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JANINE Sua chegada a Moscou foi saudada por uma manhã sonolenta de inverno com alguns traços de cor entre o branco e o cinzento da lama onipresente, aliada ao aroma de mofo que dá um charme único à capital russa. Com suas duas surradas malas de viagem foi recebida no aeroporto por um motorista contratado pela Boyd, Stephens & Hammer e levada ao Hotel Vysoko-Petrovskiy, na Avenida Kuznetskiy Most, a algumas quadras da GuM — a clássica loja de departamentos moscovita. No caminho a suspensão vencida da caminhonete UAZ Patriot gemia intermitente como um lamento de mãe. Pela janela do carro observava distraída o que pareciam ser pandas coloridos entrando em uma igreja. Sorriu. Lembrou-se das crianças e de Olaf. A Universidade de Dublin — UCD — com o seu Instituto de Pesquisas Neurológicas é um nome de reconhecimento internacional em sua área. Janine Kincaid–Larsen é uma prata da casa. Ela fez parte da equipe que realizou os estudos sobre os efeitos dos receptores de Serotonina 5–HT1A, no processo de regulação de neurogênese do hipocampo e a degeneração da camada protéica mitocondrial. Uma série de descobertas que, se não valeram o Nobel, têm garantido noites de sono um pouco mais tranquilas para milhões em todo o mundo nos próximos anos com as potenciais aplicações decorrentes de suas pesquisas. Ainda que essa observação de certa forma enfureça Janine. — Rainha da Enxaqueca, veja se é possível uma coisa dessas — olhou firme para o marido. — Três anos de trabalho, sem tempo para sequer visitar a minha mãe, duas mil páginas de relatórios, centenas de aplicações possíveis para o nosso trabalho e aquele imbecil tem que contar essa piada idiota na frente de todo mundo pela milionésima vez! — Pardy, ignore aquele idiota. — O pacato Olaf Larsen segurou pensativo a fatia de pão a meio caminho da boca. — Ele não poderia perder a oportunidade de parecer simpático. — Simpático uma ova! Janine colocou os pés sobre a cadeira e abraçou os joelhos. Era tão pequenina, os lábios pequenos e com olhos grandes e expressivos. Olaf a chamava de A Heranca - O Despertar
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Pardy — passarinho, em Norueguês. Culpa daquela música do Beatles, Norwegian Wood. Quando eles se conheceram no campus, a colega de quarto de Olaf tocava essa música no seu som sempre que Janine aparecia no quarto. Para Olaf, Janine era o seu passarinho. Olaf se desligara do mundo real e observava com interesse o movimento dos lábios de Janine, naqueles poucos segundos que saiu de seu corpo e mergulhou no passado distante do campus, tão distante dos problemas que viviam no presente. Rapidamente se reincorporou quando percebeu que ela não só mantinha o discurso como o olhava diretamente nos olhos. — Ele fez isso para me espezinhar. É inadmissível ter esse idiota como diretor do departamento por mais cinco anos. Estou triste, cansada e muito, muito ofendida. O gigante deixou a fatia pela metade na boca, levantou-se e apanhou sua mulher nos braços, como se fosse um pequeno embrulho. Não havia nada naquele gentil e pacato geneticista botânico que pudesse ser interpretado como uma agressão. Janine o imaginava como uma baleia; um enorme e poderoso animal sereno, tranquilo em sua placidez e força. Sólido, sereno e simples em sua vida. Janine sabia, sempre soube que ela era tudo o que Olaf sempre desejou, e isso a fazia feliz e ao mesmo tempo incomodada. Embora o amasse, fosse o homem com que decidira viver toda a sua vida, o homem que a dera Eric e Vivian, Olaf não conseguia dar a ela essa sensação de plenitude que trazia sempre com ele. Por alguns anos Janine imaginou que seria ela o problema. Logo depois vieram as crianças, os anos passaram e os filhos criaram aquele delicioso tumulto que inebria a vida, e logo depois o projeto do mapeamento hormonal foi a miragem da vez. O departamento de Janine nos dois últimos anos fora chefiado por Steven Fraga, um sujeito nascido em Gibraltar, com pais irlandeses e espanhóis e que decidira parecer ser inglês. Acreditava ser inteligente e engraçado, mas não passava de um capacho patético que se movia bem entre a politicagem do Conselho e dos patrocinadores corporativos dos projetos de pesquisa. Fraga detestara Janine à primeira vista, pois se dera conta que não conseguiria impressioná-la com sua network em Dublin, Estrasburgo e nos laboratórios. Janine era uma pesquisadora legítima, sem pretensões de agarrar-se a alguma bolsa de pesquisa de laboratório farmacêutico a fundo perdido para garantir alguns bons anos de salário gordo e agenda de trabalho magro. Com Janine, Fraga não conseguiria ter seu nome no projeto sem trabalhar nele, o que era uma situação inadmissível. Na conclusão do trabalho e sua prévia para a apresentação ao comitê da UCD Fraga criou dificuldades para Janine em todos os pontos possíveis. Sempre na borda dos limites éticos, garantia a todos o máximo de empenho e desfilava um ar de compromisso com a instituição que enganava a muitos e enojava a poucos, como Janine. Nos anos de envolvimento com o projeto, Janine foi ine12
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vitavelmente erguida ao destaque por sua capacidade intelectual e conhecimento do assunto. Alguns dos assistentes, estudantes de graduação e doutorandos que colaboraram no projeto apelidaram Janine de “A Rainha da Enxaqueca”, pelas óbvias considerações sobre algumas das aplicações da linha de pesquisa e pela sobriedade da pesquisadora chefe, tão ciosa de suas obrigações e sempre pronta a enfrentar Fraga e a confrontar suas medidas no comitê. Se por algum tempo Janine não se incomodou com a piada, no final do ano tornou-se um martírio quando Fraga soube da brincadeira e decidiu tornar o apelido o seu tema de humor em todos os encontros que tivessem mais de duas pessoas presentes. Era a sua forma de atormentar Janine além de tudo o que já conseguira: apoderar-se de pelo menos a metade do reconhecimento e notoriedade que a sua rival subordinada e seus pesquisadores haviam trabalhado por tantos anos, uma forma de marcar sua vitória contra a imbatível irlandesinha teimosa. Na cerimônia oficial de apresentação dos estudos promovida pela UCD em um jantar de gala onde compareceram os membros acadêmicos e representantes de instituições patrocinadoras da pesquisa e seus convidados, Fraga apresentou-se para realizar o discurso de agradecimento. E, como toque pessoal, pediu uma salva de palmas à Rainha da Enxaqueca, uma piada desnecessária, uma cena típica de Fraga. Janine ficou congelada em sua cadeira, olhando para um ponto a algumas centenas de quilômetros além do auditório, enquanto ouvia alguns aplausos constrangidos e risadas de uns poucos. Logo em seguida e sem despedir-se de ninguém, Janine se retirou seguida de perto por um Olaf que olhava de canto de olho o banquete que não iriam desfrutar. Olaf depositou sua pequenina na confortável cama do casal e se deitou ao lado. Ficaram em silêncio por algum tempo, olhando ora para um, ora para o teto. Olaf suspirou fundo. — Acho que você deveria aceitar aquele trabalho de consultoria na Rússia. — Voltou seu olhar para o teto, ao lado de Janine. — Você precisa sair da rotina. Um pouco de ar novo, fora da universidade. — Eu não quero e não preciso disso — virou-se Janine, olhando fixamente para o perfil de seu marido. — Quero ficar em casa, com você e as crianças. Quero viver a minha vida com tranquilidade. Não quero envolver-me em outro trabalho agora. Vou voltar a dar aulas. — Se você parar agora, do jeito que está, vai trazer a Rainha da Enxaqueca de verdade para casa. Você está muito exausta e triste. E eu sei que mais um pouquinho de trabalho, com outros ares, pode ser uma descompressão para você. É a única mulher do mundo que se distrai lendo tomografias. São quarenta e cinco dias. Até aqueles russos começarem a te irritar você já voltou e, o principal: esqueceu o Fraga e poderá financiar nosso cruzeiro pelo Mediterrâneo. Vamos, as crianças estão pedindo isso há um bom tempo. — Então é isso; é apenas um caso de remoção e adaptação? — respondeu Janine quase sem piscar, e acelerando progressivamente a voz. — Para esquecer A Heranca - O Despertar
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a dor em uma perna, que tal quebrar outra? Olaf, francamente, você é ótimo com plantas. Eu estou falando de nosso casamento. Eu estou falando de minha carreira. Eu estou falando daquele canalha que se apropriou de anos de trabalho. E eu não vou resolver nossa vida, meu trabalho e minha carreira na Sibéria. Nem no Mediterrâneo. Levantou-se e começou a tirar a blusa, indo em direção ao banheiro. Olaf suspirou profundamente, como um longo esguicho de baleia azul. — Precisamos do dinheiro. — Temos o suficiente. — Não se quisermos fazer o cruzeiro pelo Mediterrâneo e ainda manter o nosso nível de vida. Com o seu salário de professora não será suficiente. — Concordo, mas não vivemos só do meu salário, ou o senhor se esqueceu do seu salário como pesquisador? — Janine falava enquanto entrava no box do banheiro e abria a ducha. — Fraga. — Quê? — Fraga. Não quis te contar. Não poderia atrapalhar você justo agora, antes de apresentar o trabalho para o comitê para a publicação. — Não estou entendendo, Olaf, venha até aqui, a ducha atrapalha. O que é que tem o Fraga? — Tenho certeza que foi ele. — Olaf encostou-se na parede, com as mãos nos bolsos apertados da calça, olhando para o chão. — Tenho certeza. — Do que você está falando? — Janine abriu a porta do box. — O que você tem certeza de que foi ele? — Janine, estou desempregado. Perdi minha vaga como pesquisador convidado. Não consegui renovar a minha licença para as bolsas de fitogenética no Instituto e os dois laboratórios que subvencionavam nossa linha de pesquisa cancelaram a consolidação dos estudos. Alegaram ter recebido informes da própria universidade sobre dificuldades de estabelecerem controles sobre procedimentos de pesquisa, que os resultados poderiam não ser consistentes. Fui desligado do projeto e tive a minha vaga não renovada. Tudo aconteceu há dez dias, mais ou menos. Tentei de tudo, fui ao reitor, falei com os patrocinadores… Nada. Tenho certeza de que o Fraga andou espalhando o seu veneno no Instituto. Olaf ficou olhando para o chão. Janine permanecia debaixo da ducha, meio corpo na porta entreaberta do box olhando para Olaf tentando falar alguma coisa. — Merda! — disse Olaf esmurrando a parede. Janine se assustou e deu um soluço involuntário. Estava congelada debaixo da água. Nunca havia visto o marido assim, tenso e ferido. — Aquele filho da puta. Por que você não me disse? Por quê? — Janine gritou e se afundou dentro do box. 14
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Passaram alguns minutos em silêncio. Janine agachada, a água escorrendo em seu corpo; Olaf encostado na parede, soluçando e suspirando, em sua frustração e raiva. — Me desculpe, Pardy. Eu não levo jeito para essas coisas. Eu nem sei como iria fazer para contar. Mas é isso. Vamos lá. A proposta é boa, é um bom dinheiro. Por 45 dias esses sujeitos nos darão um ano de tranquilidade. Até lá estarei feliz e tranquilo atrás de algum departamento técnico de uma empresa agrícola. E você fica com suas aulas e manda o Fraga à merda todas as manhãs. Pense nisso. Olaf saiu do banheiro e fechou a porta, que emudeceu o choro de Janine sob a ducha. — …Assim, Srta. Kincaid, para finalizar, trata-se de uma excelente oportunidade para todos — encerrou Boyd. Sua cara ossuda e o terno de moda diziam que ele era um homem fora de seu ambiente, tentando convencer o contrário. A mulher pequena, de 1,65m, de curtos e espetados cabelos ruivos, poderia bem ser uma vocalista de banda pop-rock recém-aposentada, com alguns quilos a mais. Seus olhos cinzentos grandes e expressivos, seu nariz arrebitado e boca pequena com lábios rosados não lhe davam a aparência de uma autoridade mundial em distúrbios cerebrais. Quando muito uma secretária estressada de imobiliária de bairro. — Sr. Boyd, me explique por que devo ir até a Sibéria para encontrar-me com seus experts misteriosos se posso perfeitamente estudar o caso por documentos e via internet. Veja, não é que não me interesse pelo caso, mas me parece pouco produtivo. E tendo aqui em Dublin os recursos que me são mais familiares poderei até ser mais eficiente. E o nome é Larsen. Kincaid é meu nome de solteira. — Perdoe-me Sra. hã… Larsen. Mas como disse na apresentação, nossa companhia é muito ciosa de sua reputação e, antes de divulgarmos o problema, precisamos ter a situação perfeitamente controlada. Nossa companhia possui ações em bolsas em três continentes, temos milhares de empregados, e a divulgação mesmo acidental de uma informação sobre um suposto envenenamento em nossas instalações poderia ser catastrófica, provocando uma queda nos valores das ações, e uma enorme quantidade de demissões. E isso a senhora certamente deve entender não é? — Sr. Boyd, os dados que devo receber são absolutamente clínicos, científicos. Se o senhor ou a sua empresa querem avaliar os resultados das análises das biópsias de tecido cerebral de seus trabalhadores na Sibéria, simplesmente me envie um cenário do local, os resultados do espectrômetro de berílio e as amostras. Não me interessa saber qual é a cor do uniforme desses homens. Fique com seus segredos e eu fico com a pesquisa. Prometo ser discreta. Se quiser, assino um compromisso de confidencialidade. A Heranca - O Despertar
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— Lamento, Sra. Larsen. Mas há mais informações que devem ser analisadas e confrontadas no local, e nossos experts precisam de sua presença. Considere, por favor, a nossa oferta e as condições que oferecemos ao seu trabalho. — Boyd estendeu o envelope pardo com o timbre de seu escritório de advogados sobre a mesa da sala de Janine. Seu sorriso de comercial de pasta de dentes continuava parafusado no rosto ossudo. Ela abriu o envelope, trocando repetidas vezes o olhar entre Boyd e o envelope, como se esse fosse saltar sobre ela a qualquer instante. Retirou a folha e contemplou demoradamente a proposta. Cento e vinte mil euros, fora os impostos. Um contrato de consultoria de quarenta cinco dias. Pagamento adiantado, todas as despesas locais pagas e uma verba diária para gastos pessoais, com a apresentação de recibos… em aberto. — Você fala sério? Cento e vinte paus? — Exatamente — respondeu o londrino com seu sorriso petrificado. — Cento e vinte mil euros, fora os impostos e as despesas. E uma verba para comprar os presentinhos para os filhos e o marido. Sra. Larsen, francamente, é um convite irrecusável, não é? Boyd cometera um erro. Era fácil convencer Janine de alguma coisa. Bastava dizer o contrário. Seu senso de desafio a fez uma grande pesquisadora, indo além dos limites do conhecimento, justamente por insistir sistematicamente no “por que não?” e no “por que sim?”. Janine detestava sentir-se presa, passiva de um impulso alheio. Boyd havia apertado a tecla errada. — Pois justamente Sr. Boyd, sou dessas pessoas que recusam convites irrecusáveis. Este não é o primeiro e nem será o último. E devo confessar que essa proposta toda me parece estranha e misteriosa demais e, portanto, não me interessa. Depositou o envelope na mesa e com o dedo o empurrou de volta ao advogado. Boyd continuou com seu sorriso pintado. Olhou rapidamente para o envelope e voltou a olhar para Janine. Por um instante Janine sentiu que Boyd a olhou de maneira diferente, quase com malícia. Sem tirar os olhos dele, sentiu que algo em Boyd mudara de maneira sutil, que a sua reação o excitara. — Muito bem, Janine. — Boyd mudara o tratamento, chamando-a pelo nome. Uma luzinha na cabine de comando na cabeça de Janine disparou. A luzinha “ele quer me comer” há tempos apagada. Mas Janine estava em casa, sozinha, no meio de uma tarde de folga na pesquisa, e Boyd não era Olaf. — Sra. Larsen. E, Sr. Boyd, muito obrigado pela oferta. Com licença, preciso ir. Devo sair para apanhar as crianças na escola, e antes tenho outras coisas a fazer. Boyd levantou-se e saiu sem dizer palavra, nem sequer olhou para ela novamente. Saiu como se não houvesse ninguém na casa, entrou no carro e partiu. Janine ficou na porta, observando o carro distanciar-se pela rua ladeada de olmos do bairro universitário. 16
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O envelope com a proposta e o cartão de Boyd ficaram sobre a mesa. A conversa com Boyd, oito dias depois por telefone, fora seca e cordial. Boyd seguia com o tom formal e metálico original ao telefone. Não demonstrou nenhuma emoção com a decisão de Janine. Apenas disse o que precisava (dados, documentos…) para preparar os processos necessários da entrada de Janine na Rússia para o trabalho de quarenta e cinco dias. E para o pagamento adiantado. Quatro dias depois, Olaf e as crianças levaram Janine ao aeroporto, e Eric preparou uma enorme lista de presentes. Vivian chorou montada nos ombros do pai, sem dizer palavra. Olaf e Janine despediram-se com um abraço longo e forte. A viagem, com escala em Amsterdã, foi rápida na parte aérea e russa na parte terrestre. Janine se assustou com a quantidade de pessoas fazendo aparentemente a mesma coisa nas seguidas seções de controle de desembarque. A burocracia moscovita apresentou-se de gala naquele domingo pela manhã, com uma suntuosa sessão de espera de cinco horas para o desembaraço de sua documentação e material de pesquisa que insistira em levar, a despeito das sucessivas afirmações de Boyd sobre a presença de todos os recursos necessários no local. A manhã já seguia alta no Aeroporto de Moscou quando Janine reconheceu o motorista com uma plaquinha escrita em um mal rabiscado alfabeto latino JANINA LARSEN. — Bom dia, Sra. Larsen, sou Iggy. Vou levar à senhora ao Hotel. A senhora dorme para apanhar o avião hoje à tarde. Hotel Vysoko-Petrovskiy, muito bom. O sujeito magro e calvo tinha um ar cansado. O Hyundai de Iggy seguiu por uma hora até aproximar-se do Centro da cidade. Iggy começou a voluntariamente explicar a Janine o que ela via pela janela. Janine pensava apenas no banho delicioso que iria tomar ao chegar ao hotel. — Agora não estamos muito longe do seu hotel. Veja, essas pessoas estão indo para a paróquia da Igreja da Natividade de Putinki, uma das mais belas igrejas de Moscou. Janine perdeu o olhar naquele pequeno grupo de mulheres que seguia uma senhora toda de preto. Todas as outras iam com seus casacões de nylon de cores berrantes feitos de tecido barato, que lhes davam uma aparência de pandas multicoloridos em fila indiana, entrando na igreja quase tão branca como a neve. Havia algo de triste e grotesco na cena que Janine quis pensar em ser cômico — o que seria mais confortável. Pensou que Vivian chamaria aquela cena de “uma procissão de pandas”. Pensou em Olaf e nas crianças. Com o carro parado no farol acompanhava o lento acesso das mulheres na igreja. O caminhar conformado, arrastado e contínuo daquelas mulheres contavam uma história. Qual seria? Logo em seguida o trânsito empurrou Janine adiante, e a cena ficou gravada em sua memória. A Heranca - O Despertar
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No Hotel ela mergulhou no chuveiro e deixou a morna água de Moscou lavar seus momentos de ira contra a burocracia eslava. Não, não poderia, mas começara assim a experiência russa, pensou Janine. Tenho que começar bem. Vamos começar pelo espírito, pensou e, logo após o banho, decidiu enfrentar a manhã de Moscou e “visitar os visitantes” da Igreja da Natividade de Putinki. Afinal, era um belo lugar. Aprendera com Olaf que conhecer os lugares fora de circuito sempre reservava boas surpresas, fugindo dos cartões postais previsíveis. Quando chegou ao Lobby recebeu uma mensagem em uma carta escrita em tom telegráfico grampeada a um envelope pardo, da Boyd, Stephen & Hammer: CARA SRA. JANINE LARSEN SAIDA MOSCOU HOJE 22H00 — AEROPORTO VER PASSAGENS NO ENVELOPE CHEGADA A KRASNOYARSK 11H30 HORA LOCAL COM PARTIDA IMEDIATA A IERMINSK — CONEXAO CHEGADA A IERMINSK 12H30 HORA LOCAL ESTARAO ESPERANDO COM MOTORISTA PARA SEGUIR ATE O LOCAL DE TRABALHO.
— Mas essa gente é louca! — disse Janine, entre dentes, olhando nervosamente para os lados e para o papel. — Estão pensando que eu sou o quê, o Indiana Jones? Que merda! Não vou conseguir descansar nada! Enfiou o papel no bolso e pediu ao recepcionista guardar o envelope. Apanhou um guia de Moscou no balcão do hotel. Procurava a Igreja Natividade de Putinki. Perguntou ao recepcionista o melhor caminho, e ouviu atentamente a explicação do rapaz. Antes de sair, quase na porta do hotel, lembrou-se de perguntar: — Ei, por favor. Por acaso você sabe onde fica Ierminsk? O garoto olhou para Janine, atônito. — Ierminsk, a senhora quer dizer Avenida Ierminsk? — Não, a cidade Ierminsk. Há uma cidade chamada Ierminsk, não é? Talvez você não conheça — complementou, tentando livrar o jovem de uma situação constrangedora, afinal de contas a Rússia é o maior país do mundo, com milhares de cidades e Ierminsk bem que poderia ser uma cidade pequena ou o rapaz não ser propriamente uma potência em geografia. — Não, senhora, claro que conheço. Estudei sobre Ierminsk na escola. — E continuava com o mesmo olhar surpreso. — E o que tem lá em Ierminsk? — perguntou divertida Janine, quase na porta do hotel. — A senhora já ouviu falar em Auschwitz? Ierminsk foi como uma Auschwitz da Rússia. Um campo de concentração. Um Gulag.
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