Diario do Último Homem

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NOVAMENTE OS SENHORES DO SISTEMA SOLAR



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INICIA-SE UM JULGAMENTO EM TYLON Dentro de sua nave espacial, Klak faz a ronda na zona 9 da Galáxia 15W, quando de repente observa uma grande explosão. Ele era um ser com cerca de um metro de altura, três grandes olhos azuis, um corpo delgado com dezenas de tentáculos e uma cabeça grande em comparação ao corpo. Naquele instante sua intenção era retornar o mais breve possível para a nave-mãe, mas devia fazer uma inspeção na área da explosão, apenas para constar no seu relatório. — Klak para nave-mãe. Detectei explosão de corpo celeste, possivelmente um planeta de tamanho médio. — Onde você está? — Estou na zona 9 da Galáxia 15W. — Investigue a causa da explosão e procure vestígios de possível vida inteligente perto do local. — Certo. Nave E2 aproximando-se. Klak não era um viajante experiente e apesar daquela ser uma área considerada pacífica, ele estava um pouco tenso. Concluiu que o planeta fora explodido por seres conscientes, não podia saber o motivo e muito menos que seres seriam aqueles que causaram sua própria destruição. Não havia vestígios que pudessem ser investigados. Klak já estava tranquilo, pois não temia mais um encontro inesperado. Constatou que não houvera tempo suficiente para que as criaturas daquele planeta fugissem. Klak já ia mudar a rota da nave em direção à nave-mãe, quando observou algo perturbador em sua tela de controle. Em uma espécie de radar, estavam sendo captados sinais vindos da direção do local da explosão. Sua nave detectou um objeto emitindo sinais. 13


Depois de descartar a possibilidade de ser um objeto explosivo ou perigoso, Klak ordenou ao instrumento que o capturasse. Em poucos minutos um pequeno objeto metálico estava a bordo. Observando-o, notou que era uma cápsula. De imediato abriu a estranha caixa e dentro encontrou uma primitiva forma de armazenamento de dados: um disco magnético. Sem perder tempo, introduziu o primitivo objeto no instrumento e logo depois encostou a ponta de um de seus tentáculos no painel, o que lhe permitiu consultar as informações contidas no disco. Alegria, tristeza e ódio. Seus sentimentos eram variados enquanto acessava o conteúdo do disco. Esteve algum tempo refletindo sobre o que acabara de ler e com uma expressão triste comentou com o instrumento: — Como pode? Seres incríveis, um mundo perdido. Só consigo explicar isso através da existência de uma força muito maior que todos nós. Como as sociedades formadas por seres conscientes são semelhantes... apesar das inúmeras diferenças entre nossas espécies. Com certeza, os humanos eram muito parecidos conosco. — Klak para nave-mãe. Estou partindo do local da explosão. Capturei um objeto contendo informações sobre os seres que habitavam aquele planeta. Algo comovente, porém não é a primeira vez que conseguimos dados a respeito de civilizações inteligentes. Após uma tranquila viagem intergaláctica, Klak chegou a Tylon, seu belo planeta. Ele resolveu levar o disco magnético para o centro de pesquisa sobre sociedades inteligentes. Entrou em uma sala ampla, totalmente iluminada. Todo o ambiente era formado por um material metálico. O piso era cinzento, brilhoso. De certa maneira, causava a impressão de ser um local limpo. As paredes eram douradas, a cor gerava uma imponência peculiar, todo o ambiente (inclusive o odor característico que era gerado por gases lançados propositadamente no ar) transmitia muita sobriedade, combinada com um sentimento de seriedade. Seus passos podiam ser ouvidos a alguns metros de distância, enquanto Klak caminhava descontraidamente em direção ao Presidente do grupo, que era conhecido como Pyren. Este era um dos seres mais idosos da comunidade. Tornara-se presidente depois de 14


séculos de trabalho durante os quais demonstrou ser possuidor de competência e ética. Todos sabiam que Pyren era justo. O Presidente estava em cima de um disco suspenso, alguns metros acima da superfície metálica. Perto dele estavam os dois conselheiros da organização: Natur e Tecno. Neste instante Klak foi notado por Pyren. — Como vai, Klak? — Estou bem Pyren. E o senhor? — Apesar de algumas dores causadas por uma doença nos ossos, típica de seres na minha idade, vou indo bem. Bom... mas por que você está aqui? Sei que estava fazendo uma ronda na Galáxia 15W. Ah... agora me lembro! Você informou à nave-mãe que havia capturado um primitivo objeto de armazenagem de dados que conteria a história de uma civilização que foi extinta. Estou certo? — Sim. Algo impressionante. Estava passando na zona 9 e pude ver a explosão de um planeta de tamanho médio. O evento só pode ter acontecido devido a uma ação autodestruidora da civilização inteligente que habitava aquele planeta, que eles chamavam de Terra. — Deviam ser seres pouco amadurecidos. Sabemos que isso pode ocorrer... — Sim, Presidente. Mas eles não eram totalmente degenerados. O disco que capturei contém vários ensinamentos interessantes que poderiam, inclusive, ser incorporados em nossa sociedade. — Não creio, caro Klak. Acha que devemos acreditar em seres que se autodestroem? — Sei que parece estranho, mas acontece que nem todos os seres humanos, como se autodenominavam, eram maus. Na verdade até acredito que a maioria deles fosse formada por seres pacíficos e inteligentes. O disco é, na verdade, uma espécie de diário; a pessoa que o escreveu chamava-se Ártico Rocus. O que acredito ser interessante são as ideias propostas por ele e pela Comunidade Filosófica ao longo do diário. Sendo assim, podemos julgar se essas ideias devem ou não ser aceitas em nossa sociedade. — Então vamos realizar um julgamento! – disse Pyren. — Como assim? – disse Klak. 15


— Bem, por que você não lê para nós o conteúdo desse disco? Quando acabar, poderemos julgar Ártico Rocus. Na verdade o objetivo não será julgar este ser, mas sim suas ideias, decidir se o povo de Tylon deve ou não aceitar a teoria de Rocus. Como uma das principais riquezas de uma sociedade inteligente é o conjunto de ideias aceitas por seus integrantes, pode-se calcular o quanto este processo é importante para Tylon. Ao término de sua leitura, Natur e Tecno debaterão por certo tempo. Natur irá defender o ponto de vista de Ártico Rocus e Tecno fará a contestação. Ao final desse procedimento, eu darei o veredicto. — Sim senhor. Iniciarei neste momento a leitura do disco...

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NOVA TERRA Acho importante vocês conhecerem, em primeiro lugar, quem sou, o grupo ao qual pertenço e os objetivos desta organização. Meu nome é Ártico Rocus, tenho trinta anos e sou um membro qualificado da ODH, ou seja, da Organização para o Desenvolvimento da Humanidade. Nosso objetivo é estudar o passado, para ajudar o presente e o futuro. Procuramos no passado brilhante da sociedade humana, respostas essenciais para a evolução de diversos setores do conhecimento. Sabemos que nosso trabalho pode trazer novamente aos seres humanos um padrão de vida muito superior ao atual. A ODH é composta por cerca de cem mil membros, de diversas raças e idades. Não temos nenhum vínculo com o resto do mundo e creio que grupos de pessoas que habitam outras partes da Terra desconheçam a existência desta organização. Além dos objetivos científicos já mencionados, existe um setor destinado à subsistência e moradia de nossos membros. A ODH situa-se no antigo continente da Oceania, hoje conhecido como Urgma Delerius, em homenagem ao seu fundador. Todos em Urgma já leram, pelo menos uma vez, a memorável carta escrita no ano 2115 por Urgma Delerius. Este documento retrata a gênese da ODH e de suas diretrizes principais. Transcrevo-a aqui, integralmente:

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Austrália. Sidnei, 18 dezembro 2115. No ano 2110, uma grande tragédia aconteceu com a Terra. Esta catástrofe dificilmente ocorrerá novamente. Não estou preocupado em relatar o fato, apenas em expor as principais consequências ecológicas e sociais deste incidente. A população mundial reduziu-se de dez bilhões para apenas três milhões, não existem mais países. As perdas materiais também foram grandes. Milhares de espécies foram extintas, as florestas tropicais sofreram um colapso. A fome hoje é uma realidade para todos os seres humanos, há escassez de água e de alimentos. Estes e outros fatores levaram a humanidade a um nível tecnológico e de bem-estar comparável às civilizações pré-históricas. Este quadro deveu-se também aos danos mentais sofridos pelas pessoas que sobreviveram ao acidente, causados pelo ar nocivo com que conviveram após 2110. A Oceania foi o único lugar no mundo onde não ocorreu degeneração social. Mesmo neste continente o nível de conhecimento é precário. A promissora tecnologia desenvolvida no século XX foi perdida. Analisando o quadro atual, mobilizo o continente para formar uma organização com o propósito de recuperar o conhecimento perdido. O centro científico deve estudar o passado, pois nele encontraremos a chave da sabedoria. Usem seus potenciais racionais e evitem contato com o resto do mundo, pois pode ser perigoso. Urgma Delerius

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No ano 2110, um dos maiores acidentes naturais da história da Terra aconteceu. Sabemos que a colisão entre um corpo celeste e o nosso planeta, que chegue a causar danos ambientais substanciais, não é um evento muito comum. Milhões de anos antes de 2110, seres imensos, conhecidos como dinossauros, habitavam o nosso planeta. Inexplicavelmente estes seres foram extintos e hoje sabemos que a causa da extinção desses gigantescos animais, que um dia dominaram o globo terrestre, foi a colisão de um asteroide com a Terra. Em 2110, outro imenso asteroide, que tinha vários quilômetros de diâmetro, entrou na atmosfera terrestre e colidiu com a superfície, causando danos ambientais. Assim que o asteroide caiu, formou-se uma nuvem bastante densa. Esta matéria em suspensão, gerada pelo impacto, impediu por mais de um ano que o sol alcançasse com toda sua potencialidade a superfície terrestre, fato que gerou um abalo na cadeia alimentar da Terra. A consequência direta foi a escassez de alimentos, que acarretou em pouco tempo a morte de bilhões de pessoas e a extinção de diversas espécies. Mas nossa espécie não foi totalmente extinta, tivemos mais sucesso que os dinossauros, pois nosso poder de recuperação foi maior. Sabemos que a probabilidade de outra colisão ocorrer é muito pequena, mas mesmo assim temos como meta possuir, um dia, uma tecnologia que possa causar a mudança de trajetória de um corpo que esteja se aproximando perigosamente da Terra. Teremos que desenvolver uma tecnologia muito mais avançada, já que a da época da grande colisão não foi suficiente para evitar o terrível desastre. Até hoje a dor sentida por bilhões de pessoas parece ecoar em cada ponto da Terra, uma tragédia sem precedentes. Muitos místicos levantaram a hipótese de que Deus estaria punindo os homens pelo excesso de danos que estavam causando ao planeta. A história da formação de nosso grupo pode ser entendida pela carta escrita por Urgma Delerius no dia dezoito de dezembro de 2115, cinco anos após o acidente. Desde então se convencionou que o ano seguinte à carta de Urgma Delerius seria o ano um. Este ano comemoramos novecentos anos de criação, portanto estamos no ano 900. 19


Mas o que aconteceu com a Terra como um todo? O que ocorreu com a espécie humana? Alguns anos após o trágico evento deu-se a formação da ODH no continente conhecido na época por Oceania. Mas e o que ocorreu nos outros continentes? Nosso continente foi privilegiado, pois os outros territórios sofreram maiores prejuízos devido ao maior efeito causado pela colisão. Tal fato pode ser explicado pelo local onde o corpo celeste atingiu a superfície terrestre. É razoável entender-se que os pontos mais próximos sofreram maior desgaste. Acontece que a Oceania foi o local que menos sofreu com a colisão, por isso podemos nos considerar privilegiados. Mas não foi apenas devido ao local do acidente, os eventos subsequentes à colisão também influenciaram o surgimento do que hoje chamamos de dois mundos. Um mundo maravilhoso, que procurou desde 2115 recuperar-se, e outro que continuou nas trevas e no sofrimento. Os sobreviventes de outros pontos de nosso planeta não conseguiram reunir esforços para permitir o surgimento de uma nova organização social. Logo, não temos conhecimento até hoje de uma nova civilização, além da que existe em Urgma Delerius. Portanto, o resto do mundo vive até hoje em profunda barbárie. Vivem como loucos, em guerras constantes, matando-se uns aos outros. Ainda não desenvolveram meios que eliminassem o problema da escassez de alimentos, e sabemos que pessoas mal alimentadas não possuem discernimento nem condições intelectuais para modificarem o mundo ao seu redor. Desde 2115, ou seja, há novecentos anos, o mundo está dividido em duas partes: uma é a ODH, sociedade próspera e desenvolvida; outra é a que chamamos de ‘resto do mundo’. Não existe um país ou um grupo; apenas se sabe que existem milhares de pessoas vivendo espalhadas ao redor da Terra, e que elas não formaram até hoje uma sociedade. Um dos maiores problemas do novo quadro pós-acidente é o possível encontro entre as pessoas desses diferentes mundos. Seria um encontro de valores, de diferentes formas de existir: de um lado pessoas civilizadas, preparadas. Do outro, animais, selvagens e 20


violentos. Existem relatos em nossa história de infelizes encontros entre os selvagens e nós. Eles nunca conseguiram compreender que apenas gostaríamos de um diálogo, de nos comunicarmos de maneira pacífica. Enfim, de manter alguma forma de contato. Devido a esta falta de entendimento, eles sempre que nos encontram adotam uma postura violenta. Infelizmente, tivemos que adotar algumas medidas de segurança e alguns deles foram mortos ao longo destes séculos, mas não por culpa nossa, mas sim em nítida atitude de defesa. É importante deixar claro a opinião que temos sobre eles, pois não queremos adotar uma postura preconceituosa. Nós os consideramos atrasados, pois não possuem paz, chamamo-los de selvagens, porque perderam seus valores humanos. Tornaram-se agressivos, doentios, são atrasados. Consideramo-nos adiantados, pois conseguimos respeitar o ser humano que existe em nós e, principalmente, nossos semelhantes. E também por conseguirmos viver em comunidade de forma pacífica e respeitosa. Há alguns séculos, Tumae Gobak, um Deleriano brilhante, levantou uma questão muito pertinente sobre o resto do mundo. Ele costumava dizer que nós devíamos nos preocupar com o grau de desenvolvimento dos outros habitantes da Terra, pois um dia poderiam invadir nosso continente. Propôs que se realizassem expedições, usando-se grandes botes por ele projetados, para obter informações sobre o outro lado do planeta. Com o tempo, as ideias de Gorbak e Delerius fundiram-se e hoje os objetivos das expedições, que vêm ocorrendo desde o ano 706, são observar o estado da civilização que existe nos outros continentes e procurar objetos ou qualquer prova do passado brilhante da humanidade, para gerar progresso e desenvolvimento no presente. Estas viagens nem sempre são feitas no velho mundo, podemos encontrar algo interessante na própria Urgma.

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