não se fará aqui, dessa forma, qualquer juízo de valor sobre os programas. Nossa proposta restringe-se à catalogação dos mesmos exprimindo a ideia de que esse formato corresponde à uma nova vertente na televisão brasileira que precisa ser considerada academicamente. Espera-se que após a leitura do trabalho o leitor poderá ele mesmo tirar suas conclusões acerca dos prós e contras do formato. Esta constatação se torna importante para os estudos de gêneros e formatos da televisão brasileira, já que levanta a bandeira da existência de um novo elemento para dividir espaço com outros já conhecidos. Essa demarcação também mostra o poder de criação e mutabilidade da televisão no Brasil. Sob esse viés, fica implícita a importância contínua de estudos sobre este veículo, que está em constante modificação. Com a nossa proposta, espera-se que futuros programas possam ser analisados e catalogados sob uma nova e mais ampla perspectiva.
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Dados do IBGE de 2015 apontam que apenas um terço dos domicílios brasileiros têm acesso à TV por assinatura. Disponível em << http://tecnologia.uol.com.br/noticias/redacao/2015/04/29/ibge-tv-por-assinaturachega-a-quase-um-terco-dos-domicilios-no-pais.htm >> Acesso em 04/10/2015.
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2 ESTUDOS CULTURAIS
No ano de 1964, era criado na Universidade de Birmingham, na Inglaterra, um grupo de pesquisa que viria a mudar a forma como o estudo da comunicação e cultura era visto até então. Na data, o pesquisador Richard Hoggart fundou, com outros professores, o Centre for Contemporary Cultural Studies, ou em português, Centro para Estudos Culturais Contemporâneos. Nos mais de 30 anos de existência, o grupo interligou diversas áreas do conhecimento a fim de analisar e compreender elementos sociais da contemporaneidade (MARTINO, 2009). Tomando a Cultura como centro norteador, as pesquisas tomavam a História, Sociologia, Língua, Etnografia, Política e outros campos como base de estudo, agregando grande versatilidade teórica além de um espírito crítico e reflexivo sobre os objetos de estudo. A criação do Centro se dá em uma atmosfera social de mudanças no Reino Unido, em especial, pela ascensão da classe operária inglesa no cenário pósguerra. E é justamente essa questão que seria o embrião do Centro e, posteriormente, dos Estudos Culturais como um todo. Em 1957, o professor e pesquisador Richard Hoggart publicou o livro “The uses of literacy”, no qual estudou, através de aspectos da sociologia e história, a formação e vivência cultural dos trabalhadores operários de Londres. Mais especificamente, o livro conta como em um primeiro momento a classe operária inglesa criou uma identidade cultural própria – em oposição à cultura dominante elitista da época – e depois, como essa mesma classe acabou sendo englobada por uma cultura nacional massificada influenciada pelos Estados Unidos. Para Escosteguy (2006), esta era uma das maiores questões político-sociais quando Hoggart escreveu a obra, portanto ele decidira retratar esse cenário em um livro, usando a cultura como peça chave para uma análise sociológica muito mais ampla. Este era um momento de transição, onde “a Cultura” estava sendo substituída por culturas no plural. É dele a ideia de que um grupo pode resistir ou reproduzir uma força cultural hegemônica. O livro exerceu grande influência em outros estudiosos e foi uma das bases do Centro, que foi criado anos depois por ele próprio. Mais do que estudar a sociedade através da cultura, o grupo tinha bases e objetivos muito mais amplos. Fortemente influenciado por movimentos sociais tais quais o Marxismo, a
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Psicanálise e a Nova Esquerda, a luta do Centro era por igualdade e inclusão, da forma mais ampla possível. Igualdade de raça, gênero, sexo, cor e inclusão cultural, educacional, política e social. Nesta luta, a cultura está no centro das atenções, pois eles a enxergavam como um campo de luta em torno da significação social da época. E mais do que isso. Os produtos culturais eram decisivos na construção da hegemonia social, atuando como agentes de reprodução social. Raymond Williams, outro expoente dos Estudos Culturais, defendia que a cultura era a chave que conectava tanto a análise literária quanto a investigação social. Já Edward Palmer Thompson (1963) a via como uma luta entre modos de vidas diferentes. Portanto, trata-se não apenas de um movimento cultural, mas acima de tudo, intelectual e político, como defende Escosteguy (2006, p.141) A proposta original dos Estudos Culturais é considerada por alguns como mais política do que analítica. […] a história deste campo de estudos está entrelaçada com a trajetória da New Left, de alguns movimentos sociais e de publicações que surgiram em torno de respostas políticas à esquerda.
Quando fundou o CCCS (Centre for Contemporary Cultural Studies), Richard Hoggart idealizou o centro em três partes: histórica e filosófica; sociológica; e crítico-literária, unindo dessa forma, diferentes áreas do conhecimento em um mesmo propósito. O objetivo do grupo era estabelecer uma nova forma de se olhar a sociedade, rompendo com tradições vistas até então como universais e intocáveis. Um dos propósitos do Centro era o de levar “trabalho intelectual” para oprimidos do código social vigente, para que eles pudessem perceber e entender a quais pressões estavam submetidos. Essa preocupação sempre se fez latente nos Estudos Culturais, pois para compreender os efeitos dos meios de comunicação, é preciso entender a estrutura social e o contexto histórico do momento. A preocupação dos membros do Centro com o “social” já existia antes mesmo da criação do grupo, quando eles lecionavam na Workers’ Educational Association (WEA), uma associação inglesa de ensino a trabalhadores adultos que defendia educação pública e igualitária. Hoggart, Williams e Thompson eram professores desse lugar e carregavam desde então a vontade de acabar com certas injustiças impostas por uma sociedade estratificada. A autora Maria Elisa Cevasco
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(2003, p. 62) considera que “ensinar nesse tipo de instituição era mais uma intervenção política do que uma profissão”. Outra grande vontade do CCCS era redefinir a conceituação de Cultura. Até então, esta era dividida no Reino Unido, basicamente, entre cultura de minoria e cultura comum. A primeira seria aquela destinada à uma parcela específica da população, de grande poder aquisitivo que detinha o acesso exclusivo à “alta cultura”, como obras de artes de pintores famosos, peças de teatro, filmes clássicos, música erudita, obras literárias importantes, só para citar alguns exemplos. Ou seja, somente um pequeno grupo de pessoas possuía o valor cultural da sociedade. Os defensores dessa realidade temiam que se a educação e o acesso às artes fossem democratizados, a ideia de cultura seria destruída. Em outras palavras, seria “contaminada” e não serviria mais para atender suas necessidades. Do outro lado, há o projeto de uma cultura comum, onde todos os produtos culturais deveriam ser consumidos e produzidos por toda a sociedade. O objetivo era parar de acreditar em uma única Cultura para difundir diversas culturas heterogêneas. Era preciso transferir seu sentido da tradição elitista para as práticas do cotidiano. Raymond Williams, um dos principais defensores dessa expansão, acreditava que Tratava-se de argumentar que a cultura era produzida de forma mais abrangente do que pela elite social que se apropriava dela, que era muito mais disseminada do que essa noção presumia, e que o ideal de uma educação em expansão era que se deveria ampliar o que tinha sido restrito em termos de distribuição e acesso (WILLIAMS, apud CEVASCO, 2003, p.51).
Essa tentativa de ruptura entre duas culturas acabou resultando em um dos principais legados dos Estudos Culturais para a área de comunicação. Eles defendiam que tudo era cultura e tudo podia – e deveria – ser analisado com um olhar crítico, despido de qualquer preconceito. O termo “cultura de massa”, aliás, comumente usado para descrever as formas culturais destinadas e consumidas pela população de menor renda, é evitado por alguns autores dessa escola por soar preconceituoso. Mas esta não é uma simples questão de nomenclatura. A preocupação com os processos de dominação e subordinação das classes baixas, como já foi dito, era umas principais preocupações dos autores. Para o teórico
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Douglas Kellner (2001) a principal inovação do movimento foi esta, a de enxergar a importância da cultura da mídia e o modo como ela está relacionada com os processos de dominação e resistência. Essa questão em específico – dominação e subordinação – não era tratada com tal empenho pelas outras escolas, portanto, como definiu Kellner (2001), trata-se de um marco para os Estudos Culturais. Afinal, não basta apensar estudar a mensagem “popular” – televisão, música, futebol – deve-se conhecer também a quem ela é destinada e em que contexto social esse público está inserido. Para Luís Mauro Sá Martino (2009, p. 246), “os Estudos Culturais abriram espaço para grupos marginalizados ganharem legitimidade acadêmica suficiente para se firmar como pontos importantes da sociedade”. Esses grupos a que Martino se refere, só para citar alguns exemplos, são os pobres, negros, operários, gays, latinos, entre outros. Outro ponto inovador dos Estudos Culturais foi começar a analisar determinados objetos da cultura popular que definitivamente estavam na vida das pessoas, mas até eram então ignorados pelos acadêmicos. Agora, esses objetos passariam a ser estudados de forma séria e sistemática. Cinema hollywoodiano, literatura popular, desenhos animados, filmes, música pop, moda, futebol, entre outros, eram agora objetos de estudos, afinal, tudo isso fazia parte da cultura que milhões de pessoas consumiam diariamente não só no Reino Unido, mas em todo o mundo. Em 2014, ano de comemoração dos 40 anos da criação do grupo, a página oficial da Universidade de Birmingham na internet classificou, de forma resumida, o trabalho do Centro da seguinte forma: Usando ensino inovador, métodos de pesquisa e geralmente adotando um compromisso politizado com os temas, o Centro foi um dos primeiros corpos acadêmicos a encarar a cultura de massa – música pop, programas de televisão, moda – de forma séria.
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Como se pode ver, a multidisciplinaridade sempre foi um dos destaques do movimento. Segundo Escosteguy (2006, p.146), as primeiras áreas de pesquisa do grupo foram as “subculturas, as condutas desviantes, as sociabilidades operárias, a escola, a música e a linguagem”, temas até então esquecidos por outros 2
Disponível em <www.birmingham.ac.uk/schools/historycultures/departments/history /research/projects/cccs/index.aspx> Acesso em 25/08/2014. Tradução nossa.
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críticos. Esta nova abordagem não era vista com bons olhos por alguns setores tradicionais de pesquisa, que viam no Centro uma ameaça, já que seus estudos poderiam vir a abalar o que já estava consolidado por eles. Algumas instituições tradicionais da Inglaterra, inclusive, chegaram a acusar o novo grupo de viver em uma “marginalidade institucional”, como observou Escosteguy (2006, p. 176). Apesar das críticas e do preconceito inicial, o Centro para Estudos Culturais Contemporâneos acabou se firmando como um programa de pesquisa respeitado, admirado e copiado por outras instituições com o passar dos anos3. Trata-se, afinal, do início dos Estudos Culturais, um movimento teórico-político que construiu um novo campo de estudo interdisciplinar ao mesmo tempo que tentou construir um projeto de correção sócio-política (ESCOSTEGUY, 2006). Uma comprovação importante que o movimentou ajudou a expandir foi a de que não só analistas e teóricos tinham capacidade de decodificar a mensagem popular, mas sim o público em geral. Esse público, portanto, também deveria ser ouvido. Cada indivíduo tem uma certa capacidade de leitura, a qual permite as pessoas relacionarem o que veem/leem/ouvem com sua vida cotidiana. Os estudiosos do Estudos Culturais acreditavam que em cada produto cultural, seja ele qual for, sempre haverá um texto a ser identificado. Esse texto é a mensagem que determinado produto passa ao público, seja ele explícito ou não. Para Escosteguy (2006), as pesquisas feitas pelos Estudos Culturais podem ser baseadas em três estudos: produção, texto e cultura vivida. Cada aspecto de estudo tem suas próprias características, mas todos estão relacionados entre si, com conexões internas. Vale ressaltar que o que vêm representado em um texto não é um fato objetivo, mas sim repleto de significados que lhe foram atribuídos por práticas sociais. Mas toda essa ideia de leitura de texto só foi possível graças à uma tendência inaugurada pelos Estudos Culturais: o estudo da recepção. Aqui, o foco do processo comunicacional está no receptor e como ele entende a mensagem – derrubando por terra o conceito de que a mensagem sempre seria decodificada da mesma maneira por todos. Muitas vezes, inclusive, a leitura feita pelo receptor é completamente diferente daquela imaginada pelo produtor, já que ele normalmente articula a mensagem com seu background e a partir daí produz significado próprio. 3
Em 2002 o Centro foi fechado pela Universidade de Birmingham sob o argumento que era preciso fazer uma reformulação no grupo. Professores e alunos foram remanejados para outros departamentos.
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Quem teorizou essa percepção foi Stuart Hall, um dos grandes nomes dos Estudos Culturais, com o livro “Enconding/Decoding in television discourse” de 1973. Na obra, o autor defende a pluralidade das modalidades de recepção dos programas de televisão e desenvolve modelos de transmissão da mensagem. Abaixo, o esquema mais importante desse sistema: Quadro 1 – Modelo de codificação/decodificação de Stuart Hall
Fonte: Saker (sem data)
No esquema, Hall exemplificou seus estudos da relação entre o texto e a audiência. Aqui, codificação se caracteriza pelo processo em qual um texto é construído por seu emissor; decodificação é o que acontece quando essa mensagem chega ao receptor e ele lê, compreende e interpreta esse texto4. Todo o processo se dá pelo suporte de referências de conhecimento, relações de produção e infraestrutura técnica. Ou seja, cada indivíduo possui esses elementos de forma diferente e cada um decodifica a mensagem de acordo com eles, por isso o produto nunca será compreendido da mesma forma por todas as pessoas. No mesmo livro, o autor defende que a comunicação funciona como um “processo em termos de uma estrutura produzida e sustentada através da articulação de momentos distintos, mas interligados – produção, circulação, distribuição/consumo, reprodução” (HALL, apud SOUZA, 2007, p.4). Observe no esquema abaixo. 4
Vale reforçar mais uma vez que a ideia de texto aqui apresentada tem o significado de conteúdo de uma mensagem, seja ela escrita, auditiva ou visual.
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Quadro 2 – Modelo de comunicação de Stuart Hall
Fonte: o próprio autor
Como se pode observar, o processo comunicacional aqui proposto é circular e não mais unidirecional, como era estabelecido. Sob essa perspectiva, o receptor ganha um papel de extrema importância dentro da transmissão da informação, podendo influenciar a própria produção da mensagem. Outro ponto defendido por Hall (apud COSTA, 2006) é que a mensagem (aqui ele se refere à de televisão) pode ser interpretada de três formas: dominante, negociada ou oposicionista. A posição dominante é aquela onde a mensagem é decodificada de acordo com sua construção, ou seja, da forma que o emissor espera que ela seja entendida. Aqui, o objetivo do produtor é alcançado com êxito. A posição negociada ocorre quando o sentido da mensagem entra em negociação na cabeça do receptor, segundo suas condições particulares. Já a posição de oposição se caracteriza pelo fato de alguém ter entendido o sentido do emissor ao produzir a mensagem, mas mesmo assim ele escolhe interpretá-la de outro jeito, seguindo uma referência alternativa, que não a dominante. Os Estudos Culturais passaram por três grandes fases, desde o momento de sua fundação até os dias atuais, segundo Escosteguy (2006). A primeira fase é aquela anterior à criação do Centro, portanto, antes de 1964. Esse período é considerado como a fase embrionária do movimento, onde os primeiros textos começam a surgir, como os livros de Raymond Williams em 1958, Richard Hoggart em 1957 e Edward Thompson em 1963. Estas publicações foram feitas de forma isolada, sem pertencer a nenhum movimento específico; os autores também não tinham o objetivo de usar as obras como base teórica de um novo movimento político-cultural. A criação do Centro – e posteriormente dos Estudos Culturais em si – só viria anos depois, e iria contar essencialmente com estes textos para fundar
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uma nova metodologia de estudo e trabalho. Esse início do movimento contava com forte influência de tendências políticas, como a Nova Esquerda, já que um dos desejos dos primeiros autores era o de se criar um novo projeto político. A segunda fase se inicia com a criação do Centro e vai até sua fase de consolidação. Mesmo sendo vítima de preconceito, resistência e até boicote de outros acadêmicos de dentro da mesma Universidade, – professores do departamento de Sociologia, por exemplo, mandaram uma carta à Hoggart avisando que se eles ultrapassassem o território intelectual e “invadissem” áreas de estudo da Sociologia, o Centro sofreria represálias – o grupo se firmou como um dos mais sérios e respeitados da Europa em um período de consolidação, que ocorreria até o começo dos anos 1980. Esses anos compreendem a fase de uma abundante produção científica por pessoas de dentro e fora do Centro, com a elaboração de livros, artigos, ensaios e resenhas sobre os mais variados temas. Sob o viés da política, continua forte a compreensão da relação entre “poder, ideologia e resistência” dos meios de comunicação. (ESCOSTEGUY, 2006, p.153). Já a terceira etapa começa em meados dos anos 1980 e continua até os dias atuais. O fato mais marcante desse período é a internacionalização dos Estudos Culturais, que agora ganham novos ares, e passam a influenciar e ser influenciados por outros grupos de pesquisadores do planeta. Países como Estados Unidos, Austrália e África do Sul deram continuidade ao movimento de forma mais local. É a fase de abertura e de trocas de experiência. Porém, sob o viés da política, esse período é de enfraquecimento, já que deixa se de abordar as relações de classe, raça e gênero, por exemplo, para focar na mídia em si, ignorando as relações sociais que a cercam, segundo Escosteguy (2006). A importância dada à recepção é um dos fatores que contribuíram para isso, visto que os estudos focaram na individualidade de cada receptor, esquecendo a ordem social a qual ele estava inserido. A ênfase na análise do texto e do discurso também contribuiu para essa mudança, já que a análise política e institucional vai para segundo plano. Mesmo com a extinção do Centro em 2002, que funcionava como “embrião” do movimento, os Estudos Culturais permanecem firmes atualmente e se constituem de matéria obrigatória nas universidades de Comunicação e Sociologia de todo o mundo. Além de fonte de consulta e pesquisa, essa escola se tornou um marco para todos aqueles que desejam estudar as formas de cultura populares e a relação entre cultura, identidade e poder. Para o futuro, os próprios membros dos
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Estudos Culturais desejam que o movimento nunca perca a ligação com a postura política de transformação e que as ações não fiquem só na teoria e saiam do papel (CEVASCO, 2003). 2.1 VERTENTE LATINO-AMERICANA
Como dito anteriormente, a partir dos anos 1980, os Estudos Culturais passaram pela fase de internacionalização e chegaram a outros lugares do mundo. Nesta parte do trabalho, será estudado como o movimento se deu nos países da América Latina, ressaltando suas similaridades e divergências com a corrente britânica. O seu surgimento neste continente se dá em meados dos anos de 1990, ainda de forma tímida, com nenhuma relação clara e direta com o movimento inglês. Nesse período, começaram a ser produzidos os primeiros textos com o viés dos Estudos Culturais, mas poucos escritores até então se consideravam parte da corrente. Sua implantação em território latino tem pontos comuns e distintos com a formação na Inglaterra. Neste país, os Estudos Culturais tiveram início – mesmo que de forma não oficial – com a publicação isolada de livros que se tornariam chave para estudos futuros, como as obras de Williams, Hoggart e Thompson. Ou seja, o embrião do movimento surgiu na literatura para depois ser oficializado na academia. Aqui na América Latina o movimento emerge de dentro de universidades, já que a corrente já era conhecida em todo o mundo. Porém, mesmo dentro da academia, seu surgimento acontece em um “espaço relativamente precário” (ESCOSTEGUY, 2001, p. 51), visto que o movimento nasceu e sobreviveu durante muito tempo dentro de poucos departamentos, sendo debatido apenas por alguns professores ou sendo objeto de linha de pesquisa de programas de pósgraduação. Este cenário se faz “precário” se comparado à instalação dos Estudos Culturais em outros lugares, onde fora atingido um rápido processo de institucionalização, como ocorreu nos Estudos Unidos e Austrália, por exemplo. Outro fator que pode ser considerado precário envolvendo os Estudos Culturais na América Latina é, atualmente, a falta de referencial teórico específico para pesquisa. Escosteguy (2001) critica o fato de não haver trabalhos publicados com detalhes sobre a emergência do movimento em território latino. Outro fator preocupante apontado por ela é a baixa propagação na América Latina de trabalhos sobre os Estudos Culturais. “São escassas, para não dizer quase
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inexistentes, as traduções – tanto em português quanto em espanhol – de textos importantes sobre a configuração dos estudos culturais” (ESCOSTEGUY, 2001, p.17). Feitas essas considerações, tenta-se entender agora o contexto da América Latina no período em que o movimento foi recebido. Quando os Estudos Culturais são implantados, a América Latina enfrenta um momento de transição para uma nova conjuntura sócio-políticoeconômica e cultural, que, segundo Escosteguy (2001) se configura basicamente pela consolidação de novas indústrias culturais latino-americanas e pela globalização do capital e da política. Atrelado a isso, um outro marco importante é a eclosão de movimentos sociais por todo o território latino, que lutavam contra processos de repressão e discriminação. Essas ações sociais despertaram a atenção da academia, que passou a analisar e estudar a movimentação social de forma bem mais intensa. Portanto, pode-se definir que a emergência dos Estudos Culturais aqui se dá em um cenário de redemocratização, abertura externa (globalização), valorização cultural, transformações estruturais-políticas e eclosão de movimentos sociais. Todos esses aspectos tiveram grande influência na forma como o movimento se daria neste território. Os pontos listados abaixo configuram as principais áreas que foram estudadas com a ajuda da Comunicação na América Latina. São eles Influência da política econômica internacional no desenvolvimento cultural dependente; Políticas dos meios de comunicação e, sobretudo, a democratização da comunicação; Comunicação popular/alternativa como base da democratização da comunicação; Papel dos meios massivos na transformação das culturas nacionais. (ESCOSTEGUY, 2001, p.51)
Diante dessa perpesctiva, conclui-se que a emergência dos Estudos Culturais nesse território ocorre a partir da experiência do popular vinculada ao espaço da comunicação; e as práticas do cotidiano constituem seu principal objeto de estudo. Escosteguy (2001, p. 49) defende que “o interesse central dos estudos culturais é perceber as intersecções entre as estruturas sociais e as formas e práticas culturais” – ver figura abaixo. E foi diante de fortes efervecências sociais que o movimento se firmou na América Latina. Portanto, como não poderia deixar de ser, a preocupação com o social se fez um dos pilares dessa corrente – assim como nos estudos britânicos. O pensar a mudança da sociedade se faz então o marco inicial
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da reflexão latino-americana. Para Escosteguy (2001), a análise das práticas sociais é o grande indicativo do compromisso social que o movimento adotou5. Quadro 03 – Interesse dos Estudos Culturais
Fonte: o próprio autor
Mas não foram apenas as questões sociais que ganharam destaque nesse momento. A noção de Comunicação e Cultura também passaram por transformações com a chegada dos Estudos Culturais. Basicamente, esses dois conceitos passaram a ser mais interligados, onde um exerce grande influência no outro. Do ponto de vista metodológico, não se pode mais analisar completamente a comunicação sem pensar na cultura e vice-versa. A proposta teórica latinoamericana “entende a comunicação como uma questão de cultura” (ESCOSTEGUY, 2011, p.57). Os processos de globalização e as profundas mudanças na esfera política criaram uma nova valorização do cultural, que abrage todo o território latino. Diante dessa nova perspectiva, falar de comunicação é falar de práticas sociais. A relação entre comunicação e ciêncais sociais também foi um dos marcos teóricos dessa corrente. Devido à forte preocupação social dos Estudos Culturais
latino-americanos,
os
autores
defendiam
que
os
processos
comunicacionais deveriam ser vistos com forte referencial teórico nas ciências socias, já que esta seria capaz de fornecer parâmetros teóricos mais específicos para a análise da sociedade; ela serveria de apoio para a comunicação para que se formulasse uma análise sociológico-cultural mais completa. Por outro lado, a noção de Cultura também ganhou novos formatos e funções. Ela deixa de servir como 5
Antes de se dedicar fundamentalmente à análise de práticas sociais, o foco dos pesquisadores estava na leitura ideológica das mensagens transmitidas pelos meios de comunicação.
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simples intermédio social – isto é, é através dela que se definem e homologam certas estruturas e condições sociais – para se tornar também uma construtora e transformadora da esfera social por si só. Essa mudança de paradigma desloca a figura da cultura como simples meio para um agente modificador em sua própria forma. Assim como na escola britânica, o estudo da recepção foi amplamente discutido na América Latina e com definição parecida – espaço no qual os sentidos sociais passam por ressignificação. As primeiras abordagens surgiram dentro da temática das culturas populares. A relação entre consumo cultural e recepção se tornaram uma das investigações preferidas da corrente, tanto que, houve uma certa “obsessão” do tema com base nas leituras negociadas. Segundo Escosteguy (2001), essa é uma crítica que se faz não só à corrente latinoamericana, mas sim também a outras regiões. Outro fator em comum entre os movimentos latino-americano e britânico é a utilização de recursos etnográficos como principal método de estudo da recepção. Já estabelicido como o mais usado por outras correntes, os pesquisadores latino-americanos fizeram amplo uso do mesmo, que ainda continua sendo um dos pilares dos Estudos Culturais em geral. Porém, um fator que destoa o estudo da América Latina de outros é a não incorporação do instrumental semiológico na análise das mensagens enviados ao público. Segundo Escosteguy (2001), alguns pesquisadores daqui inclusive teciam críticas à esse instrumental, focalizando suas análises então às abordagens apenas no relato dos próprios receptores. Um dos mais conhecidos e respeitados estudiosos de recepção em todo o mundo é Jesús Marín-Barbero, autor de diversos livros e membro dos Estudos Culturaris latino-americanos – o qual será estudado nas próximas páginas. Ditas as principais características desta corrente, traçam-se agora alguns paralelos específicos com a corrente “mãe” dos Estudos Culturais. Como já explicado anteriormente, ambos os movimentos analisavam a relação entre comunicação, sociedade e política; eram preocupados com fatores e movimentos sociais, os dois países passavam por grandes transformações estruturais na época da implantação; análise de práticas cotidianas; análise de meios de comunicação dito populares; elevação do grau de importância da cultura na sociedade e utilizam ampla do estudo da recepção. Outro fator em comum é a preocupação com a questão das identididades nacionais. No Reino Unido, Stuart Hall se tornou o
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principal teórico a abordar a questão das identidades com a publicação de importantes livro a respeito, como “A identididade cultural na Pós-Modernidade” e “Identididade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais”. Com eles, Hall trouxe o tema da criação de identididades para o palco dos Estudos Culturais. Devido à sua enorme importância, o estudo continuou na América Latina, onde intelectuais demonstravam certa preocupação com a questão da identidade latino-americana e das culturas nacionais. O desafio é produzir um conhecimento sobre o social que não se traduza somente em renovação de temas, objetos e métodos, mas, sobretudo, em projetos capazes de relacionar o desenvolvimento da comunicação com o fortalecimento a solidariedades e ampliação de formas de convivência cidadã. (ESCOSTEGUY, 2001, p. 57)
As diferenças apontadas até então são poucas, como a implantação do movimento em cada lugar e a não utilização de recursos semiológicos pelos latinos. Como os movimentos ocorreram em tempos e lugares diferentes, há outros diversos pontos de divergência, mas que não cabem ser descritos neste trabalho. O que pode ser ressaltado são algumas diferenças específicas sobre os movimentos, como por exemplo, o acréscimo dos latinos-americanos à questão da relação entre estado nacional, mercados e meios de comunicação. Evitando velhos dualismos teóricos, no que tange àqueles que detêm o poder e àqueles que não têm poder nenhum, os estudiosos latinoamericanos, tais como García Canclini e Martín-Barbero, propõem categorias analíticas como o sincretismo, a hibridação e a mestiçagem [...] para clarificar processos de apropriação, adaptação e vocalização culturais na mediação entre prática cultural, cultura popular, meios de comunicação democráticos e política. (GOLDING E FERGUSON, apud ESCOSTEGUY, 2001, p.57).
Outro ponto que vale destaque, até à nível de exemplificação, é a questão do feminismo6 envolvendo as duas correntes. Enquanto os britânicos
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Os Estudos Culturais britânicos sempre tiveram uma estreita relação com o movimento feminista, inclusive dentro do próprio CCCS. Em 1978, foi veiculada uma publicação coletiva chamada Women take issue onde escritoras-feministas analisavam como os meios de comunicação reportavam a mulher e também tentavam
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utilizavam este movimento social como um dos principais instrumentos para analisar a representação da mulher nos produtos culturais, a corrente latina-americana abre mão desse recurso, embora também estude a mulher dentro dos processos de comunicação. Porém, foi escolhido não utilizar os conceitos feministas na hora de analisar o papel delas no estudo de recepção das mensagens televisivas. Alguns autores discutiam se era a mulher quem controlava a programação de TV dentro de casa, e quais eram os efeitos disso. Aqui, a mulher era vista apenas como mais um telespectador (a), deixando de fora da análise o papel e a representatividade dela na sociedade, o que antes fora amplamente discutido pelos estudiosos ingleses. Como o Brasil se encontra incluído dentro das persepções dos Estudos Culturais latino-americanos, vale levar em conta a reflexão feita por dois pesquisadores sobre como o estudo de recepção desta corrente chegou até nosso país. É de conhecimento que os pesquisadores brasileiros, quando tratam de recepção, possuem uma certa predileção pelos estudos latinos, talvez pela proximidade teórica e geográfica. Se a utilização dos conceitos de Martín-Barbero e companhia é bem agrangente, as críticas à essa corrente são poucas. A falta de uma análise crítica brasileira resulta na falta de questionamentos que poderiam melhorar as pesquisas nacionais, segundo Boaventura e Martino (2010). Na investigação brasileira sobre a recepção, predominam, assim como nos Estudos Culturais, a falta de clareza entre os conceitos empregados, a aplicação instrumental das proposições teórico-metodológicas e a defesa pouco esclarecida da interdisciplinaridade, por exemplo. Consideramos que seria útil, portanto, ao desenvolvimento dos estudos de recepção brasileiros, implementar mais pesquisas sobre as limitações epistemológicas, teóricas e metodológicas da proposta dos Estudos Culturais. Assim, as contradições inerentes a esses estudos poderiam ser explicitadas, a fim de uma compreensão mais aprofundada sobre as possibilidades de pesquisa que os Estudos Culturais trazem de fato. (BOAVENTURA; MARTINO, 2010, p.18)
De volta às questões latino-americanas como um todo, são traçadas algumas hipóteses de como o movimento continuará em um futuro próximo. Uma das suposições apontada por Escosteguy (2001) é que a relação entre práticas culturais e outras práticas (econômica, política, ideológica etc.) vão se tornar cada comprovar que elas tinham autoridade sobre as práticas de leitura dessas mensagens. Congressos e palestras também eram organizados constantemente sobre o assunto.
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vez mais problemática no atual7 desenvolvimento dos Estudos Culturais no contexto latino-americano8. Além disso, alguns escritores acreditam que o papel dos intelectuais na sociedade vem sofrendo um processo de descrença. A autora afirma que a principal consequência disso seria a perda do “pensar o social”, tão característico no início do movimento. E as más previsões não param. É possível que as análises contemporâneas estejam indicando um outro processo, o de despolitização dos Estudos Culturais na América Latina, da mesma forma que aconteceu com a corrente britância em meados dos anos 1980.
2.2 TELEVISÃO E MEDIAÇÃO
Nos estudos de televisão, os pesquisadores comumente dividem alguns aspectos do veículo para melhor o estudo e a análise do mesmo. Uma das formas mais conhecidas se dá pela divisão e organização de elementos que a tevê utiliza para se estruturar e também aqueles apresentados aos telespectadores. Sob essa perspectiva, um dos elementos mais propícios para análise do meio é o gênero televisivo, cuja definição será vista mais adiante. Portanto, antes de uma análise específica sobre gêneros, faz-se agora um estudo sobre a televisão na América Latina a partir das definições de meio e mediação propostas por Jesús MartínBarbero, dando continuidade às análises dos Estudos Culturais. Segundo Moresco e Ribeiro (2014), o autor nasceu em 1937 na cidade de Ávila, na Espanha, e aos vinte e seis anos de idade se mudou para Colômbia, onde vive até hoje. Doutor em Filosofia pela Universidade de Louvaina, na Bélgica, ele passou por diversas universidades onde atuou como professor e diretor de centros e departamentos. Martín-Barbero é um dos mais importantes pensadores do estudo da comunicação e cultura na América Latina, tendo publicado diversos livros e artigos. [Martín-Barbero] marcou e contribuiu para a projeção de uma teoria latinoamericana de Comunicação, estabelecendo definitivamente a relação entre comunicação e cultura, propondo questões novas, rupturas e abordagens que continuam influenciando ou pelo menos provocando pesquisadores de todo o mundo. (RABELO, 1998, p.2) 7 8
Vale ressaltar que esta constatação foi publicada em 2001. A autora não deixa claro no livro o porquê de defender essa ideia.
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No livro “Dos meios às mediações”, sua obra mais importante, o autor fornece os elementos necessários para se poder pensar a recepção a partir das mediações. Martín-Barbero (2009, p. 294) define as mediações como sendo “os lugares dos quais provêm as construções que delimitam e configuram a materialidade social e a expressividade cultural da televisão”. Outra definição mais ampla ressalta a importância da mediação nos processos de comunicação: As mediações atuam como elementos de apropriações, recodificações e ressignificações dos receptores, não sendo possível pensar produção, recepção, meio e mensagem de outra forma a não ser como um processo contínuo de mediações. Somente por meio do estudo das mediações é possível compreender o intercâmbio entre produção e recepção. (TEMER; NORMANDO, 2014, p.155)
Na obra citada, Martín-Barbero (2009) propõe três lugares de mediação da televisão: a cotidianidade familiar, a temporalidade social e a competência cultural. No aspecto da cotidianidade familiar, o autor defende a ideia de que a família é a unidade básica de audiência na América Latina, portanto, ela é um dos espaços fundamentais de leitura e codificação da televisão. Além de ser um campo para estudo de recepção, o conceito da família é tão forte que imprime suas marcas na produção de textos televisivos – processo circular da comunicação. Outro ponto levantado por Martín-Barbero (2009) é sobre a ideia de que a televisão rompia com a moralidade e as tradições das famílias. Para ele, esse conceito não existe mais. Por fim ele defende que a televisão cria dois mecanismos de comunicação com as famílias: simulação do contato e retórica do direto. A simulação do contato é mecanismo que se faz necessários para criar uma “ponte” entre a televisão e a família, entre o “espetáculo ficcional” e a “realidade cotidiana” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 296). Esse trânsito se faz necessário para que a família – e os telespectadores em geral – se sinta próxima do que está assistindo e também para que ela entenda com clareza o que está sendo transmitido. Além disso, é preciso conservar a manutenção do contato entre emissor e receptor. Para obter tal êxito, a televisão, normalmente, se vale de dois artifícios: presença de um animador de programa (apresentador, interlocutor, personagem) ou utiliza um tom coloquial na mensagem. O autor defende que é a lógica do contato que articula o discurso televisivo.
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Já a retórica do direto é o dispositivo que aproxima o que passa na televisão com quem está assistindo. As pessoas precisam de sentir próximas do que estão vendo, elas precisam se sentir representadas pelo o que passa na tela. “Ao identificar-se [com a mensagem televisiva], o telespectador passa por um processo de catarse que ameniza suas angústias e/ou alimenta suas esperanças” (TONDATO, 2009, p.5). A função dessa retórica é deixar tudo perto, familiarizado e amigável, para que o telespectador se sinta à vontade com o que assiste. Todo esse processo acaba resultando na sensação de imediatez, que é um dos traços que dá forma ao cotidiano. “O espaço da televisão é dominado pela magia do ver: por uma proximidade construída” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p.297). A temporalidade social é o segundo lugar da mediação proposta pelo autor, no qual ele afirma que a TV organiza seu tempo a fim de reproduzir a mesma matriz de tempo do cotidiano, da vida real - e este tempo seria aquele fragmentado e repetitivo. Copiando essas noções, a tevê consegue inserir o cotidiano dentro dela. Portanto, o tempo na televisão é feito por fragmentos, que começam e acabam para recomeçar. É a estética da repetição, criando o sentimento de duração de programas e atrações (MARTÍN-BARBERO, 2009). Por fim, o terceiro lugar de mediação é o da competência cultural. Nesta parte do livro, Martín-Barbero questiona se o que a televisão produz é bom ou ruim, culturalmente falando. É o duelo daqueles que atribuem à tevê uma decadência cultural, contra os que acreditam haver uma elevação cultural pela televisão. O próprio autor reconhece que esta é uma questão de debate antigo e que dificilmente um dia chegará a uma conclusão unânime. O que se pode concluir dessa polêmica é que a própria noção de cultura vem sido transformada pelo o que a televisão produz, portanto, trata-se de um processo interligado, onde um afeta diretamente o outro.
2.2.1 Gêneros televisivos
Feita essa contextualização a partir dos estudos de Martín-Barbero sobre televisão na América Latina, entra-se agora na questão do gênero em si. Segundo Ferreira (2004), gênero é qualquer agrupamento de indivíduos, objetos, fatos, ideias, que tenham caracteres comuns. Além da televisão, é possível aplicar o conceito de gênero a outras áreas, como a literatura, biologia, cinema, artes, entre
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outros. Portanto, elementos de um mesmo gênero devem apresentar certas familiaridades para que possam juntos ser agrupados em um mesmo conjunto. Segundo Lopes (2010), a teoria dos gêneros surgiu quando o pensador grego Aristóteles classificou três tipos literários no livro “Poética”. São eles: épico, lírico e drama. A partir de então, mudam-se os paradigmas dos estudos literários, que passam a contar com essas definições para melhor classificação e organização das obras de literatura. Ao decorrer do tempo, outras áreas do conhecimento também começaram a se utilizar da teoria dos gêneros para ordenar seus objetos de estudo de forma mais sistemática. Cinema, música, literatura, jornalismo, textos, biologia, informática, televisão, ciência, língua, documentação, só para citar alguns exemplos, seguiram a ideia. Como o objetivo de estudo deste trabalho é o gênero televisivo, o foco será mantido nele. Dando continuidade aos estudos de Jesús Martín-Barbero no livro “Dos meios às mediações”, o autor reserva parte da obra para analisar o papel dos gêneros na televisão. Para ele, o gênero é, acima de tudo, uma estratégia de comunicabilidade, o que permite o mesmo se fazer presente e analisável em um texto (MARTÍN-BARBERO, 2009). Para ele, o gênero não é algo que ocorre no texto, mas sim pelo texto. Segundo o pesquisador P. Fabri (apud MARTÍNBARBERO, 2009, p. 300) o gênero é a unidade mínima da comunicação de massa e é através dele que se deve fazer a leitura dos textos massivos. Outro ponto defendido por Martín-Barbero é que o gênero é o responsável pela mediação da lógica do sistema produtivo e das lógicas dos usos, estando assim no centro do cruzamento das relações de comunicação, cultura e política. Desse ponto de vista, podemos dizer que o gênero articula a produção e a recepção da mensagem com as matrizes culturais do lugar de onde está sendo transmitido. Á nível de exemplificação, o autor cita a telenovela, já que “cada país tem feito da telenovela um particular lugar de cruzamento entre a televisão e outros campos culturais como a literatura, o cinema, o teatro” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p.373). Para o autor, o gênero era um lugar de osmose e fusão de conceitos, estando presente em lugar de destaque entre os cruzamentos de diversas matrizes. Sobre esse cruzamento: Primeiramente deve-se notar que o eixo definidor do gênero (vertical) é atravessado pelas mediações constitutivas da comunicação, cultura e
34 política, mediações essas que também fazem a ligação, no eixo horizontal, entre as matrizes culturais e os formatos industriais. Logo, conclui-se que o gênero integra numa mesma instância a vida social e a maneira como ela é registrada sob a forma de um programa televisivo. (ROCHA; SILVEIRA, 2012, p.6).
Diante desse cenário, segundo Rocha e Silveira (2012), os gêneros não vinculam somente os programas, mas também as concepções de cultura por trás deles, podendo ser considerados como categorias discursivas e culturais. As constatações de Martín-Barbero ajudaram a ampliar o leque da influência dos gêneros, identificando-o como parte funcional de um sistema de produção que envolve a elaboração de produtos televisuais, a audiência e a crítica cultural. As autoras ainda afirmam que o gênero é o lugar de encontro entre a análise do produto televisivo em si e da análise dos contextos sociais de sua recepção. Trazendo a questão para América Latina, local onde Jesús MartínBarbero enxergou suas constatações, é quase impossível estabelecer uma noção geral de gênero, pois cada país tem suas próprias configurações, definidas pela realidade sociocultural. Para Martín-Barbero (2009), é possível definir um gênero na televisão tanto pelas suas características quanto pelo lugar que ocupa na grande de programação da emissora. Além de ser instrumento identificador, a grade de uma emissora tem a função de criar o hábito nos telespectadores de assistirem determinados programas sempre no mesmo horário, construindo uma serialidade. “É a noção de gênero que permite a serialidade, tão importante na cultura de massa, pois permite uma produção contínua, por meio do uso de formatos consagrados” (TONDATO, 2009, p.4). Depois das especulações, Martín-Barbero (2009, p.304) define enfim qual a verdadeira função dos gêneros: “eles são a chave para a análise dos textos massivos e, em especial, dos televisivos”. Em afinidade com essa tendência, está a definição de gênero de Marcia Perencin Tondato9, onde ela afirma que “gêneros são categorias a partir das quais podemos agrupar trabalhos semelhantes, que refletem um momento da sociedade, auxiliando a produção e leitura desses trabalhos” (TONDATO, 2009, p.3). A autora também comenta, citando Feuer (1987), que a abordagem dos gêneros pode ser dividida em três partes: abordagem estética (como 9
Doutora em Ciências da Comunicação pela USP e uma das principais pesquisadoras de televisão no Brasil.
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ele está inserido em um sistema de convenções); abordagem textual (se o texto funciona como instrumento de controle ideológico) ou abordagem ritual leitor-texto (que estuda a troca entre indústria e audiência). Elizabeth Bastos Duarte, doutora em Semiótica pela USP, é uma das mais importantes pesquisadoras brasileiras sobre gênero, especialmente o de televisão. Para ela, gênero é uma: macroarticulação de categorias semânticas capaz de abrigar um conjunto amplo de produtos televisuais que partilham umas poucas categorias comuns. Os gêneros seriam modelizações virtuais, modelos de expectativa, constituindo-se em uma primeira mediação entre produção e recepção; referem-se ao tipo de realidade que um produto televisual constrói, considerando o tipo real que tome como referência o regime de crença que propõe ao telespectador. (DUARTE, 2007, p.4)
A pesquisadora também propõe que há três “arquigêneros” na televisão: factual, ficcional e simulacional. Segundo Duarte (2007), o primeiro atua na meta-realidade10 e propõe a divulgação de fatos verídicos e de interesse público (ex.: notícias); o ficcional atua na supra-realidade11 e propõe uma experiência fictícia, mas com base na realidade, através de verossimilhança (ex.: novelas); e o último é o simulacional, que atua na para-realidade12 e se utiliza de metalinguagem e hipervibilização para criar seus componentes (ex.: reality shows). A autora segue a mesma linha de pensamento de Martín-Barbero e afirma que o gênero é a primeira mediação entre os produtores e os receptores das mensagens. Entende-se disso o fato de que, para acontecer comunicação é preciso ter troca de significados, e é preciso haver um “contrato de leitura” que faça esse processo acontecer de forma garantida – emissor enviar mensagem e receptor recebê-la. Nessa questão, o gênero serviria como uma espécie de “ponte”13 para facilitar a troca de informações, já que sua estrutura apresenta facilidades na hora de se decodificar uma mensagem. Para Gomes (2002, p.18), os gêneros funcionam 10
É um tipo de realidade discursiva veiculada na TV que tem como referência o mundo externo e real. Compromisso com a verdade dos fatos. 11 Produz produtor ficcionais sem compromisso com a verdade, mas buscam relação com o real por verossimilhança. 12 Mundo paralelo dentro da TV onde acontecimentos são artificialmente construídos. É o real artificial. Fonte: Duarte (2007) 13 Definição nossa.
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como uma espécie de “manual de uso” dos meios de comunicação e dos programas de TV. Um dos pontos que comprovam a importância dos gêneros para o público é o fato de que eles fornecem uma indicação de leitura de determinada mensagem antes do receptor decodificá-la de fato14. A identificação do gênero pode despertar o interesse e curiosidade do público, fazendo com que eles consumam o produto15. A indústria se utiliza desse esquema para antecipar uma audiência. Ao passo que o receptor compreende um gênero, segundo Temer e Normando (2009) ele é apto a determinar uma certa forma de comunicação, estabelecer comparações com outros tipos e criar uma expectativa que só será realizada quando o tal conteúdo for exibido. O estudo de gêneros no campo da comunicação é bem amplo, protagonizado por diversos autores internacionais que estudam esse conceito. Para este trabalho, resolveu-se focar na abordagem de Jesús Martín-Barbero por ser um dos autores referência no assunto dentro dos Estudos Culturais Latino-Americanos e por sua proximidade com a questão brasileira. Outros pesquisadores ficam de fora desta pesquisa visto o pouco material traduzido sobre o tema para o português e pela baixa relação com o objetivo deste trabalho. Na sequência, serão apresentadas as visões sobre gênero de outros autores do movimento as quais contribuem de alguma forma para a proposta desta análise. Para Raymond Williams (apud GOMES, 2002), um dos fundadores dos Estudos Culturais, os gêneros podem ser classificados pela forma, assunto e público alvo, a fim de situar a audiência sobre seu conteúdo. A forma seria como ele é estruturado, qual seu formato e como ele é apresentado esteticamente ao público. O assunto permite a análise da mensagem em si que determinado emissor/canal quer transmitir, e o público alvo cabe a análise de qual tipo de telespectador o meio quer atingir. Outro pensador dos Estudos Culturais que vale destaque é John Fiske, autor de renomados livros sobre comunicação e televisão. Fiske é um dos autores que mais de dedicou ao estudo da recepção, elaborando mecanismos de decodificação de mensagens do meio televisivo. Ele também é considerado um
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Para Tondato (2009), os programas de televisão são identificados pelo público por meio de três artifícios: gênero, apresentador e horário de exibição. 15 Para Duarte (2007), nesse sentido, o gênero é uma promessa do enunciador ao receptor.
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autor de referência nos estudos dos gêneros, mas pela escassez de seu material em português, não haverá maiores aprofundamentos de suas teorias. Para o autor, gêneros podem ser definidos da seguinte forma Gênero é uma pratica cultural que tenta estruturar alguma ordem dentro de um vasto campo de textos e significados que circulam em nossa cultura, para conveniência de produtores e da audiência. […] Convenções são os elementos estruturais de gênero que são compartilhados entre os produtores e a audiência. (FISKE, 2010, p.110, tradução nossa).
Para finalizar a exposição de alguns autores, segue agora outra categorização, feita pela pesquisadora Gisele de Carvalho16, que se baseou nas concepções criadas por Miller e Bazerman. Basicamente, é defendida a ideia de que o gênero tem potencial estruturador da ação social. Dessa forma, os gêneros seriam: a) categorias do discurso que derivam da ação retórica tipificada, b) passíveis de interpretação por meio de regras, c) distintos em termos de forma, d) constituintes da cultura, e) mediadores entre o público e o privado. (CARVALHO, apud TEMER; NORMANDO, 2009, p.7).
Passado o momento da contextualização histórica e teórica da noção de gênero, chega o momento de aplicar os conceitos na televisão brasileira, que configura o canal do objeto de estudo deste trabalho. No próximo subcapítulo, será analisada a aplicação das noções de gênero, categoria e formato na televisão brasileira, tomando como base os estudos de José Carlos Aronchi de Souza (2004), principal pesquisador nacional sobre o assunto.
2.2.2 Gêneros na TV brasileira
Uma das primeiras constatações a que Aronchi (2004) chega é a de que a classificação dos gêneros na tevê brasileira não é sistematicamente organizada, como acontece em outros países, onde existem até padrões internacional de catalogação. Aqui, segundo o autor, as definições são bem flexíveis e variam de acordo com os interesses de cada empresa. Ou seja, ao invés de 16
Doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal Fluminense.
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classificarem seus programas em gêneros específicos, os canais de TV preferem ter livre-arbítrio na hora de divulgar “o que é” determinado produto, pois nessa hora fica mais fácil atrair a atenção do telespectador ao invés de ficar preso à uma definição “quadrada”. Os gêneros estão completamente inseridos no ambiente de produção e recepção das mensagens televisivas e acabam servindo como lugar de mediação entre a criação do produto de comunicação e as questões sociais e culturais nas quais o meio está inserido, como já visto anteriormente. O fato é que a os mecanismos envolvendo a elaboração de produtos audiovisuais no país estão em constante mudança e, como não poderia deixar de ser, isso inclui os gêneros. Portando, de acordo com Aronchi (2004), eles não permanecem estáticos em sua definição e formato durante todo o tempo; pelo contrário. Eles estão em constante transformações
e
redefinições
teóricas
e
estruturais,
acompanhando
o
desenvolvimento do mundo externo.
Os gêneros têm história. Essa história está ligada ao desenvolvimento de determinada região ou país. Por isso um programa ou um show de televisão devem ser identificados de acordo com o período da sua produção, para reconhecer os gêneros da sua época. (ARONCHI, 2004, p. 50).
Além
dessas
questões
históricas,
os gêneros
passam
por
transformações por conta do mercado. Uma emissora de televisão, para sobreviver, precisa vender espaço na grade para que empresas anunciem seus produtos; assim, determinado produto ganha visibilidade e a emissora consegue pagar as contas e obter lucro. Segundo Aronchi (2004), no Brasil, a interferência do mercado publicitário nos programas de televisão é muito grande, especialmente nos casos em que uma única empresa é responsável por manter determinado produto no ar. Quando isso ocorre, a emissora se torna refém do anunciante e deve seguir certas recomendações para continuar com o programa no ar. São nesses casos que um gênero pode ser modificado, para atender a exigências da empresa. Ou ainda, a emissora pode alterar a essência de um gênero a fim de manter ou cativar a audiência, já que é preciso exibir o que as pessoas querem ver. O gênero não é, portanto, uma estrutura estática ou fixa, mas sim em
39 constante evolução. As regras que o compõem estão sujeitas a constantes alterações, podendo mesclar-se e fundir-se com as de outros gêneros, originando novas matrizes genéricas (BERNARDES, SILVA, CAPPARELLI, apud ARONCHI, 2004, p. 162).
Essas são as constatações que o autor faz sobre a situação, de forma geral, dos gêneros na TV brasileira. Em sua pesquisa, ele chegou à conclusão de que existem no país 37 gêneros – divididos em 5 categorias - distribuídos entre os canais de televisão. São eles:
Tabela 01: Categoria e gêneros de programas brasileiros
CATEGORIA
Entretenimento
GÊNERO Auditório; Colunismo social; Culinário; Desenho animado; Docudrama; Esportivo; Filme; Game show (competição); Humorístico; Infantil; Interativo; Musical; Novela; Quiz show (perguntas e respostas); Reality Show, Revista; Série; Série brasileira; Sitcom; Talk Show; Teledramaturgia (ficção); Variedades; Western (faroeste)
Informação
Debate; Documentário; Entrevista; Telejornal
Educação
Publicidade
Educativo; Instrutivo
Chamada;
Filme
comercial;
Sorteio; Telecompra
Outros Fonte: ARONCHI (2004, p.92).
Especial; Eventos; Religioso
Político;
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Para chegar à este resultado, o pesquisador analisou durante uma semana os programas exibidos por sete emissoras de canal aberto do Brasil, atento às suas características aliadas com os conceitos de gênero. Fora também analisado como as emissoras montaram sua grade de programação e como elas próprias definiam seus produtos. Está análise foi feita no ano de 1996, portanto é de se esperar que outros gêneros e formatos tenham surgido nesse meio tempo, mas por falta de uma atualização empírica e pela carência de um novo mapeamento, essa continua sendo a análise de catalogação mais atual e completa da TV brasileira. Na mesma pesquisa também foi analisado o perfil dos formatos de televisão. Aronchi (2004) chegou à conclusão que existiam 31 formatos em vigência na TV. Como é impossível pensar em gênero sem levar em conta a categoria e o formato de um programa, vamos à definição deles. Segundo o autor, categoria é a forma de divisão mais ampla, onde o fator crucial a ser levado em conta é o objetivo maior da mensagem. Por exemplo, ela pretende informar ou divertir? Com base nesse aspecto, chegou-se a cinco categorias: entretimento; informação; educação; publicidade; e outros, como pode-se observar na tabela acima. Já o formato pode ser definido como “a linguagem desenvolvida pela televisão para dar forma a um gênero de programa de televisão e transmiti-lo” (ARONCHI, 2004, p.183). Em outras palavras, é como determinado programa é feito, montando, levando em conta sua estrutura. Abaixo, o diagrama exemplifica como estes elementos estão agrupados entre eles: Quadro 4 – Agrupamento de categoria, gênero e formato
Fonte: ARONCHI (2004, p. 47)
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Depois de levantar as estatísticas, formular as relações entre eles e de caracterizar todos as categorias, gêneros e formatos encontrados, o autor chega a algumas conclusões. A primeira delas é que o formato é o elemento fundamental para a classificação de gêneros e que eles são extremamente voláteis entre si. Aronchi (2004) defende que gêneros viram formatos e vice-versa com o decorrer do tempo e a vontade das emissoras. Mas não só eles. A principal constatação da pesquisa é a multidisciplinaridade dos programas de TV brasileiros que podem ser classificados em várias categorias, gêneros e formatos. Alguns deles possuem estruturas extremamente plurais que fazem seus elementos cambiarem entre outros tipos; ou ainda são produtos já estabelecidos e conhecidos do público, mas mesmo assim possuem esse pluralismo, como é o caso do telejornal, que pertence ao gênero jornalístico e tem dentro deles diversos formatos – entrevista, reportagem, opinião, debate, entre outros. O autor termina o livro com a constatação de que “um novo gênero é sempre a transformação de um novo ou vários gêneros antigos […]” (TODOROV, apud ARONCHI, 2004, p. 185). Esta constatação se torna essencial para nossa pesquisa, pois o objeto de estudo aqui defendido é um híbrido resultado da fusão de outros gêneros e formatos. As principais características desse híbrido serão descritas no sexto capítulo. Por agora, há de se elencar e estudar os principais conceitos que o formam.
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3 REALITY SHOW
Feitas as considerações sobre os Estudos Culturais e a noção de gênero, este capítulo fica destinado ao estudo dos reality shows, um dos pilares que formam o objeto de estudo desta pesquisa. Mas antes da análise propriamente dita, é preciso considerar o contexto histórico-cultural que precedeu a implantação desse gênero nas televisões mundiais, afinal, o sucesso desse tipo de programa representa um importante marco cultural na comunicação de massa. Como o próprio nome diz, esses programas são shows de realidade que encontraram na vida real a matéria-prima de suas produções. Na maior parte das vezes são pessoas comuns e situações do cotidiano que ganham notabilidade e despertam a atenção e fixação de milhões de pessoas ao redor do mundo. Para entender essa tendência global, é preciso pensar na evolução das problemáticas que giram em torno do tema. A distinção entre as noções de público e privado e como a intimidade de uma pessoa anônima começou a despertar o interesse de outras pessoas, até se tornar um show televisivo no século XXI, são algumas delas. Para tal análise histórica, há de se tomar por base as pesquisas da antropóloga argentina Paula Sibilia, que estudou como a sociedade legitimou a cultura da exposição de si e da observação do outro, através dos meios de comunicação. Essa retomada histórica se faz necessária para entender o porquê da consolidação da Reality TV em todo o mundo. Após essa abordagem, há de se discutir de forma específica o gênero televisivo reality show e seus reflexos e conexões com o telejornalismo.
3.1 INTIMIDADE EXPOSTA
Para entender as noções de intimidade e porquê cada dia mais ela vem sendo exposta, é preciso estabelecer um paralelo histórico que dê fomento à essa questão, tomando como base uma dicotomia antiga: as noções de público e privado. Uma das principais abordagens do tema, e que ainda hoje é referência, são os estudos do filósofo alemão Jürgen Habermas, publicados há mais de cinquenta anos. O autor faz um resgate histórico até a Grécia antiga para registrar os primórdios dessa problemática e relata que a origem dos espaços públicos pode ser identificada na pólis grega (HABERMAS, apud BARROS, 2008). Para o autor, a
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esfera pública clássica seria aquela onde os indivíduos livres se encontram para compartilhar e transformar valores de política, economia, sociedade, esporte e opiniões em geral. Nesse espaço, todos podem participar para debater assuntos relativos ao bem comum; é o lugar onde o debate poderia criar uma consciência coletiva capaz de desenvolver um ambiente igualitário entre seus indivíduos. Já o espaço privado seria o contrário, aquele da vida doméstica e familiar, normalmente estabelecido nos lares (HABERMAS, apud BARROS, 2008). De maneira sucinta, essas são as definições básicas do autor, que servem mais precisamente de base para os estudos de outras áreas do conhecimento, como Sociologia, Política e Direito. Já no campo da Comunicação, é possível avançar em outros pontos. No livro O Show do Eu (2008), a pesquisadora Paula Sibilia afirma que uma distanção mais clara entre público e privado, como a qual conhecemos, só ganhou força a partir do século XVIII no continente euroupeu, onde a intimidade passou a ser valorizada. Nesse contexto – junto com o despertar da Modernidade - as noções de público e privado ganharam novos sentidos. O privado se localiza dentro de casa, onde todas as ações permanecem em segredo e fora do alçance de outras pessoas; aqui, o indivíduo pode ser ele mesmo, deixando fluir suas emoções, medos, agústias e vivacidade. Entre quatro paredes, ele estava protegido do mundo exterior (SIBILIA, 2008). E é esse o espaço que passa a ser valorizado nesse período. As pessoas viam suas casas como um refúgio, um lugar aconchegante onde a família poderia se encontrar todas as noites. A autora afirma que o lar se transformou no território da autenticidade e da verdade, onde era possível ser você mesmo (SIBILIA, 2008). Já como espaço público se pode entender tudo aquilo que fica da porta para fora, ou seja, o mundo exterior às casas. Nesse espaço, o indivíduo não poderia ser ele mesmo em sua autenticidade, já que ele deve respeitar certas normas e códigos sociais; em alguns casos, é até preciso usar uma máscara para lidar com algumas situações do dia a dia. Portanto, para Sibilia (2008), existem dois sujeitos: o eu privado (interior, oculto e autêntico) e o eu público (exterior, visível, mascarado). Essa divisão se fez muito nítida na sociedade industrial euroupéia entre os séculos XVII e XIX, mas com o passar do tempo essas barreiras começaram a desmoronar. Para a pesquisadora, um dos principais motivos dessa guinada se encontra na mudança de personalidade dos indivíduos, que de introdirigidos passaram a ser alterdirigidos. Antigamente, para se descobrirem e
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entenderem quem eram, as pessoas voltavam-se para si mesmas, em uma profunda introspecção, que deveria ser feita em um espaço privado. Um mecanismo que ajudava nesse processo era a escrita, que Sibila (2008) define como uma viagem auto-exploratória convertida no papel. A autora afirma que escrever dentro de casa era uma formas mais eficazes de auto-reflexão e descobrimento. Um dos estilos de escrita que mais ganhou adeptos nesse período foi o diário, que servia às pessoas como meio de desabafo de dilemas e angústias, além de funcionar como registro de memórias17. Essas características são marcas da personalidade introdigirida, que vivenciou seu ápice em séculos passados. Entretanto, em meados do século XX essa perspectiva começou a mudar e as personalidades alterdirigidas passaram a ganhar forma e se firmaram como a nova expressão desse tempo. Agora, para compreender a si mesmo, o indivíduo deve exteriorizar seus pensamentos, sentimentos e emoções; é preciso se mostrar para o mundo para entender-se e ser entendido. Trata-se, portanto, de um novo movimento, de dentro para fora, onde a exposição de si é que agora funciona como autodescobrimento. Para a autora, a confissão e a intimidade, que antes eram estritamente pessoais e privadas, agora são expostas através desse novo eu. Assim, a noção de intimidade vai se desmanchando e se reconfigura: deixa de ser um território onde imperavam – porque deveriam imperar – o segredo e o pudor do que era estritamente privado, para se tornar um palco onde cada um pode – e até mesmo deveria – encenar o show de sua própria personalidade. (SIBILIA, 2008, p. 256, grifos da autora)
Diante desse cenário, a autora afirma que as linhas divisórias entre o eu público e o eu privado estão cada vez menos evidentes. A ordem, então, nesse novo sistema é fazer-se visível, para que assim o sujeito se fortaleça e prove sua própria existência, pois “sob o império das subjetividades alterdirigidas, o que é deve ser visto – e cada um é aquilo que se mostra de si” (SIBILIA, 2008, p. 235). O reflexo de si em outras pessoas também se torna primordial nesse contexto, onde não basta 17
A autora faz um paralelo entre os diários de outrora e os atuais blogs. Para Sibilia (2008), os blogs têm forte relações com os diários, pois os mesmos são meios de registro da vida cotidiana e das memórias pessoais. Entretanto, há uma diferença brutal entre eles: enquanto os diários eram feitos para permanecerem no mais absoluto sigilo, os textos dos blogs são concebidos para conquistar visibilidade na internet. Essa mudança de paradigma expressa a transformação ocorrida através dos séculos.
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simplesmente que o sujeito alterdirigido exponha sua intimidade: é preciso que sua imagem seja exibida e observada por outra pessoa. Sibilia (2008) afirma que é por isso que na atualidade as pessoas elaboram imagens de si mesmas através da mídia: porque elas precisam ser vistas por outros. Em lugar disso [da introspecção], tendências exibicionistas e performáticas alimentam a procura de um efeito: o reconhecimento nos olhos alheios e, sobretudo, o cobiçado troféu de ser visto. Cada vez mais, é preciso aparecer para ser. Pois tudo aquilo que permanecer oculto, fora do campo da visibilidade – seja dentro de si, trancado no lar ou no interior no quarto próprio – corre o risco de não ser interceptado por olho algum. (SIBILIA, 2008, p. 111, grifos da autora).
Vivemos hoje no período mais propício para esse sujeito alterdirigido obter êxito, pois há cada dia mais plataformas midiáticas que servem de canais de transmissão. Além das mídias tradicionais, como revistas, jornais e televisão, Sibilia (2008) defende que a internet, mais especificamente a Web 2.018, apresentou o cenário perfeito para a montagem do show do eu, onde pessoas comuns possam exibir sua intimidade a olhares curiosos do mundo inteiro. Isso porque qualquer pessoa que tenha acesso à internet é capaz de dividir com outros internautas o que bem entender. E as novas personalidades compartilham tudo: fotos de família, registros de viagens e confraternizações, desabafos, opiniões políticas, preferências sexuais, enfim, qualquer tópico pode ser partilhado por anônimos e celebridades. O historiador norte-americano Noel Gabler também ressalta a importância da internet nesse movimento de autoexibição. A Internet mostrou-se ainda mais propícia aos artistas da vida [do que os de cinema]. Alguns exibicionistas converteram sua vida em entretenimento e puseram-se do outro lado do vidro, montando câmeras de televisão em suas casas, que, a exemplo das câmeras de vigilância, registravam cada movimento que faziam. Qualquer um que entrasse naquele determinado site podia assistir ao drama, ou à falta dele, que era a existência daquele indivíduo: vida, o show da televisão. (GABLER, 1999, p. 223)
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Web 2.0 é um termo criado no começo dos anos 2000 para batizar uma nova etapa de desenvolvimento da internet, que partilhava agora com os usuários o desenvolvimento das plataformas, a fim de incentivar os internautas a criarem e compartilharem ideias e informações com o mundo. Essa nova etapa é marcada pelo nascimento das redes sociais, blogs e aplicativos de interatividade. (SIBILIA, 2008).
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Essa superexposição da vida alheia “privada”, segundo Sibilia (2008), causa fascínio a olhares curiosos, e graças a existência desses dois papeis (aquele que quer ver e aquele que ser visto) a nova construção da vida pública se firmou. “As confissões diárias de você, eu e todos nós estão aí, em palavras e imagens, à disposição de quem quiser bisbilhotá-las, basta apenas um clique do mouse. E de fato tanto você como eu e todos nós costumamos dar esse clique” (SIBILIA, 2008, p. 27, grifos da autora). Ela ainda afirma que hoje em dia a realidade é muito mais interessante do que a ficção, e tudo que é de verdade desperta a atenção e o interesse de quem quer que seja. Uma intensa “fome de realidade” tem eclodido nos últimos, um apetite voraz que incita ao consumo de vidas alheias e reais. Os relatos desse tipo recebem grande atenção do público: a não-ficção floresce e conquista um terreno antes ocupado de maneira quase exclusiva pelas histórias de ficção. (SIBILIA, 2008, p.34).
Vivemos, portanto, em uma cultura contemporânea marcada pelo anseio da realidade; e se essa realidade se faz presente nos relatos íntimos de alguma pessoa, é isso que será consumido pelo grande número de “bisbilhoteiros” atuantes nas mídias. Sibilia (2008) afirma que tudo vende mais se for real, mesmo que esse real seja apenas uma versão dramatizada da realidade. Mesmo se tratando de um fenômeno moderno, a autora diz que o gosto pelo real data desde o século XIX, quando surgiram os romances realistas/naturalistas e os jornais de sensacionalismo na Inglaterra e Estados Unidos. Com o passar dos anos, a tentativa de reprodução da realidade também invadiu as artes, o cinema, a televisão, e mais recentemente, a internet. A pesquisadora afirma que esses meios de comunicação cada vez mais procuram retratar a vida como ela é, pois é isso que o público moderno deseja assistir. Com isso, Sibilia (2008) diz que as já confusas fronteiras entre o real e a ficção ficam cada vez mais esvaziadas, pois uma esfera contamina a outra. Nesse mundo atual, onde a realidade desperta mais interesse que a ficção, é possível identificar a valorização dos relatos pessoais e, mais especificamente, aqueles que dizem respeito a experiências vividas. Sibilia (2008) defende a ideia de que o que é narrado em primeira pessoa ganha mais destaque e garante maior verossimilhança entre o público. Alguns exemplos desses relatos
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podem ser identificados em discursos como: eu vivi, eu fiz, eu uso, eu provei, eu garanto. A publicidade é uma das áreas que mais se valem desse artifício. Mas não só ela. Os meios de comunicação, em geral, reconheceram o poder desse mecanismo e exploram o apelo de alguém que se expõe através de um testemunho. Um dos exemplos dados por Sibilia (2008) para justificar a superexposição da intimidade são as autobiografias, que fazem enorme sucesso na atualidade19. Esses gêneros despertam a atenção do público justamente por serem registros da realidade, da experiência vivida e da intimidade de seus autores, que aceitaram dividir sua vida com milhões de estranhos. O que se deseja exibir nas telas e páginas de todo o mundo é a intimidade de qualquer pessoa, anônimo ou celebridade, não importa quem seja. A pesquisadora pressupõe que a figura do autor está mais viva e exaltada do que nunca em nossa sociedade e que há hoje um crescente movimento de apreciação maior do autor à sua obra, onde valoriza-se “cada vez mais a personalidade de quem fala em demérito daquilo que é dito” (SIBILIA, 2008, p.160). Para ela, hoje, tornou-se mais importante saber quem um sujeito foi ao que ele fez. Retomando os conceitos do filósofo alemão Walter Benjamin, a autora diz que a aura das obras de artes estaria se deslocando para a figura do autor, colocando este em maior evidência. Após esse deslocamento, o brilho que provem do autor acaba contagiando a obra, mesmo que esta não seja de grande excelência. Benjamin afirma em determinado texto que a simples “garantia de origem” tem o poder de transformar qualquer coisa em uma obra (BENJAMIN, apud SIBILIA, 2008, grifo nosso). Ciente desse anseio pelo real e pela vida cotidiana, os meios de comunicação criaram técnicas para transpor (ou pelo menos tentar) a realidade para dentro de suas páginas ou telas. Para tal, os veículos se valem de recursos de dramatização e ficcionalização. O objetivo dessas técnicas é inventar uma realidade que pareça ficção, ou seja, transformar a vida em uma “realidade ficcionalizada”. Alguns códigos e linguagens precisam ser adaptados e criados para que o conteúdo seja atrativo e compatível com o veículo. Em um reality show, por exemplo, é preciso que a realidade ganhe ares de um programa de entretenimento, com apresentador,
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Na lista dos 10 livros mais vendidos do Brasil na segunda semana de novembro de 2015, categoria não-ficção, as primeiras oito posições são enquadradas como biografias ou “diários” de celebridades. Disponível em <http://veja.abril.com.br/livros_mais_vendidos> Acesso em 13/11/2015.
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estúdio, trilha sonora, anúncios publicitários e acima de tudo um roteiro parecido com o de uma novela para atrair e prender a atenção do público. Vivemos, portanto, na era da exposição da figura, onde tudo pode ser compartilhado através dos meios de comunicação. E aqueles que o de fato fazem, espetacularizam a imagem de si mesmos para obter êxito em sua exposição. Assim, eles podem ser vistos, notados e, mais profundamente, existirem. Como Sibilia (2008) defende, para ser alguém hoje em dia não é necessário estar em privacidade absoluta como antigamente; somente é preciso um computador conectado à internet ou uma câmera de vídeo. Por isso é necessário ficcionalizar o próprio eu como se estivesse sendo constantemente filmado: para realizá-lo, para lhe conceder realidade. Pois estas subjetividades alterdirigidas só parecem se tornar mais reais quando são emolduradas pelo halo luminoso de uma tela de cinema ou de televisão, como se vivessem dentro de um reality show ou nas páginas multicoloridas de uma revista de celebridades, ou como se a vida transcorresse sob a lente incansável de uma webcam. É assim que como se encena, todos os dias, o show do eu, fazendo da própria personalidade um espetáculo. (SIBILIA, 2008, p. 258)
Na passagem acima, a autora cita os reality shows, que se constituem de um dos maiores exemplos dessa espetacularização de pessoas comuns na mídia. Se a vontade de alguns é ser observado 24h por dia por milhões de pessoas em rede nacional, os reality shows oferecem essa oportunidade. Mas não só com anônimos. Celebridades, e até jornalistas, como veremos adiante, topam participar dessa experiência e deixam-se filmar boa parte do dia. Após verificar os processos que levaram à superexposição midiática que vivemos atualmente, a pesquisa destina-se a analisar nas próximas páginas o gênero televisivo reality show. Mas antes de estudar o gênero em si, é preciso analisar e entender em qual contexto televisivo ele está inserido, afinal, os reality shows só existem e fazem sucesso graças ao ambiente de produção e recepção existentes. O próximo subcapítulo destina-se, então, a identificar e analisar esses contextos.
3.2 NEOTELEVISÃO E A REALITY TV
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Estudiosos de todo o mundo perceberam o crescimento da representação da vida real na televisão e traçaram alguns parâmetros e definições gerais que justificam o interesse e a permanência dos gêneros de realidade nas grades de programação. Um dos primeiros teóricos que observou essa tendência na televisão mundial foi o italiano Umberto Eco, um dos escritores e semiólogos mais importantes desta geração. A principal contribuição do autor sobre esse assunto foi publicada em 1984 no livro “Viagem na Irrealidade Cotidiana”, uma série de ensaios que aborda diversos assuntos ligados à contemporaneidade. No capítulo “Tevê: a transparência perdida”, Eco se restringe a falar sobre a Neotelevisão, que para ele corresponde à um novo momento do veículo, com novas características estruturais e de conteúdo. A multiplicação dos canais de TV, a privatização de algumas redes e a invenção de novos aparatos técnicos deram condições para o surgimento dessa televisão. A característica principal da Neotevê é que ela fala (conforme a Paleotevê fazia ou fingia fazer) sempre menos do mundo exterior. Ela fala de si mesma e do contato que estabelece com o próprio público. Não interessa o que diga ou sobre o que ela fale (também porque o público, com o controle remoto, decide quando deixá-la falar e quando mudar de canal). Ela, para sobreviver a esse poder de comutação, procura entreter o espectador dizendo-lhe "eu estou aqui, eu sou eu e eu sou você". (ECO, 1984, p. 182)
A Paleotevê, a que o autor se refere, é o modelo de televisão predominante antes da chegada da Neotevê. Aquele período corresponde entre os anos de 1950 e 1970, quando a televisão estava se consolidando como veículo de comunicação de massa. Nesse momento, o meio ainda possuia uma estreita relação com o Estado e desempenhava forte caráter pedagógico nos telespectadores (ECO, 1984). A partir da década de 1980, surge então a Neotevê, marcando a passagem de uma televisão que falava do exterior para uma televisão que “espelhava a realidade mas, em vez de recorrer a uma enunciação objetiva, distanciada e formal, era a própria voz da gente comum que a relatava na primeira pessoa” (MATEUS, 2012, p. 1). Para Eco (1984), um dos principais marcos da Neotelevisão é a dissolução das barreiras entre informação e ficção. Antes de chegar a essa ideia, o autor define as características de cada categoria. Os programas de informação, para
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ele, deveriam desempenhar três obrigações fundamentais: dizer a verdade; seguir critérios de relevância e proporção; e separar informação de comentário. Ou seja, o público espera que esses programas sempre reportem algo verdadeiro, o qual tenha importância para a vida dele, que não se deixe de reportar certos assuntos em detrimentos de outros e, finalmente, que a opinião da emissora ou do apresentador esteja separada da informação em si. O maior exemplo desses programas são os telejornais. Hoje, trinta anos depois de publicadas, as ideias de Eco se mostram completamente atuais, pois as mesmas exigências ainda se fazem presentes pelo público. Já os programas de ficção, ou de fantasia, englobam os filmes, novelas, séries, shows de comédia, programas de auditório, óperas, ou seja, espetáculos que tem um único objetivo: entreter. Diferente dos programas de informação (que devem ter relevância política), os espetáculos devem apenas execer relevância cultural para o público. Um exemplo usado pelo autor para caracterizar esse fato é de que é perfeitamente aceitável um programa desses cometer algum erro, seja de conteúdo ou técnico. Já para os de informação, os erros devem ser evitados a todo custo. Eco (1984) ainda ressalta que os programas de ficção escondem sempre uma verdade parabólica, ou seja, há uma moral por trás do texto. Essa moral tem a intenção de reafirmar princípios morais, religiosos ou políticos. Apesar dessas distinções, Eco afirma que está cada vez mais difícil separar essas duas categorias. Um dos fatores que sempre foram usados para fazer tal distinção era o “olhar para a câmera”. De regra geral, o autor afirma que quem fala olhando para a câmera assume ser ele mesmo, como um âncora de telejornal. A impressão a ser passada é a de que o discurso é verdadeiro e “eu estou realmente aqui e estou falando com você” (ECO, 1984, p. 183). Já quem não olha diretamente para a o aparelho admite estar representando outra pessoa, além de querer passar a impressão de que a equipe de filmagem não está ali. Este é um típico caso dos atores de novelas. Como dito a respeito da difícil separação entre eles, o autor lista alguns programas na Itália e Estados Unidos que sucumbiram à regra e passaram a utilizar técnicas da outra categoria em suas produções. A partir disso, ele define o seguinte cenário:
51 Em suma, já estamos agora diante de programas em que informação e ficção se trançam de modo indissolúvel e não é relevante quanto o público possa distinguir entre notícias verdadeiras e invenções fictícias. (ECO, 1984, p. 191)
Outro ponto citado por Eco para caracterizar a Neotelevisão são os bastidores. Se antes era extremamente proibido mostrar ao público elementos técnicos ou de produção da televisão, agora na Neotevê essa exibição é completamente aceitável, pois mostra à audiência a veracidade e a sua real existência. Se a Neotevê é considerada a televisão da realidade, nada mais justo do que a própria enxergar-se dessa forma, deixando bem claro aos telespectadores que ela é um veículo de transmissão. Afinal, ela tenta provar ao público que tudo que acontece frente às câmeras é de verdade. Agora, a televisão não dissimularia mais os artifícios de transmissão, pelo contrário, ela os usa para provar que está realmente em determinado local – seja na rua ou no estúdio – gravando aquilo que o telespectador assiste. Um dos exemplos usados no ensaio de Eco é sobre a câmera, que, ao aparecer para o público, desempenha uma nova função. A telecâmara também não deveria ser vista. Hoje, ao contrário, vê-se. Ao mostrá-la, a televisão diz: “Eu estou aqui e, se estou aqui, isso significa que à sua frente está a realidade, isto é, é a tevê transmitindo. (ECO, 1984, p. 192)
20
.
O último ponto trazido pelo autor para caracterizar este novo modelo é sobre a força da encenação: para Eco (1984), a televisão não tem mais condições de reportar eventos naturais. Como ela precisa de certas condições de produção e os participantes dos eventos sabem que vão aparecer na tevê, os acontecimentos reportados perdem sua naturalidade e se transformam em uma grande encenação. Nesse aspecto, o autor traz uma crítica implícita à Neotelevisão, já que a mesma reconfigurou os aspectos do mundo natural, quando veiculados na TV. Diante desses apontamentos, pode-se entender que a Neotevê configura-se por tornar a televisão mais próxima e mais acessível do público. Por 20
A respeito da aparição da câmera para os telespectadores, a pesquisadora Suzana Kilpp aplica essa teoria aos reality shows. Para ela, “a presença de câmera visíveis no panorama reforça dois aspectos da mesma questão: a enunciação da vigilância e a do gênero de programa, que promete que tudo é visto panopticamente” (KILPP, 2010, p.40).
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meio do fortalecimento do contato, socialização e interatividade com a audiência, a relação entre ambos se tornou mais próxima e possível, onde a televisão perde um pouco da aura “sobrenatural”. Nesse cenário, a entrada do público para dentro do veículo se tornou mais possível do que nunca. Afinal, se o real/realidade é o que a nova televisão busca, nada mais natural do que explorar pessoas reais e situações do cotidiano. Diante desse panorama proporcionado pela Neotelevisão, com foco nas dissoluções entre informação e entretenimento, a pesquisadora Vera França afirma que […] as indistinções entre a informação, a ficção e o entretenimento, assim como a ascensão do personalismo e a exacerbação do íntimo (de famosos e de comuns, ou de famosos como comuns e de comuns como famosos), são características da televisão contemporânea que respondem, também e principalmente, à vigência da assim chamada pós modernidade. (FRANÇA, apud SACRAMENTO, 2009, p. 231).
Essa
televisão
contemporânea
defendida
pela
pesquisadora,
portanto, pretende incorporar a realidade cada vez mais à sua programação. Devido ao cenário transformador promovido pela Neotelevisão a partir da década de 1980, pode-se apontar a existência de um novo modelo televisivo, que levou os preceitos da Neotevê ao extremo: trata-se da Reality TV. Este conceito foi criado por teóricos dos Estudos Culturais na década de 1990 após a observação de mudanças estilísticas na televisão britânica e mundial. Segundo Luis Mauro Sá Martino, a percepção desse novo modelo começou a ser notada conforme as barreiras entre ficção e realidade se tornavam mais tênues, como já havia apontado Eco. “O alargamento das fronteiras da representação abriu os caminhos para a construção de uma nova estética da televisão, o que os estudos culturais propõem com o nome de Reality TV – televisão de realidade. (MARTINO, 2008, p.154)
A partir de então, as análises e estudos da Reality TV ganharam espaço e foram cada vez mais exploradas por teóricos de todo o mundo. Hoje, esse modo de se fazer televisão está completamente consolidado em emissoras ao redor do globo e é um dos principais ditadores de estilo e conteúdo de novas produções
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televisivas, já que a busca pela retratação da realidade continua a aumentar, assim como o interesse do público. Em suma, este modelo pode ser definido como Reality TV é sobre o desenvolvimento de um gênero de televisão que agrupa categorias que incluem, em um vasto alcance, programas de entretenimento sobre pessoas reais. Algumas vezes chamada de televisão popular factual, Reality TV está localizada em territórios de fronteira, entre informação e entretenimento, documentário e drama. (HILL, 2005, p. 2, tradução nossa).
De forma mais simples e direta – e como o próprio nome explicita – a Reality TV nada mais é do que a televisão da realidade, aquela focada em trazer a vida real para dentro da telinha. Ela engloba todas as produções que falam do cotidiano e da vida de pessoas comuns. São exemplos desse tipo de televisão os telejornais, as câmeras escondidas, programas de entrevistas e debates entre anônimos, shows de talento, programas policiais, documentários e, claro, os reality shows. A televisão, então, se apropria da realidade não só por questões estéticas e de audiência, mas também porque encontrou ali um formato novo e completamente lucrativo, segundo Martino (2009). Para o autor, a televisão descobriu na vida cotidiana “um depósito de histórias, dramas, relações humanas e conflitos que poderia se adaptar de maneira rápida e simples à lógica específica dos meios de comunicação” (MARTINO, 2009, p. 155). Essa busca pelo real pode ser entendida pelo fato de que tudo que é verdadeiro desperta mais comoção e proximidade com o receptor, como já afirmou Sibilia (2008). Mesmo os produtos de ficção procuram atender essa tendência, tornando suas histórias as mais verossímeis possíveis. Um dos artifícios mais usados para trazer essa veracidade para a tela é apresentar pessoas reais e não personagens fictícios. Esse é o momento em que qualquer um pode se tornar uma estrela de TV, basta estar disposta a compartilhar sua vida. Além das pessoas, qualquer situação banal pode ser transmitida, desde que desperte o interesse da audiência. Há uma variedade de estilos e técnicas associadas com a Reality TV, como atores não profissionais, diálogos improvisidados, imagens de segurança, uso de câmeras portáteis, cobertura de ações que se desdobram enquanto
54 elas acontecem em frente à câmera […] Mais recentemente, Reality TV pode ser associada com tudo e qualquer coisa. (HILL, 2005, p. 41, tradução nossa).
Para Rocha (2009), mais do que dar veracidade à determinado texto, o uso de pessoas comuns em rede nacional é uma forma de legitimar a televisão como mídia doméstica, onde o telespectador pode enxergar a si mesmo. Aqui, a televisão funcionaria como um espelho. Este é o canal mais oportuno a dar à um anônimo o status de celebridade, nem que seja por cinco minutos. “Quanto maior a exposição da vida privada, maior a visibilidade. Quanto maior a visibilidade, maior a inserção social. ” (ROCHA, 2009, p. 5). Sobre essa questão de ver-se na televisão, o sociólogo francês Michel Maffesoli fez algumas considerações a respeito do assunto em um artigo publicado no Brasil em 2004. Para ele Por mais que isso horrorize os críticos politicamente corretos, as pessoas não querem só informação na mídia, mas também e fundamentalmente verse, ouvir-se, participar, contar o próprio cotidiano para si mesmas e para aqueles com quem convivem. A informação serve de cimento social. (MAFFESOLI, 2004, p. 23)
Registrar o que acontece na vida de uma pessoa em particular e transmitir para milhões de telespectadores, como acontece na Reality TV, é um movimento oposto do que acontecia até então. Para Machado e Veléz (2009), o sentido original da televisão foi sempre o de levar informações do mundo exterior para o interior das casas; agora, como já citado, é a intimidade familiar que é exposta para mundo afora. Essa tendência nos dias atuais faz sentido, já que “é preciso se fazer ver para ser considerado” (ROCHA, 2009, p.5). Uma das formas em que anônimos e celebridades podem se fazer vistos com grande intensidade hoje na TV é por meio dos reality shows, que encontraram nesse cenário o panorama perfeito para se consolidar como uma das maiores formas de entretenimento audiovisual de nosso tempo. O reality show é um gênero televisivo que ganhou força mundialmente no fim dos anos 1990 e começo dos 2000, com a criação de diversos programas do gênero. Como o próprio nome diz, ele tem o objetivo de fazer da realidade um show, por meio de técnicas de roteirização e espetacularização da vida
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real. Na busca de ser o mais verossímil possível, os reality show normalmente se valem de anônimos para compor seu elenco, para que assim o público se identifique mais facilmente com ele. O pesquisador português Samuel Mateus, um dos principais nomes do estudo desse gênero no mundo, formulou a definição de reality show. Para ele Reality-show, ou programa televisivo de realidade, refere-se a um vasto e plural género televisivo autónomo, não obstante integrar e adaptar elementos de outros géneros televisivos como o documentário, o concurso, o drama, a ficção ou a novela. Dotado de diversos formatos ou sub-géneros, procede a uma muito singular mediatização da interacção social caracterizando-se por incidir a sua atenção na banalidade do quotidiano através do relato, na primeira pessoa, das tensões, conflitos e angústias que o indivíduo experiencia diariamente, na sua vida profissional, pessoal ou familiar. [...] (MATEUS, 2012, p. 243).
Como o autor cita, há diversos formatos e subgêneros dentro dos reality shows, mas ainda não há uma catalogação oficial que os dividam em grandes categorias. Após observações de casos nacionais, essa pesquisa se propõe, então, a
dividir
os
reality
shows
em
três
grandes
categorias:
confinamento,
acompanhamento e competição21. Os de confinamento são os mais populares no Brasil, e caracterizam-se pele reclusão de um número de pessoas – anônimas ou não – em algum espaço por um determinado período de tempo, com pouco ou nenhum contato com o mundo exterior. Durante esse período, os participantes devem passar por provas e mecanismos de hierarquia a fim de resistir até o final do programa para, assim, conquistar algum prêmio. Neste tipo, pode haver ou não interação do público, que normalmente tem o poder de eliminar os participantes por meio de votação. No Brasil, os exemplos mais conhecidos são Big Brother Brasil, Casa dos Artistas, A Fazenda e No Limite. Já os reality shows de acompanhamento são caracterizados pela existência de uma equipe de filmagem que acompanha uma pessoa – ou mais - em situações do cotidiano, como em casa, no trabalho e momentos de lazer. Nesse caso, os participantes devem ser celebridades, pois assim justifica-se o interesse do 21
Essas definições se fazem necessárias, pois a maioria dos exemplos que serão descritos na análise deste trabalho se configura no subgênero acompanhamento, que difere estruturalmente dos outros tipos. Para compreender o reality journalism, é preciso conhecer essas variáveis.
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público em conhecer o dia a dia dessa pessoa. Este tipo de reality é um dos mais invasivos de todos, pois o participante deixa-se filmar em seu verdadeiro “habitat”, como o banheiro de sua casa ou seu local de trabalho. É também comum a gravação de depoimentos dos participantes, onde se dirigem diretamente ao público. Além do personagem principal, as pessoas ao seu redor inevitavelmente acabam aparecendo no programa. A forma de produção e exibição desse subgênero se assemelha em grande escala aos documentários. Exemplos são os já extintos Troca de Família, da Rede Record, e Família MTV. Já o de maior expressão mundial é a produção norte-americana Keeping Up With the Kardashians, que acompanha a rotina de uma família de celebridades. O terceiro tipo é o de competição, e abrange os programas que estimulam a disputa dos participantes em busca de um prêmio, seja em dinheiro ou não. Diferente dos de confinamento, não há a necessidade de “prender” os competidores nem os observar no dia-a-dia; o que o telespectador assiste são apenas as provas desenvolvidas pelos participantes dentro de um estúdio. Aqui a participação do público normalmente se faz presente por meio de votações, mas não é fator obrigatório. Esse tipo de reality é hoje o que faz mais sucesso no Brasil e o que existe em maior escala. Praticamente todas as emissoras abertas possuem um desses programas em sua grade, pois seu custo não é tão alto e o público brasileiro acostumou-se a assisti-lo. Exemplos de sucesso no país são Ídolos, O Aprendiz, Esquadrão da Moda, The Voice e MasterChef. Os reality shows foram responsáveis por causar certas rupturas de parâmetros pré-estabelecidos da televisão, na busca de transferir a vida e pessoas reais para dentro da tela, causando assim um embaralhamento entre as fronteiras de ficção e realidade. É claro que antes da explosão desse gênero em todo o mundo a televisão já usava fatos e pessoas reais como matéria prima, como no caso dos programas telejornalísticos, mas agora o objetivo e a intensidade desse uso são completamente diferentes. Não mais fazendo parte de um contexto para informar, agora, a observação da vida alheia serve para puro e simples entretenimento. Se hoje é definido como um gênero autônomo com características próprias, pode-se considerar que ele foi criado a partir da fusão de outros gêneros televisivos, “integrando, compondo e readaptando os elementos constituintes de outros géneros como o documentário, o concurso, ou o talk-show.” (MATEUS, 2012, p. 377). Sobre essa congruência de estilos e formas que originaram os reality
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shows, o mesmo autor elenca quatro ascendências fundamentais do gênero. São elas: o movimento realista/naturalista; a estética documental; o jornalismo sensacionalista e a ideia de televisão como indústria. Visto que para entender o gênero em si é importante entender suas raízes, nas próximas linhas há de se fazer breves ligações desses movimentos com o gênero. A primeira delas é a escola literária Realismo/Naturalismo do século XIX. Para Mateus (2012), eles têm relação pelo fato do movimento também ter se preocupado em retratar a finco o mundo real. Através de narrativas lentas e minuciosas, com diálogos prosaicos, a corrente foi um dos primeiros passos em direção à documentação fiel, ou o mais próximo, da realidade. Por isso, os programas de realidade acabam por emergir como formas contemporâneas do Realismo e Naturalismo literário do séc. XIX, não apenas no modo como pretendem oferecer o real ao espectador (dezenas de câmaras espalhadas pela casa e a funcionar 24 horas por dia), como também no modo como acabam por oferecer uma certa “autenticidade” das relações interpessoais. (MATEUS, 2012, p. 381).
O segundo nível de influência está na estética documental, que contribuiu em muito para o estilo dos reality shows. Os documentários utilizam a vida real como matéria prima para contar suas histórias, sejam elas de pessoas, lugares, fatos históricos, etc., em um caráter descritivo. Para Mateus (2012), os programas de realidade seguem a estrutura discursiva visual dos documentários, ao tentar evitar interferências no percurso natural dos acontecimentos. Esse desejo de se manter “invisível” perante as situações retratadas é somente típica no reality de acompanhamento, visto que nos outros subgêneros a interferência direta é fator obrigatório. O autor ainda defende que essa busca do caráter testemunhal das imagens – em ambos os casos – pretende levar o telespectador à um processo de reflexão e problematização pessoal e social que só o “realismo” pode provocar. O terceiro aspecto formador desses programas se encontra no jornalismo sensacionalista, que ganhou vida no fim do século XX e resiste na atualidade. Mateus (2012) afirma que esse tipo de jornalismo é sustentado por três pilares, são eles: desvio social, crimes e vida das celebridades. Os reality shows, em menor escala, se valem desses assuntos e de outros tópicos sensacionalistas para chamar a atenção do público e garantir a audiência. Foi esse tipo de jornalismo que
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primeiro abriu espaço para a tevê tratar desses temas, deixando assim o caminho aberto para os realities. Já a quarta influência repousa na observação da televisão como indústria. Em busca de diminuir os gastos de produção e aumentar o lucro, as emissoras de tevê encontram nos reality shows uma forma de fazer isso acontecer, já que se diminuiu os custos com atores, maquiagem, cenários sofisticados, estúdio entre outros. Assim, o sucesso dos reality-shows, deve-se não apenas à adesão por parte das audiências ou ao facto de trazer o indivíduo comum para o ecrã [tela] da televisão, deve-se igualmente à aposta da indústria televisiva neste género como resposta à diminuição de fundos próprios com que se viu confrontada a dada altura em finais do séc. XX. (MATEUS, 2012, p. 386).
Vistos os fatores que influenciaram o gênero e abriram caminho para sua consolidação, é viável agora elencar os elementos fundamentais que classificam os realities como um gênero de televisivo autônomo. Para tal, os estudos de Samuel Mateus continuam guiando este trabalho, por configurar-se, como já dito, o autor mais importante de língua portuguesa a ter se dedicado a estudar o gênero de forma abrangente. Para Mateus (2012), a característica mais forte que pode ser observada em um programa de realidade é a centralização de questões do cotidiano, onde a vida diária passa a ser o objeto de desejo dessas produções. É possível observar esse traço mais claramente nos realities de acompanhamento. O café da manhã, a ida ao trabalho, a discussão com o namorado (a), a festa do fim de semana, todas essas situações corriqueiras podem chamar a atenção de milhões de pessoas – especialmente quando o protagonista do programa é uma celebridade. Mais do que simplesmente registrar as atividades rotineiras, as emissoras estão interessadas em mostrar as experiências pessoais que são desenvolvidas nessas atividades. Emoções, paixões, brigas, felicidade, êxito, tudo pode ser combustível para um show na televisão, se bem explorado pela edição final. O autor ainda afirma que é importante essas experiências serem exibidas “dentro de um estilo informal, prosaico e coloquial” (MATEUS, 2012, p. 239), como ocorre normalmente nessas situações. Um dos principais motivos do sucesso do gênero pelo mundo por ser justificado pelo anseio de milhões de pessoas em observarem a vida alheia, como já defendia Sibilia. Na publicação de Mateus (2012),
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o autor se vale da ideia de escopofilia para explicar esse anseio, termo derivado da concepção do voyeurismo. Este termo foi abordado por Sigmund Freud em sua obra clássica “Três ensaios sobre a sexualidade humana”, publicado pela primeira vez em 1905. Freud foi o primeiro especialista a se dedicar aos estudos da sexualidade humana, tornando-se referência obrigatória sobre o assunto até hoje, segundo Muribeca (2009). Por meio de abordagens técnicas e despido de convenções morais, o psicanalista revolucionou os estudos dos fenômenos sexuais dos humanos. Freud (apud MURIBECA, 2009) classifica o voyeurismo como a prática de observar outras pessoas, normalmente estranhos, sem que elas percebam. A observação ocorre quando a outra pessoa está sem roupa, se despindo, ou praticando alguma atividade sexual. Ele classifica a prática do voyeur dentro das parafilias, que são “anseios, fantasias ou comportamentos sexuais recorrentes e intensos que envolvem objetos, atividades ou situações incomuns e causam sofrimento ou prejuízo na vida do indivíduo” (MURIBECA, 2009, p.120). Contudo, no decorrer dos anos o conceito de voyeurismo atingiu outros patamares, não se restringindo apenas a práticas sexuais. É devido a essa mudança que hoje pode-se empregar o termo aos reality shows, afinal, a observação aqui feita não é relacionada a prazeres sexuais. Nos casos televisivos, mais do que uma simples observação, o voyeur também quer testemunhar e compartilhar o que está vendo. Há, realmente, um voyeurismo midiático, uma vontade de entrever pelos vãos das cortinas, olhar pelas frestas de portas e janelas, observar a vida alheia através do buraco da fechadura a partir dos sistemas de comunicação
[…].
Assim,
são
coletados
hábitos,
histórias
e
comportamentos, diferentes formas de viver. (ROCHA, 2009, p.3)
A pesquisadora Suzana Kilpp (2008) afirma que a televisão é provavelmente a mídia mais voyeurista de todas, e esse caráter abrange não só os realities, mas toda sua programação. Depois de um estudo sobre as câmeras do cenário do Big Brother Brasil, Kilpp (2010) também afirmou que o aparato técnico desses programas – sejam as câmeras escondidas atrás dos espelhos ou sejam as expostas - funciona como os olhos do voyeur dentro da casa/estúdio.
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Feita a análise do caráter voyeur do público, é possível elencar outra característica típica dos telespectadores de reality shows: a identificação e reflexão. O caráter confessional é um elemento forte presente nos protagonistas destes programas, visto que eles representam a si mesmos e toda a narrativa é feita em primeira pessoa. Desabafos, angústias, temores, tudo pode ser compartilhado com as câmeras22. Mateus (2012) afirma que os participantes sentem como se aquele momento de exposição íntima com milhões de pessoas pudesse suavizar suas mágoas e angústias. Nesse sentido, para Mateus (2012), o espectador pode identificar-se com determinada situação e, a partir desse momento, fazer uma reflexão acerca de si mesmo, com base no que viu e ouviu na televisão, de uma pessoa tão comum quanto ele. Lucchesi (2007) acredita que o telespectador de um reality show pode se emocionar com cenas e situações parecidas com a sua, mas não sofre e nem se machuca fisicamente com a dor que é exibida, o que é positivo para ele. E é exatamente sobre o viés de assistir a alguém tão similar na televisão que Mateus (2012) justifica o porquê dos programas de realidade fazerem tanto sucesso. Para ele O sucesso de audiências advém precisamente da insurgência do indivíduo anónimo no ecrã [tela] da televisão, até aí quase exclusivamente ocupada com especialistas, políticos ou celebridades. (MATEUS, 2012, p. 239)
Ao discutir um show de realidade na televisão, é importante considerar os estudos feitos sobre a relação entre esses programas e a realidade em si. O principal autor que tratou desse assunto na pós-modernidade foi Jean Baudrillard, que estabeleceu os parâmetros de realidade, simulação, simulacro e hiper-realidade. Porém, antes dele, o primeiro pensador que abordou essas questões foi o filósofo Platão, que criou o conceito de mimese. Segundo Platão (apud COSTA, ROCHA, 2012), mimese é a ação de imitar e que sempre resulta em uma cópia; o mundo em que vivemos é integralmente formado por essas cópias imperfeitas e por suas aparências. A realidade só é restrita ao campo das ideias, à
22
Esse caráter confessional dos participantes pode ser observado com maior nitidez nos realities de confinamento, onde há normalmente um cenário isolado para o participante compartilhar seus pensamentos e emoções. No Big Brother Brasil, inclusive, o local se chama “confessionário”.
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razão. O real seria a verdade, a essência, a ideia primária… já no campo material, no qual vivemos, tudo não passaria de cópias. No livro “Simulacros e Simulações”, Baudrillard retomou parte das ideias do filósofo grego e aplicou novos conceitos ao cenário pós-moderno. A principal constatação do autor é a de que vivemos em um mundo hiper-real, onde o mundo é mais real do que a própria realidade (apud COSTA, ROCHA, 2012). O autor afirma que a realidade de antigamente não existe mais e que hoje vive-se em uma grande simulação da realidade, difundida pela mídia. A verdade, então, foi substituída por simulacros, que são “signos sem vínculo com o real, autoproduzidos, cópias da cópia” (COSTA, ROCHA, 2012, p. 50). Os simulacros são resultados do processo de simulação, onde copia-se a forma real/ideal das coisas. Portanto, as simulações são cópias da realidade, enquanto os simulacros originam-se da simulação. Ou seja, são cópias da cópia. Devido à intensidade desses processos, Baudrillard acreditava então que o mundo real foi substituído por um mundo-cópia, cercado de simulacros, instaurando-se assim o contexto da hiper-realidade. Aqui, os símbolos e signos têm mais importância e eficácia do que a própria realidade (apud COSTA, ROCHA, 2012). Os pesquisadores Marcelo da Silva Rocha e Luciano Costa, já citados neste trabalho, dedicaram-se a estudar as ideias de Baudrillard a fim de aplicá-las a reality shows, mas especificamente ao Big Brother Brasil, programa do gênero de maior sucesso no país. Feita a análise da atração, os autores chegam à conclusão de que o programa não é ficção nem realidade, e sim uma simulação de uma convivência real entre os participantes, que de forma alguma é natural. Com base nas ideais do sociólogo francês, o Big Brother seria então um espelho da superficialidade, um mundo que funciona em circuito fechado e com painel de controle. Costa e Rocha (2012) ainda afirmam que o interior do programa é formado por simulacros e a promessa da emissora de que tudo aquilo é real não passa de uma hiper-realidade. Eles também justificam qual é o interesse do público em assistir os reality shows. Baudrillard nos responde que é a curiosidade vertiginosa, quase confundida com voyeurismo, sem muito de sexual. É uma “curiosidade visceral, orgânica, endoscópica” (BAUDRILLARD, 2002). As pessoas “desejam o espetáculo da banalidade, que é a verdadeira pornografia de hoje, a
62 verdadeira obscenidade – a da mediocridade, da insignificância e da superficialidade” (ibidem). (COSTA E ROCHA, 2012, p.53)
Diante dessas reflexões fica explícita a ideia de que os reality shows, ao contrário do que as emissoras tentam vender, não exibem a realidade “nua e crua”, e sim uma representação da mesma. Mas essa não é a única crítica latente aos programas. Mateus (2012) afirma que muitos críticos se baseiam na trivialidade e natureza fragmentária dos programas para expor suas fragilidades, em especial o deslocamento de valores éticos e o descompromisso social. Muito disso diz respeito à imagem que alguns programas construíram ao longo do tempo, já que, na busca pela audiência, comportamentos sexuais, violentos e de desordem eram estimulados por seus idealizadores. Diante desse cenário, parte do público se sente afrontado com o comportamento “subversivo” de alguns participantes, fomentando então a crítica. Há outra leva de críticos que se opõe aos reality shows, especialmente os de confinamento, por não enxergarem com bons olhos o ato de trancafiar pessoas em uma casa em busca de dinheiro. Outros revelam a menor curiosidade em acompanhar a vida dos participantes. Oliveira (2010) faz um paralelo desses programas com a ágora grega e com um zoológico humano. As ágoras eram as praças públicas da Grécia Antiga, onde os moradores da pólis discutiam e resolviam seus problemas publicamente. Nesses locais, qualquer um poderia assistir ou participar da discussão. Oliveira (2010) defende que esse fenômeno – junto com o circo romano – são agora revividos em uma versão televisionada. Porém, para o autor, os realities se aproximam ainda mais da ideia de um zoológico humano, onde “as características mais grotescas da sociedade funcionariam como chamariz do telespectador” (OLIVEIRA, 2010, p. 45). Outra crítica ferrenha pode ser feita à execução desses programas. A pesquisadora Silvia Viana defende que os participantes passam por verdadeiros rituais de sofrimento para sobreviverem ao jogo. Sua crítica é focada nos realities de confinamento, onde provas são realizadas para manter o funcionamento e a hierarquia do programa; essas provas, segundo ela, são cruéis já que exigem grande desgaste físico e emocional dos participantes. Durante o livro, a autora cita inúmeros exemplos de provas que observou, sempre fazendo um paralelo com ideias e teorias de autores clássicos, como Theodor Adorno, Franz Kafta e Max
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Weber. Uma das conclusões a que Viana (2012) chega é a de que as pessoas aceitam participar dessas provas não apenas pelo dinheiro e pela fama, mas também pela necessidade de vencer um desafio e se provarem capaz, fatores impostos pela sociedade contemporânea. Feitas as considerações sobre o gênero, o trabalho pretende abordar no próximo subcapítulo um dos resultados práticos dos reality shows que podem ser aplicados ao jornalismo: a proximidade com o público e a humanização de seus participantes.
3.3 PROXIMIDADE COM O PÚBLICO
Foi visto no subcapítulo anterior os conceitos que giram em torno do gênero televisivo reality show, assim como suas características e problemáticas elementares. Dada sua formatação, é evidente presumir que o público se identifica e se envolve com os protagonistas do programa de maneira muito forte, pois o mesmo acompanha o processo de transformação que esses indivíduos se submetem em um determinado período de tempo. Os mesmos, em muitos casos, não são vistos como astros de tevê, mas sim como pessoas normais que passam por situações e conflitos iguais ao telespectador. Nos momentos de fragilidade, em especial, o público se torna ainda mais próximo e íntimo de quem está na tela. Esse processo pode ser observado com clareza no mundo do entretenimento, onde a exposição da intimidade tende a criar esses laços entre o protagonista de uma atração e o público. Porém, essas técnicas também podem ser observadas em outros gêneros televisivos, como no telejornalismo, onde seus agentes também se valem, em determinadas situações, da emoção para sensibilizar e criar laços com a audiência. Um exemplo a ser facilmente perceptível pode ser encontrado em entrevistas com pessoas em situações trágicas, onde a tristeza e as lágrimas do entrevistado normalmente ganham espaço na edição. Claro que aqui não se utilizam os recursos do reality show, mas o fator emoção e identificação é um elo comum entre eles. O que pretende formular-se aqui é a ideia de que os reality shows se valem exaustivamente da pretensão de retratar as emoções para capturar e convencer a audiência, assim como faz também, em alguns casos, o telejornalismo. A hipótese desse trabalho repousa na ideia de que, na busca pela fidelização da
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audiência, alguns programas telejornalísticos resolveram implantar técnicas de reality show em suas reportagens, transportando o jornalista para a figura do protagonista do reality, já que este gênero fornece caminhos para atingir tal fidelização. O estudo dessa transposição será feito no último capítulo deste trabalho, onde serão analisados exemplos que comprovem essa teoria. Por agora, há de se fazer um breve panorama do telejornalismo brasileiro a fim de apresentar os caminhos que levaram as emissoras a adotar essa postura. A resposta para essa transformação pode ser justificada com o apontamento de uma simples tendência: a vontade de aproximar o jornalista do público. São notórias as mudanças que vêm ocorrendo em programas telejornalísticos nos últimos anos, em especial no dinamismo da apresentação e na figura do apresentador ou âncora. O modelo clássico de noticiário, onde um homem e uma mulher leem as notícias sentados atrás de uma bancada sem grande interação entre si e o público, pode desaparecer nos próximos anos, vistas as recentes mudanças. Ao que tudo indica, a perspectiva é a de que os apresentadores deixem as bancadas e passem a apresentar o noticiário em pé, andando pelo estúdio e interagindo com repórteres e comentaristas por meio de recursos tecnológicos. Com isso, as emissoras esperam colocar no ar um telejornal mais dinâmico, vivo, que prenda a atenção do telespectador do início ao fim. O apresentador, então, ganha maiores tons de informalidade e deixa de ser visto como um simples leitor de cabeças. Um exemplo que pode comprovar essa tendência é o caso do Jornal Nacional, da TV Globo. Em abril de 2015, o “telejornal modelo” do país (BRASIL, 2005) adotou mudanças significativas em sua estrutura de apresentação. A bancada continua lá, mas agora os apresentadores, em alguns momentos, deixam-na para caminhar pelo estúdio em direção à uma tela de plasma para conversar com repórteres ao vivo, correspondentes internacionais e com a jornalista responsável pelas informações do tempo. Com a medida, William Bonner e Renata Vasconcellos ganham mais possibilidades de fugir do roteiro “quadrado” do telejornal e podem se relacionar mais livremente com os colegas, fugindo da dependência do teleprompter. Até mesmo o uso de apelidos é agora permitido pela emissora, em uma clara tentativa de humanizar seus jornalistas – é notório o caso de Maria Julia Coutinho, a “moça” do tempo que é constantemente chamada de “Maju” pelos apresentadores.
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Além da apresentação do telejornal em si, também é possível observar mudanças nas reportagens. Uma nova leva de repórteres ganharam espaço no telejornal, se destacando pela leveza e informalidade. Muitos deles ousam no estilo, na técnica e na estética das matérias, promovendo novos padrões até então proibidos pela emissora. Phelipe Siani, por exemplo, um dos expoentes dessa nova geração, aparece no vídeo sem fazer a barba, o que era até então evitado pelos jornalistas. O portal UOL noticiou em abril de 2015 que Siani se tornou o “repórter modelo” dentro da TV Globo, e que a orientação da emissora era a de que repórteres de todas as praças observassem suas reportagens a fim de se inspirarem no texto coloquial e arrojado do repórter23. O JN foi o último telejornal da Rede Globo a adotar esse novo padrão, já que todos os outros noticiários nacionais da emissora já trabalhavam com seus apresentadores se dividindo entre bancada e apresentação em pé. Essa mudança no Jornal Nacional configura um marco importante pelo fato de, como dito anteriormente, ser o telejornal modelo do país e que, portanto, deverá influenciar os produtos de outras emissoras a curto e médio prazo. É fato que os executivos de televisão perceberam as alterações no perfil dos telespectadores e fazem essas mudanças na tentativa de recuperar a audiência. A concorrência cada dia mais acirrada entre as emissoras e a internet faz com o que o público tenha mais opções e escolha o conteúdo que mais lhe agrada. E é em nome desse novo telespectador que as transformações no jornalismo são feitas. O
pesquisador
brasileiro
Sean
Hagen
estudou
parte
das
transformações do telejornalismo da Rede Globo e afirma que A hegemonia da Rede Globo, que fundamentava na excelência técnica muito da objetividade e veracidade da informação de seus telejornais ganha um novo arranjo. E a audiência, que antes chegou a ser quase absoluta, passa por sucessivos reveses nos últimos anos. Frente a esse cenário, o telejornalismo brasileiro descobre que não basta apenas informar, é preciso estabelecer uma maior interação com o telespectador, oferecer algo que o fidelize durante a transmissão e agregue maior valor simbólico para o público. (HAGEN, 2008, p.4)
23
Disponível em < http://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/televisao/clone-de-bonner-vira-modelo-de-reporterpara-o-jornal-nacional-7509 > Acesso em 25/10/2015.
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Esse “algo” a que o autor se refere é efetivamente a emoção. Hagen (2008) afirma que o uso da emoção no telejornalismo ainda é um tabu, e que muitos jornalistas a evitam de todas as formas sob pena da notícia não ser compreendida e a credibilidade do repórter ser posta à prova. O autor, então, critica a ideia de que o jornalismo é uma prática fria, racional e objetiva, livre de qualquer subjetividade; para ele é necessário buscar um equilíbrio entre razão e emoção na hora de transmitir as informações. É fato para o autor que no jornalismo hard news a razão é o guia condutor da tomada de decisões, mas ao pensar no telejornal como um todo, é a emoção que une todos os assuntos e abordagens díspares. Nesse contexto, Hagen (2008) afirma que cabe ao apresentador apertar os laços e fidelizar o público ao noticiário, porque é nessa interação entre apresentador e telespectador que a fidelização fica mais forte, conduzida pelo poder que a emoção desempenha em aproximar e mediar essas relações. Por fidelização entende-se o processo que visa conquistar o cliente – nesse caso o telespectador – por meio de algumas ações para que ele seja fiel ao produto em questão. Em outras palavras, as emissoras esperam que o público goste do telejornal e o assista diariamente. Dessa forma, a audiência do programa é garantida, assim como os patrocínios. Para Hagen (2008) o apresentador é um reforço emocional às notícias, simbolizando o grau de importância das mesmas e hierarquizando o telejornal. Por meio de gestos, olhares, sorrisos e postura corporal, o apresentador produz efeitos de sentido não-linguísticos, que são facilmente decodificados pelo telespectador, que enxerga isso como parte da transmissão noticiosa. A ideia do autor é a de que essa relação não é fria e unilateral, mas sim uma interação complexa de emoções que ligam os dois polos – jornalista e público. Essa conexão pode ser classificada de quase-interação mediada (THOMPSON, apud HAGEN, 2008) e se caracteriza pela troca de sentimentos não presenciais. Ela reforça a ideia de que um telejornal só existe porque há um público a quem se dirigir com capacidade de sensibilizar e se emocionar com o que é noticiado. Essa interação se faz por meio da lente da câmera, onde o apresentador olha imaginando seu público, e o telespectador pressupõe que está sendo olhado por ele. Ainda segundo Thompson (apud HAGEN, 2008), não há ingênuos e nem manipuladores nessa relação, mas sim uma complexa rede de interações. Como conclusão, o autor brasileiro aponta que
67 o que se busca no rosto do apresentador é algo maior do que a simples transmissão de informação, busca-se conforto, familiaridade e uma variada gama de sentimentos que ajudam a compreender o mundo para além do espaço do telejornal (HAGEN, 2008, p.13)
Para a pesquisadora Maia (2011), a palavra de ordem nas redações é buscar na informalidade a proximidade com o telespectador, encontrando novos caminhos para atingir um público cada vez mais exigente. Para a autora, não se pode ter medo de criar nem de romper paradigmas que, se antes cultuados, agora não se fazem mais eficientes na conquista desse novo telespectador. Como dito, ele está mais exigente pois encontra uma gama de opções de informação a seu gosto em outros canais de TV e na internet. Por isso, os telejornais procuram uma nova linguagem e roupagem que seduza esse público e garanta a audiência (MAIA, 2011). A autora afirma que os responsáveis pelos noticiários querem agora construir uma relação de identificação entre emissor e receptor, tornando assim o telejornal mais dinâmico e deixando o apresentador mais solto, sem a obrigação de seguir o roteiro ao pé da letra. Em meio a informalidade, a pesquisadora ressalta a importância de se cultivar o padrão de qualidade das notícias além de manter a credibilidade do jornalista em meio a essas transformações. A autora conclui então que “simulando laços de familiaridade, o telejornal visa reforçar sua posição de lugar de orientação nas sociedades complexas” (MAIA, 2011, p.12). Maffesoli (2004), em suas considerações sobre comunicar e informar, também afirma a função de laço social que o telejornal desempenha na sociedade. O autor afirma que uma pessoa assiste um noticiário em princípio para informar-se, mas acaba tomando o programa como um espetáculo, um divertimento, um jogo de imagens. Depois da exibição, o indivíduo usa o conteúdo que assistiu para abastecer as conversações do dia a dia. A informação transmitida, conclui o autor, talvez não tenha mudado em nada a vida daquele telespectador, mas serviu de elo, de motivo para estar com outro, de assunto e de laço social (MAFFESOLI, 2004). Após essas constatações, é possível observar as mudanças que o telejornalismo brasileiro vem passando, e o mais importante, o porquê disso acontecer. Por meio dos estudos do cenário da Reality TV, da consolidação do
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reality show, das ligações que o gênero cria entre protagonista e telespectador e, por fim, dos mecanismos que o telejornalismo tem encontrado para aproximar o jornalista do público, constrói-se um importante pilar que nos ajuda a entender a criação e consolidação do formato híbrido reality journalism, objeto de estudo dessa pesquisa. Porém, o formato vai além e engloba outras características que devem ser analisadas. Luís Mauro Sá Martino (2009) ao analisar a Reality TV afirma que esse segmento seguiu dois caminhos que são ao mesmo tempo opostos e complementares. Um caminho são os reality shows. O outro é o infotainment, ou, infotenimento.
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4 INFOTENIMENTO
4.1 VIDA E ENTRETENIMENTO
Como visto no capítulo anterior, o entretenimento exerce influência e modificações
em
outros
segmentos,
como
no
jornalismo,
onde
causou
transformações estruturais. Agora, este capítulo destina-se a estudar de forma mais específica o encontro entre informação e entretenimento, que resulta no jornalismo de infotenimento. Mas antes, é importante levantar alguns pontos históricos que já mostravam esse encontro, como a imprensa sensacionalista norte-americana e o jornalismo de celebridades. Uma das teorias mais abragentes e difundidas a respeito do assunto pertence ao historiador norte-americano Noel Gabler, que defende no livro “Vida, o filme” os caminhos que levaram o entretenimento a conquistar a realidade. Para o autor, o poder dele é tanto que o entretenimento modificou a forma como as pessoas vivem atualmente, exemplificando essa mudança através da teoria dos lifies (fusão entre vida e filme), a qual há de ser discutida mais adiante. Mas antes de chegar à vida propriamente dita, o entretenimento desempenhou um longo percurso até chegar à ela, influenciando e modificando diversas áreas do conhecimento. Gabler (1999) afirma que os Estados Unidos sediaram um novo contexto cultural que viria a influenciar o mundo todo. É a República do Entretenimento, que o coloca no pedestal de valor mais alto e importante da sociedade contemporânea. A implatação desse “regime” deu-se no país pois foi o primeiro lugar onde a cultura popular superou a elitista e tornou-se a cultura dominante do país. Como em todos os lugares, a batalha entre “alta” e “baixa” cultura se fez presente, com os representates da “alta” tentando manter as obras de arte e o teatro longe das massas, que procuravam novas maneiras de se entreter. Impossibilitados de consumir esse tipo de arte, normalmente pelos preços altos, a classe média norte-americana encontrou novas formas de divertir-se, como jogos de beisibol, parques de diversão, museus de curiosidades, circos e bailes. Então, no final do século XIX, um novo meio de comunicação chegou para revolucionar esse cenário: o cinema.
70 Lá estava um veículo de comunicação livre de toda e qualquer tradição, inclusive da mácula da cultura euroupéia. Lá estava um veículo que faria soar o brado bárbaro como nenhuma outra forma nativa de arte americana conseguira ou pudera fazê-lo. Lá estava, enfim, um veículo para fazer bater em retirada todos os guardiões da cultura. (GABLER, 1999, p. 50)
Visto como o veículo que realizaria os anseios da sociedade norteamericana, ele se tornou o recanto das massas, que encontravam nele um lugar próprio de cultura e expressão. Em uma sociedade que adorava ao sensacionalismo, afirma Gabler (1999), nenhuma outra forma de entretenimento fornecia a mesma proximidade e impacto fenomenológico, tornando-se assim o marco do apogeu do sensacionalismo da época. O advento do cinema em território norte-americano significa o triunfo do entretenimento sobre a alta cultura (GABLER, 1999). Mas historiador afirma que a primeira grande barreira que o entretenimento rompeu para começar a conquistar a vida foi derrubada antes do cinema, por volta de 1830, com o advento da imprensa escrita sensacionalista. Surgia uma nova categoria: a imprensa barata ou penny press. Diferente dos jornais tradicionais, a penny press trazia assuntos mais fáceis de serem lidos e preferia veicular notícias factuais a artigos de opinião, podendo ser considerada como os primeiros órgãos essencialmente noticiosos dos Estados Unidos. Eles retratavam a realidade da cidade, do país, do mundo e traziam reportagens de “interesse humano”. Em um mercado editorial cercado de análises político-econômicas de um lado e históricas ficcionais de romance, terror e polícia de outro, as notícias eram o conteúdo mais emocionante que o leitor poderia encontrar em uma banca, afinal, são as histórias e escândalos da vida real que dominam o imaginário e as conversas cotidianas. A fim de despertar o interesse dos consumidores, os jornais sensacionalistas se especializaram em reportar curiosidades, bizarrices, dramas humanos, qualquer coisa que rendesse uma boa história chamativa. Os primeiros empresários do ramo entendiam que, para vender, seu conteúdo tinha de estar mais relacionado ao entretenimento do que à informação (GABLER, 1999). Nesse período, por volta de 1890, os jornais sensacionalistas eram a principal forma de entretenimento das massas, antes da chegada do cinema. Seguindo a ordem cronológica das influências do entretenimento,
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depois da impressa barata, do cinema e dos tabloides, entra em cena a mídia que já nasceu sensacionalista e de entretenimento por natureza: a televisão. Em razão de seus recursos visuais, ela tinha a capacidade de prender a atenção e hipnotizar seus telespectadores. Tendo de preencher inúmeras horas de transmissão, os canais estadunidenses muitas vezes se viam obrigados a transmitir eventos sensacionais, que tinham pouco ou nenhum caráter informativo, mas atraiam a atenção do público. Para Gabler (1999), os primeiros noticiários de televisão eram uma versão revivida dos tabloides. Nesse processo de polir e processar as notícias, a televisão integrou vida e entretenimento como nenhuma outra mídia fora capaz de fazer (GABLER, 1999). Sobre o papel da televisão na ascensão do entretenimento e em seu direcionamento para as massas, Martín-Barbero (2004), analisando o veículo anos depois da América Latina, tem considerações parecidas com Gabler. Para ele, a televisão é um campo decisivo de reconhecimento sociocultural e de construção de identidades coletivas. Sobre o alcance do veículo, o autor afirma A televisão permitia divulgar massificamente manifestações artísticas reservadas a públicos minoritários, tornar presentes outras ordens de gosto, que se qualificam como “grossos” ou próprios da “ralé”, validar pouco a pouco expressões culturais até então excluídas dos cânones aceitáveis (como o humor, a música popular ou a farsa), introduzir uma noção de espetáculo até então desconhecida, contrastar diversas maneiras de viver e ainda antagônicas às propostas tidas como modelares pela escola, pela família ou pela Igreja, além de modificar a oferta cultural segundo as lógicas comerciais e do consumo de massa. (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.136)
Enquanto os jornais dividiam suas editorias por páginas bem definidas, a televisão só pode se valer do horário para tal, constituindo assim uma fronteira mais tênue. Gabler (1999) afirma que um setor acaba invadindo o outro, até as divisões não se tornaram mais claras e tudo virar entretenimento. Seguindo a lógica capitalista de produção, os programas de televisão, independente do gênero, devem fundir vida e espetáculo, pois esse é o código do veículo. É por meio dela que “o entretenimento tinha finalmente escapado do noticiário e se apoderado da vida” (GABLER, 1999, p.95). Sobre a tênue fronteira entre notícia e entretenimento, o autor faz a seguinte consideração
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Só que a televisão transformou em notícia qualquer coisa que tivesse os rudimentos de entretenimento, também transformou em entretenimento tudo aquilo que contivesse os rudimentos de notícia. Na verdade, para a televisão, assim como para os tabloides, o mundo passou a ser visto como uma fonte inesgotável de matéria-prima passível de ser processada em programação. (GABLER, 1999, p.81)
No fim da década de 1960, o filósofo e escritor francês Guy Debord já previa esse cenário, com olhos muito mais pessimistas e preocupados que os de Gabler. Em A Sociedade do Espetáculo (1997), o autor defende a ideia de que o espetáculo tomou conta da realidade e que vivemos hoje em uma grande acumulação de espetáculos. A realidade, portanto, tornou-se uma representação. Debord faz uma crítica severa à essa sociedade que prefere a imagem e a ilusão à realidade, culpando em boa parte a televisão e a mídia no geral por mistura ficção e realidade, causando esse desnorteamento na população. Mas não só ela. Os rituais políticos, religiosos e hábitos de consumo também multiplicaram os ícones e imagens na sociedade. A falsificação do mundo, por assim dizer, também seria resultado da ação da mídia. O espetáculo, para ele, é “uma relação social entre pessoas mediadas por imagens” (DEBORD, 1997, p. 14). A crítica de Debord se faz mais ao viés político, ao identificar a ascensão do espetáculo como um sistema de dominação inerente a toda a sociedade. Esse cenário traz consigo o consumismo e o fetichismo de um mundo cercado de mercadorias e produtos traduzidos pelas imagens. O espetáculo teria o poder de interferir na capacidade do homem em ver o mundo de forma crítica, causando assim alienação entre eles. O espetáculo transmitiria uma sensação de permanente aventura, felicidade, grandiosidade e ousadia (ARBEX, 2001). Com pesar, Debord (1997) afirma que em suas mais diversas formas – informação, propaganda, consumo – o espetáculo tornou-se o modelo atual da vida dominante na sociedade. O autor afirma que a partir do momento em que o mundo real transformou-se em imagens, essas simples imagens tornam-se reais para a sociedade, em um movimento hipnótico. Quanto mais contempla-se o espetáculo, menos vive-se. Ao aceitar-se nas imagens dominantes, o indivíduo menos compreende sua própria existência e desejo. Os gestos de alguém inserido nesse
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cenário não seriam mais deles, e sim de um outro que os representa (DEBORD, 1997). O autor ainda afirma que o espectador nunca se sente em casa pois o espetáculo dominou todas as partes da sociedade. O homem separado de seu produto produz, cada vez mais e com mais força, todos os detalhes de seu mundo. Assim, vê-se cada vez mais separado do seu mundo. Quanto mais sua vida se torna seu produto, tanto mais ele se separa da vida. (DEBORD, 1997, p. 25)
De volta à atualidade, Gabler (1999) afirma que o triunfo do entretenimento se faz presente em todas as áreas da sociedade. Esporte, religião, artes plásticas, educação, música, literatura, mundo dos negócios, tudo estava se convertendo a seus padrões. O fundamental na República do Entretenimento, conclui Gabler (1999), é que os fatos, não importa sua origem, deveriam ser provocativos o suficiente para fornecer um show sensacional ao público. Nesse cenário, há uma categoria de pessoas que fornecem diariamente esse grande show que o público quer ver. São as celebridades, o movimento artístico mais importante do século XX (GABLER, 1999). Chamadas pelo autor do “mais puro entretenimento humano”, as celebridades logo despertaram o interesse e a consciência nos meios de comunicação de que elas eram uma mina de ouro. Se o mundo havia se transformado em uma forma de espetáculo, as celebridades haviam se tornado a personificação da fama e da expectativa de vida de boa parte da população: luxo, riqueza, beleza e dinheiro. O posto de celebridade era o estado mais alto a qual alguém poderia chegar. Gabler (1999) afirma que a fama foi a força pela qual tudo se curvava, mostrando que o entretenimento humano despertava mais a atenção do público do que qualquer outra coisa. Eles queriam saber detalhes não de seus trabalhos, mas sim de suas vidas íntimas. É nesse contexto que a impressa da fofoca garante seu espaço ainda nos anos 198024. Diante desse cenário, Como uma religião, o entretenimento promulgou um conjunto de valores e
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O sociólogo francês Edgar Morin já havia abordado esse cenário na década de 1960, quando publicou o livro “Cultura de massas no século XX”. Há um artigo onde Morin defende a teoria dos Olimpianos, a qual defende que as celebridades foram elevadas ao status dos deuses do Olímpio. Elas são tratadas pela mídia – e consequentemente – pelo público como “super-humanos”. Suas características pessoais e privadas são elevadas à décima potência. (MORIN, 1977).
74 tornou-se até mesmo, poder-se-ia dizer, a fonte mais importante de valores do final do século XX, nos Estados Unidos. […] o entretenimento se tornou o padrão primordial de valor para praticamente tudo na sociedade moderna. (GABLER, 1999, p. 169).
Após conferir os caminhos que o entretenimento percorreu até se tornar a fonte de valor mais importante do século passado, chega o momento em que ele alcança seu ápice e interfere de forma direta na vida de todos nós. O triunfo do entretenimento é tão grande que ele faz com que as pessoas vivam suas vidas em função dele. Gabler (1999) classificou esse apogeu através da teoria do lifie, a fusão entre vida (life) e filme (movie). O historiador defende a ideia de que os indivíduos da sociedade contemporânea vivem suas vidas como se estivessem em um filme. As roupas, os conflitos, os dramas, os amores, as vitórias, tudo é pensado e vivido como se aquela pessoa estivesse protagonizando um longa, o filme da própria vida estrelado por ele mesmo o tempo todo. A lifie estaria então inserida no veículo vida, projetada na tela da vida e exibida pela mídia tradicional, que cada vez mais depende daquele veículo para sobreviver e atrair a atenção do público (GABLER, 1999). Como conclusão prévia, o autor afirma que agora mede-se a vida segundo o grau que ela satisfaz as expectativas narrativas criadas pelo cinema. Essa teoria leva, efetivamente, o entretenimento – exemplificado pelo cinema - a seu grau mais alto, a ponto de interferir e guiar os rumos de pessoas comuns. Essa interferência também atesta a gigantesca influência que a mídia exerce sobre nós, fazendo com que grande parte da sociedade queira estrelar seu próprio lifie. O autor afirma que quem não fizesse parte do filme-vida seria obrigado a integrar a plateia anônima que somente assistia aos lifies dos outros. E essa perspectiva, segundo o autor, é abominável para muita gente. Um dos pontos decisivos que ajudaram as pessoas a estrelarem seus lifies foi o advento de novas e acessíveis tecnologias, como as câmeras de vídeo não profissionais. Assim como já citado nesse trabalho por Sibilia (2008), a internet e novas formas de gravação e divulgação audiovisual intensificaram a propagação do eu para o mundo externo. O grande fascínio dessas tecnologias, para Gabler (1999), foi a de ter dado a chance de pessoas comuns atravessaram o
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“vidro”25 que as separavam das celebridades. As câmeras, agora, com a ajuda de internet, poderiam dar o poder da fama a anônimos, assim como fazia exclusivamente para as estrelas da televisão e do cinema. Ao passo de que cada dia mais pessoas encaravam a vida como entretenimento, as novas tecnologias induziram e incentivaram ainda mais essa consciência. As pessoas começaram a adaptar os principais eventos da vida às exigências dela [câmera], que eram as exigências do entretenimento. Casamentos, o primeiro banho do bebê, bar mitzvahs, aniversários de casamento, até mesmo cirurgias, coisas até então pouco dramáticas, se bem que vez por outras indisciplinadas, passaram a ser configuradas como espetáculos para a câmera de vídeo, completas, com narrativas e trechos divertidos do começo ao fim. Ás vezes, uma versão editada às pressas da fita […] era mostrada no auge da ocasião, como se todo o propósito da comemoração tivesse sido, na verdade, gravá-la. (GABLER, 1999, p. 223)
4.2 INFORMAÇÃO E ENTRETENIMENTO
Vista a influência do entretenimento nas mais diversas áreas da vida contemporânea, esta parte do trabalho fica restrita a analisar mais profundamente a sua fusão com o jornalismo. Diferente da imprensa sensacionalista citada anteriormente, há de se observar agora um conceito mais moderno, estudado há pouco menos de trinta anos, o qual enxerga essa fusão com olhos menos pessimistas. Essa convergência entre entretenimento e jornalismo ainda é motivo de estudo e controvérsia entre os profissionais e pesquisadores da área, pois constituem-se de dois polos teoricamente opostos: um serve para divertir o outro para informar. Da mesma forma que muitos acreditam que essa mistura não é possível, há muitos outros teóricos que acreditam nessa homogeneização e tentam provar que ela existe. Infotainment: foi esse o nome dado por pesquisadores norteamericanos na primeira tentativa de classificar oficialmente, ainda nos anos 1980, os conteúdos que misturavam informação e entretenimento. Aqui no Brasil, o termo foi traduzido por “infotenimento” e seus estudos ganharam força somente no final da 25
Morin (1977) também defendia essa separação entre celebridades e anônimos, dizendo que eles pertenciam a mundos diferentes, os quais não se misturavam.
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década de 1990, quando publicações acadêmicas passaram a discutir o assunto. A principal pesquisadora sobre o tema no país é a professora Fábia Angélica Dejavite, que dedicou grande de sua vida acadêmica a debater essa questão. Seus estudos servirão de base para as análises deste subcapítulo. Para pesquisadora, a grosso modo, O jornalismo de INFOtenimento é o espaço destinado às matérias que visam informar e divertir como, por exemplo, os assntos sobre estilo de vida, as fofocas e as notícias de interesse humano – os quais atraem, sim, o público. Esse termo sintetiza, de maneira clara e objetiva, a intenção editorial do papel de entreter no jornalismo, pois segue seus princípios básicos ao mesmo tempo que atende às necessidades de informação do receptor dos dias de hoje. Enfim, manifesta aquele conteúdo que informa com diversão. (DEJAVITE, 2006, p. 72)
Segundo a definição, portanto, o infotenimento é um subgênero jornalístico que oferece informação e entretenimento ao mesmo tempo para o receptor. É nada mais do que um jornalismo leve, de assuntos sutis, que o leitor/ouvinte/telespectador pode distrair e divertir-se enquanto é informado sobre determinado assunto. “No jornalismo de INFOtenimento uma mesma matéria pode muito bem informar entretendo ou, então, entreter por meio da informação” (DEJAVITE, 2006, p. 72). Por conter esse caráter de leveza, o jornalismo de infotenimento acaba ficando restrito a determinadas editorias, especialmente as de cultura e interesse humano (DEJAVITE, 2006). Tomando como exemplo o meio impresso, as notícias dessa categoria normalmente destacam fotografias, cores, gráficos, tabelas, adjetivos, descrições minuciosas e, claro, um texto leve e mais fácil de ser compreendido. A chegada dessa vertente ajudou a ampliar o conceito antes dominante de que o jornalismo tinha de informar e o entretenimento entreter, apenas. Agora é possível misturar com qualidade essas duas categorias em um único produto. O tipo de conteúdo que o infotenimento propaga é chamado por Dejavite (2006) de notícia light, algo como a matéria-prima desse híbrido. Essa notícia desempenha três funções principais: informar, distrair e formar (ou seja, oferecer algum tipo de formação ao leitor sobre o tema noticiado). Para a autora, esses elementos são essenciais atualmente porque é isso que o receptor deseja. Se
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alguma informação jornalística, independente de sua natureza, não tiver essas características, ela não vai chamar a atenção do leitor, ouvinte ou telespectador (DEJAVITE, 2006). Cada dia mais as empresas jornalísticas percebem essa nova postura e vêm transformando a dinâmica da criação de notícias a fim de atender essa demanda. Apesar da autora classificar essa tendência como contemporânea, fato é que esse anseio do público sempre existiu. Claro que hoje é mais atenuante, mas ele sempre esteve presente, afinal, qualquer pessoa que leia uma notícia em um jornal, mesmo de política ou economia, espera se informar e/ou se distrair, porque é para isso que se lê o jornal. Alguns o leem porque precisam estar a par dos acontecimentos do mundo, muito em razão do trabalho, enquanto outros leem por vontade própria, por pura distração. Fato é que todos esperam ser entretidos por aquela notícia, ou seja, que ela esteja bem escrita para que a atenção do leitor seja capturada e mantida durante toda a leitura. Na televisão, por exemplo, uma reportagem sobre economia também deve entreter, ou seja: estar bem construída, “amarrada”, interessante, com linguagem própria, atraente e, claro, com informações relevantes. Nesse sentido, o entretenimento, na origem26 da palavra, sempre esteve presente no jornalismo. Além daquilo já citado, o entretenimento possui outras funções. Segundo Dejavite (2006) são elas: distração, evasão e escapismo. A primeira diz respeito a tirar as pessoas de seu estado natural e conduzi-las para um espaço livre de preocupações e tormentas habituais. Já a evasão tem como objetivo o desenvolvimento psicossocial, onde a pessoa pode apreciar pequenas distrações e passatempos. Já a terceira função corresponde à fuga de situações reais para estados simbólicos e imaginativos, estimulados pela própria mídia, fazendo com que o indivíduo “mergulhe” naquilo que está consumindo. Dejavite (2006) ainda afirma que ele pode levar nossas emoções à um porto seguro, capaz de promover o descanso e o tempo livre, que são imprescindíveis nos tempos atuais. Gabler (1999) compartilha da mesma opinião e afirma que o entretenimento tradicional sempre prometeu afastar as pessoas de seus problemas diários e permitir que elas escapassem das atribulações da vida cotidiana. Para ele o entretenimento tem a ver com libertação, liberdade, transporte, sensações e 26
1 Ato de entreter; entretenimento. 2. Aquilo que entretém; divertimento, distração, entretenimento, entretém. (FERREIRA, 2004, p. 767).
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gratificação instantânea. Ele seria o “puro e o desmiolado prazer de se emancipar da razão, da responsabilidade, da tradição, da classe e de todos os outros elos que restringiam o eu” (GABLER, 1999, p.196). O sociólogo francês Michel Maffesoli, discorrendo sobre a função da comunicação em nossa sociedade, também afirma o poder do entretenimento, quando questiona a função da comunicação.
Para que serve, então, a comunicação? Tradicionalmente, as chamadas funções da comunicação estabelecem uma hierarquia que vai da informação à distração, passando pela formação, pela educação, pela prestação de serviços ao público e outras categorias “nobres”. Mesmo correndo o risco de provocar escândalo, ou de ser perverso, cabe dizer que a principal função da comunicação é divertir, distrair, entreter. Nisso, contudo, nada entra de pejorativo. (MAFFESOLI, 2004, p. 28)
Para o autor, não há nada de pejorativo porque o divertimento é um fator positivo para todos nós. Ele afirma que a diversão significa o oposto da angústia à morte, e quando atingido, cria uma comunidade de vida fértil. Maffesoli (2004) ainda critica aqueles que associam o entretenimento à subcultura, manipulação, consumismo inconsciente e pensamento acrítico. Ele diz que essas pessoas só enxergam manipulações onde há resistência e reserva silenciosa, isto é, o indivíduo simula uma adesão a alguma ideia ou posicionamento, mas no fundo permanece inalcançável. Essa simulação ocorre no sentido de evitar choques de opinião, especialmente na vida social. Portanto, esses indivíduos fazem de conta que são alienados, mas no fundo permanecem críticos e desconfiados. “As críticas da mídia baseadas na teoria da manipulação não percebem esse distanciamento, essa resistência passiva, essa astúcia do popular contra as intenções do poder” (MAFFESOLI, 2004, p. 29). Outros autores que também deram contribuições a respeito da notícia light foram Tarruella e Gil (apud DEJAVITE, 2006). Para os pesquisadores, ela
possui
três
características
fundamentais:
capacidade
de
distração;
espetacularização; e alimentação de conversas. A distração deve acontecer para ocupar o tempo livre de alguém e trazer algum tipo de satisfação que expulse qualquer aborrecimento. A espetacularização diz respeito ao estímulo e satisfação de aspirações e curiosidades, as quais permitam o indivíduo extravasar qualquer frustação. Já a alimentação das conversas se refere ao poder da mídia de abastecer
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as conversas do dia a dia, facilitando assim as relações sociais (TARRUELA, GIL, apud DEJAVITE, 2006). Devido a essa “leveza” trazida por essas notícias, esse tipo de jornalismo é frequentemente alvo de preconceito e críticas de profissionais mais tradicionais da área, que não o enxergam como genuinamente jornalístico, já que o mesmo não aborda assuntos de política e economia, por exemplo, editorias tidas como fundamentais do exercício jornalístico. De forma geral, há duas visões – opostas - em relação ao entretenimento. A pessimista o vê como um instrumento de manipulação e alienação que funciona em prol de determinadas ideologias; já a visão otimista o encara como algo que pode contribuir com o desenvolvimento do indivíduo, incentivando a criatividade, por exemplo (DEJAVITE, 2006). A autora ainda afirma que o olhar desconfiado de muita gente provem do intenso populismo e sensacionalismo que o jornalismo de entretenimento se submeteu no início de sua existência, recheando revistas apelativas e de apurações duvidosas. Michel Maffesoli partilha de uma opinião semelhante à da autora. Para ele, mesmo que os críticos politicamente corretos fiquem horrorizados, é preciso aceitar que as pessoas não querem ver apenas informação na mídia, mas também entretenimento. Maffesoli (2004) afirma que os jornalistas gostam de imaginar-se como os protagonistas de grandes aventuras importantes para a humanidade, e não como repórteres de assuntos menos sérios. Ele ainda defende a ideia de que a sociedade da informação faz crer que o mais importante são seus jornais, televisões e rádios, mas na verdade o que conta é a partilha cotidiana e segmentada das emoções dos pequenos acontecimentos. Mais do que saber se Bush vai ou não invadir o Iraque, um leitor, um ouvinte, um telespectador distante da área desse conflito quer saber, com frequência, de coisas muito menos sérias, mas não menos importantes para a coesão social. […] O leitor está louco para saber o final da novela ou como foi tal festa num clube da moda. (MAFFESOLI, 2004, p. 23)
Sobre a questão do preconceito, Dejavite (2006) também apresenta a ideia de que o sucesso do entretenimento, para muitos, pode significar o triunfo da emoção sobre a razão, do caos sobre a ordem, do tempo livre sobre o trabalho e do gosto popular sobre a elite. Defensora do estilo, Dejavite (2006) argumenta que
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estudar e debater o entretenimento implica questionar certas verdades absolutas e práxis do jornalismo. Ela defende que Em pleno século XXI, o entretenimento é, sem dúvida, um dos valores principais da sociedade, e por isso, torna-se inconcebível uma visão preconceituosa e restrita sobre tal assunto. A diversão deve ser tomada como algo positivo, pois ora serve como ruptura com a vida real (por meio da evasão, da distração e do escapismo), ora como algo que promove o indivíduo, fazendo com que ele caminhe seguramente em seu processo de autoformação:
informando-se
e,
ao
mesmo
tempo,
divertindo-se.
(DEJAVITE, 2006, p. 55)
Assim como outros autores já citados neste trabalho, como Umberto Eco e Luís Mauro Sá Martino, Dejavite (2006) também acredita que a fronteira entre jornalismo
e
entretenimento
nunca
foi
completamente
nítida,
mas
hoje,
especialmente, sua sobreposição é inevitável e fazer a distinção entre o que é informar e o que é entreter é tarefa extremamente árdua. A autora traz a visão de um pesquisador norte-americano que também defende a inviabilidade dessa dissolução, e mais. Ele defende a inutilidade ao tentar classificar se determinada mensagem é informativa, persuasiva ou de entretenimento, pois na comunicação de massa, todas as mensagens possuem essas características (BERLO, apud DEJAVITE, 2006). Porém, há outras visões sobre o assunto. O professor de comunicação norte-americano Samuel Winch (1997) defende a necessidade de divisão entre os conteúdos a partir de quatro premissas básicas: funcionalidade, epistemologia, metodologia e organização. A primeira noção é a mais simples de todas e evidencia que o objeto de um é informar enquanto o outro é entreter. A epistemologia diz respeito ao alcance distinto que eles exercem, já que um lida com assuntos factuais (urgência) e o outro com ficção (atemporal). A metodologia está baseada no fato de que o entretenimento se vale as vezes de fofoca e especulação, enquanto o jornalismo deve sempre dizer a verdade. Já o caráter organizacional se refere à utilidade pública do jornalismo em detrimento da simples diversão do entretenimento, que possui uma linha mais comercial (WINCH, apud KRAUSS, 2007). Apesar de oferecer subsídios para a distinção entre as categorias, pode-se afirmar que, hoje, devido à alta complexidade de suas intersecções, é
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praticamente impossível separar categoricamente informação de entretenimento. José Arbex Júnior (2002) é um dos autores que defendem esse panorama de um ponto de vista altamente crítico. Para ele, a fronteira que os separavam já não existe mais. O jornalista afirma que a cobertura da Guerra do Golfo consagrou a espetacularização da notícia e mudou radicalmente a relação da televisão com a notícia. Arbex (2002) defende que a televisão tornou-se ela mesma a notícia. Assim como aconteceu com a Guerra – por ter sido considerada um espetáculo, a transmissão das imagens tinha de seguir as regras de um show (ARBEX, 2001) – os acontecimentos políticos passam a adquirir as características de um grande espetáculo. O autor defende que a consequência dessa prática (apresentar o jornalismo sob o formato de showrnalismo) é o enfraquecimento ou total apagamento da fronteira entre o real e a ficção. Em sua justificativa, ele defende o fato de que a multipluralidade de gêneros na televisão a obrigou a seguir normas de outros setores para prender o público. [A televisão] É um “serviço”, um meio de comunicação pelo qual se pode veicular uma série de gêneros, incluindo o cinema, o teatro, shows, espetáculos, telejornais e comerciais. […]. Exatamente por ser um canal que oferece de serviços que oferece uma multiplicidade de programas de todos os gêneros – artísticos, jornalísticos, esportivos etc. -, a televisão permite a fácil transposição dos limites entre ficção e realidade. O fim da fronteira entre informação e entretenimento obrigou o telejornalismo a se adaptar ao ritmo das mensagens publicitárias. (ARBEX, 2001, p.51)
A respeito da espetacularização da notícia, quem também opinou sobre o assunto foi Martín-Barbero (2004) no livro “Exercícios do Ver”. O autor afirma em tom crítico que os noticiários estão repletos de fantasia tecnológica e passam por um processo de espetacularização de si próprios. A farsa e o estrelismo político são transmitidos para o público como realidade e até hiper-realidade, quando na verdade não são. Já na contramão dessa tendência, o autor afirma, em tom de indignação, que as telenovelas e os programas dramáticos acabam desempenhando o papel dos telejornais e retratam mais fielmente a realidade de um país. MartínBarbero (2004) defende que são nesses produtos de entretenimento que se faz
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possível representar efetivamente o que acontece em determinado lugar, além de sua história. Feitas as considerações conceituais e problemáticas do assunto, o trabalho expõe agora alguns resultados obtidos através de pesquisas de infotenimento. O primeiro deles provém da classificação do pesquisador australiano Stephen Stockwell (2004), que dividiu o infotenimento em nove subgêneros: Lifestyle shows, Reality TV, Docusoaps, Docugames, Doculifestyle, Tabloid news, Talk shows, Mocumentary e New sit-com (STOCKWELL, 2004). Os estudos do autor foram baseados em programas de língua inglesa típicos de países como Estados Unidos, Austrália e Inglaterra, portanto, não há a convenção de traduzi-los ou mesmo adentrar a suas definições. O que se torna mais valioso nos estudos de Stockwell (2004) para esta pesquisa é a conclusão a qual ele chega depois de observar esses programas. Para ele Infotenimento é um gênero televisivo emergente de grande alcance que contêm subgêneros mutuamente referenciais que, ao invés de alienar pelo discurso público, oferece algo acima e além dos telejornais tradicionais e programas de análise e discussão. Enquanto é fácil criticar os programas de infotenimento como "peso leve", na sua variedade de estilos e na soma de seu público, eles podem oferecem melhor informação do que os jornais tradicionais oferecem ao seu provável público formado por todos os cidadãos. (STOCKWELL, 2004, p. 8, tradução nossa)
A principal pesquisa nacional sobre os programas brasileiros foi desenvolvida por Dejavite (2006), que catalogou as principais editorias de infotenimento no país. Os tipos podem ser vistos na tabela da página seguinte:
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Tabela 2 – Editorias de infotenimento Arquitetura
Artes
Beleza
Casa e decoração
Celebridades
Chistes e charges
Cinema
Comportamento
Consumo
Crendices
Cultura
Curiosidades
Espetáculos
Eventos
Esportes
Formação pessoal
Gastronomia
Fotografia
Indústria editorial
Ilustrações/infográficos/tabelas/boxes
Informática
Jogos e diversão
Moda
Música
Previsão do tempo
Publicidade
Rádio
Televisão e vídeo
Turismo/lazer
Vendas e marketing
Fonte: Dejavite (2006)
A última consideração a ser feita sobre o infotenimento, e uma das mais importantes, é o pensamento de que ele não faz parte do jornalismo por reportar mentiras. Dejavite (2006) atenta para o fato de que a verdadeira notícia light não tem nada de caluniosa. Ela constitui-se como produto jornalístico que deve sempre transmitir a verdade e deixar os boatos e rumores de fora. Aqueles que reproduzem informações enganosas ou de procedência duvidosa não podem ser enquadrados nessa categoria. As matérias de infotenimento então devem conter um estilo fácil e fluente de compreensão, mas que também informem com precisão, afinal trata-se de jornalismo. A autoria conclui ao afirmar que Em um período em que a comunicação se faz cada vez mais segmentada, é preciso inovar e experimentar novas formas de fazer o receptor assimilar o jornalismo. Isso, no entanto, não significa descaracterizá-lo e, sim, elevá-lo à sintonia com o público, que é, de fato, a sua missão principal. (DEJAVITE, 2006, p.114)
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Assim, o infotenimento surge na tentativa das mídias em atraírem e satisfazerem as necessidades desse novo público, ávido por se informar ao mesmo tempo que é entretido. Nessa nova concepção, o jornalismo se livra de certos paradigmas até então tido como inquebráveis e adapta sua forma a novas panoramas. Nessa mesma linha, o jornalista, principal agente da notícia, também deve se atualizar com as novas demandas e criar mecanismos para transmitir as informações de uma maneira mais atrativa ao público. Dentre as inúmeras opções, uma delas merece ganhar destaque. Mesmo constituindo-se de uma prática jornalística antiga, o método a ser descrito no próximo capítulo ganhou força nos últimos anos e parece ser um caminho viável para informar e aproximar ainda mais jornalista e público.
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5 JORNALISMO GONZO
Tratando-se de um gênero híbrido, o objeto de estudo desta pesquisa engloba diferentes gêneros, categorias, formatos e técnicas de televisão, jornalismo e entretenimento. Nos tópicos anteriores foram discutidos alguns “pilares” que formam e sustentam esse híbrido, e neste capítulo, há de observar-se o último elemento que constitui este formato: o jornalismo gonzo. Acredita-se que esse estilo de jornalismo, criado nos anos 1970 pelo escritor Hunter Thompson, influenciou de alguma forma, mesmo que inconscientemente, os jornalistas brasileiros estudados neste trabalho. Isso porque eles também mergulham de cabeça nos temas propostos e se tornam os personagens das próprias reportagens, assim como Thompson. Para compreender o estilo gonzo, é preciso apontar suas raízes em outro movimento transgressor da época: o new journalism, corrente iniciada nos anos 1960 por escritores e jornalistas que passaram a utilizar técnicas de literatura e ficção em obras jornalísticas. No seguinte subcapítulo, iremos apontar as principais características desse estilo para então descrever o jornalismo gonzo.
5.1 NEW JOURNALISM
O New Journalism, ou Novo Jornalismo, surgiu na década de 1960 nos Estados Unidos inspirado por um espírito transgressor que tomava conta das mais diversas áreas do país, como política, música e comportamento. Era o período de transgressão de valores, onde a sociedade em geral começou a colocar em cheque normas e padrões pré-estabelecidos, influenciada pelas novas expressões artísticas e culturais da época. Lacerda (2009) ilustra essa sociedade em transformação cercada por mudanças como a eleição de John Kennedy, a guerra do Vietnã, o fortalecimento da contracultura, a liberdade sexual, o movimento hippie e o pacifismo. Nesse contexto, o jornalismo não passou ileso a mudanças. O New Journalism surgiu a partir de uma corrente não organizada de jornalistas norteamericanos que eram fortemente atraídos pelo universo literário. Esses autores passaram a utilizar técnicas de ficção nos textos jornalísticos, criando assim grandes reportagens ou mesmo publicando livros, os quais possuíam o formato de um
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grande romance de conteúdo verídico. Segundo Bulhões (2007), apesar de não ter sido criado como um movimento nem um manifesto – não havia um delineamento inicial de ideias nem um grupo oficial de representantes – o New Journalism transformou-se na principal tendência jornalística do país que afrontava os limites convencionais da área. Esse novo movimento, então, surgiu da fluência da prática textual desenvolvida em alguns jornais e revistas norte-americanos, como a Esquire, The New Yorker e Herald Tribune. Esse estilo teve um “impacto fulminante” na área e lançou um legado cujas marcas permanecem até hoje (BULHÕES, 2009). O principal autor desse movimento foi Tom Wolfe, um dos primeiros a começar a publicar textos literários de não-ficção e também o principal autor que tentou classificar a corrente. O estilo de escrita de Wolfe acabou se tornando um espelho para os demais escritores. O atrevimento de Wolfe vinha com transgressões mais cortantes tanto no manejo das técnicas de captação jornalística quanto no plano da expressão verbal, com a presença extravagante de travessões, pontos de exclamação, reticências, uso multiplicado de letras para produzir um efeito gráfico e fônico e mudanças constantes no foco narrativo, em que o narrador “entra na cabeça” de seus personagens, assumindo sua perspectiva e as marcas de sua linguagem. (BULHÕES, 2009, p.147).
Como pode ser visto na citação acima, era bastante comum o uso de sinais de pontuação, travessões e reticências, técnicas até então não usadas no jornalismo tradicional. Mas os adeptos do New Journalism faziam essas experimentações, trazendo esses recursos do mundo da literatura para dentro dos relatos jornalísticos. Essa perspectiva surge primeiro porque seus adeptos eram fãs assíduos dos textos literários e também porque estavam saturados do texto jornalístico “quadrado”, sempre obediente às regras do lead e da objetividade. Segundo Martins e Milagres (2013), o objetivo da nova prática era o de dar maior liberdade aos repórteres, tanto na redação da matéria quanto em sua apuração. O compromisso com a verdade, vale ressaltar, nunca foi deixado de lado. Era muito comum que os jornalistas passassem dias apurando e acompanhando suas histórias para que tudo fosse retratado da forma mais verossímil possível, como defende Gay Talese, outro grande nome dessa corrente.
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O Novo Jornalismo, embora possa ser lido como ficção, não é ficção. É, ou deveria ser, tão verídico, como a mais exata das reportagens, buscando embora uma verdade mais ampla que a possível através da mera compilação de fatos comprováveis, o uso de citações, a adesão ao rígido estilo mais antigo. O novo jornalismo permite, na verdade exige, uma abordagem
mais
imaginativa
da
reportagem
[…]
(TALESE,
apud
CZARNOBAI, 2003, p. 14-15).
Bulhões (2009) afirma que, para Tom Wolfe, os elementos fundamentais que um texto do Novo Jornalismo deveria conter são o registro minucioso dos gestos dos personagens, assim como a descrição dos costumes, hábitos e do local dos acontecimentos. Esses seriam os registros simbólicos do dia a dia, os quais confeririam ao leitor maior fidelidade da reprodução dos fatos, a fim de garantir-lhe a sensação de conhecer o local descrito quase que pessoalmente. A construção cena a cena também se faz necessária, uma vez que a riqueza de detalhes deve ser amplamente explorada. Por fim, há de usar a reprodução quase que na íntegra de diálogos, mostrando ao leitor o que realmente foi dito naquela situação. Procuro seguir discretamente o objeto de minhas reportagens, observandoo em situações reveladoras, anotando suas reações e as reações dos outros a eles. Tento absorver todo o cenário, o diálogo, a atmosfera, a tensão, o drama, o conflito e então escrevo tudo do ponto de vista de quem estou focalizando, revelando inclusive, sempre que possível, o que os indivíduos
pensam
nos
momentos
que
descrevo. (TALESE,
apud
CZARNOBAI, 2003, p. 15).
O jornalista norte-americano Mark Kramer, especialista em narração de não-ficção, contribuiu com um artigo em um livro publicado na década de 1990, onde elencou as oito regras principais do jornalismo literário, sob o título “Regras quebráveis para jornalistas literários”. O texto tornou-se um dos primeiros guias oficiais do estilo e amplamente difundido no meio. As regras são: imergir no universo do assunto da reportagem; sinceridade com fontes e leitores sobre veracidade dos fatos; escrever basicamente sobre eventos rotineiros; escrita em voz íntima, informal, franca, humana e irônica; estilo claro e elegante; escrita desprendida e
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móvel; uso de digressão; e construção de significado através da reação dos leitores27. Apesar da importância e pioneirismo de Wolfe, fora outro autor que escreveu a obra mais importante desse movimento: Truman Capote. Em 1959, o escritor se sentiu atraído por uma nota do The New York Times que reportava o assassinato brutal de uma família de fazendeiros em uma pequena cidade no interior do Kansas. Decidido, ele arrumou as malas e viajou até o município no intuito de escrever um artigo ou uma reportagem sobre como um crime daquele afetou a população local. Mas, segundo Bulhões (2009), quando os dois suspeitos do assassinato foram presos, Capote enxergou a grandiosidade da história e viu ali a possibilidade de exercitar suas habilidades narrativas em um longo trabalho de apuração e redação dos fatos. Era o nascimento de In Cold Blood (A sangue frio), a obra mais importante de sua vida e do movimento. O escritor passou quase seis anos envolvido na confecção do livro, procurando todas as informações que podia e ouvindo o maior número de pessoas. Pouco tempo depois de lançado, em 1965, o livro se tornou um grande sucesso de venda e crítica. Bulhões (2009) afirma que o escritor não considerava sua obra como pertencente ao New Journalism, pois não era jornalismo, e sim um “romance de não-ficção”, gênero o qual havia criado. O livro consagrou o anseio de Capote em escrever uma longa narrativa apoiada na prática jornalística, onde todos os fatos relatados fossem verdadeiros. O sucesso do livro serviu para coroar a audácia do autor em usar recursos literários em um trabalho de reportagem jornalística. Diferente dos outros escritores da época, ele foi o escritor literário que buscou no jornalismo uma nova experiência de realização literária. Compõe um texto de apelos irresistíveis ao leitor afeito à fluência narrativa, move recursos de sugestão cinematográfica e ativa com maestria o suspense. Para tanto, a opção pela focalização distanciada, dita na terceira pessoa, alia-se ao poder da total onisciência, a quele delega ao narrador a capacidade de tudo conhecer. Capote não hesita em expor um quadro minunsioso e intimista de gestos, detalhes e atitudes marcadas por um efeito de exatidão. (BULHOES, 2009, p. 152)
Além a escrita em si, “A sangue frio” representou um marco 27
Breakable rules for journalists. Disponível em: <http://nieman.harvard.edu/stories/breakable-rules-forliterary-journalists> Acesso em 02/12/2015.
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significativo para o fim do preconceito contra o movimento, o qual Bulhões (2009) caracterizou como “a tomada de poder do New Journalism”. Isso se justifica pelo fato de que, até então, existia uma presunçosa distinção entre alta literatura e jornalismo. A primeira “casta” era composta por poetas, romancistas e todos os escritores exclusivos do fazer literário, enquanto a outra categoria destinava-se aos repórteres de jornais e revistas. Com a ascensão do New Journalism, essa distinção entre eles passa a ser ameaçada, já que as fronteiras se tornam menos nítidas. Bulhões (2009) afirma que os membros das “belas-letras” viam seus status ameaçados por esses novos jornalistas-escritores; do outro lado, alguns repórteres também não viam com bons olhos esse desvio da prática jornalística. A situação só é apaziguada então com a chegada do prestígio e o sucesso de A sangue frio. Como dito, o movimento logrou grande êxito nos Estados Unidos e influenciou jornalistas de outros países por diversas gerações. Mesmo com a falta de um manifesto ou organização clara, o New Journalism é reconhecido mundialmente com uma das várias vertentes do jornalismo, sendo talvez a mais criativa e desafiadora de todas. O que os representantes da época não imaginavam era que, na década seguinte, um outro jornalista viria a transformar esse cenário mais uma vez, valendo-se do caminho que o New Journalism havia aberto para criar e consolidar seu próprio estilo: o jornalismo gonzo.
5.2 HUNTER THOMPSON E O GONZO
Hunter Stockton Thompson é o nome do escritor que deixaria sua marca no jornalismo mundial ao ser o percussor de um novo estilo jornalístico. Livre de amarras e padrões pré-estabelecidos, Thompson escrevia a seu jeito, sem importar-se com rótulos ou gêneros textuais. Em razão desse desprendimento, imprimiu sua marca na história do jornalismo, influenciando outros escritores e repórteres a seguirem seu estilo jocoso e ousado de escrever. É sabido que o jovem escritor nunca teve a pretensão de fundar um movimento, ou mesmo classificá-lo, mas a importância de sua obra o colocou no hall de figuras mais importantes para o jornalismo e a literatura do século XXI. Ele fora o responsável, basicamente, por introduzir a ficção ao jornalismo e colocar-se, como personagem, dentro de sua própria reportagem (FRESÁN, 2008).
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Hunter Thompson nasceu em julho de 1937 em Louisville, no estado de Kentucky, sudeste dos Estados Unidos. De família humilde e desestruturada – o pai morreu aos 57 anos e a mãe era alcóolatra - Thompson teve uma infância e adolescência conturbadas, marcadas por passagens policiais. Casos de arruaça com os amigos, destruição do patrimônio público e até tentativa de estupro (o que o levou
para
a
prisão
durante
trinta
dias)
fizeram
parte
desse
período
(STAMBOROSKI, 2005). Já mais velho, entrou para a Força Aérea dos Estados Unidos, o que o permitiu sair da cidade e mudar-se para a Flórida, onde trilhou os primeiros passos no jornalismo, ainda que de forma amadora em publicações internas da corporação. Stamboroski (2005) afirma que Thompson foi escolhido para ser editor de esportes em um jornal da Força Aérea, e nesse mesmo dia, passou boa parte do tempo em uma biblioteca aprendendo tudo que pudera sobre jornalismo. Sem nunca ter frequentado algum curso sobre a atividade, foi provavelmente nesse único dia que Thompson parou para estudar as teorias da construção de uma notícia – embora não tenha colocado esses padrões em prática em suas obras. Em 1958, mudou-se para Nova Iorque onde, já apaixonado pelas letras, fazia alguns trabalhos isolados em pequenas publicações. Seu primeiro trabalho oficial como jornalista surgiu através da revista porto-riquenha El Sportivo, que o convidou para escrever sobre o crescimento do boliche em Porto Rico. Voltou aos Estados Unidos depois da reportagem, mas logo retornou à América Latina no início dos anos 1960 como correspondente da National Observer, escrevendo basicamente artigos sobre a política no continente latinoamericano (STAMBOROSKI, 2005). De volta a seu país de origem, escreveu algumas reportagens e artigos para diversas revistas até que, em 1965, começou o processo de escrita de seu primeiro sucesso: Hell’s Angel – A strange and terrible saga of the California motorcycle gang. Segundo Czarnobai (2003), a ideia de Thompson era escrever um artigo para a revista Nation a fim de desmistificar e revelar a verdade sobre a gangue de motociclistas Hell’s Angel, cuja reputação de brigas, vandalismo e estupros havia se alastrado por todo o país. Para isso, ele estava disposto a passar dezoito meses viajando como membro da gangue para reportar o que de fato acontecia ali. A reportagem, que relatou o modo de vida motociclistas, foi publicada em várias partes pela revista e com forte repercussão – o sucesso foi tanto que o material viria a ser
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publicado em livro anos depois. A publicação marca a virada na carreira de Thompson, que de escritor desconhecido, passou a ser notado e respeitado por boa parte do país. Porém, é em 1971 que o autor alcança o auge do sucesso e conquista definitivamente o status de estrela e ícone da contracultura norteamericana (CZARNOBAI, 2003). Isso se deve à publicação do artigo Fear and Loathing in Las Vegas em duas edições da Playboy. Junto com seu advogado, Thompson viajou até Las Vegas para cobrir a “Mint 400”, corrida anual de motociclistas no deserto de Nevada para a revista Sports Illustrated. Porém, nada sai como o planejado e em poucos dias o jornalista abandona a cobertura da corrida para focar-se em uma “profunda análise sociológica dos viciados em jogo e drogas e todo o tipo de degenerado que se reúne em volta dos cassinos” (CZARNOBAI, 2003, p.32). O material, diferente do que foi pedido, fora recusado pela revista, fazendo com que Thompson a publicasse em outro veículo. Pouco tempo depois da Playboy, a história foi editada em livro, alcançando outras milhões de pessoas e se tornando um marco daquela geração. Até hoje, “Medo e delírio em Las Vegas”, como foi traduzido, é considerado o livro mais importante da carreira de Thompson e a principal obra do jornalismo gonzo. Na “não-cobertura” da corrida, Thompson deixa-se levar pelos atrativos de Las Vegas e mergulha de cabeça na mente de seus entrevistados e no que a cidade tem a oferecer. Para isso, ele imerge no mundo das drogas para prazer próprio e também para conhecer a verdadeira faceta desse “submundo” com mais propriedade. Thompson, assim como seu advogado, consome altas quantidades de drogas e alucinógenos – maconha, cocaína, LSD, mescalina, ácido - e faz questão de narrar suas experiências absurdas sob o pseudônimo de Raoul Duke. Para a pesquisa, o seguinte trecho é umas das breves passagens que melhor exemplifica todo o estilo do livro e o modo de escrita inovador do jornalista. Pânico. Ele percorreu minha espinha como as primeiras ondas de uma viagem de ácido. Todas aquelas realidades horrendas começavam a ficar claras: ali estava eu, sozinho em Las Vegas com aquele carro incrivelmente caro, sob efeito de incontáveis drogas, sem advogado, sem dinheiro, sem a matéria para a revista – e, para coroar o desastre, com uma imensa conta de hotel para saldar. (THOMPSON, 2010, p.80)
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Como se pode observar, Thompson abandona as amarras da objetividade e imparcialidade do jornalismo padrão para relatar em primeiríssima pessoa suas impressões e preocupações daquela viagem. Visto que a cobertura da corrida já estava perdida, ele resolve investir em outra história, onde a pauta, o foco e o personagem seriam ele mesmo. É retratada, então, na obra, a essência do jornalismo gonzo. Mas afinal, como caracterizá-lo? Não há uma definição oficial dessa corrente, visto que ela não foi criada e difundida como uma “escola” do jornalismo, mas sim um estilo de apuração e reportagem desenvolvida por alguns jornalistas sob a influência de Thompson. Após a leitura de livros, artigos e teses a respeito do estilo, transcreve-se abaixo a definição mais simples e clara encontrada por esta pesquisa: O
Gonzo
Journalism
tem
como
principais
características
a
forte
subjetividade, parcialidade, foco narrativo em primeira pessoa, imersão extrema no ambiente relatado, permissividade quanto ao uso da ficção, sendo este um recurso utilizado para ilustrar situações que de fato aconteceram, textos sarcásticos e irônicos e o uso de álcool e drogas, sendo essa última característica não obrigatória para a classificação de um texto como gonzo […] No gonzo, o jornalista é personagem, participa ativamente da ação, expondo o seu ponto de vista e a sua versão daquilo que ele está descrevendo. Ou seja, vive as reportagens para poder relatálas. (MARTINS, MILAGRES, 2013, p.5)
Outro tópico sem um consenso claro diz respeito a palavra “gonzo”, utilizada para classificar o estilo. Muito já se falou sobre sua autoria e significado, mas hoje a maioria dos estudiosos acredita que ela foi dada pelo jornalista Bill Cardoso, depois de ler um artigo de Thompson intitulada The Kentucky Derby is Decadent and Depraved, publicada em 1970. Segundo Pinezi (2011), o texto incialmente deveria falar sobre a corrida de cavalos mais importante do estado, mas acabou transformando-se em uma crítica ao modo de vida da população de Louisville. Ao ler o material depois de Thompson tê-lo enviado, Cardoso exclamou em uma carta: “Eu não sei que porra você está fazendo, mas você mudou tudo. É completamente gonzo! ”. A partir de então, Thompson gostou da expressão e passou a usá-la constantemente.
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Segundo Pinezi (2011), a origem da palavra vem de uma música de jazz gravada em 1960 chamada “Gonzo”. Esta música era bem diferente do que produzido até então, com um grande solo de flauta. Gonzo, no linguajar dos músicos da época, significava “tocar doidão”. Thompson era fã da música e a executou inúmeras vezes em uma única noite através de uma fita cassete para Bill Cardoso enquanto estavam hospedados no mesmo quarto de hotel. Cardoso, tirando sarro da excitação do escritor, o chamou de “homem gonzo”, já que ele ficava “doidão” toda vez que ouvia a música (PINEZI, 2011). Em uma entrevista veiculada em um documentário (The Life and work of Dr. Hunter Thompson, 2008) sobre sua vida, o próprio Thompson comenta a descoberta e a reação que teve após deparar-se com a expressão. Dei me conta de que fazia algo diferente [após a publicação do artigo]. Um amigo me escreveu uma nota dizendo: "O artigo do Derby era puro gonzo". E pensei: Bom, se era isso... pensei que era uma falha brutal. Tinha estragado meu projeto. “Escrito sob coerção por Hunter S. Thompson” foi um de meus piores fracassos e recebi uma avalanche de cartas, ligações, dizendo que fiz uma grande descoberta em jornalismo. Bom, meu Deus, se fiz uma descoberta, temos de batizá-la. E gostei do termo "gonzo" e pareceu que era o que eu fazia. Era bom e louco, meio vigoroso. Gonzo.
Deixada as questões etimológicas de lado, é possível traçar algumas características fundamentais que ajudam a definir a obra de Hunter Thompson. A principal pesquisa que aponta esses elementos comuns é a da pesquisadora canadense Christine Othitis. Em um artigo publicado em 1994, a autora enumera sete características principais que sempre aparecem nos textos do jornalista. Antes da classificação, Othithis (1994) ressalta o fato de acreditar que Thompson é o único jornalista gonzo do mundo e não há muito com o que se comparar. Os temas recorrentes são: sobreposição de temas de sexo, violência, drogas, esportes e política; uso de citação de pessoas e escritores famosos, ou até dele mesmo; referências a figuras públicas, como atores, músicos e políticos; tendência de fugir do assunto proposto; uso de sarcasmo ou vulgaridade como humor; tendência de usar palavras que fluem e uso criativo do Inglês; descrição extrema das situações (OTHITIS, 1994).
94
Se esta é uma classificação que espera traçar paralelos na obra de Thompson, há outras listas que pretendem enumerar os pontos comuns e fundamentais em qualquer texto gonzo. Czarnobai (2003) aponta em sua pesquisa quatro características essenciais ao gênero. A primeira delas é a captação participativa e se refere ao fato de que o jornalista gonzo não se contenta simplesmente em observar do lado de fora determinada situação, nem mesmo entrevistar os envolvidos. Para obter maior grau de informações, ele precisa viver na pele a experiência que está relatando, podendo até interferir no desenrolar da história. O segundo ponto é a dificuldade de discernir ficção de realidade. “Para o gonzo jornalista é permitido o uso de personagens e situações que nunca existiram, se isso contribuir para aumentar o nível de informações dispensado ao leitor e conferir maior dramaticidade à cena que está sendo descrita” (CZARNOBAI, 2003, p.38). O autor também defende que a diferença entre realidade e ficção não seja explicitada ao leitor. A terceira característica apontada pelo pesquisador é o consumo de drogas e bebida alcóolica. Vale ressaltar que este não é um fator obrigatório no texto gonzo, mas muito comum em textos do gênero, principalmente os de Hunter Thompson. É possível que o uso de drogas esteja ligado ao escapismo e a intensificação criativa que elas podem provocar no indivíduo. O quarto e último tema levantando por Czarnobai (2003) é o uso do narrador em primeira pessoa. Já que toda a captação de dados é feita pela participação do jornalista, nada mais natural do que ele reportar os fatos partindo de seu ponto de vista. O autor relaciona esse discurso à legitimidade dos fatos narrados e o compara a um “jornalismo confessional”. O jornalista Rodrigo Fresán (2008), em reportagem publicada sobre a vida do escritor, afirma que o gonzo começa como uma música demencial que mais tarde se transforma em narrativa de estilo livre sobre como o escritor enxerga a vida. E essa visão, especialmente no caso de Hunter Thompson, só é alcançada através de uma iluminação quase que divina ou pelo consumo de drogas. Nesse cenário, o estilo é mais importante que a verossimilhança e a fidelidade do que se reporta, visto a importância do autor – posicionado na obra como primeiríssima pessoa do singular (FRESÁN, 2008).
95 O que importa é informar deformando. O jornalista é a estrela: crônica do autor e da notícia apenas como bela cenografia esperando por seu dono e habitante natural que a vive – e sobrevive – para contá-la. Á sua maneira, claro. (FRESAN, 2008, p.58)
Apesar de possuir essas características bem claras em suas produções, o jornalismo gonzo não é visto como uma escola oficial do jornalismo. O principal argumento para tal encontra-se no fato de que depois de Hunter Thompson, o mundo não presenciou a existência de outro escritor equivalente à sua importância para o estilo. Não houve ninguém capaz de seguir os preceitos de Thompson ao pé da letra. Portanto, alguns teóricos mais críticos consideram o jornalismo gonzo como o movimento de um homem só. Entretanto, essa é mesma visão dos estudiosos e defensores do estilo. Há o consenso geral de que o gonzo só existiu em sua plenitude com Thompson, e que dificilmente será desenvolvido por outro jornalista com tamanha excelência28. Antes de tudo, deve-se perceber o jornalismo gonzo, gonzojornalismo ou simplesmente gonzo como um estilo de um único autor. Por mais influente que seja sua obra, no sentido de inspirar e até mesmo de ser emulada por outros jornalistas, tal estilo só se torna completo de sentido quando praticado por Thompson. Existem tentativas mais ou menos sucedidas de fazer gonzo jornalismo por outros autores, porém tal estilo não foi criado – como “escola” ou “movimento” – e sim percebido, através de certos padrões da obra de Thompson. (STAMBOROSKI, 2005, p. 41).
Depois de vistas as características do estilo e da importância de Hunter Thompson para o movimento, há de se fazer agora um breve retrospecto da vida do jornalista depois do lançamento de Fear and Loathing in Las Vegas. Pinezi (2011) afirma que devido ao gigantesco sucesso do livro, Thompson se tornou escravo de sua própria lenda e todos seus textos posteriores tentavam de alguma forma reconstituir a experiência inicial e o grande sucesso de sua obra-prima. “Depois que o livro veio à tona, o recurso narrativo do personagem drogado, imoral e cheio de loucura tomou vida própria e serviu de modelo para que o autor
28
Um dos principais legados que Thompson deixou foi a possibilidade do jornalista “passar na pele” determinada situação que está reportando, sem necessariamente reproduzir todo o estilo gonzo. Essa prática, que ganhou o nome de jornalismo vivência, é comumente praticada pelos repórteres atuais.
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constituísse sua imagem pública e literária” (PINEZI, 2011, p.124). Era à essa imagem que o escritor estaria preso para sempre, estigma a qual não o agradava completamente. Segundo Sondi Wright, sua ex-mulher, Ele ficou horrorizado por quem acabou se tornando e envergonhado – ou eu deveria dizer mesmo torturado. Ele sabia que havia falhado. Ele sabia que sua escrita não era absolutamente grandiosa. Isso fazia parte da tortura. E mesmo assim, ele nunca conseguiu se erguer de novo. A imagem, o poder, as drogas, o álcool, o dinheiro…tudo isso… ele nunca se tornou o grande escritor Americano que ele queria ter sido. Nem um pouco perto. E ele sabia disso. (PINEZE, apud McKEEN, 2008, p. 349).
Depois do lançamento do livro, Thompson continuou escrevendo e publicando artigos e reportagens em diversos veículos, além de publicar outros livros, mas todos sem grande expressão. Sua última publicação foi Kingdom of Fear, livro o qual tecia críticas ao governo de George W. Bush. Seu último trabalho foi a autoria de uma coluna semanal de esportes chamada Hey Rube no site da ESPN. No dia 20 de fevereiro de 2005, Hunter Thompson se matou com um tiro na cabeça em sua fazenda no Colorado. O suicídio não foi uma surpresa para familiares e amigos, pois o escritor sempre deixou claro que era assim que desejava morrer. O fator surpresa era quando isso iria acontecer. Para Pinezei (2011), o tiro representou o último ato de vontade do autor contra a sua escrita, matando ele próprio e Raoul Duke ao mesmo tempo, a quem se sentia preso. De alguma forma, ele esperava retomar o controle que havia perdido sobre sua vida e obra (PINEZI, 2011). A revista Rolling Stones publicou meses depois o bilhete de suicídio deixado por ele. Chega de jogos. Chega de bombas. Chega de caminhadas. Chega de diversão. Chega de nadar. 67. Isto é 17 a mais que 50. 17 a mais do que eu precisava ou queria. Tédio. Estou sempre de mau humor. Chega de diversão - para qualquer um. 67. Você está ficando mão de vaca. Aja de 29
acordo com sua idade. Relaxe - isto não vai doer .
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Football Season Is Over: Hunter S. Thompson, 1937—2005. Disponível em: <http://www.rollingstone.com/culture/features/football-season-is-over-20050922?page=2>. Acesso em 29/11/2015. Tradução nossa.
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Identificados os pontos mais importantes da vida de Thompson, assim como as linhas fundamentais que constituem o jornalismo gonzo, uma das características em específico chama a atenção desta pesquisa: a narração do jornalista em primeira pessoa. Essa prática foi, e ainda é, duramente criticada por boa parte dos teóricos da área. Bochembuzo e Marin (2015) afirmam que em meados de 1800 o jornalismo se transformou em um negócio capitalista, onde os empresários usavam os jornais para ganhar dinheiro e força política, e as redações se transformaram em locais de produção de notícia em grande escala. Nesse contexto, a fim de padronizar a produção, foram criadas técnicas e convenções de estilo, entre elas, o uso da terceira pessoa nos textos. Sob a influência do Positivismo, defendem Bochembuzo e Marin (2015), as noções de imparcialidade, objetividade e distanciamento do objeto se tornaram as bases para a atividade, as quais permanecem até hoje. Não cabe à esta pesquisa entrar no mérito da questão, mas sim levantar os pontos de desconstrução desse padrão. O movimento mais importante que começou a mexer com essa estrutura foi sem dúvidas o New Journalism, seguido pelo Gonzo, que levou a subjetividade ao extremo. Para Damasceno (2012), esses movimentos exprimem sucesso visto que Conscientes das críticas à objetividade e à fragilidade de todo relato como ficcional, surgem então essas práticas jornalísticas em primeira pessoa, em princípio tímidas, embasadas na força do texto testemunhal e na experiência própria do narrador como parte do fato comunicado. (DAMASCENO, 2012, p.67).
Força do texto testemunhal. É esse um dos principais argumentos que podem justificar o sucesso e consolidação do New Journalism e do Jornalismo Gonzo. Para Lacerda (2009), o uso da primeira pessoa pelo repórter, utilizando por vezes o humor, é o fator de maior aproximação entre ele e o leitor. O repórter gonzo, para ela, está focado apenas na experiência e na tentativa de fazer com que o público possa provar determinado acontecimento junto com ele e isso, claro, acaba estreitando os laços entre eles. É também fato que a credibilidade pode ser posta em cheque nesse panorama, mas é impossível negar a força e atração que os relatos em primeira pessoa podem despertar no público. Mais especificamente sobre o gonzo, é possível afirmar que
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Thompson utiliza-se da primeira pessoa em tom de confissão, como se estivesse sendo mais sincero quando descreve o que aconteceu consigo mesmo em vez de focar-se no todo. Tal forma de narração permite que o leitor perceba automaticamente que o relato do repórter tem um viés muito mais pessoal do que se espera normalmente, excluindo o repórter do artificial “olho que tudo vê” (STAMBOROSKI, 2005, p. 43)
E se essa perspectiva da narração jornalística em primeira pessoa fosse trazida para a atualidade, longe dos vícios, exageros e ficções do gonzo? Se ela fosse atualizada em uma versão televisionada, onde jornalistas renomados contassem suas experiências pessoais ao público depois de experimentarem na pele determinadas situações? E se esses mesmos jornalistas resolvessem abrir-se ao público, compartilhando suas intimidades, emoções, alegrias e tristezas no decorrer na matéria? Como seriam construídas essas reportagens, já que elas romperiam com vários conceitos do jornalismo padrão? As respostas para essas perguntas podem ser encontradas no próximo capítulo, onde será apresentado um novo formato híbrido na televisão brasileira: o reality journalism.
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6 REALITY JOURNALISM
Após a discussão dos conceitos até aqui apresentados, chega-se o momento de analisarmos especificamente o reality journalism, objeto de pesquisa deste trabalho. Como o próprio nome aponta, ele representa a fusão de reality show e jornalismo em um mesmo produto, tornando-se assim um formato híbrido da televisão brasileira. Porém, antes de tratarmos de sua definição especificamente, é preciso tentar localizá-lo no cenário televisivo nacional. Por se tratar de um formato híbrido, sua localidade não se faz exata em conceitos isolados, mas sim uma miscelânea. Seguindo os preceitos criados por Aronchi (2004), pode-se dizer que o reality journalism enquadra-se em diferentes catalogações. Sua categoria é informação e entretenimento ao mesmo tempo. Seu gênero compreende tanto o reality show, quanto a revista e o telejornal. E pode-se enquadrar seu formato a uma vasta gama de opções, como episódio, reportagem, entrevista, depoimento, entre outros. Portanto, é preciso considerá-lo em uma nova e até então inédita posição no mapa televisivo, onde esses conceitos se encontram para concebê-lo. Após o estudo dos temas apresentados nos capítulos anteriores, é possível, então, formular uma possível definição dele. O reality journalism pode ser considerado um novo formato televisivo que pretende informar o público ao mesmo tempo que o entretém por meio de reportagens que contêm elementos de reality show. Nessas matérias, o jornalista é o protagonista da história e partilha com os telespectadores suas opiniões e sentimentos no decorrer da narrativa. A fim de exprimir maior veracidade ao relato, esses repórteres vivenciam na pele o que estão reportando, exercendo assim os papéis de repórter e personagem simultaneamente. As informações nesses produtos são dadas pelos próprios repórteres ou por meio de entrevistas com especialistas. Sobre sua duração, é possível afirmar que o reality journalism apresenta-se no formato de série, onde longas reportagens são divididas em episódios, com início, meio e fim bem definidos. Por meio do compartilhamento das emoções, o público passa a se identificar e criar laços afetivos com esse jornalista. Diante disso, entende-se que o nascimento desse formato surgiu da necessidade do jornalismo atual de humanizar e aproximar os repórteres do público. O uso de câmeras amadoras pelos repórteres
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se faz muito comum neste formato, pois permite ao autor registrar situações e desabafos nos momentos em que a equipe de filmagem não está presente. O outro objetivo que permeia o reality journalism é o desejo das emissoras em tornarem a transmissão de algumas informações mais descontraídas e informais, para que o público se entretenha ao mesmo tempo em que se informa sobre determinado assunto. Dessa forma, os canais pretendem prender com maior facilidade a atenção e interesse do telespectador, aumento assim os índices de audiência. Ao acreditar nessa definição, a pesquisa dispõe-se a elencar seis produtos da TV Globo os quais acreditamos se enquadrarem nesse conceito. Escolheu-se estudar os programas desta emissora pelo fato da mesma ser a maior e mais importante rede de televisão do Brasil, e que também criou e difundiu por todo o país o “padrão Globo de jornalismo”. Entende-se que esta emissora apresentou esse novo formato ao público, é prova de que as acepções sobre o cenário telejornalístico brasileiro apresentadas até aqui se fazem pertinentes e que o reality journalism é um estilo de permanência e crescimento na televisão brasileira, o que justifica seu estudo. Nos próximos subcapítulos, há de se estudar, em ordem cronológica, os exemplos escolhidos por esta pesquisa. Optou-se por analisar os programas no geral, após a observação de seus episódios pela televisão ou pela internet, disponibilizados pela Rede Globo. Desta forma, a pesquisa não fica restrita a apenas alguns episódios, mas sim na produção como um todo.
6.1 MEDIDA CERTA
Em abril de 2011, o programa Fantástico da Rede Globo estreou um novo quadro protagonizado pelos jornalistas Zeca Camargo (apresentador) e Renata Ceribelli (repórter). A ideia do projeto era a de criar um programa de reeducação corporal dentro do período de noventa dias para que eles perdessem peso e adquirissem um estilo de vida mais saudável. A questão da saúde foi lembrada pelos jornalistas durante todo o programa, afirmando não ser apenas uma questão estética. O Medida Certa constitui-se do primeiro objeto encontrado pela pesquisa que caracteriza o reality journalism dentro do espaço de tempo proposto. O quadro resultou em doze episódios com duração média de 13 minutos cada, o que pode ser considerado bastante em termos televisivos.
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A ideia do quadro surgiu do preparador físico Márcio Atalla, que já apresentava um programa semelhante em um canal por assinatura da Rede Globo. Agora, ele queria trazer a proposta para o Fantástico. O diretor da atração aceitou o projeto e, após algumas reformulações, desejou fazer um reality com Zeca e Renata experimentando o projeto do educador físico. O convite aos jornalistas foi feito e após algumas considerações, ambos aceitaram o desafio (CAMARGO, 2011). Em um livro publicado após a experiência, Renata Ceribelli conta que precisou pensar bastante antes de tomar a decisão pois sabia que não seria uma reportagem convencional. Como o próprio diretor disse à época, a ideia era colocá-los como “cobaias” do projeto, em frente às câmeras para todo o Brasil. Eu, personagem de um reality? Fui para casa com muitas indagações na cabeça: Vou ficar para sempre marcada como a repórter gorda? Por outro lado, vou emagrecer, e isso pode ser bom. Mas e se eu não conseguir perder peso? Qual será a consequência de uma exposição desse tamanho? Será que pode comprometer minha seriedade/credibilidade jornalística? Não, não posso ser personagem e repórter ao mesmo tempo. Posso encarar isso como uma reportagem, na qual o público vai ver em mim os efeitos de um programa de saúde. (CERIBELLI, 2011, p. 20)
Mesmo com essas preocupações iniciais, Renata aceitou participar do quadro depois de conversar com a família e a direção do programa. O fator inicial de maior preocupação para ambos, como disse Renata, era a mudança de papéis de repórter para personagem. No Medida Certa, eles seriam o foco da reportagem. Toda a história, na verdade, seria sobre eles. Os jornalistas não ficariam atrás das câmeras, mas sim na frente delas durante toda a gravação, perdendo parte do controle sobre o andamento das filmagens. Sobre essa troca de papéis, Renata compartilha suas preocupações iniciais. Inverteram-se os papéis. A partir de agora, durante boa parte do dia, uma equipe de reportagem estará atrás de mim, seguindo meus passos, e não mais minhas “orientações”. O poder de decisão sobre o que gravar está nas mãos “deles”: cinegrafista, produtora, editor, diretor. Imagine que situação estranha para mim, repórter que durante mais de vinte anos sempre esteve no comando da equipe, ser agora uma “personagem”, ser o foco, o assunto da reportagem! (CERIBELLI, 2011, p. 14)
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Além de perder o controle majoritário sobre a execução da reportagem, Ceribelli (2011) conta que a questão da vaidade ajudou a aumentar suas preocupações ao se tornar a personagem de uma reportagem, ou, de um reality show. Logo no começo das gravações, ela conta que era proibida de usar maquiagem pelos diretores do quadro, pois ninguém se maquiava para ir malhar, por exemplo. Segundo eles, no reality show, ela teria de mostrar sua vida real, como era a rotina dela sem as câmeras (CERIBELLI, 2011). Para a jornalista, que sempre se arrumou apropriadamente para ser filmada, ser registrada sem preparação estética era uma difícil barreira a ser quebrada. Ceribelli ainda conta que se deu conta que estava em um reality pela primeira vez quando assistiu na televisão seu corpo filmado de ângulos “desfavoráveis”, o que ela nunca permitiria acontecer exercendo o papel de repórter em uma matéria tradicional. Por mais que na minha profissão de repórter de TV eu me visse na telinha o tempo todo, no Medida Certa era diferente. Eu não aparecia fazendo uma entrevista, sentada ou em pé, de frente, em uma posição previamente produzida com o auxílio do cinegrafista. Meu corpo estava sendo mostrado na televisão de todo jeito. (CERIBELLI, 2011, p.150).
Como
já
reportado pelos
diretores
do
Fantástico
e
pelos
participantes, a ideia era produzir um reality show sobre eles. E isso se fez concreto pelas características da atração. Zeca e Renata são acompanhados por uma equipe de gravação todas as vezes que vão fazer alguma atividade relacionada ao quadro, quando estão fazendo outras reportagens para o programa, ou mesmo em situações de cunho pessoal. Atividades físicas, refeições, consultas médicas, visita à família, trabalho, compras, festas, todas essas situações são acompanhadas pela equipe do Medida Certa. Mesmo as férias de Zeca Camargo na França foram registradas pelas lentes e microfones da equipe. E não só. Durante o quadro, os jornalistas ganharam uma câmera amadora que eles deveriam carregar por todos os lados, a fim de registrar algum momento ou dificuldade que seria “jornalisticamente correto” dividir com o público (CERIBELLI, 2011). Mas a principal função da câmera amadora era a de registrar os participantes na casa deles, em horários que a equipe não pudesse acompanha-los, e em outras localidades. A câmera serviu, em inúmeras vezes, como uma espécie
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de confessionário, onde eles desabafavam com o público e compartilhavam medos e angústias. “Quando tive de fazer isso, nesse primeiro desabafo, me senti estranho, mas ao mesmo tempo aliviado. Pude entender o que leva um participante de um reality a se abrir para um público desconhecido – é quase um pedido de ajuda” (CAMARGO, 2011, p. 59). O sentimento do jornalista é confirmado pela teoria de Mateus (2012), a qual afirma que os participantes de um reality show sentem que esses momentos de confissão com o público podem suavizar suas mágoas e angústias. Renata, por exemplo, que trabalhava como repórter do Fantástico, não parou de produzir suas reportagens habituais, e no período do Medida Certa sempre foi acompanhada por duas equipes. Uma para gravar a reportagem, e outra para registrar sua rotina a fim de exibi-la no quadro. Além das produções normais, a repórter viajou pelo Brasil fazendo reportagens para o Medida Certa, quando como mostrou a dieta coletiva de funcionários de um escritório em Fortaleza e o Festival do Chocolate de Gramado. É possível deduzir que o formato reality show foi escolhido para compor o Medida Certa pois o mesmo oferece elementos que aproximam seus participantes do público, através da exposição da intimidade, do registro da vida cotidiana e das confissões, como já discutido no terceiro capítulo. Cabe afirmar que o Fantástico, como programa jornalístico, apropriou-se do formato para despertar o interesse de seus telespectadores de duas formas. A primeira repousa na curiosidade das pessoas em observarem a intimidade das outras, como defende Sibilia (2008). A outra aposta do programa é em estabelecer laços afetivos entre seus jornalistas e o público, como afirmou Jesús-Martín Barbero (2009) ao falar sobre a simulação do contato, mecanismo criado pela televisão para aproximar emissor de receptor. Sobre a inclusão do reality show no jornalismo, O reality-show confirma essa suspeita de que as estatísticas, os comentários, as análises e as entrevistas não bastam para compreender a realidade social: é que a verdadeira vida, as emoções pessoais, os transtornos profissionais, as desilusões ou as ambições, essas, acontecem no quotidiano das pessoas. (MATEUS, 2012, p. 239)
Ao aceitar o desafio, ambos sabiam da exposição a que estariam se submetendo. Camargo (2011) afirma que o projeto inicial era cheio de riscos e o
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maior deles era a superexposição, a qual ele conclui ter administrado bem no fim das contas. Ceribelli (2011) compartilha da mesma ideia, e afirma que aqueles noventas dias foram os dias mais expostos de sua vida. Ela diz que no decorrer do programa descobriu que a exposição era muito maior do que esperava, pois, as pessoas estavam conhecendo a Renata real, e não só a repórter. Com isso, fui percebendo aos poucos que a tal “exposição” que eu temia quando aceitei fazer o reality seria muito maior do que eu imaginava. Seria uma exposição não só da minha imagem, mas das minhas sensações e sentimentos. Todo mundo iria conhecer a Renata pessoa física, e não só a repórter, pessoa jurídica. (CERIBELLI, 2011, p. 80)
Ambos relatam que essa superexposição e a ligação emocional criada entre eles o público, apesar de ter sido positiva no final, configurou alguns momentos de conflito ao decorrer do programa. Renata compartilha no livro sua ida à um casamento onde passou fome, pois sentiu-se pressionada pelos olhares de todos os convidados em ver quanta comida ela colocaria no prato. “O nível de vigilância sobre mim estava extrapolando os limites da boa educação! Mas eu havia permitido isso, de certa forma, quando aceitei me expor em um reality show” (CERIBELLI, 2011, p. 174). Mas como foi dito, a experiência entre essa aproximação com o público foi avaliada como positiva no fim das contas. Zeca Camargo afirma que o Medida Certa mudou radicalmente o relacionamento deles com os telespectadores do Fantástico. As linhas que os separavam estavam ficando cada vez mais finas. O que parecia ser uma irritação era um estranhamento dessa proximidade que o Medida Certa trouxera com quem nos assiste. Entre tantas coisas boas que esse projeto nos deu – e, como faço questão de ressaltar, tudo tem superado nossas expectativas -, essa mudança em nossa relação com o espectador é uma das mais prazerosas. Depois do Medida Certa, sempre que encontrávamos as pessoas na rua, a relação era tão direta que tenho certeza de que alcançamos um outro patamar de relacionamento (CAMARGO, 2011, p. 198).
Até o momento descrevemos os aspectos que caracterizam o Medida Certa como um reality show. Mas não é só isso. Na verdade, o Medida Certa
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é uma grande reportagem que contêm elementos do reality show em sua estrutura, mas em nenhum momento deixa de ser uma reportagem. É nesse encontro que o programa reforça sua inovação e classificação dentro do reality journalism. Tratandose também de uma reportagem, o Medida Certa precisa da figura de um repórter e, acima de tudo, de informações a serem transmitidas para o público dentro dos códigos jornalísticos. Primeiramente, a respeito da figura do repórter, Zeca e Renata desempenham a função ao mesmo tempo em que são personagens da matéria e do reality show. Essa dualidade fica explícita logo na estreia no quadro, no dia 03/04/2011, quando os participantes conversaram ao vivo no estúdio com a apresentadora Patrícia Poeta. Vale observar que, na época, Zeca Camargo dividia a apresentação do programa com Poeta, mas nesse momento, passa a ser o assunto da atração e troca de lado, passando a ser entrevistado por ela. Essa mudança já demonstra os primeiros indícios de sua dualidade repórter/personagem que permaneceriam durante os noventas dias. Patrícia Poeta: Agora Zeca, em mais de vinte anos de carreira […] como jornalista a gente pode dizer que é a primeira vez que vocês trocam de lado e passam a ser um pouco personagens também dessa história? Zeca Camargo: Acho que as duas coisas ao mesmo tempo… Renata Ceribelli: Na verdade em nenhum momento a gente vai deixar de ser repórter, né, a gente vai estar o tempo todo dando dicas. Tudo que a gente fizer são coisas que as pessoas podem fazer em casa para melhorar a qualidade de vida. E a ideia é justamente essa, né Zeca? Zeca Camargo: É dar exemplo. Acho que as dúvidas que a gente perguntar, as experiências, todo obstáculo que a gente encontrar é o que a maioria das pessoas encontra também quando enfrenta um projeto como esse. Patrícia Poeta: Aprendendo e ensinando…
Como ficou explícito no bate-papo inicial, o objetivo dos jornalistas, além de perder peso, era o de levar informações de saúde, nutrição e atividade física para o público. Dessa forma, eles esperavam que os telespectadores teriam maior conhecimento para encarar o mesmo desafio: reprogramar o corpo em noventa dias. A todo momento o programa defendia que esse era o principal objetivo do quadro: prestar um serviço de saúde à população (CERIBELLI, 2011). Para tal, os jornalistas
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se diziam comprometidos em levar a melhor informação para a audiência, desempenhando o papel de bons repórteres. Em uma passagem do livro, Ceribelli (2011) afirma que seguia religiosamente o conselho dos especialistas, pressionada pela responsabilidade de repórter que havia assumido com o público. A jornalista conta que as informações que recebia dos profissionais tornavam o projeto mais interessante, ao passo que ela se sentia mais repórter do que personagem. Para ela - que há treze anos trabalhava como repórter do Fantástico – isso tornava a experiência muito mais fácil. Em suas considerações finais sobre a experiência, ela reflete: “Feliz de não ter sido uma simples ‘personagem’ de reality, mas uma repórter de televisão experimentando um programa de saúde que pessoas do país inteiro passaram a seguir” (CERIBELLI, 2011, p. 210). O papel de repórter dos dois se faz perceptível em todo o quadro. As características de reportagem se fazem presentes logo no início do Medida Certa, onde há uma cabeça lida pelos apresentadores – nesses casos, Zeca falava dele mesmo – e a vinheta que indicava o início do episódio. No começo há também uma breve retrospectiva dos capítulos anteriores, para situar o telespectador não assíduo. Zeca e Renata dividem a locução dos episódios em off. Um fala sobre o outro ou um narra a si mesmo no vídeo. Por vezes, o off vem a completar uma fala deles que aparece no vídeo, constituindo assim uma conversa – através de sonora e off - entre eles mesmos. O tom de texto adotado aqui é bem mais informal do que em reportagens tradicionais, afinal, os jornalistas estão falando deles mesmos. O tom informal também deve-se fazer presente em decorrência dos elementos de reality show adotados. Outros elementos telejornalísticos, como a passagem, sonoras e a identificação dos entrevistados na tela, também se fazem presentes no programa. Mas para podermos afirmar que se trata essencialmente de uma reportagem, falta um elemento fundamental: a informação. As reportagens tradicionais reportam notícias, de cunho factual ou não, o que não ocorre no Medida Certa, pois não há nenhum fato noticioso a ser reportado. O que é veiculado pelo programa são informações a respeito de qualidade de vida, no geral, dadas por diversos especialistas sob a tradução jornalística dos dois repórteres e dos editores. Por meio das informações repassadas a Zeca e Renata, é esperado que o público também
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aprenda. Durante o programa foram ouvidos nutricionistas, educadores físicos, clínicos gerais, atletas, endocrinologistas, psicólogos, cardiologistas e culinaristas. Mas o profissional central que acompanhou todo o processo e forneceu o maior número de informações para os participantes – e para o público – foi Márcio Atalla, preparador físico e idealizador do projeto. Ele foi o responsável por elaborar todo o plano de reeducação corporal dos jornalistas. Quando necessário, também contava com a ajuda de outro profissional. Zeca e Renata questionavam Atalla a todo momento a fim de exprimir o maior número de informações, que, se não fossem válidas para eles, seriam para o público. Para ajudar na fixação das informações, a edição do Fantástico por vezes colocava a informação escrita na tela sob o formato de “dica”, obedecendo aos padrões do Infotenimento, ou seja, deixando a informação mais leve para melhor assimilação do receptor. Figura 1 – Dica de alimentação antes de exercício
Fonte: TV Globo, 2011
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As imagens do quadro Medida Certa estão disponíveis em <http://g1.globo.com/fantastico/quadros/medidacerta/index.html> Acesso em dez. 2015
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Figura 2 – Dica de nutrição
Fonte: TV Globo, 2011.
Figura 3 – Dica para exercício físico
Fonte: TV Globo, 2011.
Figura 4 – Dica para atividade física
Fonte: TV Globo, 2011.
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Um exemplo que comprova a preocupação da equipe em informar o público através dos participantes foi quando, na sexta semana, Renata pegou uma gripe e não pôde treinar. Com o imprevisto, a equipe de gravação foi junto com Márcio Atalla até a casa da jornalista para explicar como a gripe interfere na atividade física. Por meio de uma virose não planejada, a produção aproveitou o contratempo para responder a algumas perguntas, como se é recomendado praticar exercício gripado, em qual intensidade e qual tipo é o mais propício, por exemplo. Uma outra situação, dessa vez marcando o Infotenimento, é quando houve uma gravação no supermercado, onde Renata foi fazer compras para a própria casa acompanhada de sua empregada doméstica e uma nutricionista. Pela locação ter sido em um supermercado, a gravação ficou bem informal, com as três mulheres – que conversavam como amigas - andando pelo local, escolhendo os produtos e comentando sobre eles. Em um pequeno espaço de tempo – três minutos foram dados pela edição final – Renata conseguiu extrair uma série de informações da nutricionista através de uma conversa completamente simples em um ambiente comum a todos os telespectadores. A presença da funcionária da jornalista na entrevista também destacou um maior grau de informalidade e identificação com o público. Através das entrevistas, afirmações, divulgações de pesquisas, “dicas” dos especialistas e das próprias experiências dos participantes, é possível afirmar que o programa conseguiu compartilhar determinado grau de informação, fornecendo algum conhecimento para quem estava assistindo. O reflexo do êxito do programa pode ser observado pela aceitação dos telespectadores, medida pelo Ibope31, pela conquista da meta dos apresentadores – Zeca perdeu 12kg e Renata 9,5kg – e pela adesão do público à reeducação corporal. Não há números oficiais, mas, tomando por base os relatos exibidos no programa e no blog do quadro na internet, é possível afirmar que um expressivo número de pessoas se sentiu motivada com a ideia e começou sua própria dieta, seguindo as dicas fornecidas no programa. O incentivo aos telespectadores, para que eles também entrassem na “medida certa” era padrão constante em todos os episódios. Os jornalistas se
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Regime de Renata Ceribelli e Zeca Camargo eleva ibope do Fantástico. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/911967-regime-de-renata-ceribelli-e-zeca-camargo-eleva-ibope-dofantastico.shtml> Acesso em 10/12/15
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dirigiam ao público de casa de forma direta, dizendo o que eles poderiam fazer ou não para perder peso corretamente. Era visível o desejo dos participantes para que o público também adotasse um estilo de vida mais saudável, seguindo o que era recomendado ali. Zeca Camargo (2011) atribui o sucesso do quadro ao fato de que eles estavam tratando de assunto muito próximo a milhares de brasileiros, um tema universal. O jornalista ainda afirma que toda pessoa que encontrava na rua e que também estava na “medida certa”, dava-lhe mais estímulo a continuar. Já Ceribelli (2011) diz acreditar que o sucesso veio porque os telespectadores viam que ela e Zeca estavam sendo verdadeiros e mostrando a realidade deles. No livro publicado após o fim do quadro, cada um ressalta a melhor parte da experiência. Para Zeca Mas o que me deixa mais feliz é ver que o Medida Certa significou uma mudança radical no meu estilo de vida e no de milhões de brasileiros que nos acompanharam, que, assim como nós, tomaram uma atividade positiva para viver em paz com o seu corpo. (CAMARGO, 2011, p. 244)
Renata também afirma que o programa mudou sua vida para sempre, inclusive, diz que ganhou mais anos de vida por conta do programa. Para ela O Medida Certa cumpriu com louvor o objetivo de prestar um serviço à população. Por isso, considero essa a minha principal reportagem em 26 anos de carreira, a reportagem que ensinou a mim e a muitas pessoas a ser mais feliz. (CERIBELLI, 2011, p. 255)
Mesmo com o fim do quadro em junho de 2011, o Medida Certa continuou em outras plataformas. O Fantástico criou um evento chamado Caminhada Medida Certa, que percorreu onze capitais brasileiras com o intuito de reunir um grande número de pessoas para realizar exercícios físicos ao ar livre. Zeca, Renata e Atalla compareciam aos eventos para estimular ainda mais a presença da população. Nos locais também eram feitos exames de saúde, com parceria de instituições locais. Mais de 54 mil pessoas participam das caminhadas (CERIBELLI, 2011). Toda a experiência também resultou em um livro: “Medida Certa – Como chegamos lá” (2011) escrito em conjunto pelos jornalistas com orientações de Márcio Atalla. Outro mecanismo que também ganhou vida depois do programa foi
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um aplicado para celular, o qual permite os usuários fazerem cálculos de IMC (Índice Massa Corporal), além de montar um cronograma de atividades e receber as dicas do quadro no aparelho. Outra ferramenta digital que coexistiu com o programa foi o blog do Medida Certa, hospedado no site do Fantástico. Lá era possível ler os relatos dos pessoais jornalistas e as dicas de Márcio Atalla, compreendo em um mesmo local entretenimento e informação, assim como acontecia na TV. Também eram disponibilizadas imagens de bastidores, os episódios completos da série, além dos “desabafos” dos participantes. Boa parte da interação direta com o público se fazia presente nesta página, já que eles poderiam mandar mensagens aos integrantes e, com sorte, serem respondidos. Figura 5 – Blog do Medida Certa
Fonte: Portal G1, 2011.
A partir de todas essas concepções é possível afirmar que o Medida Certa se enquadra em sua totalidade no formato reality journalism pois é uma reportagem em formato de reality show, seus participantes são jornalistas que passam a experiência na pele e narram os acontecimentos em primeira pessoa, misturando informação e entretenimento. Na conclusão do livro a respeito do
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programa, Zeca Camargo (2011) mostra ter conhecimento do ineditismo da atração, defendendo o nascimento de um novo formato. Estava nascendo ali um novo formato de reportagem em televisão, que inclusive extrapolou as regras do reality (que era a proposta inicial) e humanizou mais ainda a figura de quem está do lado de cá da TV […] Mas acho que, com o Medida Certa, fomos um pouco mais além nessa relação: convidamos o telespectador a viver uma “aventura” (a da busca de uma vida mais saudável, que ele podia alcançar) e criamos uma identificação das pessoas com alguém que elas consideravam especial: o repórter, o apresentador. Parece que as barreiras haviam caído (CAMARGO, 2011, p. 199).
Após esta primeira edição, o quadro teve outras versões, envolvendo crianças, um ex-atleta, cantores, humorista, além de uma disputa entre moradores de um condomínio residencial. A dualidade reportagem/reality show continuou em todas as edições, mas o repórter agora já não era mais o personagem, por isso não nos convém seus estudos.
6.2 PLANETA EXTREMO
Menos de um mês após o fim do Medida Certa, o Fantástico estreou sua segunda produção de reality journalism. No dia 03 de julho de 2011 entrava no ar o primeiro episódio da primeira temporada de Planeta Extremo, uma série de reportagens divida em quatro episódios protagonizada pelo repórter Clayton Conservani. Cada episódio mostra uma viagem de Clayton e sua equipe para um lugar do mundo onde ele enfrentaria algum desafio para mostrar as riquezas naturais do local ou contar histórias de vida e superação. O Planeta Extremo se enquadra no reality journalism pois mais uma vez o repórter é colocado como protagonista de sua matéria e lhe é permitido narrá-la em primeira pessoa. A análise deste estudo em específico fica restrito à primeira edição do quadro em 2011, isso porque o programa teve longa duração na TV Globo. A segunda temporada foi exibida pelo Fantástico no ano seguinte, e em 2013 pelo Esporte Espetacular, em versões inéditas. Em 2015, a série ganhou lugar próprio na grade de programação sendo exibida nas noites de domingo. Porém desta vez,
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Clayton dividiu o comando da atração com a também repórter Carol Barcellos. E uma nova temporada para o começo de 2016 já foi confirmada pela emissora. Visto isso pode-se afirmar que o Planeta Extremo é o programa de reality journalism de maior sucesso e duração da Rede Globo, sendo inclusive um dos finalistas do prêmio Emmy Internacional de 2012. Na estreia do quadro, ele fora anunciado pelos apresentadores do Fantástico como uma série de aventuras inéditas na televisão brasileira a qual os telespectadores não iriam esquecer. Segundo reportagem publicada no site32 da emissora, a ideia do quadro surgiu da Central Globo de Esportes, que gostaria de fazer um projeto grande e audacioso envolvendo esportes radicais. Para isso, o jornalista Clayton Conservani foi chamado. Repórter da TV Globo desde 1992, ele é considerado um “repórter/atleta”, devido seu porte físico e suas constantes reportagens envolvendo aventuras e esportes de alto risco. Para a proposta do projeto, ele era a pessoa ideal. Pela observação dos episódios da primeira temporada, chega-se à conclusão de que a emissora gostaria de produzir grandes reportagens sobre lugares e histórias do mundo que envolvessem algum tipo de esporte e que merecessem ser contadas em detalhes. Para isso, o repórter deveria “mergulhar” nos locais e nas modalidades que seriam reportadas – por isso a escolha do repórter/atleta da emissora, afinal, não são todos os jornalistas aptos a tamanho desgaste físico. Nos quatro episódios do Planeta Extremo, Clayton - que assinou todas as reportagens além do roteiro da série - participou das aventuras que estava reportando ao público: correu uma maratona no gelo, caminhou e escalou uma cordilheira, caminhou e dormiu em florestas escuras a temperaturas baixíssimas e mergulhou em cavernas subaquáticas. O primeiro episódio da série teve mais de quarenta minutos de duração – o maior de todos – e também o de maior repercussão. Nele, o repórter fez a cobertura da Maratona do Gelo da Antártica, onde os competidores devem percorrer um trajeto de 42km sob temperaturas abaixo de zero. Como no reality journalism o importante é o repórter passar pela experiência na pele, Conservani se juntou aos atletas profissionais e também disputou a corrida. Para isso, ele se 32
Clayton Conservani se emociona ao falar dos bastidores do Planeta Extremo. Disponível em: <http://gshow.globo.com/programas/mais-voce/v2011/MaisVoce/0,,MUL1667677-18173,00CLAYTON+CONSERVANI+SE+EMOCIONA+AO+FALAR+SOBRE+OS+BASTIDORES+DO+PLANETA +EXTR.html> Acesso em: 17/12/2015.
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preparou durante meses em um treinamento especial junto com outro brasileiro. Toda a preparação foi exibida posteriormente na reportagem. Durante os dias que antecedem a corrida, o repórter entrevista alguns participantes para descobrir os motivos que os levaram até ali. As histórias dessas pessoas – que normalmente envolvem dramas pessoais – são contadas no decorrer da matéria. Essas mesmas pessoas são acompanhadas de perto pelo jornalista, que mostra no final como cada uma se saiu na corrida. Passados os preparativos, a reportagem foca na prova em si, principalmente na figura de Conservani. A intercalação da narrativa é feita entre offs e passagens que o repórter faz enquanto está correndo. O cinegrafista o encontra em pontos específicos do trajeto para gravá-lo e Clayton também dispõe de uma câmera amadora para registrar suas impressões. Nas diversas passagens que faz, o repórter compartilha como está sendo a corrida, falando de seu cansaço, dores, dificuldades e como seu corpo está reagindo. Ao olhar para a câmera e gravar uma passagem, porém falando de como está sendo participar da corrida, percebe-se um dos principais momentos onde a figura de repórter e personagem se fundem em uma só coisa. Em determinado momento da corrida, pode-se observar o ponto mais pessoal da reportagem. Buscando inspiração para continuar a correr mesmo com fortes dores no corpo, Clayton Conservani lembra-se da filha e decide registrar esse momento com sua câmera amadora. O desabafo do repórter, aos prantos, foi incluso na edição final (ver também Figura 07). Off: Tento buscar conforto em alguém especial, que está sempre ao meu lado. Transporto meu coração para o Brasil. Passagem: Muitos momentos da prova eu fiquei completamente sozinho e aí é só você e seus pensamentos bons e ruins. Aí eu pensei muito na minha filha, na Gabi. Eu tenho que fazer valer a pena todo esse tempo que eu passo longe dela. Essa prova é pra você, Gabi… Todas as forças que eu tenho agora são para você, minha filha. E olha só esse lugar lindo que eu tô correndo, Gabi. Eu fico forte por causa de você. Vamo lá!
Depois de cinco horas de prova, ao cruzar a linha de chegada, o repórter faz um novo desabafo. Dessa vez, ele é entrevistado por sua própria equipe. Novamente emocionado e com os olhos marejados, o repórter lembra de sua filha, agradece a seus pais pelo apoio e dedica a conquista à sua família. Esses
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momentos, onde o repórter abandona por completo a impessoalidade e assume-se seus sentimentos frente às câmeras pode desestruturar sua imagem e credibilidade jornalística junto ao público, mas também humaniza e o aproxima dos telespectadores. Ao falar de sua família, o jornalista estabelece laços com seu público, que pode também se emocionar junto com ele. Esse processo de aproximação fora percebido por Martín-Barbero (2009) como já citado neste trabalho. Para ele, a televisão cria dois mecanismos principais com o público. Um deles é a simulação do contato, que cria uma “ponte” entre a tevê e o telespectador; essa ponte normalmente se faz válida por meio da figura de um animador (que aqui podemos substituir pelo repórter) que se dirige ao público de forma direta e em tom coloquial. Já o outro mecanismo é a retórica do direito, que aproxima o conteúdo da televisão com quem está assistindo, já que elas precisam se sentir próximas do que está sendo transmitido. Além desta corrida, a equipe permanece mais um dia na Antártica para cobrir outra prova, dessa vez de 100km. Aqui, Conservani não compete, portanto fica mais preso ao trabalho de repórter tradicional. Com o microfone em mãos pela primeira vez, ele entrevista os corredores da prova – que agora são apenas competidores, e não mais seus companheiros de outrora. O repórter também grava uma passagem tradicional, com texto, enquadramento e GC padrões. Figura 6 – Passagem tradicional
Fonte: TV Globo, 2011
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Figura 7 – Passagem amadora
Fonte: TV Globo, 2011.
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A informação neste episódio está centrada na cobertura da maratona do gelo, onde o repórter transmite ao público informações sobre o histórico da corrida e apresenta dados da edição daquele ano. Já os elementos de reality show no Planeta Extremo são menores se comparados a outros programas, mas eles existem. A principal expressão de reality que a série comporta são as confissões e desabafos do repórter para uma câmera amadora que o acompanha a todo momento. Quando sente necessidade de compartilhar algo mais pessoal – como ocorreu no meio da corrida, ou em sua barraca - o jornalista recorre a este artificio, reservando a câmera profissional a outros tipos de registros. Como dito no terceiro capítulo, a confissão é um dos principais elementos dos programas de realidade, capaz de aproximar o participante do público. Nos demais episódios da série – que tiveram duração média de 20 minutos - todas essas características são mantidas. No segundo capítulo, Clayton viaja com sua equipe até a Cordilheira dos Andes para acompanhar a expedição de um grupo de aventureiros até o local de um acidente aéreo de 1972. Na ocasião, uma aeronave com jogadores de rugby caiu no local deixando vinte e nove mortos. Agora, esse grupo vai até o local do desastre para realizar uma partida de rugby em homenagem aos mortos. Clayton afirma que a missão do quadro é ir até o local para 33
As imagens do Planeta Extremo estão disponíveis em <http://g1.globo.com/fantastico/quadros/planetaextremo/noticia/plantao.html> Acesso em dez. 2015
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conhecer em profundidade os detalhes do acidente. O principal personagem da reportagem é um senhor que sobreviveu à queda e volta pela primeira vez à Cordilheira. A equipe o acompanha em todo o momento e são exibidas diversas sonoras que o repórter fez com ele, contando detalhes do acidente e dos momentos que viveram durante os 72 dias à espera de ajuda. A todo momento, Clayton afirma que para entender melhor a história, é preciso ir até o local do acidente. São cinco dias de viagem – transporte de mula, caminhadas, escalada – até o lugar exato da queda. Por tratar-se de uma história trágica, o repórter restringe-se mais ao papel de repórter, deixando os relatos mais emocionados na voz dos entrevistados. É somente nos momentos de dificuldade da expedição que ele fala em primeira pessoa. Em toda sua duração, a carga emocional da reportagem se faz muito grande, devidos os relatos, as imagens de arquivo e a trilha sonora usada pela edição. No terceiro episódio Clayton volta a enfrentar o frio, dessa vez na Noruega, em busca da aurora boreal, fenômeno natural da terra que só acontece no hemisfério norte do planeta. As baixas temperaturas, os possíveis ataques de ursos polares, as tempestades de neve o desconforto dos acampamentos são os principais obstáculos do repórter nessa jornada. Durante o episódio ele relata os desafios pessoais que enfrenta e também age como repórter tradicional, quando mostra imagens e informações de um hotel e uma galeria de arte feitos de gelo. Com microfone em mãos, ele grava uma passagem e entrevista o artista das esculturas. Conservani também visita um observatório astrológico para entrevistar um pesquisador da aurora boreal. Lá, com a ajuda de recursos gráficos, ele explica com maiores detalhes o fenômeno ao público. No quarto e último episódio da temporada, a equipe viaja até as Bahamas para fazer um mergulho sob uma caverna a 200m de profundidade. Clayton é submetido a um curso de mergulho nos Estados Unidos e, quando falha em um teste pela primeira vez, deixa-se mostrar visivelmente irritado e decepcionado com a falha, inclusive dando uma entrevista à equipe para falar de sua frustração. Durante o mergulho, o repórter vai contando ao público por meio dos offs como está se sentindo e revelando informações e curiosidades da arqueologia e história das cavernas. Assim como na maratona de gelo, Conservani dá uma entrevista à sua equipe após o mergulho para falar como foi a experiência.
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Após o término desta série, como já foi dito, o programa ganhou outras temporadas e versões, permanecendo até hoje na grade da Rede Globo. O sucesso do Planeta Extremo, além do Medida Certa, parece ter estimulado o Fantástico a produzir, ainda naquele ano, mais uma peça de reality journalism. Diferente da série de Conservani, desta vez, o programa elevou ainda mais o grau de reality show dentro de uma reportagem.
6.3 EXPEDIÇÃO XINGU Em agosto de 2011 o Fantástico exibia sua terceira produção de reality journalism no ano, seguindo a estética aventureira do Planeta Extremo, já que também viria a submeter um de seus repórteres a situações de risco. Porém, antes da análise deste novo quadro em específico, é interessante fazer um breve retrospecto da história do Fantástico e o porquê dele ter se tornado o berço do reality jornalismo dentro da TV Globo. Afinal, com a criação de Expedição Xingu, o programa contabiliza três atrações do formato em menos de um ano, tornando-se a atração da emissora que mais apostou e produziu esse novo estilo. O Fantástico surgiu em 1973 com a promessa de ser a primeira revista eletrônica do país, mesclando assuntos das mais diversas áreas, a fim de situar o telespectador sobre o que de mais importante aconteceu na semana – e o que seria notícia na semana que começava. Para Aronchi (2004), o programa é o principal expoente do formato revista no Brasil, por conta da duração e do sucesso de audiência, que consegue cativar todos os públicos, além de pautar outros veículos de comunicação. Segundo a definição da página da emissora na internet Programa dominical em forma de revista eletrônica, o Fantástico é um painel dinâmico do que é produzido em uma emissora de televisão: jornalismo, prestação de serviços, humor, dramaturgia, documentários, música, reportagens investigativas, denúncia, ciência, além de um espaço 34
para a experimentação de novas linguagens e formatos .
A principal característica do formato revista é a mistura entre jornalismo e entretenimento, já que ela deve atender a todos públicos e dispor de um 34
FANTÁSTICO. Disponível em <http://memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/programasjornalisticos/fantastico/formato.htm> Acesso em 10/12/2015
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amplo leque de assuntos para abordar em sua extensa duração – normalmente as revistas duram cerca de duas horas. O Fantástico, especificamente, desde seu ano de criação, sempre apresentou essa variedade, investindo em grandes reportagens investigativas, assim como quadros de puro entretenimento. Para Aronchi (2004, p. 129) o programa contém: “noticiário, reportagens, quadros de mágica, videoclipes, humor, teledramaturgia, esportes, perguntas interativas, entre outros”. Mais especificamente sobre a mistura entre jornalismo e entretenimento o autor afirma A formatação do gênero revista é muito parecida com a dos programas de jornalismo
e
variedades,
tendo
como
diferencial
a
postura
mais
comprometida com a categoria informativa do que com a de entretenimento. Nesse aspecto, o infotenimento – a informação unida ao entretenimento – passa a ser linguagem utilizada para atrair a audiência. A notícia torna-se espetáculo e faz parte de uma espécie de show de informações. (ARONCHI, 2004, p. 130)
Como dito pelo o pesquisador, o Infotenimento é a chave do formato, tornando-se a principal característica de linguagem do Fantástico, que alia o show à vida, assim como sugere seu slogan35. Nos mais de 40 anos de exibição, o programa sempre apresentou materiais das duas áreas, mas sempre em espaços distintos bem delimitados. O que era jornalismo estava bem claro nas reportagens e entrevistas, assim como os quadros de entretenimento. Porém nos últimos anos o dominical passou a mesclar essas duas áreas, fundindo as categorias em um mesmo produto. A ideia era informar e divertir ao mesmo tempo. Com isso o Fantástico, que sempre foi palco de experimentações e inovações na TV Globo, passou a produzir e veicular esses híbridos. Um dos exemplos está na série de reportagens exibida em entre agosto e setembro de 2011 chamada “Expedição Xingu”. O programa convidou o repórter Rodrigo Alvarez e mais oito universitários de todo o país a recriarem a Expedição Roncador-Xingu, feita originalmente em 1943 pelos irmãos Villas-Bôas. O trajeto, que fazia parte do projeto Marcha para o Oeste, tinha como objetivo mapear a região central do Brasil – que permanecia intocada por homens brancos – para fazer a ligação entre Norte e Sul do país. Os irmãos, junto com outras dezenas de 35
Quando criado em 1973, o programa chamava-se “Fantástico, o Show da Vida”, mas com o decorrer do tempo adotou-se apenas o primeiro nome. Ainda assim, o predicado é constantemente usado pela atração.
120
sertanejos, contribuíram para o conhecimento, preservação e catalogação de tribos indígenas e espécies de plantas. O principal legado da expedição foi a criação do Parque Indígena do Xingu. A ideia do Fantástico era reunir um grupo de pessoas dispostas a percorrer o caminho que os irmãos trilharam, passando pelas mesmas dificuldades, privações e, claro, realizações que a experiência pode proporcionar. Oito jovens universitários se uniram ao repórter Rodrigo Alvarez para vivenciar o experimento, que foi ao ar no Fantástico em formato de uma série de reportagem, dividida em seis episódios entre agosto e setembro daquele ano. Assim como o Medida Certa e o Planeta Extremo, este quadro caracterizou-se pela inclusão de elementos do reality show dentro da reportagem. No primeiro episódio, cada um tem o direito de se apresentar, contar porquê topou o desafio e o que espera encontrar nos próximos dias. A dinâmica criada entre eles no decorrer da jornada também se assemelha muito a outros reality shows de confinamento, onde pessoas de diferentes personalidades e localidades são escolhidas a passar determinado tempo juntos em busca de algum propósito – prêmio em dinheiro ou não. Em Expedição Xingu não foi diferente. A edição não deixava de exibir os desentendimentos entre os participantes, mostrando as brigas e o que cada um falava do outro pelas costas. Episódio que ganhou destaque na edição foi a desistência de um dos participantes, ainda no terceiro dia da expedição, após se desentender com outras pessoas do grupo. A briga, a desistência, a confissão e o desfecho da história pouco – ou nada – contribuíam para o caráter informacional da reportagem, mas ajudaram a criar o enredo necessário para entreter e prender o público à série, já que esse tipo de conflito normalmente chama a atenção da audiência nos programas do gênero. Os grafismos usados pela edição também ajudam na caracterização do reality show, já que eram demarcados quantos dias estavam se passando, além dos nome, idade, curso e cidade dos participantes, para que os telespectadores memorizassem a identidade deles no decorrer da série. Em entrevista à revista Época, Alvarez falou sobre essa fusão. Época: A “Expedição Xingu” é uma reportagem ou um reality show? Rodrigo Alvarez - O propósito da série é reviver a expedição feita pelos Villas-Bôas. Mas é claro que, numa aventura como essa, as impressões e
121 as ações dos participantes são relevantes. A série tem muita ação, mas sempre relacionada à história, ao que está sendo vivido por mim e pelos participantes
convidados.
É
importante
lembrar
que
a
expedição
comandada pelos Villas- Bôas também foi uma aventura. Fazemos a toda hora um paralelo entre o que eles viveram à época em que o Brasil central era uma área desconhecida e a nossa passagem por esses lugares depois 36
de desbravados e razoavelmente ocupados .
Se os elementos do reality estavam ali, também estavam o da reportagem. Os episódios eram chamados pelos apresentadores no estúdio por meio de cabeças, que situavam o telespectador a respeito da jornada e adiantavam quais seriam os destaques daquele episódio. Uma vinheta indicava o início do quadro e logo era seguida pelo texto de abertura de Alvarez, que narrava todo o episódio, intercalando os offs com sonoras, sobe sons e passagens – nestes casos, Rodrigo olhava diretamente para a câmera para transmitir alguma informação sobre a jornada; diferente das passagens tradicionais, ele não dispunha de um microfone de mão, usando assim a lapela que o acompanhou durante todo o trajeto. Em determinados lugares, o grupo encontrava moradores locais por onde passavam, e Alvarez aproveitava a oportunidade para entrevistar essas pessoas, exercendo seu papel de repórter. A história desses moradores era contada por ele no local da gravação e também nos offs. Essas eram as poucas vezes que ele desempenhava o papel de um repórter tradicional durante a expedição. Na maior parte do tempo, o jornalista exercia a função de líder daquela expedição, guiando e orientando os outros participantes, que pouco ou nada sabiam da vida na mata ou do caminho que deveria ser trilhado. Quando necessário, delegava ordens, dava bronca e servia de ombro amigo para alguém que quisesse desabafar. Diferente do Medida Certa, onde os profissionais da saúde dispunham das informações, em Expedição Xingu é Rodrigo Alvarez o responsável por informar o público a todo momento. Na abertura do primeiro episódio, o repórter faz um breve resumo do que foi a expedição original, a fim de situar o telespectador na história. Com a ajuda de imagens de arquivos e grafismos, ele conta quem foram os irmãos Villas-Bôas e o que eles fizeram de tão importante. Depois dessa pequena contextualização ao público, é a vez dos participantes saberem mais dos três 36
Rodrigo Alvarez conta os bastidores da Expedição Xingu, a nova série do Fantástico. Disponível em <http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI258956-15220,00.html> Acesso em 10/12/2015.
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irmãos. Para isso, Alvarez se reúne com eles para dar início à jornada e também contar o que eles fizeram – e o que eles terão de fazer. A todo o momento a edição intercala imagens dos universitários com imagens de arquivos da expedição original, além de trechos do diário dos irmãos, em uma tentativa de provar ao público que eles realmente estão revivendo os passos dos desbravadores. As imagens são cobertas pela narração que Alvarez, que deixa esse paralelo entre passado e presente ainda mais explícito, contando fatos e curiosidades da expedição original. Esse remeter à expedição original se faz presente em grande parte do episódio, e é aqui que repousa o valor informacional da série: falar sobre a Expedição Roncador-Xingu ao telespectador. Em comparação com os outros objetos a serem descritos na pesquisa, é possível afirmar que o quadro é o que apresenta menor grau de informação ao público, já que o foco repousa na experiência dos universitários. Mesmo assim pode-se afirmar que a informação existe, devido às intervenções do jornalista. Por outro lado, é possível dizer que o repórter Rodrigo Alvarez foi o que mais vivenciou a reportagem na pele, passando 16 dias completamente imerso na matéria, sendo filmado boa parte do dia e sem contato algum com o mundo urbano. Como não poderia de ser diferente, toda a reportagem foi narrada em primeira pessoa – ou melhor, na primeira do plural, já que Alvarez se referia ao grupo inteiro, o qual ele fazia parte. A objetividade e impessoalidade se fazem impossíveis nesses casos, obrigando o repórter a se situar dentro da matéria. Em diversos casos Alvarez compartilha com o público como era estar ali. Seus relatos de cansaço, fome e exaustão se faziam presentes assim como o dos participantes, porém, ele o fazia em forma de off, enquanto os jovens desabafavam para as câmeras. No quarto episódio, um fato demostra bem a narração em primeira pessoa. Enquanto acompanhavam um grupo de vaqueiros, os integrantes da expedição andavam no lombo de burros, e em determinado momento Alvarez cai e se machuca (veja na figura).
123
Figura 8 – Rodrigo Alvarez agonizando no chão depois de tombo
Fonte: TV Globo, 2011
37
.
Enquanto as imagens o mostram com dor no chão sendo socorrido pelos vaqueiros, o texto escrito e gravado pelo jornalista era o seguinte: Rodrigo Alvarez: Numa viagem tão cheia de desafios, a gente aprende que todo mundo tem suas limitações. O Felipe [participante], com todo esse jeito de valentão, tem medo de burro. Mas agora me pergunto: será que ele tá com a razão? [Barulho de queda e imagem dele no chão] Tô com a impressão de que minha perna esquerda não mexe. O pessoal descobre que eu cai em cima de um cantil de metal e por isso a dor terrível na cintura. Levanto e descubro que apesar da dor, tá tudo bem.
Assim como Hunter Thompson, o jornalista da TV Globo mergulhou em sua reportagem, viveu como um vaqueiro/desbravador durante alguns dias e contou sua experiência para o Brasil por meio de um texto jornalístico. A situação do burro, em específico, exemplifica a narração de Alvarez em primeiríssima pessoa, e como disse Sibilia (2008), o que é narrado neste tom ganha mais destaque e verossimilhança perante o público. Na ocasião, o jornalista faz questão de dividir com o público o ocorrido além da reflexão e a dor que sentiu. Essa demonstração de fragilidade acaba humanizando a figura dele perante o público.
37
Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=QRo1-ByzpYs> Acesso dez. 2015
124
Após dezesseis dias de trajeto – que incluíram caminhadas, transporte a cavalo, burro, barco, jipe, monomotor e outros transportes que não foram mostrados na edição final – e 706km percorridos, o grupo finalmente chega ao destino final: Parque Nacional do Xingu. Lá, eles são recebidos pelos índios Kamaiurás e passam dois dias na aldeia vivendo com eles. Mais uma vez comprovase a imersão de Rodrigo Alvarez em sua reportagem, já que ele passa essas 48h vivendo como os índios: caçando, dormindo em ocas, comendo a comida deles, dançando, participando de rituais, usando suas roupas, tintas no corpo, além de ter lutado com um índio local. Tudo isso para reportar com mais vivência e, claro, entreter e divertir o público. Ao final da experiência, os participantes fazem uma espécie de balanço da viagem, e todos se mostram extremamente felizes e satisfeitos com o resultado. No texto final da reportagem, fica clara a imersão do jornalista na reportagem e como ela modificou sua vida. Rodrigo Alvarez: Assim como os irmãos Villas-Bôas se entregaram ao desconhecido e transformaram o Brasil, a gente se aventurou pela história deles e viu transformações incalculáveis em nossos corpos, e muito mais do que isso, no que cada um de nós tá sentindo agora nesse último dia. O banho no Lago da Aldeia não é mais um desafio, é recompensa. É o fim dessa nossa pequena grande história. (Grifo nosso)
O próximo programa identificado por esta pesquisa acontece pela primeira vez fora do Fantástico, porém, em outra atração conhecida por apresentar um jornalismo mais leve. Trata-se do Esporte Espetacular, revista de esportes dominical que apresenta grandes reportagens sobre os mais variados tipos de modalidades e seus atletas. 6.4 MULHERES ESPETACULARES Antes da antes da análise do quadro em si, é importante apresentarmos as características do programa que o produziu: o Esporte Espetacular. No ar desde 1973, é o programa de esportes da Rede Globo de maior duração. Nos primeiros anos de exibição, o programa era apresentado por homens vestidos de terno e gravata em um estilo bastante formal. Todo o conteúdo do
125
programa era comprado de canais norte-americanos, portanto, só eram reproduzidos torneios e provas estadunidenses, sem espaço para o esporte brasileiro. Esse cenário só viria a mudar em 1976, quando o programa passou a exibir modalidades brasileiras, além de reportagens feitas pela TV Globo38. Mas foi no ano seguinte, em 1977, que ele ganhou os ares atuais. O programa passou a ser exibido nas manhãs de domingo – antes era veiculado à tarde – e adotou o formato de revista eletrônica. Sob o comando do jornalista Léo Batista, a apresentação do programa tornou-se mais informal, assim como as reportagens, que ofereciam espaço para o repórter criar e inovar em questões de linguagem e estética. Após mudanças no horário e dia de exibição, além da troca de apresentadores, o programa firmou-se nas manhãs de domingo para transmitir ao vivo eventos esportivos, além de reportagens especiais. Segundo a página da emissora na internet Esporte Espetacular é o mais antigo programa esportivo da TV Globo no ar. Estreou com o objetivo de abrir espaço na televisão para as diversas modalidades esportivas, numa época em que o futebol predominava nos noticiários. Atualmente, com um formato leve e dinâmico, o programa acompanha a história dos atletas, bastidores, melhores momentos e os recordes mundiais conquistados em diferentes competições no Brasil e no exterior.
Como já citado por Aronchi (2004) neste trabalho, o gênero revista eletrônica tem como chave fundamental o infotenimento. Por ser um programa de esportes, que normalmente envolve assuntos mais leves e descontraídos, além de ser exibido domingo de manhã, a atração caracteriza-se pela informalidade e espontaneidade de apresentadores e repórteres. Estes podem produzir grandes reportagens, com diversos entrevistados e locações diferentes, sempre contando com o auxílio de clipes de imagens e trilha sonora. A criatividade é fator estimulante aos repórteres da atração. Assim como fora dito sobre o Fantástico, pode-se também
afirmar
que
o
Esporte
Espetacular
serve
como
um
lugar
de
experimentações telejornalísticas dentro da emissora.
38
Os dados e informações sobre o programa foram obtidos na página oficial da emissora na internet, assim como a próxima citação. Disponível em <http://memoriaglobo.globo.com/programas/esporte/programasesportivos/esporte-espetacular.htm> Acesso em 17/12/2015
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Uma de suas principais características é a de submeter o repórter à atividade esportiva que ele está reportando, no melhor estilo jornalismo de vivência. A respeito dessa particularidade, a página Memória Globo afirma Matérias com repórteres participando de competições ou praticando um esporte se tornaram características do jornalismo da TV Globo. Com o objetivo de levar ao telespectador todas as emoções e dificuldades da prática esportiva, repórteres saltaram de pára-quedas, correram em maratonas, mergulharam, escalaram o Himalaia ou mesmo participaram de um rali. Algumas dessas reportagens misturam aventura e esporte, fornecendo informações de interesse geral sobre diferentes culturas e lugares.
Todas
essas
características
do
programa
–
informação
e
entretenimento através do esporte e repórter praticando as atividades na pele – foram amplificadas em um novo projeto do programa de 2014. Trata-se do Mulheres Espetaculares, quadro comandando pela jornalista Juliana Sana. A ideia do projeto é mostrar a vida e a rotina de mulheres atletas que estão se preparando para algum desafio. Para isso, a repórter imerge completamente na vida dessas atletas, passando a viver com elas na casa delas, durante um grande período de tempo, que varia de uma semana a vinte dias. Na estreia do quadro, Juliana foi até o estúdio do Esporte Espetacular apresentar a série ao público e conversar ao vivo com os apresentadores. Sobre a ideia do quadro, Juliana afirma depois da exibição do primeiro episódio Glenda Kozlowski: Juliana, você tá aqui emocionada com a gente, que experiência incrível, que ideia maravilhosa de você puder experimentar o dia a dia de verdade de um atleta de alto nível. E eu queria saber como você se sentiu passando esse tempo com a Beth [personagem] vivendo na pele o que ela vive todos os dias? Juliana Sana: São guerreiras, né!? Eu me emociono porque você vê realmente o duro que elas dão. Assim, a Beth realmente batalha muito pra chegar onde ela chegou, então assim, conhecer a rotina dela, a ideia desse programa é justamente isso, a gente mostrar que ser um atleta não é fácil […] é mostrar como é que vivem essas pessoas, o que elas comem, como elas dormem, o que que passa na cabeça delas…
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Como dito, o intuito do quadro é mostrar da forma mais verossímil possível a realidade de mulheres atletas brasileiras. O jeito encontrado pela jornalista para desempenhar tal façanha foi a de viver como uma delas durante um determinado período de tempo. Juliana Sana muda-se para a casa de suas entrevistadas e vive 24h com elas, comendo da mesma comida, usando o mesmo tipo de roupa, dormindo no mesmo quarto e acompanhando os treinos. Em outro momento da entrevista no estúdio, Juliana afirma que adotou tal procedimento pois só assim suas personagens teriam confiança para se abrir por completo com ela, como já defendia Czarnobai (2003). O autor afirma que para obter maior grau de informação, o jornalista gonzo precisa vivenciar na pele o que está relatando. Mas a imersão não para aí. A repórter também se dispõe a aprender determinada modalidade no período em que passa com a atleta. Ela acompanha todos os treinos e deve aprender o esporte para, assim como sua entrevistada, passar por um desafio ao final da experiência. Portanto, no tempo que passam juntas, a repórter tenta conquistar a confiança da atleta para que ela possa se abrir e também deve aprender como lutar, surfar, andar de moto, patinar no gelo, etc. A edição intercala a preparação da atleta para seu desafio, assim com o aprendizado e evolução de Juliana, com importância equivalente a ambas. O quadro é de total responsabilidade de Juliana, já que ela também assina a produção, direção, imagens, edição e reportagem do quadro. A série teve duas temporadas, exibidas em 2014 e 2015, totalizando oito episódios. A exibição do quadro era mensal e a média de tempo de cada reportagem é de dezenove minutos, tempo em televisão considerado bastante alto. Com reportagens de fôlego, Juliana dispunha de grande liberdade para gravar e estruturar suas reportagens, utilizando várias passagens e deixando sonoras de longa duração na edição final. No episódio de estreia, onde a repórter acompanha a preparação de uma lutadora de MMA, Juliana deixa claro no texto de abertura qual é seu objetivo com aquela experiência e como irá proceder. Juliana Sana: Esta sou eu, uma jornalista que veio estudar de perto essa lutadora. Beth tem uma importante luta em 20 dias nos Estados Unidos e eu vou acompanhar sua rotina até lá. Eu vou morar com ela, treinar com ela e fazer uma luta de verdade pra saber o que sente essa mulher espetacular […] Essa lutadora tem um passado que poucos conhecem. A minha ideia é conviver com ela e descobrir porque essa garota entrou para o mundo da
128 luta. Pra isso eu vou ter que me aproximar ao máximo de Beth Correia, mesmo correndo risco de me machucar.
Pode-se apontar sobre o Mulheres Espetacular que seu conceito mais forte de reality journalism expressa-se pelo estilo do jornalismo gonzo, que permite o jornalista vivenciar na pele aquilo que está reportando para conhecer profundamente seu objeto de reportagem. Uma das experiências mais fortes da série ocorre quando Juliana acompanha a rotina de uma atleta paralímpica cega. Para isso, a repórter ficou com os olhos vendados durante cinco dias. Ela teve de morar com a corredora, comer, se arrumar e treinar na pista de atletismo sem enxergar nada. Mas pode-se dizer que esses processos não são novos para a jornalista, já que Juliana Sana é especialista neste tipo de experimento. Antes do Esporte Espetacular, ela apresentava um programa em um canal da Rede Globo por assinatura chamado “Na pele”, onde também convivia com pessoas com histórias ou profissões diferentes. Tempo depois do fim do quadro no Esporte Espetacular, Juliana tornou-se repórter do programa “Encontro com Fátima Bernardes” da mesma emissora e todas suas matérias seguem o mesmo estilo de produção. Quando resolve praticar as modalidades esportivas, Juliana abandona a impessoalidade e coloca seu corpo à disposição da atividade jornalística a qual se propõe. Hematomas, contusões, perda de peso e até um estiramento do ligamento do joelho - resultado de uma queda na pista de gelo - fazem parte de seu trabalho. Figura 9 – Juliana aprendendo a patinar no gelo
Fonte: TV Globo, 2014.
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Figura 10 – Juliana aprendendo a correr de olhos vendados
Fonte: TV Globo, 2014.
39
Figura 11 – Juliana aprendendo luta olímpica
Fonte: TV Globo, 2014.
Figura 12 – Juliana aprendendo a andar de motocross
Fonte: TV Globo, 2014. 39
As imagens de Mulheres Espetaculares estão disponíveis em <http://globoplay.globo.com/busca/?q=mulheres%20espetaculares> Acesso em dez. 2015
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Toda a trajetória da repórter, e a preparação das personagens, é mostrada na reportagem que contem fortes elementos do reality show. Como Juliana passa a morar com elas, parte dos registros na casa são feitos por câmeras amadoras em momentos que a equipe principal não estava presente, como de madrugada ou no momento que elas acordam. Nesses períodos, a jornalista gravava com sua câmera amadora ou eram exibidas imagens de câmeras instaladas em pontos estratégicos da residência, como banheiro e cozinha. As câmeras flagram momentos de intimidade das participantes (ver figuras abaixo) além de situações cotidianas. Por meio dessa gigante aproximação, as atletas se sentem cada vez mais à vontade na presença da jornalista, contando a ela algumas informações de cunho mais pessoal. A patinadora Isadora Williams confessou que não se saia bem nos treinos porque havia terminado com o namorado (fato que nem a família sabia), a lutadora olímpica Aline Silva relata a infância de violência a qual esteve envolvida e a lutadora de MMA Beth Correia contou que largou a família para se dedicar ao esporte porque era infeliz. Buscar essas confissões era o objetivo da repórter ao passar a viver com e como elas. Abaixo, alguns registros de como a jornalista aproveitou a intimidade das atletas para provar certa intimidade e conseguir informações pessoas. Figura 13 – Entrevistando a lutadora Aline Silva e seu marido na cama do casal
Fonte: TV Globo, 2014.
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Figura 14 – Entrevistando a surfista Maya Gabeira enquanto dirigia para a praia
Fonte: TV Globo, 2014.
Figura 15 – Entrevistando a nadadora Suzana Schnarndorf enquanto comiam
Fonte: TV Globo, 2014.
Como pode ser visto, tanto o local quanto as situações das entrevistas são completamente informais, exemplificando todos os conceitos do reality journalism: ela entrevista as atletas (jornalismo) em situações do cotidiano (reality show) na mesma circunstância que a personagem se encontra (gonzo). O resultado disso tudo é um jornalismo de infotenimento, pois há transmissão de informação de uma maneira informal e descontraída. Comparado aos outros objetos, o caráter informativo do Mulheres Espetaculares é baixo, pois o formato jornalístico escolhido é o perfil. Nesses casos, a notícia veiculada é somente a história de vida dos entrevistados.
132
A completa imersão da jornalista provoca outros sintomas à reportagem. Em determinadas situações, Juliana aparece frente às câmeras chorando, devido ao envolvimento emocional que se submeteu. Esses registros são feitos ou pela equipe profissional ou por sua câmera amadora. A jornalista chora de emoção quando vê a lutadora Beth Correia ganhar uma luta, de tristeza quando não consegue terminar a corrida de motocross, de dor quando estira um ligamento do joelho e de felicidade ao finalizar uma luta olímpica. Como dito sobre o choro de Clayton Conservani no Planeta Extremo, esses momentos humanizam e aproximam o repórter do público, como Martín-Barbero (2009) já apontava com as teorias da simulação do contato e da retórica do direito. A emoção, aliás, é fator comum no quadro. Quando não é a repórter, são suas personagens que se emocionam. Boa parte das atletas entrevistadas passou por alguma dificuldade – pobreza, doença, violência, contusão – e conseguiu superar pelo ou por causa do esporte. A edição privilegia esses momentos, adicionando trilha sonora emotiva e imagens tocantes para acompanhar os depoimentos. Ao final de cada desafio, Juliana conta ao público como foi a experiência para ela e como está se sentido. Ao fim da prova das atletas, independente do resultado, a repórter também enaltece o talento e determinação de cada uma afirmando que são “mulheres espetaculares”. O próximo quadro a ser descrito também foi produzido e veiculado pelo Esporte Espetacular, que mais uma vez investiu fortemente no jornalismo vivência. Mas dessa vez a repórter não teve de se transformar para fazer uma reportagem. Muito pelo contrário.
6.5 MAMÃE GENTIL
Fernanda Gentil já estava grávida quando foi convidada para protagonizar o novo quadro do Esporte Espetacular, o Mamãe Gentil. A ideia era criar uma série de reportagens no formato reality show mostrando a gravidez de Fernanda a fim de explicar às gestantes como praticar atividades físicas corretamente durante a gravidez. Durante seis meses, ela foi acompanhada pelas câmeras do programa nas mais diversas situações. Todas as reportagens foram assinadas por Fernanda que, grávida, contou e mostrou a outras mulheres como manter uma rotina ativa e saudável de alimentação e exercícios nesse período.
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Como não poderia deixar de ser, todos os episódios foram extremamente pessoais, afinal, a repórter estava grávida de seu primeiro filho e estava experimentando na pele as dicas e instruções de um time de profissionais. Pode-se afirmar que o Mamãe Gentil é o objeto mais pessoal da nossa lista de exemplos porque mexia fortemente com a emoção da repórter. Ela não estava reportando uma dieta de perda de peso, nem passando por grandes aventuras, mas estava compartilhando com o Brasil um dos momentos mais íntimos e tocantes da vida de qualquer mulher. A pessoalidade e a emoção do assunto do quadro dão seus primeiros sinais logo na estreia da série. As apresentadoras da edição do dia 08/03/2015 do Esporte Espetacular, Glenda Kozlowski e Cristiane Dias, ao chamarem a reportagem, comentam entre elas sobre o período que estavam grávidas e como se sentiram felizes nesse período, fazendo votos para que Fernanda Gentil também pudesse aproveitar. Elas ainda compartilham com o público que as três escolheram o mesmo nome para os filhos. Apesar de ser a repórter da série, a primeira reportagem começa com Fernanda sendo entrevistada por outro jornalista nos bastidores da gravação da vinheta do quadro. Nesse primeiro momento já se observa a dualidade de seu papel: Gentil será repórter e também personagem. Nesta entrevista, ela fala de como está se sentindo grávida e como pretende construir a série. Fernanda Gentil: Ah, eu acho que muda tudo, né? Muda os sentimentos que batem aqui dentro, muda o jeito que as pessoas te olham, muda o seu pensamento, assim, agora parece que tem mais sentido as coisas, tem uma explicação maior. […] Bom, essa série acho que vai ser muito importante pra mim porque é uma fase nova na minha vida e pra quem tá em casa também, quem já passou por isso, quem tá passando, quem pretende passar. Em cada episódio eu vou provar uma modalidade provando que dá pra ter essa vida mais leve […] acho que o grande objetivo é aproximar todo mundo nesse caminho tão único que eu acho que é a maternidade.
Os episódios foram exibidos de três em três domingos no Esporte Espetacular e com conteúdo bem definido. A cada episódio a repórter explorava uma modalidade esportiva diferente – modalidade essa que dava nome ao episódio – e explorava essa atividade, entrevistando profissionais especializados e
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exercitando ela mesma, a fim de mostrar na prática ao público a maneira correta de fazê-lo. Todo episódio ela entrevistava uma celebridade que já era mãe para falar como foi a gestação dela e também uma esportista, para saber como foi relacionar a gestação com o trabalho/esporte. Por estar dentro de um programa de esportes, o foco da série sempre esteve neste tema. Além disso, em alguns episódios, Fernanda também conversava com anônimas sobre o assunto. Nessas entrevistas, Gentil desempenhava mais afinco o papel de repórter tradicional. Ela ia até a casa das celebridades para fazer a entrevista, perguntando detalhes da gravidez e do cuidado que essa mulher teve com o corpo durante e pós-gestação. Quando conversava com anônimas, a repórter ia até o trabalho ou encontrava as mulheres em locações ao ar livre para também entrevistálas abordando as mesmas temáticas. Trata-se de uma postura mais tradicional pois ela assume, primeiramente, o papel de entrevistadora e também acrescenta alguns elementos clássicos, como passagens e offs. Porém, nesse mesmo nesse papel, Fernanda incluía-se na história em determinados momentos e falava de si mesma. Uma das vezes que essa dualidade se fez presente foi quando teve de cobrir a maior feira para gestantes da América Latina. Na ocasião, Fernanda foi até o local com sua equipe e fez uma reportagem tradicional, com microfone em mãos entrevistando as pessoas que estavam vendendo ou fazendo compras, além de dizer informações do evento nos offs. Paralelo a isso, ela também se inclui na situação, desempenhando os dois papeis ao mesmo tempo, como pede o reality journalism. As imagens mostram a jornalista fazendo compras para ela, comentando os produtos segundo seu gosto pessoal, pegando bebês no colo e tirando fotos com o público. Outra situação de fusão foi quando entrevistou duas mulheres grávidas junto com elas dentro de uma piscina depois das três terem feito uma aula de hidroginástica. Mesmo que, no geral, estivesse longe da figura de uma repórter tradicional, Fernanda nunca parou de desempenhar esta função, fazendo perguntas a especialistas e tentando transmitir o conhecimento recém adquirido. A jornalista dirige-se
ao
público
constantemente,
pedindo
para
que
as
“mamães
telespectadoras” prestassem atenção a determinada informação, por exemplo, construindo uma ligação muito direta entre elas. Além das entrevistas e depoimentos, outro elemento que reforçava o grau de informação no quadro eram os grafismos. Números, tabelas, gráficos e textos apareciam em determinados
135
momentos na tela para que o telespectador fixasse tal conhecimento, sempre usando Fernanda como exemplo. Esse recurso, comumente utilizado no infotenimento, deixa a informação mais leve e fácil de ser absorvida, utilizando cores e formas atrativas. Abaixo, alguns exemplos das informações/dicas usadas no episódio sobre alongamento: Figura 16 – Informação sobre alongamento no Mamãe Gentil
Fonte: TV Globo, 2015
40
Figura 17 – Benefícios do alongamento no Mamãe Gentil
Fonte: TV Globo, 2015
40
As imagens de Mamãe Gentil estão disponíveis em <http://globoesporte.globo.com/eu-atleta/mamae-gentil/> Acesso em dez. 2015
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Figura 18 – Dica de alongamento no Mamãe Gentil
Fonte: TV Globo, 2015
Paralelo a isso, o público ia acompanhando a gestação da repórter através de visitas médicas e os depoimentos que dava durante toda a gravação. O peso da jornalista e os números de quanto ela engordou e quanto deveria ser a meta tornaram-se públicos para todo o país. Por meios dos elementos do reality show, o público pode aproximar-se mais da repórter, primeiro porque ela estava compartilhando um momento de total intimidade. A equipe a acompanhava nos bastidores de seu trabalho, mostrando a jornalista se maquiando e estudando um texto, por exemplo, antes de entrar no ar. Partes de sessões de terapia com uma psicóloga também foram exibidos. O único momento que é mostrado Fernanda pedindo privacidade à equipe é quando deve se pesar no consultório médico apenas de calcinha e sutiã. Mesmo assim a jornalista faz o registro subindo na balança e mostrando os números com um aparelho celular. Como apontou Eco (1984), o modelo da nova televisão – Neotevê – busca apresentar um conteúdo mais próximo e acessível do público por meio do fortalecimento do contato, socialização e interatividade. Assim como nos outros objetos analisados na pesquisa, a repórter utilizava a câmera do aparelho celular para registrar momentos em que não estava acompanhada pela equipe, como em casa, na redação, na praia ou em restaurantes. A jornalista também incluía na reportagem fotos e vídeos caseiros antigos quando falava do pai da criança, ou de sua relação com a balança. O marido de Fernanda deu uma entrevista à equipe na reta final da gravidez para dizer como a esposa
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havia se saído durante aqueles meses. Todos esses momentos de intimidade foram compartilhados com os telespectadores, assim quando Gentil realizou um ultrassom frente às câmeras. A jornalista não se deixou intimidar com a equipe e se emocionou ao ouvir pela primeira vez o coração do filho bater. Como já foi dito em outros casos, esses momentos estreitam os laços entre jornalista e público, especialmente quando o repórter decide compartilhar algo tão pessoal. Outro fator que ajudou nessa aproximação foi o perfil de Fernanda Gentil. Repórter da área esportiva da TV Globo, a jornalista sempre teve liberdade de inovar e criar em suas reportagens, utilizando toques de humor, já que o assunto permite. No Mamãe Gentil não foi diferente. A jornalista fazia brincadeiras, piadas gozações dos profissionais, de seus entrevistados e dela mesma a todo momento. Mesmo com os hormônios alterados, o bom humor de Fernanda permaneceu intacto durante a gravidez e ajudou a deixar o quadro ainda mais leve e divertido. No fim dos episódios, por exemplo, enquanto eram exibidos os créditos finais, a edição fazia um pequeno compilado dos erros de gravação e das brincadeiras da repórter que não entraram na edição final. No último episódio da série, a jornalista preparou uma retrospectiva com os melhores momentos das reportagens e aproveitou para reafirmar que é possível estar grávida e praticar esporte. Depois de parabenizar as mães do Brasil e afirmar que já entende o que é ser uma delas, a série se encerra com os apresentadores dando uma nota retorno no estúdio falando que a criança ainda não havia nascido e que Fernanda passava bem. Apesar do fim do quadro no Esporte Espetacular, a gravidez continuou sendo repercutida na emissora. A jornalista fez participações em outros programas da emissora e nas entrevistas sempre falava da gravidez. Dias antes de dar à luz, ela deu uma entrevista pela internet ao vivo para o programa de Fátima Bernardes direto de sua casa para falar da expectativa para o parto. O nascimento do bebê, dias depois, foi noticiado por portais de entretenimento da emissora, como o GShow e o Ego. Não podemos afirmar se o quadro ajudou a criar essa expetativa nas pessoas, ou se a fama prévia de Fernanda justifica tal fato, mas ainda assim é interesse observar esse tratamento que a gravidez recebeu de outros veículos da empresa.
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6.6 AFINA ROCHA O último objeto a ser analisado por esta pesquisa é o mais recente, iniciado em março de 2015. O quadro batizado de Afina Rocha nasceu de uma campanha criada pelo apresentador Fernando Rocha para que os telespectadores do Bem-Estar, programa matutino de saúde da TV Globo, o apoiassem a perder peso por meio das redes sociais com a hashtag Afina Rocha. A campanha virtual ganhou espaço no programa, tornando-se um quadro que acompanhou os dois meses de dieta do apresentador para emagrecer 21kg. Os telespectadores acompanhavam os passos dessa experiência diariamente no programa, pelos comentários do jornalista e também por vídeos reportagens e vídeos caseiros, além de um blog mantido por ele na página da emissora na internet. O quadro não dispunha de periocidade certa, mas a campanha era lembrada quase que diariamente, ao menos pelos comentários do jornalista com a co-apresentadora do programa. No dia 23 de maio a campanha e o quadro foram lançados oficialmente na atração com uma reportagem mostrando as preparações e o início da dieta. Toda a edição do programa nesse dia ficou restrita a campanha. Na matéria de abertura, assinada por ele mesmo, Rocha mostra fotos de sua infância e conta que sempre sonhou em ter um corpo esbelto, mas engordou mais do que gostaria no decorrer dos anos. Em um bate-papo gravado com Mariana Ferrão, sua colega de programa, Rocha admite estar “gordinho” e revela o desejo de emagrecer. Em tom inicial de brincadeira, a jornalista pede que os internautas usem “#AfinaRocha” nas redes sociais para incentivar o parceiro. A brincadeira viria a se tornar o nome oficial da campanha. A partir daí a equipe do Bem-Estar acompanhou o jornalista em consultas médicas para realizar uma bateria de exames e estabelecer a melhor dieta. Ele também se consulta com uma psicóloga, que lhe pergunta qual é sua história com o sobrepeso e a relação dele com a comida. Antes de respondê-la e começar a consulta efetivamente, ele pede para que a equipe deixe o local, pois aquelas informações são muito pessoais. Mesmo estando disposto a participar de um reality show, o jornalista estabelece momentos como este de privacidade. Após a exibição da reportagem, Fernando e Mariana conversam ao vivo com duas médicas no estúdio para colher maiores informações sobre dietas, e
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mais especificamente sobre a qual Rocha está submetido. Com a ajuda de alimentos no estúdio e recursos gráficos, elas explicam ao público detalhes do processo de emagrecimento do corpo. O casal de apresentadores também pede a interação do público para encorajá-lo ainda mais. A um primeiro momento é possível pensar em uma relação deste quadro com o Medida Certa, programa também pertencente ao reality journalism já analisado nesta pesquisa. Em ambos, jornalistas toparam o desafio de emagrecer perante as câmeras de seus próprios programas, compartilhando com o público as etapas da trajetória. Mas apesar da mesma temática, foram estruturados de formas distintas. O Medida Certa possuía periodicidade de exibição, duração e também de formato, já o Afina Rocha é mais livre e informal, por assim dizer. Não havia formato definido, quanto tempo duraria cada matéria e nem data certa para ser exibido. A abordagem que a direção do programa daria em cada dia também era irregular. Estando dentro do Bem-Estar, que é um programa essencialmente de infotenimento, as reportagens e os comentários ao vivo são extremamente informais e livres de qualquer regra de formatação. Assim como Fernanda Gentil, citada no subcapítulo anterior, Rocha possui um apurado senso de humor, o que reflete em suas reportagens, deixando-as ainda mais informais e com toques de descontração. A equipe do programa acompanhou o apresentador em algumas reportagens,
como
em
sua
casa
fazendo
refeições,
em
restaurantes,
confraternizações com a família, aulas de pilates e musculação, passeios com o filho, terapias em grupo, entre outros. Familiares, amigos e incentivadores nas ruas também foram ouvidos pela produção. Nessas gravações, Fernando era o repórter e também o personagem, como quando fez uma matéria mostrando o dia que foi até uma loja comprar roupas novas, já que havia mudado de numeração. Ao provar as peças, ele comenta na hora da gravação o que achou e adiciona outras considerações no off. Outro momento de encontro entre repórter e personagem é quando Rocha sai pela Avenida Paulista junto com seu filho em busca de um restaurante que oferecesse comida leve no cardápio. Com microfone nas mãos, ele entrevista funcionários e proprietários explicando o que ele pode comer e questionando se havia aquilo no cardápio. Em outra edição, Fernando entrevista o médico argentino criador da dieta que ele está seguindo, e assume a função de um repórter tradicional em uma entrevista completamente formal. Apesar do formato clássico, o
140
apresentador perguntava sobre sua dieta e aproveitou o momento para tirar dúvidas pessoais. Quando a equipe não o acompanhava, o jornalista usava seu celular para gravar alguns momentos a serem exibidos no programa. A partir destes vídeos, o
telespectador
podia
conhecer
mais
ainda
seu
cotidiano
e
intimidade,
caracterizando o elemento reality show na reportagem. Abaixo, alguns desses registros. Figura 19 – O apresentador em uma refeição com amigos antes do desafio
Fonte: TV Globo, 2015
41
Figura 20 – Fernando registra sua primeira refeição em casa no início da dieta
Fonte: TV Globo, 2015
41
As imagens de Afina Rocha estão disponíveis em < http://g1.globo.com/bemestar/blog/afinarocha/1.html> Acesso em dez. 2015
141
Figura 21 – O jornalista registra uma carona que dá aos amigos de seu filho
Fonte: TV Globo, 2015
Conforme as semanas indo se passando, os resultados do emagrecimento iam sendo atualizados no programa, assim como as impressões do jornalista. Ao fim dos dois meses, Rocha termina o regime e atinge a meta, revelando o novo peso ao vivo no programa, com uma nutricionista comentando os números. Em todo o período do quadro, profissionais foram ouvidos sobre a dieta para esclarecer as dúvidas do jornalista e também do público. O caráter informativo, independente de sua intensidade, sempre esteve presente, como é característico do Bem-Estar, através de entrevistas com profissionais, dicas e recursos gráficos. Quando uma internauta postou no blog do jornalista uma crítica ao regime adotado pelo apresentador, Rocha fez o seguinte comentário Heloisa [internauta], mais do que um regime, o que eu estou fazendo é uma reportagem. Estou relatando diariamente no blog e nas redes sociais o passo a passo da minha rotina. Tenho acompanhamento médico de diferentes especialidades clínicas. Tudo está sendo feito com a maior 42
segurança e com muita qualidade de vida. Estou me sentindo muito bem .
Em determinadas postagens, Rocha chamava o projeto de “regime/reportagem” ou “reportagem sensorial hipocalórica”. Ou seja, sempre defendeu a ideia de que aquela experiência era, acima de tudo, uma reportagem. Ele estava passando por aquela dieta para perder peso, claro, mas também para 42
Disponível em <http://g1.globo.com/bemestar/blog/afinarocha/post/respondendo-algumas-duvidas.html> Acesso em 19/12/2015.
142
informar o público sobre como emagrecer de forma saudável. Esta justificava é a mesma usada pelos jornalistas Zeca Camargo e Renata Ceribelli, participantes do Medida Certa. Abaixo, um registro do blog criado para a campanha no site de notícias da Globo. Figura 22 – Blog do Fernando Rocha
Fonte: Portal G1, 2015
Neste blog havia algumas informações e conselhos que o jornalista compartilhava com os internautas, mas acima de tudo, a página servia para que ele pudesse conversar diretamente com o público. Nas publicações, Rocha postava fotos de momentos de intimidade na sua casa com amigos e família, além de algumas selfies. Nos textos estavam sempre os relatos da semana, como ele havia passado, o que estava sendo fácil, difícil e como estava se sentindo naquele momento. O jornalista usou aquele espaço de maior liberdade para compartilhar os pensamentos que não iam ao ar e estreitar ainda mais os laços com seu público.
143
7 CONCLUSÃO
Ao longo das páginas, este trabalho tentou provar a existência de um novo híbrido formato televisivo, já que não encontramos em publicações anteriores nenhuma catalogação a seu respeito. A partir de um quadro exibido anos atrás pelo Fantástico, desencadeou-se a pesquisa, que acaba por reunir outros cinco exemplares desse novo formato, que mistura jornalismo e reality show em um único produto. Para começar a entender esse tipo de programa, tivemos de buscar ajuda teórica em um movimento inglês dos anos 1960, os Estudos Culturais. Essa escola teórica foi a primeira a analisar efetivamente os programas da cultura popular, que eram consumidos por grande parcela da população. Música, cinema, moda, movimentos sociais e televisão, só para citar alguns, ganharam espaço em pesquisas e publicações acadêmicas. Como este trabalho estuda programas de televisão, encontra-se aí a primeira identificação. Porém, mais ainda, os Estudos Culturais nos dão subsídio para entender as mediações criadas entre a televisão e o público. Por meio dos estudos de Jesús Martín-Barbero (2009), principal expoente da corrente latino-americana, passamos a entender o conceito de gênero e seu funcionamento como estratégia de comunicabilidade que permite o receptor identificar os elementos de determinado produto midiático. Participando desse pressuposto, foi possível nos aprofundarmos na catalogação dos gêneros, categorias e formatos na televisão brasileira elaborada por Aronchi (2004). Como o objeto da pesquisa é um formato híbrido, é importante conhecer o contexto o qual está inserido. Para tal, a pesquisa destinou-se a estudar os três conceitos básicos que formam nosso objeto: reality show, infotenimento e jornalismo gonzo. No terceiro capítulo investigamos com a ajuda de Sibilia (2008), como a intimidade chegou ao atual nível de exposição em todos os meios de comunicação, principalmente na Neotevê de Eco (1984) e na Reality TV, palco dos reality shows. O estudo desse gênero em específico também se fez presente com o apoio de diversos autores. No quarto capítulo consta a investigação de como o entretenimento conquistou outras áreas do conhecimento, inclusive o jornalismo. A principal teoria abordada é a do jornalismo de infotenimento, que mistura informação e
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entretenimento, como defende Dejavite (2006). Já na quinta parte do trabalho é estudado o Jornalismo Gonzo, bem como suas raízes no New Journalism. Este estilo de jornalismo, criado por Hunter Thompson, tem muito a ver com o que os repórteres analisados na pesquisa desempenham. Por fim, no sexto capítulo, fizemos a análise de cada objeto, resultado da observação de todos seus episódios. Escolhemos estudar produtos da Rede Globo pela mesma apresentar o maior número de exemplares de reality journalism no período recortado e também por ser a maior e mais importante produtora de telejornalismo no Brasil. Após a análise dos programas, fica claro que todos pertencem ao mesmo formato por apresentarem as mesmas características estruturais e de conteúdo. Mesmo que de formas e abordagens diferentes, ambos partilham da mesma natureza e objetivo. As características do reality journalism, que já foram definidas no início do sexto capítulo, apresentam a junção dos conceitos analisados até então. O objetivo principal desta pesquisa era o de provar sua existência e apontá-lo no cenário televisivo brasileiro. Não é de interesse da pesquisa, de fato, fazer qualquer juízo de valor sobre essas produções. Para tal, seria preciso abordar outra metodologia, outros autores e outro viés de análise. Como dito, o único intuito deste trabalho é o de provar a existência do reality journalism em um caráter estritamente demonstrativo. Entendemos que o reality journalism não é uma tendência passageira, mas sim um novo estilo de reportagem consolidado pela TV Globo, visto seu número de exemplares e durabilidade na grade de programação. Acreditamos que o formato deve ser usado futuramente em outras produções da emissora e também de outros canais, em uma clara tentativa de conquistar e fidelizar novos telespectadores, mantendo e aumentando os índices de audiência dos programas. Se sua continuidade é favorável ou prejudicial ao telejornalismo também não cabe a esta pesquisa fazer tal juízo. A importância deste estudo repousa no apontamento e identificação desses programas, que ilustram um novo formato na televisão brasileira. Espera-se que a catalogação aqui proposta seja o início de outras pesquisas sobre a fusão de reality show e jornalismo na televisão brasileira.
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