Alugam-se rapazes

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Ciara Carvalho e Miguel Rios ciaracalves@gmail.com | miguelr@jc.com.br

Desejados, os garotos de programa são. Não é pequena a lista de clientes. Mas desejados como personagens, pela fantasia que representam, que se vai usar, abusar e descartar. Do ser humano, daquele que está embaixo da máscara, se quer mais é distância. Neste caderno especial, o Jornal do Commercio faz o movimento contrário. Chega perto. Do personagem e do ser humano. De quem oferece sexo por dinheiro e de quem paga por ele. Vasculha todos os lugares aonde vão os que querem, buscam e se satisfazem com michês, boys, prostitutos. Nos cinemas, nas saunas, nas ruas e nos quartos de motel, a fantasia vira realidade. É sobre o que acontece, a portas fechadas, quando ninguém está vendo, que trata esta reportagem. Entre, olhe e, sem preconceitos, descubra o mundo dos homens vistos como produto de aluguel.


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espoje-se de seus moralismos ao começar a ler este caderno especial. Tire suas máscaras, aquelas postas para os papéis aceitáveis. Aqui elas só vão incomodar. Aqui, no ambiente que será exposto, as máscaras existem, mas são outras. Servem para dar mais excitação a um ambiente de fetiche, extravagância, devaneios, sexo quase sem limites, oculto, em que, na maioria das vezes, se exige sigilo, vida dupla, descompromisso, disposição e dinheiro. No meio da prostituição masculina, dos ditos michês, garotos de programa, gigolôs, boys, pouco importa o nome dado, o que importam é o corpo, o “dote”, o mérito, a atração, a obscenidade, o preço. Mundo que só chega aos olhos e ouvidos da sociedade quando há um crime. Quando algum pai de família, senhor respeitável, ou qualquer outro, é assassinado, em um local escuso, com violência da mais brutal, corpo achado seminu, ensanguentado, parentes com cara de espanto, escândalo na porta, ninguém querendo declarar nada, preferindo calar. É mundo dos mais secretos. Onde quem está dentro se compromete em silenciar, quem está fora nem quer saber o que se passa lá. Onde não se revelam as identidades, depoimentos são dados desde que nomes sejam omitidos. Onde é proibido se comentar com o amigo do trabalho os atos do dia anterior, a não ser se ele também for frequentador, mas, mesmo assim, na surdina, olhando para os lados, bem diferente dos papos machistas e corriqueiros sobre bordéis, amantes, prostitutas, que se têm em banheiros de empresas e bares de esquina. Garotos de programa vivem em obscuridade maior que elas. Não se fala deles. Quando se fala é pouco e a pouquíssimos. Servem como solução imediata. É entrega desregrada, sexo seguro, inseguro, prazer, alívio, conta paga e volta para casa. Tanto para o cliente quanto para o profissional. Ou não. Porque aqui há espaço para tudo. Inclusive romance. Clientes ouvidos pela reportagem não se intimidaram em afirmar, sob o manto do anonimato, que nem sempre é somente a carne. É também. Muito. Mas não só. Busca-se, por mais improvável que seja ou pareça, um amor. E, quando não encontram, seguem tentando. É o sexo para satisfazer, sem convenção, fora do caseiro, por novidade. Jogos eróticos, para se fazer objeto ou encontrar alguém propenso a sê-lo, para libertar um desejo sufocado até o limite, por motivos os mais variados, mas nunca exterminado. Os especialistas ouvidos pela reportagem esclarecem: é para soltar correntes que se vai às ruas, às saunas, aos cinemas, aos classificados, à internet. Permitir-se, quando homem, na homossexualidade, o que na heterossexualidade não conseguiu realizar, por mais que tenha tentado, disfarçado, enganado até a si próprio. Permitir-se, quando mulher, a um apetite que uma união rotineira e doméstica, de sexo certinho e agendado, já não sacia mais. Distancie-se, assim, um pouco dos bons costumes convenientes ao trato cotidiano. Permita-se o direito de ao menos conhecer de longe um mundo que o Jornal do Commercio passou dois meses visitando, investigando, anoitecendo e amanhecendo, para descobrir de perto. Por dentro. Este é um caderno escrito com os olhos. Com as impressões do que se viu e ouviu. Sem julgamentos. Onde câmeras fotográficas não entram, gravadores são vedados. As fotos que o leitor não vai ver, porque já nascem proibidas, ganham aqui outros contornos. Reinventam-se no traço e nas tintas do ilustrador e artista plástico paraibano Shiko, convidado pelo JC para ilustrar as páginas deste caderno. Os desenhos de Shiko estão acostumados ao ambiente das madrugadas, das prostitutas, dos michês, dos becos e lugares escondidos. Já ilustraram páginas e páginas de publicações nacionais, misturando sensualidade e erotismo com sutileza e extremo bom gosto. No riscado de Shiko, a fantasia assume ares de realidade para retratar um ambiente que costuma ser extremamente fantasioso. Rostos, corpos, sombras e cenários que mais parecem fotos. Até porque foram inspirados em situações reais. A única fotografia do caderno, publicada na contracapa, é a sintese disso. São garotos de programa de verdade que, replicados na capa, fazem um contraponto entre o real e a representação dele. Um mundo que parece muito distante, mas que pode estar do lado. Mais perto do que se imagina. Nele trafegam os afortunados e os sem sorte, maus e bons, interesseiros e fora da lei, os sem opções e os sem perspectivas, grosseiros e cordiais, corajosos e covardes, senhores, senhoras, tementes a Deus ou não, estudantes, ignorantes, belos e feios, amigos, colegas de trabalho, parentes próximos. Todo tipo humano. É disso que tratam estas páginas. De gente. E nada do que é humano é estranho. Mesmo que aparente ser. A quem conhece bem o meio, o frequenta e usufrui, nada dito aqui será desconhecido. Quem já ouviu falar, ou jamais imaginava existir, vai arriscar-se a descobrir que os papéis aceitáveis de dia podem mudar de lugar, podem até se desconhecer por completo, quando anoitece e as portas são fechadas. Ainda assim, e por isso mesmo, vá em frente, tire sua máscara socialmente estabelecida, mesmo que por alguns momentos, só para o íntimo. Reconheça-se, estranhe, mesmo para esquecer logo depois.

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Foram quase 120 minutos de gravação. Vinte e oito dias com um gravador na mão registrando impressões, sentimentos. As alegrias e os desencantos de ser um garoto de programa. A proposta feita pela reportagem foi compreendida como a possibilidade de mostrar a pessoa que se esconde por trás do personagem. Uma experiência que se revelou surpreendente. Uma espécie de terapia. O gravador virou um companheiro, um amigo a quem se confidenciam os segredos mais secretos. Acompanhe, ao longo das páginas deste caderno, um extrato desse desabafo. Quarta-feira, 17 de março Eu já vi de tudo. Conheço tantas fantasias que nada mais me surpreende. É muito comum um homem pagar para o boy comer a mulher dele. É o tesão do cara. Ele sente prazer em ver a mulher na cama com outro. Também já recebi proposta para apanhar, bater. Fui pago para dar barrigada, transar se drogando. A viagem desse cliente era trepar cheirando cocaína. Eu não quero nem saber. Pagou, eu faço. Lá dentro, os homossexuais não são esses docinhos que a sociedade pensa, não. No Carnaval deste ano, ganhei R$ 20 para mijar em cima de um cara. Dá para acreditar? O cara levou um saco de dinheiro para a sauna e dava R$ 20 a quem mijasse nele. Os boys fizeram uma fila. Eu não estava fazendo nada, entrei também. Foram os R$ 20 mais fáceis da minha vida. Quinta-feira, 18 de março A gente não tem tabu. A maioria faz completo (ativo e passivo). Todos fazem sexo oral. Se brincar, ainda faz melhor que mulher. E depois volta para a esposa e para os filhos. Na minha cabeça, não há confusão. Eu sou heterossexual e pronto. Só me deito com homem por dinheiro. Quanto menos feminino, menos afrangalhado, mais o homossexual gosta. Ele quer dormir com um homem. Quanto mais bruto, mais másculo o garoto for, mais ele se amarra. Sexta-feira, 19 de março Minha primeira vez foi na sauna Blue Termas, em Boa Viagem. O choque foi muito grande. Foi difícil no começo beijar outro homem. Mas eu não vou mentir. Eu nunca tive dificuldade para me excitar. Não preciso de Viagra, Pramil, nenhum desses negócios. Consigo ficar em ponto de bala rapidinho. Só que o tesão é totalmente diferente quando é homem e quando é mulher. Com mulher é melhor, mas é mais perigoso. Porque, se ela for gostosa, você vai querer encontrar de novo. Sem o marido saber. Já me ferrei porque o cara descobriu que eu continuei saindo com a mulher dele. Levei umas tapas, mas valeu a pena.

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garota magra e muito jovem está nua no palco, o corpo suado, as pernas atracadas em um mascarado de medidas superlativas e músculos definidos, mas é para a plateia que os olhos estão voltados. Ali, entre poltronas sujas e encardidas, uma senhora de aparência respeitável, cabelos louros e bem-vestida, faz sexo oral com o marido. Está escuro, mas é fácil perceber que o que eles querem é ser vistos. Não demora, os homens se distraem do sexo pago que acontece no palco para acompanhar as cenas da vida real que se desenrolam ali, sem nenhum constrangimento. O exibicionismo do casal desconhece limites. E quanto mais explícitas as carícias, maior o público em volta. Um dos homens encosta na mulher. Parece ser um segurança do cinema, avisando dos excessos cometidos. Só parece. É mais um garoto de programa que acabara de encontrar um cliente. A conversa é miúda, ao pé do ouvido. Rapidamente se acertam. Deixam a sala e seguem para um cubículo imundo que serve de quarto. Vão concluir, a três, o que, propositalmente, se começou a dois. Quem cruza as cortinas vermelho-desbotadas na entrada do Cine Mix, no Centro do Recife, numa noite de segunda-feira, não entra desavisado. É dia de show de sexo explícito e espera-se encontrar de tudo. Mas um distinto casal de classe média, ela com uns 40 anos, ele uns 45, transando no meio da plateia, é o improvável. Como se o limpo invadisse o sujo. Roubando a cena. Aparentemente, eles nada têm a ver com aquele mundo. Mas são os que estão mais à vontade. Corta. Noite de quarta-feira, mais um show no palco do Cine Mix. Em vez de um mascarado, dois. A noite é de sexo gay. Todas as quartas são. – Tá vendo aquele cara, aquele gringo alto, conversando com um boy?, pergunta o garoto de programa que acompanha a repórter na missão de conhecer, por dentro, o universo da prostituição masculina recifense. – Pode ir lá fora, o melhor carro é o dele. Ele é de um consulado aí. Até a placa é diferente. O gringo alto chama atenção por ser gringo e por estar vestido com boas roupas. Flerta com um boy, com outro. Circula pelos ambientes do cinema com a desenvoltura de quem conhece os cantos da casa. Naquela noite, na saída, a reportagem anota a placa do carro. E confirma no dia seguinte. A placa é de um corpo consular. Na escuridão da sala suja, nem a lei escapa. No canto do cinema, nas cadeiras da ponta, dois policiais militares fardados usam a mão na mesma coreografia solitária de homens presos às sequências de sexo geradas na tela grande. Uma cena absurda, considerando que ali é a representação do Estado na plateia, com todo o simbolismo que a farda significa. Absurda, mas não incomum. Pelo menos, em outras duas situações, a reportagem flagrou PMs no cinema. Em uma delas, uma dupla da Rocam passou para pegar um lanche e aproveitou para acompanhar, por alguns minutos, o show de sexo explícito que acontecia no palco. Com um pensionato de freiras e a Igreja da Soledade ao lado, o cinema de am-

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biente decadente é lugar de fantasia. Onde se busca o fetiche. E em nome dele a inversão de papéis pode chegar a extremos inesperados. Porque faz parte do jogo o contraditório. O avesso. É o flerte com o sujo e o marginal que atrai. É a perversão como escape à vida rotineira, certinha, do relógio de ponto, sessão de DVD com os amigos aos sábados após o supermercado, almoço familiar aos domingos e sexo comportado. Numa das noites, a repórter se viu na mesma situação da respeitável senhora, flagrada mais de uma vez no cinema, na companhia do marido. O fato de ter ido com o parceiro de reportagem era a senha. Uma mulher acompanhada de um homem só pode estar buscando uma coisa: sexo a três. Não precisa dizer nada. Nem fazer. Basta corresponder aos olhares que são lançados. E naquela noite foram muitos. Os boys já se posicionam de forma a serem notados. Na hora do sexo no palco, um show particular à parte. Um dos garotos, que no bar estava à caça, não fez cerimônia e exibiu seus dotes ali, na frente da repórter e do seu acompanhante, esperando, claro, uma reação que deixasse a noite mais rentável. É assim que as coisas funcionam nos cinemas de filme pornô. O boy expõe o seu produto e, se ele interessar, é levado para outro lugar, digamos, mais íntimo. Ou consumido ali mesmo. No Cine Imperador, na Rua do Imperador, no Centro do Recife, as cabines sujas melhoram de aparência e viram suítes, com direito a cama, banheiro privado e ar-condicionado. Uma hora custa R$ 10. É, de longe, o melhor ambiente da casa. Todo o resto é velho e confirma a vocação do lugar, de sexo rápido, no intervalo do almoço. Não é tarefa fácil desvendar todos os cantos e recantos desses cinemas. O dark room é um lugar difícil para mulheres entrarem. Primeiro porque os homens vão ali para efetivarem, sozinhos ou em grupo, seus desejos. Depois porque, uma vez lá dentro, não dá para dizer que errou de cortina. O ambiente mais amigável termina sendo o bar, apesar do cheiro de sexo que impregna o lugar. No Cine Mix, a televisão de plasma, pregada numa parede sem reboco, distrai, enquanto o espetáculo no palco não começa. Se não há coerência no público, não haveria de ter na tela. Depois de um show com divas do blues, chega a marrom Alcione, seguida por mais um capítulo de Viver a Vida. Pedaços de ferro, placas de gesso, sacos de cimento, e uma reforma em andamento, deixam tudo ainda mais degradante. Boy de sauna não frequenta cinema. É queima-filme. Para o boy e para a sauna. Garotos já foram afastados das saunas porque foram vistos circulando no cinema. Como o ambiente determina o preço, quem faz programa ali está sinalizando que custa barato. Quase nada. Quaisquer R$ 20, R$ 30 pagam. E, no mercado do sexo de aluguel, o implícito costuma valer muito mais do que o revelado. A lógica tem pouca serventia. É justamente na noite de sexo hétero que os garotos de programa mais faturam. A desculpa é perfeita para os clientes. Estão ali para ver uma mulher nua no palco, embora o que a maioria procura é um parceiro do mesmo sexo. Disfarces que ajudam a esconder a face mais real deste universo cheio de contradições.

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Sábado, 20 de março Hoje a TBV (Termas Boa Vista) estava lotada. Peguei uns clientes bons e deu para faturar. Saí de lá com R$ 400 no bolso. Nenhuma sauna do Recife sobrevive sem os boys. O atrativo da casa não é um sofá confortável, um acesso à internet. As bichas vão atrás de um sexo seguro. Antes o esquema era diferente. Os boys ficavam de toalha azul e os clientes de toalha branca. Todo mundo pelado, enrolado só na toalha. Agora, para driblar a legislação, colocaram os garotos todos de toalha branca, iguais aos clientes, porque quando a polícia chega não há como distinguir.

ara eu gozar são R$ 40 a mais. – Quase o dobro do preço. – É que é especial. – Especial? -–Vou te dar mais do que dou aos outros. Vai mesmo. Para um cara que se prostitui o seu esperma é valioso. Representa o prazer total, o clímax, uma entrega muito acima da média, prazer só permitido aos dispostos a pagar. Mais ainda. Esperma representa tempo perdido. Não com o cliente que topou, mas com o seguinte. O garoto vai precisar se recompor, se revigorar, pois ejacular, todo homem sabe, significa aguardar alguns minutos ou muitos, dependendo da idade, para estar pronto para nova investida. E minutos de descanso podem significar dinheiro perdido. São mais R$ 50, o preço médio de um programa em uma sauna gay, que escapam. Tempo perdido é o que não se pode ter em uma sauna dedicada a prazeres masculinos. Onde vapor e cheiro de eucalipto são disfarces para abrigar o sexo homossexual, seja ele pago ou gratuito. Pago é com o boy, nome que se dá ao cara que se aluga para alguém atrás de fetiche, suor, discrição, anonimato, satisfação, rapidez, compromisso de esquecimento rápido e possível promessa de um novo encontro. Se der, sem obrigações nem cobranças. Prostituto e outras palavras ainda mais rasteiras são evitadas. Pegam mal. Nem mesmo michê se ouve. Qualquer tratamento sujo e vulgar, se for desejado, ocorre na hora H, depois é abandonado, resgatado em oportunidade futura, intraparedes. A sauna é um mundo restrito a homens que transam homens, de portas fechadas a, digamos, quem é fora do ramo. No Recife são quatro: Blue Termas, em Boa Viagem; Thermas Boa Vista, Progresso e 111, estas três na região central da cidade. Diferença pouca entre elas. Decoração, tamanho, espaço, frequência e preços. No básico, no que se procura, são todas iguais. Ficam em ruas de fraco movimento, silenciosas, semidesérticas até, nenhuma placa na porta, poucas indicações do que se passa ali. Só os interessados sabem, buscam se informar, no boca a boca, em panfletos, sites GLS. Segredo é vital ao negócio. Os que o sustentam são advogados, dentistas, empresários, estudantes, comerciários, religiosos, jornalistas, policiais, taxistas, operários, professores, juízes, funcionários públicos... Difícil é em uma lista de profissões encontrar alguma longe daqui. São maridos, noivos, namorados, solteiros, pais, irmãos, filhos, cunhados, primos, avôs, assumidos, dissimulados, aquele de quem se desconfiava, aquele de quem nunca se imaginou nada. É terreno propício para se exercer uma das faces, a que se mantém oculta, por motivo de vergonha, medo, desonra ou coisa parecida. Verifica-se se há testemunhas em volta. Entra-se sorrateiro. Um nome, verdadeiro ou falso, é dado na portaria. – Número das sandálias, por favor? Recebe-se um par de Havaianas, uma toalha branca, uma chave, um número de armário. Pertences guardados, corpo desnudo, protegido apenas pela toalha na cintura, começa-se a caçada. Nada de muito agressivo a princípio. Pega-se uma revista, um jornal, uma olhada na TV, toma-se uma ducha, um vapor, chega-se ao bar, uma cerveja, duas. Pode-se encontrar um amigo, dois, três, mais. É ambiente sociável e não só para solitários. Pode-se participar de uma festa. Pode-se quase tudo. Passa-se uma hora, passam-se duas, três, tempo suficiente para ver e

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ser visto. Virar presa ou predador. Se for do tipo jovem, bonito, corpo em dia (bem sarado melhor ainda), assegura-se logo outro de igual porte, cliente também. É o tipo que arruma fácil, com pouca chance de pagar por sexo. Os boys sabem disso. Poucos se arriscam a uma sondagem. Mas acontece. Quem sabe rola? Boy é um tipo comumente identificável, apesar da cartela diversa, do halterofilista ao magro sarado, do mignon ao armário de 1,90m, do cara de menino ao bigodudo mal-encarado, do bem-dotado ao com centimetragem na faixa regular. Todos, no entanto, com andar, jeito, expressão e papo de macho. É só escolher. Ou ser escolhido. – E aí, vai uma massagem? Boy, pelas regras oficiosas, está ali para massagear. A profissão dele, no princípio da conversa, é massagista. Sabe-se que não. Sabe-se aonde vai chegar, mas ouve-se a proposta, que não tarda a se fazer mais verídica. – Tem a brincadeira depois. – Qual? Com isso, vem-se a descrição dos atos, uma tabela de preços e um acordo prévio do que ele aceita ou não fazer. Concorda-se ou não. Dispensar um boy de sauna nem é difícil. Ele insiste, diz que ficou excitado, negocia, apela, mas se convence e se despede, sem trauma, sem rancor. – Fica para a próxima? – É... Saiu dali, já tem geralmente outro em vista. Não se pode fraquejar, esmorecer com um fora. A vida tem que ser ganha. Outro há de aceitar. E sempre há. Na maioria são os idosos, os feios, os esqueléticos, os muito gordos, os mais efeminados, aqueles postos de lado pela exigência da cruel seleção estética, que pagam pelo sexo por ser a única alternativa para ter algum. Eles são o alvo fácil de acertar, os clientes mais frequentes, fixos até. O boy senta junto e engrena um papo íntimo, afetuoso, de quem não é estranho, já familiar. Algum tempo depois, levantam e rumam para alguma cabine. Resolvem-se seja lá como for, já que os papéis podem surpreender em tal situação. Rótulos sexuais extremos, do gay e do machão, não valem de nada (ou valem muito) neste cubículo cheirando a desinfetante, onde mal cabem um colchão plástico e dois corpos. Nunca se deve apostar em quem vai servir de que a quem (leia-se passivo e ativo). Nunca. Saem dali, chuveirada, tudo, em tese, desce no ralo, morre ali. Se o programa não é acertado em local mais aberto, iluminado, sem o acanhamento de ser visto contratando sexo, o corredor das cabines é opção de captura. Penumbra, portinhas enfileiradas, música ambiente, caras em pé, recostados, na espera. Vem-se a este local por se estar a fim todos sabem de quê. A abordagem pode ser de qualquer um. Cliente ou profissional. O profissional chega em estado de pré-ereção, manipulando o genital sob a toalha, e já olha diretamente. O jogo dos subterfúgios fica para as outras alas. O tempo aqui é ainda mais valioso e as intenções, claras. Nada além de um “e aí?” como pergunta, um “sim”, um “não”, ou mesmo um olhar, um aceno negativo de cabeça ou uma entrada na cabine em caso de aceitação. Se houver recusa, nada de lamentos. Inúteis. A raiva natural da rejeição é instantaneamente descartada. Vale ganhar tempo. E dinheiro.

Domingo, 21 de março As pessoas julgam a gente como a escória. Mas é um mundo fascinante. Tem menino que faz faculdade, trabalha em banco, faz estágio e vai para a sauna para complementar a renda, está ali para comprar um carro mais novo, pagar o luxo de uma viagem, impressionar a namorada. Esse negócio ganhou uma dimensão tão grande que as pessoas não têm noção. O boy mora do lado da sua casa e você não sabe. O cliente é seu vizinho, é casado, pai de não sei quantos filhos e, à noite, está na sauna. A sociedade sabe que existe esse mundo do michê, mas finge que não existe. Quem de dia vira a cara, à noite, vai comer na mão do garoto. E vai comer caro. Terça-feira, 30 de março Sabe aquele filme À Espera de um milagre? Sou eu. A sauna está numa fase ruim. Tô muito sem grana. Ir para cinema, a gente não pode ir, nem vale a pena. Fazer ponto a gente também não faz. Vou ter que arrumar um jeito de conseguir dinheiro. Só não vou ligar para cliente. Isso eu não faço. É o fim da picada. Se o cara quiser, ele que ligue. Porque você acaba perdendo ponto. Ele sabe que você tá precisando e vai querer baixar o preço do programa. Mesmo que ele tenha a grana, vai tirar vantagem disso. É um mundo cão. Um querendo engolir o outro. Quinta-feira, 01 de abril Hoje deu a maior confusão na sauna. Um cliente chegou junto, ficou com o boy, pediu para o cara gozar e, na hora de pagar, veio com uma conversa de que achava que o boy era cliente. Foi rolo grande. Foi bater na gerência. Ele terminou pagando metade do programa. Pense no constrangimento que o boy passou. Esse tipo de coisa acontece direto. As bichas sabem que estão transando com um profissional. E se fingem de bestas. Para tirar vantagem. É uma raça miserável.

aunas que não são somente saunas. Cinemas que exibem muito mais do que filmes. A vizinhança sabe, mas diz não se incomodar. Desde que o comércio do sexo que acontece ali dentro fique a portas fechadas. Mas só discrição não basta. A movimentação constante dos clientes, entrando e saindo, indica que o negócio é lucrativo. Tem renda garantida. E, como qualquer outra atividade comercial, precisa de autorização para funcionar. Precisa, mas quase nenhum tem. Com uma consulta aos órgãos de fiscalização da Prefeitura do Recife, descobre-se que nenhuma das quatro saunas gays e apenas um dos cinco cinemas de filmes pornôs que funcionam na capital possuem licença da Diretoria de Controle Urbano (Dircon) para funcionar. Uma das saunas mais luxuosas da cidade, localizada em Boa Viagem, na Zona Sul, está ameaçada de fechar por atuar irregularmente. Pela lei, não basta ter apenas a autorização da Dircon. A Vigilância Sanitária também tem que dar o aval para a casa continuar aberta. Aqui a legislação é novamente burlada. A maioria das saunas e cinemas não está cadastrada na Vigilância Sanitária e, quando está, a autorização se limita apenas ao serviço de lanchonete que o local oferece. “É a saída que a gente tem para não ficar totalmente ilegal. Registrar como lanchonete. Pode procurar. Nenhuma casa tem alvará. A gente tenta se regularizar, mas não consegue. A Dircon tem um preconceito muito grande em relação aos locais de homossexuais. É uma vergonha”, defende-se o empresário Joel Siqueira, proprietário da Termas Boa Vista, uma das melhores e mais bem frequentadas saunas da cidade. Há 13 anos atuando no mercado, ele diz que as saunas são consideradas pela Dircon como uma empresa de alta periculosidade, semelhante a uma fábrica de fogos de artifício. “É como se fôssemos um estabelecimento inconveniente para o bairro. Não vejo outra explicação para tanta dificuldade em conseguir a licença senão o preconceito”, afirma o empresário. A diretora-geral da Dircon, Maria José de Biase, explica que os critérios para liberação do alvará são meramente técnicos. “O que observamos é se o estabelecimento está de acordo com a Lei de Uso e Ocupação do Solo. Se as exigências forem cumpridas, a licença é concedida”, justifica. Já o gerente de Vigilância Sanitária do Recife, Luiz Paulo Brandão, esclarece que há uma vacância na lei em relação aos estabelecimentos que abrigam o comércio do sexo, disfarçados de atividade comercial comum. “O Código Sanitário de Pernambuco prevê licença sanitária para saunas e cinemas. Mas sabemos que nesses locais não são oferecidos apenas esses serviços. Por isso, não temos como conceder a autorização. O que fazemos são fiscalizações, quando há denúncias de irregularidades”, diz. A Secretaria de Defesa Social também só age nesses ambientes quando provocada. Pela lei brasileira, prostituição não é crime. O artigo 229 do Código Penal, que trata das casas de prostituição, diz que só há ilegalidade se ficar constatada exploração sexual por parte dos donos do estabelecimento. “Sabemos que nesse ambiente permissivo e promíscuo, com certeza rolam crimes e consumo de drogas. Mas só podemos agir se houver uma denúncia. Já checamos informações de que em alguns cinemas mulheres estavam sendo estupradas e menores, se prostituindo. Mas nada foi confirmado”, explica o diretor-geral de Operações da Polícia Civil, Osvaldo Morais, afirmando que não cabe à polícia julgar questões morais. Protegidas pelo manto da legalidade, as casas faturam. E muito. Pelas contas dos empresários do sexo, Recife é o segundo melhor mercado do Brasil em relação às casas de saunas. “Só perdemos para São Paulo. Há um turismo gay que vem para a cidade apenas para usufruir do serviço. Quando tem um feriado, os turistas vêm para ficar três dias dentro das saunas”, confirma Joel Siqueira. O proprietário da Termas Progresso, Sérgio Manso, reforça o excelente filão. “Tem dia que a casa recebe mais de 200 clientes. O movimento é muito grande.” E admite. Um dos principais atrativos da sauna são justamente os garotos de programa. “Sem eles, as casas fechariam.”

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Author:AAGUIAR

Sexta-feira, 02 de abril

sol ainda nem baixou e a rua já começa a encher. Chegam uns. Depois outros tantos. Todos muito jovens. Garotos de 13, 14, 15 anos se aglomeram. Estão em casais, em grupos, trocam beijos, abraços, conversam, dançam, se divertem. Anoiteceu e a rua está lotada. O bar Pit House, velho conhecido dos homossexuais do Recife, no bairro central da Boa Vista, é o ponto de referência. Reduto antigo que, nas tardes e noites de domingo, ganha um frescor. O frescor da adolescência, dos rostos cheios de espinhas, do gel no cabelo, do jeans largado com a cueca à mostra, da regata justinha, afinal são horas e horas na academia. Frescor que atrai olhos bem menos adolescentes. Um homem careca, baixo e aparentando uns 35 anos chega numa roda de garotos. Conversa, chama um dos jovens para o canto. Os dois saem e vão até uma barraca a poucos metros dali, na frente do Bar Mustang, onde o homem paga uma Coca-Cola com sanduíche para o menino. Ele parece ter uns 16 anos. Talvez menos. Os dois voltam, encostam num fiteiro e começam a se beijar. Ficam por um tempo e depois vão embora juntos. É assim a noite toda. Homens mais velhos circulam entre os muito jovens procurando sabe-se exatamente o quê. É a matinê do sexo, no meio da rua, com códigos próprios de abordagem, dissimulados por olhares, conversas e ofertas que nem sempre soam como pagamento. “Às vezes, os meninos se vendem por um lanche, por uma volta num carro bacana, para comprar uma camiseta legal. Não que eles precisem, é só para tirar um sarro mesmo”, diz um adolescente, 15 anos, que não perde uma noite de domingo na Boa Vista, embora, para os pais, ele esteja, naquela hora, na casa de amigos. O menino conta que já saiu com homens que o abordaram em troca apenas de passar a noite na farra. “Eles pagam bebida, cigarro, é divertido”, assume, sem se reconhecer no papel de garoto de programa. “Não vivo disso. Tenho namorado. É só curtição.” A movimentação em torno do sexo fica ainda mais clara quando se observa o vai e vem dos carros. Quem nada tem a ver com aquele burburinho simplesmente passa, impaciente até, com toda aquela agitação adolescente no meio da rua. Já outros, motoristas homens, sozinhos, seguem devagar, olham em volta, encaram um, outro menino. Recebem sorrisos de volta. Um Honda Civic quase para, ignorando os carros que vêm atrás. Troca olhares com um garoto. A paquera é interrompida por buzinadas. O motorista segue, mas a sinalização já foi dada. Ele estaciona, volta, encosta no menino. Não demora, os dois saem em direção ao carro. Os adolescentes do Pit House não se reconhecem como michês, mas são um termômetro do que virou a prostituição masculina nas ruas do Recife. Foram tomadas por menores de idade, garotos que estão começando e que aceitam ganhar menos, até pela falta de experiência. Quem madruga na noite sabe. Os boys migraram. Saíram das ruas e foram para os cinemas, as saunas, os classificados de jornal, as páginas da internet, as salas de bate-papo virtuais. São ambientes mais seguros e rentáveis. O preconceito existe até entre eles. “A rua hoje é lugar de noiado (viciado), a maioria rouba. Os clientes não querem se arriscar. E quem se arrisca quer pagar uma micharia”, diz um boy que, há dois anos, trocou o calçadão da Avenida Boa Viagem, na Zona Sul, pelas saunas e classificados. O Corredor Leste-Oeste, que refez o traçado do trânsito na Avenida Conde da Boa Vista, mudou também a cara da prostituição masculina no Centro. Os garotos já não ficam mais na frente das paradas do Shopping Boa Vista esperando o imaginado “ônibus Recife-Paris” passar. Foram expulsos pelos novos tempos. Jogados para as ruas paralelas. Gervásio Pires, Corredor do Bispo, Soledade. São nas esquinas dessas vias que o sexo pago encontra abrigo. Quem ousa ir mais longe e tenta arriscar a vida lá fora descobre que a promessa de dinheiro fácil tem um preço nem sempre disposto a ser pago. O JC conversou, pela internet, com meninos que se prostituíam nas ruas do Recife e hoje estão na Itália e na Espanha. “Roma é um dos melhores mercados porque tem muitas saunas gays, clubes de sexo ao vivo. Mas não consegui trabalhar lá. Eles só querem fazer sem o plástico”, diz um dos garotos, fazendo referência à preferência dos italianos de transar sem camisinha. Outro menino está em Barcelona há pouco mais de dois meses, mas já pensa em retornar ao Recife. “Vou fazer o dinheiro do bilhete (passagem) e voltar. Isso aqui não é vida. Você passa a noite na rua e dorme o dia inteiro. Vira um zumbi. E se a polícia te pega, são seis meses na cadeia”, diz, admitindo até que anda com saudades das ruas sujas do bairro da Boa Vista.

O

Pense numa noite fraca. Só tinha dez clientes na sauna Progresso. Assim mesmo, encontrei um cliente meu, ele pagou minhas despesas, ainda livrou a noite. Para você ver o quanto a qualidade da sauna faz diferença para um boy. Porque na Termas Boa Vista, por pior que seja o dia, sempre dá para descolar uma grana melhor. Na (Termas) Progresso e (Termas) 111 para arrumar um programa decente é problema. Os clientes pagam muito mal. O nível dos garotos é muito diferente. Nas outras saunas, não há uma pré-seleção. Eles só pedem antecedentes criminais. Mas para entrar na TBV, você tem que tirar a roupa. Se tiver uma cicatriz, uma mancha feia, não entra. Até entra, mas não pode ser cadastrado. O ruim de não ser cadastrado é que não rola o vale-sexo. Porque na TBV você transa hoje e só recebe no dia seguinte. Sexo fiado. Que putaria é essa? O cliente passa no cartão de crédito e o boy só vai receber no dia seguinte. Sou puto com isso. Sábado, 3 de abril Essa madrugada um cliente veio aqui em casa. Me tirou da cama para fazer uma proposta miserável: me pagar R$ 100 para eu ir comprar crack para ele. Queria fumar com o namorado. Ele me dava mais R$ 100 livres para eu entrar na favela. Já fiz isso antes para outro cara e quase me ferro. Se eu for pego, ele, que tem grana, não vai estar nem aí. Afinal, entre o cliente e o boy, quem é que a sociedade chama de marginal? Domingo, 4 de abril Hoje foi a festa de Páscoa na Progresso. Teve um concurso para a escolha do coelhinho. Era um bocado de boy de cueca branca e pompom na bunda, com máscara e orelhas de coelho. Cerveja grátis, strip-tease de boy, show de drag queen. Conversei com um cara que é auditor da Fazenda Estadual. O que é que um cara desses vai fazer lá? Ele tem um supercarrão, um puta padrão de vida e vai se enfiar ali dentro. Sei não. Vai entender a cabeça das pessoas.

É

um universo em expansão. Em Pernambuco, eles já podem ser contabilizados na casa das centenas, talvez dos milhares, mas é como se não existissem. Não há precisão nos números. Não há sequer números. Entidades não governamentais, secretarias de Saúde estadual e municipal, de Segurança Pública, universidades, todos navegam praticamente na mesma escuridão. A falta de dados sobre quem são, quantos são, onde vivem, como vivem, do que adoecem e o que desejam os garotos de programa é sintomática. Eles habitam um mundo secreto, onde tanto quem oferece quanto quem consome o serviço preferem o anonimato. Um mundo muito mais discriminado que o da prostituição feminina. Enfrentam um preconceito duplo: além de venderem o corpo, fazem isso num ambiente homossexual. O círculo é vicioso. Como não se reconhecem como michês ou não querem aparecer como tais, reforçam essa invisibilidade. Estão distantes das políticas públicas, da luta pelos direitos sociais, das conquistas de classe, da pressão junto às Câmaras de Vereadores, das faixas e cartazes nas ruas. “Não existe esse recorte. É um grupo invisível epidiomiologicamente falando. Não há informação específica nos boletins em relação a esse público, nem levantamentos mais detalhados”, confirma o coordenador estadual do Programa de DST/Aids, François Figueiroa. Como um mantra, a resposta do especialista se repetiu em outras portas em que a reportagem bateu à procura de dados e estatísticas: “Não há dados.” É impossível saber, por exemplo, o universo de garotos de programa soropositivos. “A aids joga na cara da sociedade que as pessoas gostam de sexo. Mas não há uma campanha voltada diretamente para os profissionais que atuam nessa área. Essa é uma das nossas maiores preocupações. Porque esses garotos estão expostos diariamente ao risco de contágio”, diz o coordenador-geral do GTP+ (Grupo de Trabalhos em Prevenção Posithivo), Wladimir Reis. A entidade é a única em Pernambuco que trabalha diretamente com esse tipo de público. Desde 2007, ela leva para as ruas o Projeto Mercadores de Ilusão, que foca as ações diretamente na prevenção. Além de distribuir camisinhas, a ONG orienta os rapazes sobre as doenças sexualmente transmissíveis, como diagnosticá-las e onde tratá-las. É do GTP+ uma das raras pesquisas feitas para tentar lançar luzes sobre esse universo. Divulgado no final do ano passado, o estudo entrevistou 44 pessoas no Grande Recife, entre travestis, transexuais e garotos de programa. Foi a primeira vez que um levantamento mostrou o perfil deste público no Estado. E o que se viu foi que a maioria já foi vítima de violência e é alvo constante de assédio para o tráfico internacional de seres humanos. A falta de garantias é refletida nas informações coletadas. Apesar de quase 60% afirmarem já ter sofrido algum tipo de agressão, apenas 30% dessas pessoas foram até uma delegacia para denunciar o crime. E a maioria disse que não procurou as autoridades competentes justamente por medo da discriminação. A maior parte dos entrevistados era jovem, com idade entre 18 e 24 anos. Entre as pessoas ouvidas, 70,45% já haviam recebido proposta para trabalhar fora do Brasil. E um universo ainda maior, de 88,64% dos entrevistados, disse conhecer algum profissional do sexo que tenha ido trabalhar fora do País. Diferentemente das prostitutas, que possuem uma entidade de classe própria, os michês em Pernambuco não dispõem de uma associação que os represente. A falta de organização se repete em todo o País. No Brasil, existem apenas duas entidades criadas por garotos de programa. Uma em Manaus e a outra em Campina Grande. No final deste mês, um importante passo será dado para tentar mudar o curso dessa história. Entre os dias 25 e 27, Brasília será palco de uma discussão inédita. O I Encontro Nacional de Prevenção junto aos Trabalhadores do Sexo Masculino, o Entrasex, quer driblar o preconceito e criar uma rede que ajude a dar voz e visibilidade aos garotos de programa. A ideia é quebrar o silêncio que existe em torno da profissão, a partir do fortalecimento de quem está no dia a dia dela.

Date:21/07/10

Time:20:40


[BR_JC_10: JC-CIDADES-ESPECIAIS <0801_12_BOY_08> [JC1] ... 01/08/10]

Author:AAGUIAR

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ideia era assumir o risco do desconhecido para decifrar o que leva mundos aparentemente tão distantes e inconciliáveis deitarem na mesma cama. A busca, a seleção, a negociação, o acerto. O medo, a expectativa, o frio na barriga. O impulso de desistir, a curiosidade que faz confirmar hora e lugar. A sensação de viver, mesmo que por uma noite, mesmo que de mentira, a fantasia do sexo pago. Era preciso se despir dos preconceitos e se permitir entrar no jogo da sedução, no qual palavras parecem ser desnecessárias. Um papel que o obriga a se cercar de um mínimo de segurança, porque tudo pode acontecer. Inclusive o pior. Numa certa noite de terça-feira, num bar, depois num motel, tudo isso deixou de ser suposição e virou realidade. Mais do que ouvir o que os clientes tinham a dizer, ter eu mesma a minha história para contar.

Terça-feira, 6 de abril

squeça o romantismo. Não há muito espaço para rodeios no mundo do sexo pago. Tudo é tratado de forma direta e objetiva. Pelo menos, à primeira vista. Medidas, preço, preferências, limites, a falta deles. É assim, preto no branco. – É para transar ou só fazer a frente? Se for serviço completo, custa R$ 350, despeja do outro lado da linha um interlocutor de pouquíssimas palavras, tratando do preço de um acompanhante para uma festa. Já havia entrevistado vários garotos de programa, mas no papel de cliente era a minha primeira vez. Jornal na mão, fui direto para a sessão “relax”. Circulei todos os anúncios masculinos e preparei o texto: “Era casada e estava me sentindo só, buscando uma companhia.” Durante vários dias, conversei, ou tentei conversar, com 12 rapazes. Saí eliminando as opções e, por razões diferentes, fiquei em dúvida entre dois. Com um deles, marcaria o programa. Do primeiro, na verdade, eu já tinha valiosas informações. Antes de ligar, entrei no site indicado no anúncio. As fotos e as medidas do rapaz, de fato, impressionavam. “Ele é grande em tudo, tudo. Permita-se. Você pode”, estimulava o texto. Sem modéstia, o boy se apresenta como “o melhor garoto de programa do Recife”. Tudo parecia perfeito. Perfeito demais para ser verdade. O diálogo começou meio travado, direto ao ponto. E piorou quando ele perguntou: – Você viu o meu “brog”? – Hã? Vi o quê? – O meu “brog” na internet. Achei que tinha ouvido errado. Mas não. Esse e outros escorregos foram se repetindo na conversa. Chegamos a nos falar novamente. Ele ainda ligou para o meu número algumas vezes. Mas a decisão já estava tomada. O escolhido não tinha site, fotos na internet, mas tinha uma vantagem que se revelou muito sedutora para um contato telefônico: uma voz firme e educada, que passava uma certa confiança. Nível superior, 29 anos, 1,90m de altura. Corpo sarado e sem tatuagens. A descrição não era nada mau. Para melhorar, ainda fez o charme de me dar o telefone pessoal e, na segunda ou terceira ligação, dizer o nome verdadeiro. O nome verdadeiro também deveria ser falso, eu pensei, mas a estratégia caiu bem. Marcamos em Boa Viagem, na Zona Sul do Recife. 19h. Em frente a uma loja da Avenida Domingos Ferreira. R$ 100, o programa. No dia do encontro, no começo da tarde, chega uma mensagem ao meu celular: “Tenha um bom dia, linda. A noite será maravilhosa”. Achei o texto simpático, mas confesso que me deu um frio na barriga. Agora não tinha mais como desistir. Perto do horário marcado, surgiu um nervosismo que eu não estava esperando. Tentei controlar a ansiedade e segui para encontrá-lo. Fui com um motorista do jornal, disfarçado de motorista particular. Uma medida de segurança, caso algo desse errado. O garoto era enorme. Corpo saradíssimo. Bíceps, tríceps, tórax, tudo em abundância. Entrou no carro, deu boa-noite e fomos para um bar. A essa altura, eu estava nervosíssima. Ele percebeu e puxou uma conversa qualquer para relaxar. Minha ideia era a seguinte: se no bar a conversa

E

fosse boa e eu me sentisse segura, iríamos para o motel. Caso contrário, encerraria a noite ali mesmo. De cara, meu acompanhante se mostrou muito gentil e atencioso. Como em qualquer primeiro encontro, quis saber meus interesses por cinema, música, esportes, essas coisas. E falou com tranquilidade dele, da sua vida e de como havia entrado no mundo do sexo pago. A conversa estava fluindo, mas a situação continuava incômoda. Porque, por mais educado que o garoto fosse (e ele era bastante), o interesse não soava real. Não havia como fugir da sensação de que aquilo era só um passatempo para o que viria depois. Foi quando eu falei: – Olha, se formos para um outro local, é possível que não aconteça nada. Tudo bem, pra você? Ele garantiu que sim, que só faríamos o que eu quisesse. Pensei mais dois segundos, pedi a conta e disse: – Vamos, então? Os 15 minutos até o motel pareceram uma eternidade. Só o pior passava pela minha cabeça. E se no quarto ele mudasse de conversa? Se não respeitasse os limites impostos? Se fosse violento? Nada disso aconteceu. Muito pelo contrário. Quando entramos, tiramos só os sapatos e eu sentei na cama. Ele se deitou. Pediu para fazer uma massagem no meu pé e eu concordei. Ele perguntou se podia tirar a camisa, e eu, “ainda não; espera um pouco”. Continuamos a conversar sobre mentira, traição, as muitas histórias que ele já viveu, as excentricidades de alguns clientes, o prazo que ele se dava para sair daquela vida, seus planos para a pós-graduação... Era meio surreal. Dois desconhecidos falando sobre assuntos tão pessoais, sobre intimidades sexuais, muitas vezes, desconcertantes. Entre uma confissão e outra, um afago no cabelo, um abraço delicado, um beijo na nuca. Em nenhum momento, ele ultrapassou o permitido. Tentou, claro, uma aproximação maior. Mas foi extremamente respeitoso, diante das sucessivas negativas. Quando perguntei se poderíamos ir embora, ele me pediu um abraço de despedida. Fiquei meio sem jeito na hora de pagar, mas, enfim, era por isso que estávamos ali. Como era caminho, terminei deixando-o em casa. E voltei pensando que aquele deveria ter sido o pior programa da vida dele. Muita conversa e nenhum sexo. Eu, por outro lado, tinha achado a experiência interessantíssima. Entendi um pouco o que clientes e boys já haviam me falado. Nem sempre é o sexo que está em jogo. Mas a busca por uma companhia, por uma relação sem compromisso, a possibilidade de ser ou viver algo impossível à luz do dia. Mesmo que para isso seja preciso pagar um preço. Nada mais humano. Para minha surpresa, no dia seguinte, recebi três mensagens do garoto. Todas muito gentis e elogiosas. Como não respondi, ele ligou duas vezes. E foi um doce ao telefone: – Quando quiser conversar, fique à vontade para ligar. Sem nenhum compromisso (ele quis dizer o compromisso de fazer um programa). Não estou fazendo isso por obrigação, insistiu. Agradeci, imaginando até que ponto eram verdadeiras aquelas palavras. Na semana seguinte, ele voltou a ligar e mandar novas mensagens. Achei melhor não retorná-las. E pensei: não é fácil viver uma vida dupla. Porque nada é o que parece ser. Mesmo quando é.

Ontem um travesti me chamou para fazer um programa com ele. Agora pense numa tentativa de homicídio. O frango tem 1,90m. Pesa uns 200kg. Se aquela elefanta fica em cima de mim, são dois caminhos: ou o IML ou a UTI, porque eu estou pesando 70kg. Se ela senta em cima de mim, eu estou morto. Primeiro que eu não dou conta. É muita carne. É nocaute técnico. Quarta-feira, 7 de abril Estava conversando com um colega da sauna. Ele coloca anúncio no jornal e me contou que foi encontrar um casal no motel esta semana. Quando chegou lá, foi tomar banho, bebeu uísque, ele tirou a roupa, a mulher começou a fazer sexo oral nele. De repente o cara pegou umas pedras de crack e deu um tiro na lata. A mulher dele também. A brincadeira se prolongou, o casal fumando crack, ele querendo ir embora. O boy terminou chamando a gerência. Só deu ele. Ainda bem que ele não tinha usado, mas a vergonha foi muito grande. E ainda ficou sem receber pelo programa. Eu não queria tá no lugar dele. É um menino de família, legal. Ele estuda de manhã no Ginásio Pernambucano. A confusão foi grande. Os caras do motel chamaram a polícia. E ele ainda teve que aguentar os policiais tirando sarro da cara dele. Como o casal era rico, não deu nada para eles. Eles continuaram no motel e o menino foi dispensado.

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uem busca um garoto de programa quer se permitir ao máximo. Viver o que não se vive sem ele. É num cubículo de sauna, num dark room de cinema, num motel, num quarto e sala, seja onde for, qual seja a hora, que se tiram não só roupas, mas também amarras. As dissimulações do dia a dia, impostas por todos os lados, asfixiantes para os que se ocultam e se reprimem, têm de ser dribladas em algum instante. Não será com a esposa, nem com o marido, nem mesmo com um amante. Há um compromisso com estes, um respeito maior. Com alguém que se aluga, tais cuidados passam longe. É sexo sem demarcações, de total entrega, para matar todas as curiosidades, vontades, ceder aos experimentos. No final, conta-se o dinheiro e tudo acaba. Sem perguntas, sem envolvimento, sem as complicações do amor com normas sociais. “Morre o pecado, morre o proibido. Sai-se dali renovado”, confirma um cliente habitual de garotos, gerente de loja na vida às claras. Volta-se a ser quem era, para a rotina que lhe foi estabelecida e na qual se ganha o sustento financeiro e emocional. Volta-se a ser o hétero inquestionável se este for o caso. Mais que orientação sexual, heterossexualidade é pressão social. “Precisa ser reforçada, reafirmada, pelo medo da desonra, da decepção dos mais próximos. Mas a orientação íntima e diferente, até por curiosidade, continua mesmo que sufocada”, diz a sexóloga Silvana Melo. Volta-se a ser o gay comportado, discreto e recatado, caso de assumidos, mas ainda tementes à boca do povo. Manter a decência instituída é vital para não ser escanteado, seja por héteros ou homos, pois preconceito, malícia, moralismo e incriminação nunca hão de faltar de um lado e do outro. Se um romance acontecer, coisa rara no meio do prazer negociado, podese esperar as pedras. Houve um entre um empresário e um boy de sauna. Quase oito anos juntos. Tempo considerado grande por demais para caso assim. Quase oito anos de um relacionamento com troca de favores, de carinhos, brigas, discussões, intimidade, amigos em comum. Fidelidade havia, só que com regras estabelecidas entre eles. Sexo com outros só por fins financeiros, pela profissão de um deles, sua principal forma de sustento, além das ajudas do outro, dono de lojas, proprietário de imóveis, de vida discreta, avesso à badalação, não assumido para a família, nem para os amigos fora do círculo gay. Os parentes do garoto também não sabiam. Vieram a saber, veio tudo abaixo. Escândalo de mãe, desgosto do pai, irmãos desapontados, toda aquela celeuma infindável de quem descobre a homossexualidade de um familiar e, ainda por cima, a prostituição dele. Era, para todos os efeitos, estudante de ensino médio (verdade) e garçom de um bar nos fins de semana (mentira). Sábados e domingos eram dedicados à sauna, onde, das 17h às 22h, descolava um dinheiro para gastos pessoais, ajudar em casa e alguma diversão.

Com a revelação bombástica, houve a crise, a separação do casal. Já faz um ano e alguns meses que não se veem, não têm mais contato, a carreira de boy foi interrompida, o garoto sumiu. “Ninguém sabe mais dele. O telefone, creio, foi trocado. Nosso último contato foi para a despedida. Depois, nada mais”, lembra o empresário. Houve choro, palavras tristes, mas sem promessas de reaproximação. “Decidi também que não era para procurá-lo mais. Melhor assim”, conta. “Não sei de um história parecida. Principalmente, que tenha durado tanto tempo”, acredita. Não foi fácil manter a relação. Tiveram de driblar ciúmes, horários incompatíveis, compromissos variados, desconfiança da família, inveja dos outros, até uma ameaça de chantagem. O dinheiro ajudou. Um flat para encontros noturnos e diurnos, viajar quando dava. Ambos solteiros, mas com satisfações a dar em casa. “Eu ainda tenho mãe. Tenho irmãos. Acho até que sabem de mim. Mas nunca me revelei claramente. E, de maneira alguma, iria dizer que tinha um caso com um garoto de programa.” O boy, à época na faixa dos 20 anos, arrumava namoradas esporádicas para aplacar as suspeitas familiares. Teve uma que engravidou. Um período pesado que viveram, pouco se viam, os problemas se acumulavam. Os pais dele e dela queriam o casamento. Não houve. A garota sofreu um aborto espontâneo, a ligação entre os dois terminou. A antiga, entre homem e homem, revigorou. Tiveram também de se esquivar da intolerância no meio gay. Frequentavam bares e eram fuzilados por olhares. O michê e o pagador. Poucos acreditavam que pudesse haver afeto verdadeiro. “Relacionar-se com um garoto de programa é o mesmo que andar com um pavão do lado. Pior: junto a alguém com doença contagiosa. Todo mundo olha e comenta. Impossível escapar.” Pararam de ir a qualquer lugar onde fossem reconhecidos e apontados. Dos quase oito anos, ficou só a saudade no empresário. Mas já reduzida, lá longe na alma. Menos de dois anos após o rompimento, o sentimento murchou mês a mês, aplacou quase que por completo. Bem antes, ele já estava de volta às saunas, não em busca de outro amor. Nunca, aliás, foi lá com essa meta, nem quando conheceu o garoto. “Aconteceu”, revela. Aconteceu primeiro por sexo, virou simpatia, caso amoroso e terminou em recordações. “Na rua, não pego ninguém. Tenho muito medo. Sem a opção da sauna, sexo seria difícil para mim.” Ele sabe: aos 55 anos, sem pagar, é improvável conquistar. A juventude é o principal atrativo nessas horas. Ele sabe porque comunga de tal conceito. O empresário se inclui entre os que buscam a jovialidade e a beleza dos mais moços. “Não posso negar. São só os jovens rapazes que me interessam.” A meia-idade, o corpo já flácido, as rugas no rosto, o põem de lado, até o anulam, e o colocam na categoria dos que têm de abrir a carteira se quiserem sentir algum prazer.

Date:21/07/10

Time:20:40


[BR_JC_10: JC-CIDADES-ESPECIAIS <0801_12_BOY_10> [JC1] ... 01/08/10]

Author:AAGUIAR

Sexta-feira, 9 de abril Dei uma passada agora de madrugada na frente da MKB (boate, no Centro do Recife). Fiquei impressionado com o que vi. Meninos de 14, 15 anos, fazendo programa. Foi o dia em que vi mais menor de idade se prostituindo na frente da boate. Sábado, 10 de abril

ma pedra esmagou a cabeça e tirou não só uma vida, também levou a força de viver de quem estava em volta da vítima, parentes, amigos, vizinhos. Mais. Levou deles a capacidade de lutar pela justiça, de se indignar em público, de manifestar a saudade. A vítima era um homem de 33 anos, vindo do Agreste pernambucano para a capital, instalado em um quarto e sala alugado no Centro do Recife, representante comercial por profissão, homossexual por condição, filho, irmão, colega, parceiro, simpático, tudo o mais. O agressor, desconfiam alguns, têm certeza outros, era um garoto de programa, mas não se sabe se alto ou baixo, magro ou forte, negro ou branco. Sabe-se nada dele. Ninguém se apresentou na delegacia para depor, acusar, dar uma pista sequer. Nunca houve qualquer suspeito. A família soube por uma ligação policial. Um telefonema e dois mundos que aparentavam ser tão distantes, que pareciam se repelir, colidiram. “Minha mãe até hoje não é a mesma. Ela evita falar do assunto. Sabe o que ocorreu. Mas não diz nada. Como se o silêncio apagasse”, relata o irmão. Não apaga, nem consola. Mas abafa. Pior que perder o filho, o irmão, um parente, é perdê-lo em meio a um escândalo, em uma cena sofrida, degradante, criada, segundo o preconceito vigente, por uma condição sexual degradante. Caído no chão, mãos amarradas às costas, nu, crânio esfacelado pelo encosto de porta, em uma poça de sangue, assassinado por um homem que contratou para ter relações sexuais. É dor que não se grita. Apenas se geme, se lamenta baixinho, se tenta asfixiar, se oculta para evitar mais eco. Os amigos não se iludem. Foi a busca por sexo pago que o levou à morte. “Ele pegava na rua, a gente sabia. Temíamos que um dia acontecesse. E aconteceu”, declara um deles. Na família, desde a morte, em 2005, há quem prefira escapar com explicações menos constrangedoras. Invasão domiciliar e assalto. Sem sexo. Cartões de crédito, dinheiro, celular e talão de cheques sumiram. Assalto com participação de uma mulher, que o seduziu, o drogou e depois chamou os comparsas. Teses para amenizar. “No fundo, todos aqui sabem como foi. Mas ficam dizendo outras coisas só pela vergonha geral de ele gostar de homens, ter ido deste jeito”, assegura o irmão. Querem é esquecer, não tocar mais no assunto. Sepultar. A família nem pede justiça nem se importa com o fato de o criminoso jamais ter sido achado, se nega o direito da indignação. Não às claras, às vistas alheias. Pensam no que os outros vão falar, vão voltar a falar, no que vão inventar em cima. Os amigos também se mantêm quietos. Sentem algo do tipo “não é comigo”, “não quero problemas”. Quando souberam pelo noticiário na televisão se chocaram, alguns choraram, ligaram uns para os outros. “Você viu? Mataram ele...” Foram ao enterro, mas retornaram às suas vidas, sem mais ruídos. Nada de se envolver, de remexer mais na lama. Deixa quieto. Um discurso acanhado, mas geral, de “foi ele quem procurou” para atenuar culpas, apaziguar consciências. Responsabilidade, a vítima até tem. Pegar na rua qualquer um, desconhecido, “boy sujeira”, é comportamento de alto risco. “A maioria dos que levam estranhos para casa o faz escondido dos vizinhos, do porteiro”, revela Marcelo Cerqueira, presidente do Grupo Gay da Bahia (GGB). “É errado. Não deixa pistas e o criminoso se sente mais seguro.” A chance de se enfiar em uma armadilha nestes casos é enorme. De ser morto, parar na página de polícia dos jornais e engrossar as estatísticas

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de crimes de ódio. Pelos números do GGB, um dos raros grupos que contabilizam homicídios por homofobia, em 2009 foram 198 homossexuais assassinados no Brasil, dez a mais que em 2008, e 76 a mais que em 2007. Entre eles, 117 eram gays; 72, travestis; e nove, lésbicas. Bahia e Paraná lideram com 25 mortes cada no ano passado. São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco têm 14, Alagoas, 11. Nove em Goiás. Oito em Mato Grosso, Rio de Janeiro e Paraíba. Dados imprecisos. Apurados em notícias de jornais e da internet. “Estatísticas governamentais não existem”, alerta Cerqueira. Ele tem razão. A Secretaria de Defesa Social de Pernambuco não sabe informar quantos homossexuais foram mortos por garotos de programa no Estado, nem mesmo os casos de agressão sofridos por clientes. A maioria destes crimes fica encoberta pela subnotificação. “Qual é a vítima que quer ter seu nome lançado num livro de ocorrência por ter sido roubado por um michê, numa situação constrangedora? Eles nem procuram a delegacia. A gente só fica sabendo dos casos em que a agressão acaba em morte”, confirma o diretorgeral de Operações da Polícia Civil, Osvaldo Morais. Dos crimes contabilizados pelo grupo baiano, 80% têm autor desconhecido. Dos 20% identificados, só 10% chegam a ser detidos e julgados. A dificuldade é por a violência ocorrer em locais ermos, a altas horas da noite e pela omissão das testemunhas. A maioria dos que veem algo adota a política do ninguém se mete, ninguém sabe, ninguém viu. Do “quem manda ser gay?” Até os mais próximos à vítima acabam por incriminá-la. “Ele tem sim uma certa culpa. Não conseguia segurar o facho. Bastava ver um cara que desse tesão e já se ouriçava”, comenta um dos amigos do que foi morto com uma pedra na cabeça. A pancada e a consequente dor vinda de um crime boy contra cliente são iguais também na família do outro lado. Ver, de uma hora para outra, o filho acusado, preso e humilhado em tal circunstância derruba um pai. Vanderlino Ferreira Guimarães não queria acreditar, mas foi ao chão quando seu filho Robson teve o nome nos jornais e acabou preso pelo assassinato do publicitário pernambucano Paulo Falcão, em 1999. Descobriu que o filho era stripper, ouviu depoimentos de que ele mantinha caso amoroso com um homem havia certo tempo, tinham posado juntos para fotos, eram constantemente vistos na noite, em bares e boates, que levou um fora, não aceitou, passou a ameaçá-lo e usou um cinzeiro como arma para golpear a cabeça do ex-amante e ainda roubou duas câmeras fotográficas, um videocassete, um computador e vários CDs. Difícil foi o pai crer. “Meu filho trabalha como modelo. Antes de chegar em casa para jantar naquela sexta-feira, ele estava em Olinda, com a namorada. Essa história de que ele é gay é mentira. Está preso e sendo tratado como um suíno.” As entidades de apoio aos homossexuais garantem que esses crimes não são meros latrocínios. São crimes homofóbicos. De ódio, de desprezo. Têm alto grau de violência, são precedidos de tortura, com muitos golpes, muitas facadas, muitos tiros. “Na nossa cultura, o homossexual não merece ser tratado com dignidade. Pode ser discriminado, zombado, pode apanhar, ser morto”, afirma Marcelo Cerqueira. E não merece nem que os familiares clamem por justiça. Calam-se as vozes. Sem protestos, sem busca de culpados, sem camisetas com foto e frases indignadas. Calam-se os sentimentos. Fica só a saudade reprimida, sempre acompanhada da vergonha que o entorno impõe, a qual se aceita e com a qual se compactua.

A vida de um garoto de programa é muita discreta. Ele não se permite falar com um cliente na rua. Só fala se o cliente falar. Médico, advogado, delegado, zelador de hospital, cortador de cana, o peão mais bruto, todos frequentam esse tipo de ambiente. Porque a homossexualidade não está na profissão, tá na cabeça do cara. Quando a gente encontra um figurão, aí deita e rola. Sai pedindo mesmo, chupa o sangue. Porque eles fazem o mesmo com a gente. Eu já fui bancado por um frango. Suguei até a alma. Não estou falando de roubar. Mas, se abestalhou, a gente sai pedindo. É moto, telefone, é tudo. Segunda-feira, 12 de abril Mudou muito essa ideia de que michê é sinônimo de ignorância. Tem do sabido ao burro. O que tem de moleque na rua, de menor, para manter o vício, comprar uma camisetinha. Os policiais usam o poder da farda para fazer esses meninos transar com eles de graça. Depois ameaçam, dizendo que vão chamar uma guarnição, essas coisas. A polícia que era para dar segurança é o terror dos garotos. Terça-feira, 13 de abril Amanheci com febre, me sentindo muito cansado, sem disposição para nada. Parece que eu carreguei um caminhão de metralha. Nunca me senti tão cansado como estou me sentindo hoje. Nunca estive tão mal como agora. Ainda não me recuperei do baque. Há alguns dias, perdi um amigo, ele tinha aids. Estava sozinho no hospital. Quando a família descobriu que ele era garoto de programa e soropositivo virou as costas. Eu ia visitá-lo de vez em quando. Nessa hora a gente fica com a cabeça a mil. Passei 30 anos lutando pela vida. Não sei se quero passar mais 30 brigando para me manter vivo. Sei que estou assim para baixo porque hoje é um dia mais difícil. Amanhã, vou acordar melhor, tenho certeza.

explicação do que faz um homem ou uma mulher sair, encontrar um rapaz, transar com ele, abrir a carteira, remunerá-lo pelo serviço prestado, voltar para a casa, para a família ou para a solidão, não cabe em uma única resposta. Pode ser apenas curiosidade, realização sexual, busca pela felicidade ou mesmo pelo prazer fugaz, para alívio imediato, que depois pode até se transformar em culpa. Independentemente da área do conhecimento, os especialistas ouvidos pela reportagem concordam em um ponto: sexualidade não se generaliza, nem se define pelo senso comum. Cada pessoa sente de um jeito e procura o seu jeito para se satisfazer. Como o impulso da fome leva à busca do alimento, e o da preservação, à defesa ou ao ataque, o sexual leva, claro, ao sexo. Se o homem tem orientação homossexual, cedo ou tarde (dificilmente nunca), vai ceder. Se for só para saber como seria se envolver com alguém de mesmo sexo, também há boas chances de entrega. Caso seja uma mulher solitária ou insatisfeita com seu companheiro, pode querer provar. “O desejo move as pessoas, pois há a necessidade de extravasá-lo. Sufocá-lo por um tempo é possível, mas é dificílimo contê-lo a vida inteira”, explica a sexóloga Semíramis Prado. Para se soltar, sem correr risco de condenação pelos que estão em volta, procura-se alguém passível de total descarte. Os boys estão aí para isso mesmo. Pode-se tudo com um boy, desde que desempenho e preço sejam acertados e aceitos antes. “Tem para todos. Mas é preciso achar um que se disponha ao que você quer. Não adianta forçá-lo na hora H”, revela um consumidor assíduo de programas. É da profissão deles satisfazer, agradar, trazer momentos felizes, desafogar tensões. “O comportamento erótico humano é variável e flexível. Na verdade, as pessoas se permitem menos pelos preconceitos”, alerta a sexóloga Silvana Melo. Os próprios garotos se incluem no mix de sexualidades particulares e complexas. Basta se aproximar de um, de outro, ouvi-los conversar, catar informações do que fazem ou deixam de fazer, ler os classificados para perceber as variações. Exemplos de anúncios: “Adônis – Sarado, ativo liberal, atende homens, mulheres, casais”, “Apolo – Deus grego, ativo/passivo, para o seu prazer. Homens, mulheres e casais”. Ativo liberal e ativo/ passivo têm diferença sutil. Adônis se mostra mais disposto a penetrar que ser penetrado. Para Apolo, tanto faz. Ambos, no entanto, cobram preço

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mais alto caso assumam o papel passivo. “Aí vai a honra do cara”, considera Adônis. “Nem penso mais em definir minha sexualidade. Dispenso rótulos. Só garanto ser macho como qualquer outro”, defende Apolo. O culto exacerbado à própria virilidade é grande entre boys. Pois “macho” é palavra decisiva no mercado de homens. Sempre confirmada e expressa em atitudes. Agrega valor ao produto. Boa parte dos que juram ser héteros, que não admitem dúvidas, 100% ativos, que até se encrespam se a desconfiança for adiante, abre mão das convicções se o pagamento aumentar. “Eles moldam seus corpos, almas e condutas para se mostrarem os mais másculos possíveis. É para valorizar o passe. E creem que, mesmo adotando o papel passivo vez por outra, a justificativa do dinheiro a mais é suficiente para isentá-los”, diz o psicólogo Epitácio Nunes, autor de Entre boys e frangos – Análise das performances de gênero dos homens que se prostituem no Recife, sua dissertação de mestrado. “A palavra boy já conduz à ideia de masculinidade. Ao frango (o cliente), como é muito chamado o homossexual no Recife, caberia o papel feminino”, acrescenta Nunes. Macho diferente do tradicional, mas que se garante macho. E os clientes valorizam tal pensamento. Existe um tesão no meio gay de transar com um hétero, um “homem de verdade”. “É cultural. Uma repetição do modelo heterossexista de macho e fêmea, de dominante e dominado”, alerta o psicólogo. Mas sem condenar. “Trata-se de fantasia.” Há até mesmo os clientes ativos que querem possuir um verdadeiro macho. E pagam mais caro para tanto, pois, em sexo, tudo é amplo e variável. E individual. “Hoje se procura entender como a pessoa reconhece sua identidade sexual e não mais classificá-la de acordo com os conceitos impostos”, explica Epitácio Nunes. Não dá mesmo para classificar alguém que, passivo ou ativo, se diz macho, mesmo contradizendo a tradição da palavra, que alega gostar de mulheres, mas se deita com homens, que trata a si e a um colega por “puto”, que, às vezes, também tem dúvida se é hétero, homo ou bi. Chame-o só de boy. Palavra com o mesmo sentido de michê, prostituto, garoto de programa. Que também merece significar válvula de escape, ponte. O elo entre quem sai de casa, cheio de desejo, receio e ímpeto, e a possibilidade de descarregar fetiches e opressões em uma cabine de sauna, um canto mais escuro de cinema, um motel barato, um beco mais oculto.

Date:21/07/10

Time:20:40


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s cinco mascarados expostos acima são produtos no mercado de homens. Rostos reais. Rostos ocultos aqui pelo óbvio. A sociedade que atendem é a mesma que os discrimina, os ignora, os considera escória. Revelar a identidade implica sérias consequências. Desprezo, dedos apontados, portas fechadas, abandono familiar, pressões das mais pesadas, iguais às que os clientes sofreriam se igualmente se revelassem. A covardia não é opção, mas a única maneira de se manter incluído, de permanecer sendo o filho, o sobrinho, o irmão, o neto querido, o rapaz amigável da vizinhança, o colega de classe, o zagueiro da pelada de sábado. Sem vida dupla, resta o sério risco da repulsa, do esquecimento, da solidão aguda dos alijados. Vive-se assim, sendo dois em um. Difícil é, mas dá para levar. Homem que se prostitui acostuma-se a disfarces. Pode ser dois, três, muitos mais. O sedutor, o carinhoso, o rude, o sadomasoquista, o bizarro, o ativo, o passivo. Personagens necessários, às vezes representados ao longo de um único dia, para satisfazer fantasias alheias. É por dinheiro. Pode ser pelo sustento, pela faculdade, pelo aluguel vencendo. Pode ser para garantir algum a mais, por um luxo, um supérfluo que se ambiciona, que o trabalho “honesto” não consegue proporcionar: a prestação do carro, um jeans de marca. Pode ser pelo pior: um anabolizante novo, uma carreira de cocaína, uma pedra de crack. “Poder” é o verbo deles. Tudo pode. Pode ser o ex-hétero agora bi, o

ex-hétero agora homo, o homo que experimentou as mulheres e gostou, o que jura continuar hétero, apesar de fazer de tudo com outro cara. Condutas incompatíveis a princípio, que soam falsas à fórmula social concretada pelos preconceitos, mas nada anormais neste comércio. Condutas que podem ser revistas e até trocadas ao longo do caminho. As experiências podem redirecionar os comportamentos. Um ex-garoto de programa que começou na profissão, como a maioria, por dinheiro garante que era hétero, namorava meninas, mas, com a vivência no batente, passou a homo, curtindo rapazes. “Sexo com homens é mais ríspido, pesado, visceral. Me identifiquei mais”, garante ele. “Sexualidade é construção. Cheia de possibilidades. Não se bate o martelo sobre alguém sem conhecê-lo a fundo”, explica a sexóloga Semíramis Prado. Boys podem ser taxados de vilões, mocinhos, meros figurantes. Pouco importa. Tais máscaras há muito não incomodam mais. Conhecem bem a hipocrisia. Convivem com a falta de freio entre quatro paredes e o total pudor a seguir. Sabem das taras, dos jogos de aparência e ofuscação, do zelo alheio pelo sobrenome relevante. Podem também, pela calosidade na alma, ser os arrependidos no final da jornada diária. Culpando-se, confusos, sem esperança, sem força de luta. Mas a ficha cai. No dia seguinte, retomam os personagens e voltam a perguntar ao cliente e a si mesmo, ainda que em silêncio: “E aí, cara, vamos nos enganar?” Deixa eles. Sexo é sempre fantasioso mesmo. Do começo ao fim.


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