1. Vida ativa no século XVI: O NOVO CAMINHO DE REGINA PROTMANN PARA UMA VIDA RELIGIOSA COMUNITÁRIA
A história das Irmãs de Santa Catarina, que aqui estudaremos, abrange o período de 1772 a 1914 e não poderá ser compreendida sem uma visão de suas raízes espirituais. A situação específica do Ermland, no último quartel do século XVI, possibilitou às Irmãs de Santa Catarina escolher seu próprio caminho ao interpretarem os acontecimentos daqueles tempos: recolhimento na clausura, paralelamente ao engajamento para com pessoas necessitadas e, mais tarde, para com meninas sequiosas de instrução. A seguir descreveremos as circunstâncias da fundação e a situação especial da região do Ermland. A fundadora será apresentada e analisaremos detalhadamente a Regra, que fixou, por escrito, os princípios básicos da vida comunitária e das atividades das irmãs. Por fim, procuraremos pela especificidade da fundação da comunidade por Regina Protmann, comparando-a com outras congregações contemporâneas. Como um fio condutor, atravessa este capítulo, a questão da significância da história da fundação para o desenvolvimento da congregação, a partir de 1772.
1.1 Ascetismo, Oração e Trabalho: Jovens Mulheres fundam uma Cooperativa Feminina Em tempos turbulentos, Regina Protmann, que tem suas origens na burguesia do Ermland, fundou na sua cidade natal, uma nova comunidade que possibilitaria a muitas mulheres, até mesmo no século XXI, trilhar um caminho de participação na vida eclesiástica. Deixou sua casa paterna em 1571 para começar, com duas amigas, numa casa de propriedade dos Protmanns, uma vida para além do matrimônio e família. A pequena comunidade tinha como objetivo viver na pobreza, castidade e obediência, para cuidar dos pobres e enfermos “por amor ao querido Senhor Cristo”1. Com isso, inseria-se em uma prática, que já vinha do século IV depois de Cristo, a de uma vida religiosa comunitária de mulheres que devotaram sua existência a Deus, aspirando a um modo de vida perfeitamente cristão. Sem posses pessoais e abrindo mão do matrimônio e família, as mulheres prometiam, solenemente, obediência aos superiores da comunidade. As formas da vida comunitária, a maneira como as congregadas cuidavam de sua subsistência e como participavam da vida pública, alterou-se no decorrer dos séculos. No Braunsberg do século XVI, as mulheres se estabeleceram muito próximas à paróquia – na Kirchgasse. Escolheram um lugar, bem no meio da comunidade e não, um convento ante as portas da cidade. Por conseguinte, deram a seu convento o nome da 1
Kurtze regellen, Wermter, Quellen, 36.
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Santa Catarina de Alexandria, à qual a paróquia de Braunsberg era dedicada.2 As irmãs expressaram sua proximidade com a comunidade paroquial, também através da escolha de seu nome. Assim como a igreja paroquial de Braunsberg, as irmãs colocaram suas vidas sob a proteção de Santa Catarina de Alexandria, que, segundo a lenda, era filha do rei de Chipre, morreu como mártir e cuja popularidade atingiu seu ápice, no tempo da Contra Reforma. Já no século XIII, era tida como a mais importante santa, logo depois de Nossa Senhora. Era a padroeira das meninas e jovens mulheres, dos filósofos, juristas e teólogos, assim como, de muitas outras profissões. Fazia parte de um grupo de santos, os “14 Santos Intercessores”, que logravam de grande apelo. Compunham as insígnias de Santa Catarina e o sinete das Irmãs de Santa Catarina: a roda, como símbolo de quem resistiu ao martírio da roda; a espada, como expressão de sua morte por decapitação e a coroa, como alusão a sua origem nobre3. As jovens mulheres receberam o apoio do bispo Stanislaus Hosius (1504-1579), um decidido representante da Contra Reforma, que lutava pela posição da Igreja católica, em um ambiente protestante. Depois de sua morte, foram aconselhadas pelo seu sucessor, Martin Kromer (1512-1589). Kromer tomou providências para que a casa, das jovens mulheres, fosse renovada e unida à casa vizinha, um convento abandonado, que pertencera a beguinas, já que o número daquelas, não parava de aumentar, que desejavam viver e trabalhar, na nova comunidade. Com o auxílio de uma fundação, à qual pertenciam campos e quintais e, também, através de doações, assegurou a existência material da jovem comunidade. Além disso, subordinou o convento à jurisdição eclesiástica. Em 18 de março de 1583; Kromer confirmou a primeira Regra da comunidade e, por aí, seu projeto espiritual.4 Ainda no mesmo ano, as irmãs partiram para Wormditt, a 40 km de distância, para ali fundar um convento parecido, que pôde ser aberto em 1586. Outras fundações sucederam-se, no dia 1º de maio de 1587, na residência episcopal de Heilsberg e, em 1593, Rössel, no sudeste do Principado - Diocese do Ermland.5 Assim sendo, no final do século XVI, existiam quatro conventos das Irmãs de Santa Catarina, espalhados por Ermland. Sobre a origem das irmãs, só dispomos de dados muito por alto. Barbara Gerarda Šliwinska concluiu, de seu conhecimento das fontes, que a maioria delas provinha da burguesia abastada do Ermland, o que explica o fato de muitas saberem ler e escrever. A admissão de novas congregadas era bem organizada, pautada em bases econômicas, contribuindo para o desenvolvimento, a longo prazo, da comunidade. Até à metade do século XVIII, pertenciam à casa fundadora de Braunsberg, em média 14 irmãs, enquanto que, nos outros três conventos, viviam mais ou menos sete irmãs. Šliwinska calcula
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Barbara Gerarda Šliwinska descreveu este processo detalhadamente, no seu trabalho. Aqui só entrarão em consideração, sucintamente, aqueles aspectos que sejam de alguma importância para a compreensão do desenvolvimento histórico da comunidade, no período que vai de 1772 a 1914. Cf. Šliwinska, Geschichte, 49-113. Além disso: Conrad, Kloster, Grunenberg, Congregation, Boenigk, Regina Protmann. Cf. sobre a lenda de Catarina de Alexandria o artigo de Ekkart Sauer, no “Biographisch-Bibliographer Kirchenlexikon”, vol. III (1992), colunas 1213-1217. Cf. Šliwinska, Geschichte, 82 ss. Cf. Šliwinska, Geschichte, 90 s, 94, 97
1.2 O Bispado do Ermland
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o número de congregadas em, aproximadamente, 40 pessoas6. Deste modo, obteve sucesso a constituição de uma pequena, regionalmente limitada cooperativa religiosa de mulheres, que, contudo, se manteve estável por um longo período. A situação específica do Ermland terá influenciado positivamente esta evolução.
1.2 O Bispado do Ermland Quando a congregação foi fundada em 1571, em Braunsberg a cidade pertencia ao Bispado do Ermland, que se estendia, desde a Laguna de Vístula, das cidades de Braunsberg e Frauenburg, em uma faixa cada vez mais larga, até Rössel, a sudeste, e Wartenburg, a sudoeste. O Bispado do Ermland assegurou-se, durante vários séculos, alguma independência contra tentativas de ingerência de fora. Já a Ordem dos Cavaleiros Teutônicos não logrou incluir o bispado em sua área de influência. A partir de 1479, em consequência de desavenças bélicas, o Principado Diocese ficou subordinado ao rei da Polônia. E não deixou de ser, com o auxílio deste último, que o Ermland se opôs, no século XVI, às tendências da Reforma, enquanto que o vizinho Ducado da Prússia, em 1525, abraçou as ideias de Lutero. As divergências religiosas não terminaram com a Reforma. A longo prazo, o Bispado do Ermland conquistaria o respeito do mundo católico, a partir do fato de que resistiu a todos os ataques – uma circunstância que os bispos do Ermland utilizaram para que seu bispado, à força de muita argumentação, fosse isento, ou seja, diretamente subordinado à Santa Sé, e não, ao arcebispo de Riga ou, mais tarde, ao de Gnesen. Quando Regina Protmann tomou a iniciativa de fundar uma nova comunidade, comandava o bispado Stanislaus Hosius desde 1551, pela primeira vez, na pessoa de um confidente do rei da Polônia. A Stanislaus sucederiam, até 1795, uma série de outros bispos poloneses. Hosius teve um papel importante no Concílio de Trento (1545-1563), providenciando, com veemência, a concretização das decisões tomadas durante o Concílio, sob a pressão da Reforma; assim, introduziu a Contra Reforma, no Ermland.7 Conseguiu, para a materialização de suas intenções, ajuda da ainda jovem ordem dos Jesuítas que, desde 1565, mantinha um colégio, em Braunsberg. Também as Irmãs de Santa Catarina deram, neste contexto, sua contribuição para a reforma da Igreja Católica, em meio a um ambiente protestante. 6 7
Cf. Šliwinska, Geschichte, 110 ss. Cf. também sobre a situação específica do bispado: “Wendepuntke. Daten zur Geschichte des Ermlands vom Historischen Verein für Ermland”; Hartmut Boockmann, “Ostpreuβen und Westpreuβen”, Berlim 1992, 116; Hans-Jürgen Karp, “Universalkirche und kirchlicher Partikularismus in Ostmitteleuropa. Die exemten Bistümer”, em: Dietmar Willoweit/Hans Lemberg, “Reiche und Territorien in Ostmitteleuropa. Historische Beziehungen und politische Herrschaftslegitimation”, Munique 2006, 209-226; Stefan Hartmann, “Hosius und Herzog Albrecht”, em: Bernhart Jähnig/Hans Jürgen Karp (ed.), “Stanislaus Hosius. Sein Wirken als Humanist, Theologe und Mann der Kirche in Europa”, Münster 2007, 113-131; Barbara Wolf-Dahm, “750 Jahre altpreuβische Bistümer 1243-1993”, em: Udo Arnold (ed.); “Zur Siedlungs-, Bevölkerungs- und Kirchengeschichte Preuβens”, Lüneburg 1999, 139-171.
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Fig. 1: Mapa do Ermland, de Endersch, 1755.
Obviamente, com sucesso, o bispo Hosius e seus sucessores conseguiram manter sua independência frente à coroa polonesa, acomodando-se, também, com o vizinho Ducado da Prússia, que era protestante. Neste clima, a nova comunidade religiosa de mulheres encontrou seu lugar.
1.3 Regina Protmann, a Fundadora carismática Que jovens mulheres, no Ermland, se juntassem para seguir uma vida comunitária e religiosa, ao mesmo tempo trabalhando pela difusão do credo católico o devemos, sobretudo, à fundadora Regina Protmann. Esta soube, dentro do movimento da Contra Reforma, aproveitar o espaço de manobra que a Igreja católica do Ermland concedeu às
1.3 Regina Protmann, a Fundadora carismática
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mulheres, daqueles tempos. Sua personalidade carismática é reverenciada pelas Irmãs de Santa Catarina, até os dias de hoje. Já nos anos 60 do século passado, elas começaram com o processo de beatificação. Em 13 de junho de 1999, o papa Joao Paulo II, por ocasião de uma visita à Polônia, beatificou, na Praça Pilsudski, em Varsóvia, Regina Protmann, que era originária do Ermland. Irmãs de todas as províncias participaram desta cerimônia. Quem era Regina Protmann? Que traços de sua personalidade fascinavam as irmãs? Regina Protmann nasceu, em 1552, em Braunsberg, como neta do prefeito, numa família abastada.8 Aos 19 anos de idade fundou uma nova comunidade sob a égide da Igreja católica. Uma primeira edição de sua biografia, de 1623, da qual só restou a segunda edição de 1727, é de autoria do jesuíta Engelberg Keilert, que “vivenciou, ele mesmo, com seus próprios olhos, muitas de suas virtudes”. Na sua descrição da vida de Regina Protmann salientou que o jovem convento foi fundado em grande pobreza. Regina Protmann teria buscado refúgio em Deus e começado a “mortificar seu corpo com vigílias, orações, jejuns e flagelação”.9 As congregadas da comunidade viviam em “amor fraterno”, dividiam entre si a casa e vestimentas, participavam todas juntas, dos exercícios religiosos. Paralelamente, cuidavam dos doentes e, mais tarde, sob a influência dos jesuítas, assumiram a educação das meninas. Até para o biógrafo, a combinação de contemplação e trabalho, que as irmãs praticavam, era algo de novo, como o enfatizou várias vezes. Mencionou, admirado, que o convento também cuidava dos paramentos litúrgicos dos padres e da decoração das igrejas. Neste ponto, ele compara as Irmãs de Santa Catarina com as mulheres que cercavam Jesus, assim como são descritas no Evangelho de São Lucas. Avaliou positivamente, as “excelentes virtudes e dons” que caracterizavam Regina Protmann: sua piedade, suas orações, a flagelação à qual se submetia, seus jejuns e sua força; relata a respeito de seu amor ao próximo e seus atos louváveis.10 Quando a fundadora faleceu, em 18 de janeiro de 1613, a comunidade viu-se confrontada com novas atribuições que conseguiu cumprir, graças à personalidade de Regina Protmann.11 Até hoje, as irmãs da congregação identificam-se com seu carisma. Muito importante para a coesão da congregação, através de vários países, é a primeira Regra da comunidade, que foi elaborada pela primeira geração de fundadoras. Esta Regra ajudou a transmitir o modo de vida da congregação, no decorrer dos séculos, oferecendo orientação, mesmo em tempos de mudança dos costumes. Até à metade do século XIX, a congregação baseou-se nas Regras de 1583 e 1602, constituídas ainda, nos tempos de Regina Protmann. 8
Além do trabalho de Šliwinska, muitas outras publicações tratam de sua biografia. Cf. entre outras, Boenigk, “Regina Protmann”, Feldmann, “Neuer Geist”, ou a obra de um autor anônimo ou autora, publicada em 1916 no Brasil, em Petrópolis, onde, desde 1897, as Irmãs de Santa Catarina atuavam, sob o título “Die gottselige Regina Protmann, Stifterin der Congregation der heiligen Jungfrau und Martyrin Catharina”, Petrópolis 1916. 9 “Das Lebem der gottseligen Jungfrawen Regina Brotmanns, Stiffterinnen der Löblichen Gesellschaft Sanct Catharina, Jungfrawen und Martyrinen, durch einen glaubwürdigen Priester beschrieben”, em: Wermter, Quellen, 88-101, aqui pag. 90 s. 10 Cf. Šliwinska, Geschichte, 93-100 11 Cf. Šliwinska, Geschichte, 113-122
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Fig. 2: Regina Protmann, fundadora da Congregação das Irmãs de Santa Catarina, em seu leito de morte (1613), de um ou uma pintor(a) desconhecido(a). O original encontra-se, ainda hoje, no convento de Wormditt/Orneta.
1.4 A Regra como Princípio Norteador Para a vida comunitária, as orações e o trabalho, as mulheres, se quisessem se abrigar sob o escudo da Igreja, necessitavam de um enquadramento institucional que fosse fixado em regras, estatutos ou constituições. “As primeiras regras breves, pelas quais as irmãs, no convento de Santa Catharina, de Braunsberg, deveriam se comportar e viver,”12 foram instituídas com a iniciativa de Regina Protmann, como seu primeiro biógrafo o salienta: “Ela, a Regina, pôs boa ordem e um regulamento para a casa, uma hora certa para as orações, uma hora certa para o exame de consciência, uma hora certa para o silêncio e para falar, uma hora certa e fixa para os trabalhos manuais.”13 “Breves Regras” de 1583 Regina Protmann criou, com a Regra, uma base para a vida comunitária das irmãs que, desde esta forma primitiva, remete ao caráter específico da comunidade: a contemplação religiosa e a ação apostólica nas paróquias. Ao mesmo tempo, as irmãs recusaram 12 O original desta Regra encontra-se hoje, nos arquivos do Generalato da Congregação em Grottaferrata. A seguir, será citada segundo Wermter, “Quellen, Kurtz(e) Regellen”, 35-46. 13 Wermter, Quellen, Leben, 91
1.4 A Regra como Princípio Norteador
Fig. 3: Imagem da beatificação de Regina Protmann, aos 13 de junho de 1999.
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a adoção da regra de uma das grandes ordens, por exemplo, a de Santo Agostinho ou de São Francisco. Šliwinska enfatiza que a comunidade cunhou “suas próprias normas jurídicas”, para assim salvaguardar sua independência. Era uma novidade, na medida em que se considere que até as várias novas congregações, fundadas no século XIX, subordinavam-se às regras das grandes ordens, mesmo interpretando seus objetivos e atribuições, a seu próprio modo.14 Após mais de uma década de vida comunitária, Regina Protmann deu à jovem comunidade, com base na sua “vivência carismática do Espírito Santo e na sua longa prática (aprox. 12 anos), de um apostolado ativo” – como Barbara Gerarda Šliwinska o formulou – a 1ª Regra que foi confirmada pelo bispo Martin Kromer, em 18 de março de 1583 e cujo conteúdo constitui as “leis fundamentais da congregação”.15 Mas quais são esses princípios, com os quais Regina Protmann e suas companheiras queriam viver e trabalhar? Em 29 artigos, são fixados os objetivos e as condições da vida comunitária das mulheres. Poderiam ser admitidas “apenas as virgens” que “tivessem vontade de mortificar e manter, sob controle, suas almas e suas vidas, com jejuns, orações, vigílias e outros exercícios cristãos, por amor ao querido Senhor Jesus Cristo” (art. 1 e 2) n.16 Mas que ali, não estava surgindo um convento isolado do mundo exterior, fica claro, já no artigo 3, uma novidade, segundo a qual, ao lado do pároco, também dois leigos deveriam ser os prepostos do convento. Nas outras comunidades de mulheres, apenas as irmãs eram membros da mesma. Na 2ª Regra, por conseguinte, ficou de fora esta determinação. Mas a conexão das irmãs com a comunidade a sua volta, fica demonstrada, pelo fato de elas irem à igreja na sua paróquia (art. 14). As vestimentas das irmãs seriam simples; as irmãs “não deveriam ornamentar seu corpo mortal, ou vesti-lo com luxo, mas sim, deveriam contentar-se com as seguintes roupagens, mais apropriadas...”. As mulheres vestiam-se com saias compridas e pretas, xales que serviam de aventais, “também simples golas nas camisas, cintos pretos, de couro, sem fivelas”17 e, no inverno, um casacão preto e um gorro. Não se menciona um véu. (art. 5). Neste texto, foi fixada a ordem do dia e da semana (art. 6 - 13). O que chama a atenção é o tempo consagrado às práticas religiosas. Em comparação, à atividade (apostólica) não ocupa muito tempo. Somente os cuidados com os enfermos são mencionados no artigo 19, quando se fala que as irmãs deverão “comer e beber na casa das pessoas, a quem estão servindo, por motivo de enfermidade, mas sem pernoitar ali, não havendo necessidade”. No artigo 24, refere-se a um “quartinho especial”, onde as irmãs doentes seriam cuidadas. “Obras de caridade semelhantes poderão ser destinadas a outros enfermos fora do convento, e se tal lhes for solicitado.” Em princípio, as irmãs só poderiam deixar o convento para dedicar-se aos enfermos; porém, as dependências do convento deveriam ficar fechadas (art. 21) e as irmãs não 14 15 16 17
Cf. Meiwes, “Arbeiterinnen”, 54-63 Šliwinska, Geschichte, 104. Wermter, Quellen, Kurtz(e) Regellen, 36. Wermter, Quellen, Kurtz(e) Regellen, 37.
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Fig. 4: Regra da Congregação das Irmãs de Santa Catarina, de 18 de março de 1583. O Original encontra-se no Generalato de Grottaferrata/Roma.
possuíam nada de pessoal. A Madre (Superiora) ainda não tinha sido eleita, pelo contrário, era o bispo que a escolhia, a partir de duas ou três sugestões das irmãs, para este cargo (art. 23). Nos artigos 25 a 29 tratam de orações para as irmãs falecidas, da leitura da Regra em voz alta, da punição em caso de infração desta, do silêncio e da confirmação da Regra. Regina Protmann, nesta primeira Regra, priorizou a vida religiosa da comunidade, salientando, contudo, o tratamento dos doentes e a ligação com a paróquia. Com esta aproximação cautelosa, a um novo estilo de vida, angariou a simpatia da Igreja e do bispo, assim como dos Jesuítas, que geralmente se mostravam um tanto reservados quanto a comunidades de mulheres e à assistência espiritual a elas. Que as Irmãs de Santa Catarina tivessem suas próprias ideias sobre a realização de uma vida comunitária cristã, fica demonstrado pelo fato de que não se uniram a nenhuma ordem masculina, mas sim, prezavam sua independência organizacional. Por exemplo, como as irmãs das Damas Inglesas de Maria Ward e as Ursulinas; essas de Braunsberg cooperavam com os Jesuítas, que fizeram desta cidade o centro da luta contra a Reforma e um baluarte contra o Protestantismo, no norte da Europa e ergueram ali, uma Escola Superior que gozava de grande reputação entre os teólogos e conferiram ao Ermland uma importância que marcou a autoestima da população, até o século XX. Regina Protmann, entretanto, não almejava nenhuma unidade organizacional com os Jesuítas; mas sim, insistiu na independência da congregação.
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Vida comunitária sem obrigações quanto a uma severa clausura Tanto para a autoimagem da Congregação das Irmãs de Santa Catarina hoje, quanto também no que diz respeito à importância da comunidade de mulheres, no Ermland, para a história das comunidades religiosas femininas, a questão da clausura é um conceito primordial. Para as irmãs, desde o início, estava claro que não se deixariam empurrar para dentro de uma clausura conventual. O objetivo de Regina Protmann era a procura por “ascetismo e contemplação, combinados com o exercício da caridade”.18 Após quase duas décadas de existência parecia claramente que ambos tinham sido muito bem contrabalanceados. Regras aprovadas e comprovadas das Virgens das Casas Conventuais de Santa Catarina. Ano de 1602 Quando, em 12 de março de 1602, o então bispo do Ermland, Peter Tilicki, ratificou a Regra de 1583, já revista, e o Núncio Apostólico Claudio Rangoni, em Vilna, lhe conferiu a aprovação papal, ninguém poderia supor que, até a metade do século XIX, esta Regra seria válida para as irmãs. Comparando-a com a primeira versão, em 1602, houve algumas alterações. Já no prólogo, Tilicki caracterizava a comunidade como “uma congregação ou reunião da Santa Virgem e Mártir Catarina, em Braunsberg, Wormditt, Heilsberg e Rössel”.19 Pela primeira vez, foi fixada no artigo 3, a eleição da “Madre”20 de cada um dos quatro conventos, no dia da festa de Santa Catarina, em 25 de novembro, na presença de um representante do bispo. Eram eleitas Madres para os próximos três anos aquelas que, em uma votação secreta, obtivessem o maior número de votos (art. 3). A importância da Madre de Braunsberg foi regulamentada só no final da Regra, no artigo 27: as Madres de Wormditt, Heilsgberg e Rössel deviam-lhe obediência. Esta tinha o direito de transferir todas as irmãs de todos os conventos. Deveria “reinar” sobre todas elas, contudo, com restrições. O direito de cada convento de eleger sua Madre não foi tangido, assim como a independência econômica deles. A Madre de Braunsberg, que em 1602 ainda não era denominada Superiora Geral, não poderia “transferir nada dos bens temporais de uma casa para a outra”.21 Ainda assim, uma mulher obteve, na Igreja, uma posição central e a outorga de poderes, sobre os quais, em outros lugares, se inflamaram ferozes discussões, isso não apenas nos séculos XVI e XVII. É possível apenas supor os motivos, por que não houve semelhantes discussões no Ermland. Possivelmente, foi a consciente auto restrição. Di18 Šliwinska, Geschichte, 72. 19 Approbirte und bewerte Regelen der Jungfrawen der Conventhäuser S[anct] Catharine [zue Braunsberg, Wormditt, Heilsberg und Röβel] Anno 1602: O original encontra-se no arquivo do generalato em Grottaferrata. A seguir, os citados serão de acordo com a impressão de Wermter, Quellen, 2, Regel, 55. 20 O termo “Materin” encontra-se nos originais, embora, na verdade, trata-se provavelmente de “Mater” = Mãe. 21 Wermter, Quellen, 2, Regel, 77
1.4 A Regra como Princípio Norteador
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Fig. 5: Decreto da confirmação da segunda Regra, de 12 de março de 1602 Generalato de Grottaferrata/Roma.
ferentemente de Mary Ward (1585-1645) – a fundadora das Damas Inglesas – Regina Protmann não ambicionava a isenção, ou seja, a subordinação direta à Santa Sé. As Irmãs de Santa Catarina, originalmente, estenderam suas atividades exclusivamente no Ermland, não ultrapassando, assim, os limites da diocese. Enquanto que Mary Ward pretendia ir além das fronteiras do bispado e, com isso, se eximir do controle do bispo; as Irmãs de Santa Catarina se entendiam, como uma congregação, com raízes no bispado; uma congregação que não contestava a autoridade do bispo local, mas sim, que soube utilizá-la como um enquadramento protetor. Que atividades as Irmãs de Santa Catarina se impuseram? Assim como em 1583, também em 1602 os cuidados com os enfermos era uma função, como se pode ler no artigo 21: “Onde houver atribulação, já que elas deverão servir aos enfermos em suas casas, a Superiora terá que prestar atenção para que tudo aconteça de forma virtuosa e com caridade”.22 Enfermos do sexo masculino só poderiam ser cuidados em suas próprias casas e “em extrema necessidade, isto é, quando estão tão doentes que se possa temer pela sua vida”. Cuidados significam, neste contexto, que as irmãs prestem assistência aos doentes, dando-lhes de comer e de beber, provendo-os, também, com os “santíssimos sacramentos” – para isso deveriam dedicar seu “maior empenho”. Além disso, deveriam auxiliá-los para que tenham uma “morte cristã”.23 22 Wermter, Quellen, 2, Regel, 73 23 Wermter, Quellen, 2, Regel, 73
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De “total novidade” Barbara Gerarda Šliwinska caracteriza o fato de ter sido fixado, na 2ª Regra de 1602, artigo 22, um “dever relativo à formação e educação de meninas e adolescentes do sexo feminino”.24 As Irmãs de Santa Catarina deveriam empenhar-se, “através de exemplos e palavras, por mostrar o caminho para a bem-aventurança. Por isso, deverão admitir, com prazer, menininhas, instruindo-as na oração, em ler e escrever e também em outras artes que lhes sejam convenientes”. A irmã que receber esta função deverá aceitá-la com “grande humildade” e estar ciente de que, com isso, “fará um especial e estimável favor a seu esposo Cristo”.25 Qual era o papel da educação, neste contexto? O objetivo era conduzir as pessoas a Deus, o que só seria bem sucedido se os fiéis estivessem em condições de acompanhar a liturgia, isto é, se dispusessem de um mínimo de educação. Educação servia como meio para a instrução religiosa. Educação, neste contexto, pouco tinha a ver com o ideal burguês moderno, do século XIX, da educação do indivíduo, para seu próprio usufruto. As atividades das irmãs, nem por isso, não devem deixar de ser apreciadas, já que não havia alternativa, naqueles tempos, para meninas interessadas em educação. De forma análoga ao ensino para meninos proporcionado pelos Jesuítas, em Braunsberg, as meninas poderiam usufruir de educação com as Irmãs de Santa Catarina. A formulação do artigo 22 corresponde aos preceitos da Regra das Ursulinas de Bordeaux, tais como foram fixados.26 Seus esforços em prol da educação são vistos como uma contribuição para que as palavras de Jesus Cristo: “Deixai vir a mim as criancinhas, porque é delas o Reino dos Céus”,27 se confirmassem como o diz o artigo 22. Esta pretensão foi formulada, com autoconfiança, demonstrando, que importância as mulheres conferiam a seu trabalho. Da primeira biografia de Regina Protmann pode-se depreender outra função da qual as irmãs deveriam apropriar-se: a fundadora ordenou que as irmãs tivessem que contribuir para a decoração das igrejas, com seus trabalhos manuais. Deveriam cuidar do enxoval das igrejas, “consertando e deixando limpos os paramentos para a missa, tais como alvas, toalhas dos altares, casulas e tudo o que mais fosse necessário para o serviço divino”.28 Com essas atividades, as irmãs poderiam ser comparadas – segundo o biógrafo – “tanto com Marta, com sua vida laboriosa, quanto com Madalena, com sua vida contemplativa”.29 Barbara Gerarda Šliwinska também menciona, neste contexto, a confecção de velas e a decoração das igrejas. Esta função não foi sedimentada na Regra de 1602. É claro que se trata aqui de uma interpretação independente de suas atividades nas paróquias, que foi aceita com agradecimento, sem que, por isso, as mulheres tivessem obtido o devido reconhecimen24 Šliwinska, Geschichte, 108 25 Wermter, Quellen, 2, Regel, 73 26 Cf. Regina M. Heun, “Die Regel der Kongregation der Schwestern von der heiligen Katherina zu Braunsberg aus dem Jahre 1602: Ursprung und Inhalt”, Monografia da Escola Superior de Pedagogia de Westfalen-Lippe, Departamento de Münster. 27 Wermter, Quellen, 2, Regra, 73 28 “Das Leben der Gottseelingen Jungfrawen Regin Brotmanns, Stiffterinnen der Löblichen Gesellschaft Sanct Catharinen, Jungfrawen und Martyrinen, durch einen glaubwürdigen Priester beschrieben, in: Wermter, Quellen, 92. 29 Wermter, Quellen, Leben, 92
1.4 A Regra como Princípio Norteador
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to, embora, com essa atividade, tivessem muito contribuído para o sucesso da Contra Reforma. O relacionamento com a paróquia não foi mencionado explicitamente na Regra, porém, resulta do fato de que as irmãs não viviam sob um regime estrito de clausura, mas sim, podiam circular fora dela e assistiam à missa na paróquia, reverenciando expressamente os patronos da paróquia em questão.30 Para finalizar: as Irmãs de Santa Catarina se aproximavam das pessoas: dos doentes, pobres, estudantes e daqueles que oravam. Como era a rotina diária das irmãs? No artigo 23 foi fixado que, no verão, se levantariam às 4h00 e, no inverno, às 4h30; já o ato de se vestir deveria ser acompanhado de orações, e orações e trabalho, se seguiriam ao longo do dia, até às 21h00, quando se recolhiam para a noite.31 De manhã, assistiam a missa na paróquia e, em seguida, efetuavam as tarefas para as quais tinham sido designadas, antes que, pelas 10h00, se reunissem para uma refeição, que era acompanhada por alguma leitura. Após a refeição podiam “conversar uma meia hora sobre assuntos piedosos”; em seguida, dedicavam-se a suas tarefas. Pelas 18h30 reuniam-se para rezar o terço, seguiam para o jantar e, até 19h00 podiam conversar, enquanto que, durante as outras horas do dia, era proibido falar. Até à hora de dormir orava-se em silêncio.32 Na sua pesquisa sobre a Regra da comunidade, a irmã de Santa Catarina, M. Regina Heun, salienta que, de um lado, as muitas práticas religiosas não se coadunariam com as crescentes “atividades do apostolado” e que, de outro, sobraria muito pouco espaço para liberdade individual das irmãs. Essas seriam as razões para a revisão da Regra, no século XIX.33 Alterações da Regra após 1602 Após a morte de Regina Protmann, o bispo do Ermland, Simon Rudnicki dispôs, em 20 de fevereiro de 1613, “que a Madre de Braunsberg, do Ermland também seja a Geral” e que duas pessoas de cada convento “sejam enviadas para Braunsberg, com procuração”, para que participem da eleição. Em 23 de julho de 1613, as irmãs delegadas reuniram-se e elegeram Scholastika Fischer para sucessora da fundadora Regina Protmann, neste cargo.34 É notável como o cargo de Superiora Geral foi tacitamente introduzido, enquanto que a este respeito foram travadas, por longo tempo, discussões sem trégua nas Damas Inglesas, entre a Igreja e a congregação. Decisivo para a aceitação deste cargo para mulheres, pela hierarquia da Igreja, deverá ter sido o fato de as irmãs do Ermland se terem colocado sob o “poder jurisdicional” do bispo local. Mary Ward, pelo contrário, intencionava pôr a congregação, por ela fundada, sob a jurisdição do papa, ficando, assim, no mesmo patamar que os Jesuítas. Mas a Igreja não concordou. 30 31 32 33 34
Wermter, Quellen, 2, Regel, 65 Wermter, Quellen, 2, Regel 73 e seguintes. Wermter, Quellen, Regel, 73 e seguintes. Cf. Heun, Regel, 17 s. Carta de Simon Rudnicki, bispo do Ermland, a todos os conventos, de 20 de fevereiro de 1613, impressa em: Wermter, Quellen, 85; cf. também Šliwinska, Geschichte, 102
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1. Vida ativa no século XVI
Durante mais de 200 anos a breve Regra, com sua complementação de 1613, configurou a norma para as atividades das irmãs, antes que o bispo Joseph von Hohenzollern começasse, em 1827, a modificá-la em parte. Outras alterações foram aprovadas em 1845 e 1853 pelo bispo Joseph Geritz, sem, contudo, tocar nos pilares da Regra. Só então o bispo Philipp Krementz sujeitou a Regra a uma revisão geral, que obteve a aprovação episcopal em 19 de novembro de 1872.35 Congregação como modo feminino de viver A congregação é uma forma de vida coletiva para mulheres, especificamente católica, que se desenvolveu em um processo complicado, encontrando sua finalização provisória em 1749, com a aprovação dos estatutos das Damas Inglesas. Somente no decorrer do século XIX começou uma rasante difusão desta forma de organização, que, ao contrário das ordens clássicas, não priorizava a contemplação, mas sim, obras de caridade cristã. A Igreja católica foi surpreendida por esta evolução, mas somente no século XX afirmou-se um processo uniforme para a prática do seu reconhecimento.36 De acordo com a legislação canônica, mais recente, abriu-se mão de uma diferenciação entre ordem e congregação em favor da denominação única de “Ordem”. Mas, a partir de uma perspectiva histórica, esta diferenciação proporcionava uma importância essencial para o caráter de cooperativa religiosa, pois que a congregação permitia às mulheres uma participação ativa no feitio da vida dentro da Igreja e também na imagem que a Igreja representava para fora. As Irmãs de Santa Catarina podem reivindicar, para si, uma contribuição importante para a aceitação do modo de vida que a congregação oferecia às mulheres. Essas podiam, assim, trabalhar em tempo integral para a Igreja, sem precisar se esconder atrás dos muros do claustro, embora lhes fosse e ainda seja vetado o acesso ao magistério eclesiástico. Este modelo de vida se tornaria um dos pilares de sustentação da Igreja católica, no século XIX e no começo do século XX; mas teve seu início nos tempos da renovação católica, após a Reforma. O engajamento na área da educação, com ênfase na propagação da fé, tornou-se uma alternativa aceitável para as mulheres, em contrapartida à proibida assistência espiritual.37 Também aqui, se descortinam paralelas com a evolução da participação das mulheres na Igreja, no século XIX: frente a desafios da época, como no século XVI, da Reforma e no século XIX, das alterações causadas pela secularização, de um lado, e a revitalização do sentimento religioso, do outro, abriam-se, para as mulheres, novas perspectivas de participação, na configuração da vida da Igreja. Um fato que a pesquisa histórica ainda hesita em analisar e que mal encontrou acesso à memória coletiva do catolicismo. 35 Cf. Šliwinska, Geschichte, 109. Essas alterações serão discutidas nos capítulos 3 e 4. 36 Cf. Meiwes, “Arbeiterinnen”, 54-63. 37 Cf. Anne Conrad, “Das Konzil von Trient und die (unterbliebene) Modernisierung kirchlicher Frauenrollen”, in: Paul Prodi/Wolfgang Reinhard (ed.), “Das Konzil von Trient und die Moderne”, Berlim 2001, 337, e “Bildungschancen von Frauen und Mädchen im interkonfessionellen Vergleich”, in: Archiv für Reformationsgeschichte 95 (2004).
1.5 Clausura e Contemplação
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1.5 Clausura e Contemplação: não é um Modelo para a Vida de Mulheres católicas após o Concílio de Trento A fundação foi influenciada, tanto pelo espírito da época quanto pelas circunstâncias políticas. Porém, a aspiração das irmãs transcendia o conceito dominante de igreja. As jovens escolheram o caminho da participação ativa, na história da Igreja, embora no Concílio de Trento tivesse sido decidido que as mulheres poderiam devotar sua vida a Deus, somente atrás dos muros de um convento, sujeitando-se às severas leis da clausura. Para tanto, deveriam fazer votos solenes, que lhes impossibilitassem a presença em público. Apenas a contemplação seria determinante para esta vida religiosa feminina. Que as Irmãs de Santa Catarina não se sujeitassem a esses preceitos de Trento, desde o início e encontrassem apoio em um bispo local, que fora muito ativo no Concílio de Trento, contribuiu para a formação de sua autoimagem, no decorrer dos séculos até o presente. Por conseguinte, é bom observar este fato de perto. A fundação da congregação deu-se dentro do contexto da Reforma e da Contra Reforma – uma época extremamente apaixonante – tanto da perspectiva da história da religião quanto da história dos sexos – durante a qual a relação entre Igreja e sociedade tomou novo rumo.38 O Concílio de Trento reagiu, com notável audácia, aos imensos desafios causados pelo protestantismo, com respeito às mulheres que viviam em comunidades religiosas. Lutero rejeitava qualquer tipo de vida monástica para mulheres e enxergava o destino delas, somente dentro do casamento e na maternidade. A Igreja católica não discernia uma resposta aos ataques do protestantismo, na abertura dos claustros para a vida secular, mas, pelo contrário, em um afastamento, ainda maior das mulheres, da vida pública. Os membros do concílio exigiam das mulheres que quisessem devotar sua vida a Deus que se retirassem completamente do mundo. Regulamentos restritivos, para conventos femininos, com ênfase na recrudescência das leis da clausura deveriam pôr termo à crítica dos conventos, tramadas pela Reforma. Esta medida fragilizou a posição das mulheres, dentro da Igreja católica, limitando seu poder de ação. “Os problemas poderão ser unidos sob um único verbete: clausura”,39 constatou a historiadora Gisela Muschiol. As declarações canônicas foram transpostas, na prática eclesiástica, em muitos lugares, acompanhadas de medidas excessivamente severas, como por exemplo, em alguns conventos das Ursulinas. Mas Anne Conrad alerta para os limites desta repercussão do Concílio de Trento, no que tange a posição das mulheres, dentro da Igreja. É verdade que alguns membros do concílio propuseram, para as mulheres, severas leis da clausura, que baniram as freiras da vida púbica, porém, 38 Cf. além dos trabalhos de Anne Conrad, também Gisela Muschiol, “Die Reformation, das Konzil von Trient und die Folgen. Weibliche Orden zwischen Auflösung und Einschlieβung”, in: Anne Conrad (ed.), “‘In Christo ist weder man noch weyb’. Frauen in der Zeit de Reformation und der katholischen Reform, Münster 1999, e a contribuição de Robert Bireley, “Neue Orden, katholische Reform und Konfessionalisierung”, in: Wolfgang Reinhard u. Heinz Schilling (ed.), “Die katholische Konfessionalisierung”, Gütersloh 1995, 143-157. 39 Muschiol, Reformation, 191
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1. Vida ativa no século XVI
essas regras não abrangiam todas as mulheres que viviam em uma comunidade, sob auspícios religiosos.40 Além disso, as decisões do concílio, muitas vezes, não foram obedecidas da mesma forma e passaram-se séculos, até que fossem aplicadas.41 Contudo, muitas comunidades de mulheres submeteram-se às decisões de Trento. Outras religiosas procuraram por uma alternativa para a vida recolhida em um claustro, como o comprova a grande quantidade de comunidades fundadas após o concílio, cujo objetivo não era a contemplação, “mas sim, a vida ativa secular”.42 Essas comunidades de mulheres e os clérigos que com elas cooperavam tinham suas próprias ideias sobre a vida comunitária das mulheres. Dos muitos requerimentos e demandas relativos às decisões do concílio, Gisela Muschiol conclui que os membros do concílio não haveriam formulado suas declarações com muita precisão e que disso resultariam numerosas possibilidades de interpretação. Também as bulas papais complementares, de 1566 e 1572, não contribuíram muito para qualquer esclarecimento. Chama atenção, em todo caso, o fato de as mulheres procurarem por caminhos para poder contornar as restrições a seu poder de ação, esforços que, no século dos conflitos religiosos, se tornaram cada vez mais necessários. Parece questionável o êxito do concílio, nesta questão, já que não se pode, hoje, a partir do estado atual das pesquisas, fazer asseverações confiáveis sobre os efeitos das decisões que tangiam os conventos femininos.43 A história das Irmãs de Santa Catarina é um exemplo de como foram encontradas, localmente, soluções diferentes daquelas que o concílio tinha em mente. Outros exemplos de comunidades que se espalharam por toda a Europa: a mais conhecida partiu de Mary Ward, que em 1609/10 fundou as Damas Inglesas. Joana Francisca de Chantal (1572-1641) instituiu, juntamente com Francisco de Sales, a Congregação da Visitação de Nossa Senhora, que iniciou suas obras, sem as leis da clausura. Em Paris, Luísa de Marillac (1571-1660), juntamente com Vicente de Paula, colocou a pedra fundamental para a Congregação das Vicentinas, uma das mais influentes comunidades de mulheres da Europa. Concentraram-se na assistência aos pobres, doentes e necessitados. Olwen Hufton menciona uma série de outras comunidades.44 A fundação de muitas, deste tipo de comunidade são mais um indício de que os preceitos do Tridentinum deixavam aberto um espaço de manobra. Barbara Gerarda Šliwinska cita dois outros exemplos da Europa oriental. Em Kulm Magdalena Morteska (1554-1631) e em Cracóvia, Zofia Czeska (1584-1650) fundaram comunidades semelhantes.45 As mulheres repudiavam a clausura, sobretudo porque lhes parecia mais sensata a vida e a atividade religiosa, na comunidade, do que o recolhimento atrás dos muros de 40 Cf. Conrad, Konzil, 330 s. 41 Cf. Reinhard, Konzil, 32. 42 Cf. Anne Conrad, “Aufbruch der Laien – Aufbruch der Frauen. Überlegungen zu einer Geschlechtergeschichte der Reformation und der katholischen Reformation”, in: (ed.) “In Christo...”, 16, 19s. 43 Cf. Gisela Muschiol, “Ein jammervolles Schauspiel...? Frauenklöster im Zeitalter der Reformation”, in: Sigrid Schmitt (ed.), “Frauen und Kirche”, Wiesbaden 2002, 109, assim como Hufton, “Frauenleben”, 505. 44 Cf. Olwen Hufton, “Frauenleben, Eine europäische Geschichte, 1500-1800”, Frankfurt a. M. 1998, 520527 45 Šliwinska, Geschichte, 49.
1.5 Clausura e Contemplação
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um claustro. Seu caminho espiritual incluía a atividade religiosa, tais como o ensino, a assistência aos necessitados e a decoração e a garantia do funcionamento das igrejas. Corroborou com suas ideias o fato de as condições e as necessidades locais, nem sempre serem compatíveis com os planos da hierarquia católica, que também não teve êxito em impor, até às profundezas da periferia rural, suas decisões radicais. As paróquias tinham necessidades diferentes daquelas dos membros do Concílio de Trento. Necessitavam de “recursos humanos” que pudessem promover, por completo, a vida religiosa da paróquia, o que abrangia, também, o ensino e a assistência aos doentes e aos pobres. Regina Protmann e suas companheiras de luta assumiram essas funções. As congregações se desenvolveram, como uma forma de união de mulheres que, com a cobertura da Igreja, levavam uma vida religiosa e comunitária, intervindo ativamente em prol de sua fé e dos interesses da Igreja. Era, por conseguinte, uma forma que possibilitava às mulheres assumir tarefas dentro da Igreja, a partir de sua própria organização. Nos tempos da Reforma e da Contra-Reforma, as mulheres tornaram-se “as mais fervorosas partidárias da Igreja”, com deveres valorizados na família, mas também na comunidade, onde, de acordo com a opinião de Olwen Hufton, “lhes foram adjudicadas as tarefas da consolação e do socorro no sofrimento”.46 Porém, as ações das mulheres não se restringiam tão somente a esta área. Pelo contrário, as mulheres assumiram, como o exemplo das Irmãs de Santa Catarina o demonstra, a educação, tanto religiosa quanto profana e ainda eram responsáveis pela aparência exterior da liturgia. As mulheres mantiveram esta posição dentro da Igreja católica até o século XX. Embora atualmente careça de mulheres nas igrejas, onde antigamente se engajavam, continuam, como sempre, com a parte do leão no que tange o trabalho voluntário não remunerado, e isso não somente nas paróquias e comunidades católicas. Além disso, ainda hoje, o número de membros femininos nas congregações e ordens é bem maior do que o dos membros masculinos. Ambos os fatos tiveram seu início, nos tempos do Concílio de Trento. Deste modo, foi imensamente importante que as mulheres, contrariando as normas dos membros do concílio, se decidiram pela vida ativa, e não, pela vida contemplativa, como é de praxe para freiras, no sentido clássico do termo.47 De fato – como o historiador especializado na Idade Moderna (século XVI), Wolfgang Reinhard o afirma – “inumeráveis células da Reforma e da Auto Reforma local” tiveram um papel mais preponderante na “renovação total concreta da Igreja” do que, por exemplo, o Concílio de Trento e o papado.48 Acrescenta-se que o grupo de jovens mulheres que acompanhavam Regina Protmann, de Braunsberg, no Ermland. Totalmente no espírito da renovação católica, engajaram-se pela causa católica. Anne Conrad resume a atitude das mulheres em um ponto: “Naquele tempo, que exigia de cada um ou cada uma a mobilização pelo anúncio da fé, pareceu-lhes (às mulheres) importante e necessário que não se retirassem do mundo, mas sim, que se entregassem a sua vocação religiosa, ‘no mundo’”.49 Já seus contemporâneos reconheceram que a mulher 46 47 48 49
Cf. Hufton, Frauenleben, 542 Cf. Muschiol, Schauspiel. Reinhard, Konzil, 40. Conrad, Konzil, 332.
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1. Vida ativa no século XVI
trilhava um “terceiro caminho” entre matrimônio e vida monástica, organizando-se em uma vida semi religiosa.50 As Irmãs de Santa Catarina pertenceram a essa vanguarda. A continuação da história da congregação deveria demonstrar que se trata, aqui, de um modelo de vida duradouro.
50 Conrad, Konzil, 335.