Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo Trabalho Final de Graduação
ESpaço imaginado fotografia entre planos e escalas
André Azenha Turazzi Orientadora: Profa. Dra. Giselle Beiguelman 2º Semestre de 2013
Agradeço a todos aqueles que estiveram do meu lado ao longo da minha formação, que me apoiaram, me escutaram e criticaram nesses anos. Àqueles que aprendi junto, com quem compartilhei minhas ideias. Aos professores dessa universidade que estiveram presentes, que expuseram com sinceridade, suas vontades e anseios. Especialmente à Giselle, que concordou em me acompanhar ao longo desse fechamento tão importante, me escutando atentamente sempre que precisei, e abrindo janelas em mim que nem mesmo eu sabia existir. E ao João, que apesar de suas reticências quanto aos arquitetos, escutou minhas intromissões com tamanha generosidade, agregando muito ao meu trabalho. E a minha família que com toda intensidade do mundo me apoiou, e sempre apoiará.
Obrigado.
Ă?ndice
Introdução
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Espelho do real
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Construção do real
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Ícone e símbolo
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Fotografia como linguagem
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Apresentação geral da estrutura do trabalho
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Operacionalizando o mundo
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Relação do homem/mundo compreendida e transformada através das imagens
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Imagem instrumento
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Da fotografia
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Captação e organização da luz
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Perspectiva artificialis
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A fotografia deve ser pensada em seu processo
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Considerações finais
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Bibliografia
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Index de imagens
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Introdução
O presente trabalho tem como objetivo entender as imagens fotográficas através de seu processo de produção. As imagens são uma forma de linguagem não linear, cuja compreensão se dá através da leitura de seu conteúdo e da forma como são produzidas. Na fotografia os gestos humanos não estão revelados em sua superfície, a intencionalidade está diluída ao longo de um caminho gerador de imagem, que inclui processos maquínicos formas de atuação e escolhas, por parte do fotógrafo. O ato fotográfico encontra-se pulverizado entre a concepção do aparelho e a contemplação da fotografia, perpassando inúmeras escolhas que permeiam o processo, a subjetividade humana fragmentada perde aparentemente importância, já que atua através de processos físicos, químicos e digitais.
“(...) com a fotografia não nos é mais possível pensar a imagem fora do ato que a faz ser.” (DUBOIS, 2011: 15)
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A fotografia se encontra na cisão do mundo das imagens tradicionais com o das imagens técnicas, termo utilizado pelo filósofo Vilém Flüsser. Em sua obra Filosofia da Caixa Preta, ele define esse tipo de imagens como aquelas que são produzidas de forma “programática”, por meio do uso de aparelhos codificadores. Dentre todas as imagens técnicas, a fotografia é a que traz de forma mais clara as regras de seu processo de codificação, ao menos no que diz respeito às câmera analógicas. (FLUSSER, 1985: 45) Esta é uma nova forma de criar linguagem, na qual o aparente automatismo parece negar a intenção humana. Nada se interporia entre a natureza e a imagem. Justamente aí reside a questão do presente trabalho, já que partimos do princípio de que é inerente à fotografia a intenção, seja ela consciente ou não. Mesmo que o processo gerador da imagem fotográfica seja de difícil acesso e compreensão, ele, assim como outras formas de linguagem, é intencional, reflexivo e transformador. Neste texto serão exploradas algumas qualidades da imagem fotográfica. À luz de alguns teóricos como Philippe Dubois, Arlindo Machado, Vilém Flusser e Oliver Grau um panorama do estatuto da fotografia será estabelecido, do qual serão suscitadas algumas questões. Nessa primeira parte, por meio do livro O Ato Fotográfico de Dubois, veremos que a maneira como compreendemos o olhar fotográfico passou por três fases ao longo de sua história recente. Uma primeira na qual ele é um instrumento mimético do mundo, uma segunda na qual ele é transformador da realidade, e uma terceira na qual ele não passa de uma traço do real. Essas três formas não são uma evolução na nossa maneira de perceber as fotografias, muito pelo contrário, cada uma delas está presente, ecoa de diferentes maneiras na forma como vemos tais imagens.
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Espelho do real “... a fotografia é a arte que, numa superfície plana, com linhas e tons, imita com perfeição e sem qualquer possibilidade de erro a forma do objeto que deve reproduzir” (DUBOIS, 2011: 29)
Desde seu surgimento a fotografia causou certo estranhamento. Imagens de tal natureza não eram conhecidas até então. Devido à sua aparente semelhança à forma como percebemos a realidade, a fotografia não passaria de um analogon da natureza, um “espelho do real”. Sua propriedade mimética lhe conferiria um papel exclusivamente documental da realidade, não podendo constituir um olhar de caráter imaginativo ou criativo. Hoje lidamos cotidianamente com questões referentes à capacidade mimética dos aparelhos de imagem. A cada geração, aumenta a capacidade dos mesmos de gerar e reproduzir imagens fidedignas sob a justificativa de que este tem um maior desempenho do que aquele. Tal fetiche é alimentado por nossa cultura no que se refere a qualquer tipo de aparelho de imagem técnica. Tanto nos aparelhos televisivos, como nos cinemas ou nas câmeras fotográficas, o que se almeja é uma imagem cada vez mais realista, maior, mais potente. Em parte, isso explica o fascínio pelas as estereoscopias no século 19 e a retomada do 3D no cinema contemporâneo. A esse respeito, Dubois comenta: “O primeiro efeito que se sente ao olhar uma boa fotografia através de um estereoscópico é tamanha surpresa que nenhuma pintura jamais conseguiu provocar. O espírito avança no próprio
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interior da profundidade da imagem. Os galhos nus de uma árvore no primeiro plano sobressaem em nossa direção como se quisessem arrancar nossos olhos. O cotovelo de uma figura avança tanto que nos incomoda. Há também uma quantidade incrível de detalhes, a ponto de sentirmos a mesma sensação de complexidade infinita que experimentamos diante da Natureza.” (DUBOIS, 2011: 33)
Ao tentar extrair das imagens técnicas somente as capacidades miméticas, ignoramos seus potenciais transformadores com relação ao nosso olhar, que pode passar a identificar a natureza de maneira transformada depois de vê-la representada através do olhar maquínico. Um exemplo clássico dessa ambivalência são as fotografias de Eadweard Muybridge do galope de um cavalo feitas em 1978. Leland Stanford, ex-governador da Califórnia, acreditava que todos os cascos de um cavalo deixavam de tocar o solo quando este estava a galope. Contratou Muybridge acreditando que este poderia provar “cientificamente” sua teoria. O fotógrafo, junto com John D. Isaacs, desenvolveu um dispositivo que captaria o movimento do galope do cavalo. O que conseguiram foi colocar 12 câmeras ao longo de 21 polegadas acionadas pelo o movimento do cavalo. A partir das imagens obtidas eles conseguiram provar que o cavalo só tocava o solo pontualmente e ficava suspenso no ar a maior parte de sua corrida. Esta forma de representar o galope transformou a maneira como vemos, mesmo a olhos nus, o movimento do cavalo.
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Construção do real Em um segundo momento a fotografia passou a ser entendida como uma construção do real, não mais um espelho, “mas um instrumento de transposição, de análise, de interpretação e até transformação do real” (DUBOIS, 2011: 26). Nesse momento ela passaria a integrar nossas ferramentas de linguagem, como o texto ou a música, sendo culturalmente codificada. Como na situação do galope descrita acima, ela passa a ser considerada uma ferramenta que participa da nossa concepção de realidade, e cuja interpretação necessita de convenções culturais. “O antropólogo Melville Herksövits mostrou um dia a uma aborígene uma foto de seu filho. Ela foi incapaz de reconhecer a imagem até o antropólogo atrair sua atenção para os detalhes da foto. (...) A fotografia não comunica qualquer mensagem para aquela mulher até que o antropólogo a descreva para ela. Uma proposta como ‘ isso é uma mensagem’ e ‘ isto está no lugar de seu filho’, é necessária à leitura da foto. (...) O dispositivo é, portanto, de fato um dispositivo codificado culturalmente.” (DUBOIS, 2011: 42)
Acontece que quando comparamos a nossa visão à fotografia são múltiplas as discrepâncias, e de forma alguma uma consegue imitar a outra. Mesmo se tentarmos abstrair nossa capacidade de perceber cores, para então compararmos nossa visão com uma fotografia, na própria presença da luz refletida na matéria, captada pela lente, fixada pelo dispositivo fotográfico em uma superfície e finalmente visível aos nossos olhos como fotografia, veremos que apesar de algumas correspondências entre as duas informações (a da visão do lugar e a da construção fotográfica do
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lugar), constataremos que o que está contido em uma é diferente do que está contido na outra. Podemos também abstrair que a visão do mundo depende do tempo (já que não há mundo sem tempo), desconsiderarmos o fato de que a maioria dentre os humanos possuem dois olhos e a maioria das câmeras fotográficas possuem um só. Relevar o fato de que nós focamos a partir do cruzamento dos cones de visão provenientes de cada globo ocular, e a câmera constrói um plano de foco do qual é gerado o campo de foco que se manifesta na imagem fotográfica. Esquecendo que a nossa visão está condicionada à sua natureza côncava e a câmera tem seu plano de projeção cambiável. Mesmo assim, quando nos encontrarmos muito perto da estrutura, ou da alma da imagem fotográfica, o grão, ou pixel, veremos que aí reside o primeiro dos indícios de que esta é diferente da visão.
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Ícone e símbolo É difícil, ainda hoje, entender qual a relação que estabelecemos com uma fotografia. Sabe-se no entanto que a maneira como apreendemos a partir de uma imagem fotográfica é distinta da maneira que apreendemos a partir de uma pintura. De certa forma a fotografia nos remete diretamente ao significado do objeto, à sua imagem. Há uma magia que nos remete à situação de captura da imagem. Mesmo estando conscientes de que se trata da representação de uma cena, o fato de haver um momento em que aparato fotográfico, mesmo que por um instante, esteve diante daquilo que vemos representado, nos é precioso. Tentamos decifrar o que causou aquela imagem. Seja na observação atenta de pequenos detalhes, a fotografia parece nos comunicar algo que não está nela, e sim em nós mesmos. Algo anterior a sua existência. Enquanto outras formas de representação se referem ao objeto via semelhança, ou via alguma convenção cultural, a fotografia independe desse tipo de simbolização. Ao nos colocarmos diante de uma foto, instintivamente sabemos que diante de nós há algo. Mesmo que distorcido, deformado ou descaracterizado, sondamos nosso inconsciente a fim de atribuir aquilo que vemos ao nosso repertório afetivo. Essa natureza indicial nos coloca lá. Esta imagem, de alguma forma esteve em contato com o que estamos vendo. As fotografias nos atingem de diferentes maneiras. A forma como as entendemos não é estável, está em constante transformação. As três maneiras de entender o olhar fotográfico expostas anteriormente, complementares, estão presentes na maneira como recebemos as imagens às quais somos expostos. Não se superpõem ou anulam uma à outra. Na continuação deste trabalho veremos as particularidades que permeiam as condicionantes da produção fotográfica.
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Fotografia como linguagem
O interesse do presente trabalho é discutir a fotografia como linguagem. Onde vivemos a fotografia é utilizada prioritariamente como instrumento de documentação. Tão profunda é nossa crença na capacidade de representação das imagens fotográficas que elas ainda são utilizadas em carteiras de identidade para designar seu portador, ou em acusações criminais como evidência. As fotografias são a principal forma de retratar, mostrar, apontar, designar algo concreto. Não por menos seu uso extensivo na arquitetura, em revistas, sites, livros e tudo mais que precise de mostrar algo que não se pode acessar. A publicidade se apropria dessa linguagem para um outro uso. Essas imagens, intensamente presentes no nosso cotidiano, constituem nosso imaginário. Nós sabemos que o BigMac que vamos comer não é nem parecido com o da fotografia, mas mesmo diante da decepcionante realidade, nos vemos comendo o viçoso hambúrguer da imagem. Ela molda a maneira como percebemos a realidade, como lidamos com nossos desejos e afetos. Somos condicionados a acreditar na vida que há por detrás da superfície brilhante, agimos em relação a ela, reproduzimos sua forma de ver o mundo.
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MEYEROWITZ, 1979
Ao longo do processo do trabalho além da bibliografia lida, a necessidade de ler fotografias de outros autores se tornou evidente. Além de exercitarem o olhar no que diz respeito à constituição do mundo e de sua imagem, a compreensão do meu próprio trabalho foi guiada por imagens de terceiros. Na maior parte da vezes, mesmo que o discurso contido no trabalho dos fotógrafos fosse diverso daquele que eu estava constituindo no meu trabalho, suas imagens se tornaram referência a partir do meu olhar sobre elas. A compreensão e problematização dos potenciais estéticos, reflexivos da fotografia, assim como a forma como é constituída, são reflexões essenciais para um tempo em que ela é tão importante.
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RESTIFFE, 2012
Operacionalizando o mundo A linguagem é um sistema de signos através do qual operacionalizamos o mundo. Damos significado às coisas a fim de podermos interagir com elas, codificamos a natureza em realidade. Estes “significados” são símbolos que representam algum referente. Quando quero comunicar algo a alguma pessoa não preciso mostrar algo a ela, posso me remeter a algo de alguma maneira. Se quero comunicar “árvore” posso escrever (como eu fiz aqui agora), desenhar, falar, não preciso colocar uma árvore na sua frente. “...o homem necessariamente ‘inverte’, isto é, interfere, interpreta e altera o objeto representado, porque a ação do sujeito é sempre produtiva e não pode ser reduzida à atitude do sujeito passivo.” (MACHADO, 1984: 14)
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As imagens, assim como as palavras, são uma maneira através da qual nos comunicamos, talvez ainda mais primitiva do que as palavras. Muito provavelmente, antes de escrever, antes mesmo de termos palavras para comunicar algo, já conseguíamos representar através de desenhos, como na arte rupestre. Estes sistemas de símbolos estão em constante mutação, se adaptam às nossas necessidades, já que o mundo, assim como nossa forma de se relacionar com ele, se transforma a cada instante. A linguagem tende a estabilizar nossa relação com o mundo. Quando formulamos a palavra “árvore” fixamos alguns parâmetros que constituem árvore no nosso imaginário. Com o tempo, e talvez dependendo da nossa necessidade de comunicar “árvore”, não nos basta mais a palavra, precisamos distinguir uma árvore de outra. A um paisagista não basta dizer que ele vai plantar árvores, mas sim, cabe a ele decidir quais árvores e por quê.
STRUTH, 1999
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Este exemplo é uma maneira bastante objetiva de entendermos nossa relação com a linguagem, mas tal ferramenta é bastante mais complexa e sempre conforma uma maneira que limita, fixa nossa capacidade de expressão. “Além da cópia, a transformação da realidade é o domínio central e essência da arte: a criação da realidade, da realidade individual, da realidade coletiva. Recentes descobertas da neurobiologia propõe que aquilo que chamamos de realidade é de fato apenas uma afirmação sobre o que podemos observar.” (GRAU, 2004: 27)
O aparelho fotográfico faz parte dos aparelhos que construímos com intuito de enriquecer nossa relação com o mundo. Nele está embutida capacidade de traduzir o espectro visível da natureza em imagem, e constituir assim parte da nossa relação simbólica com a mesma. Está na natureza do aparelho fotográfico refratar e organizar a luz à qual é exposto com o intuito de produzir imagens legíveis aos nossos olhos.
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rodchencko, 1932
Relação homem/mundo compreendida e transformada a partir de imagens “Nunca o mundo de imagens a nosso redor mudou tão rapidamente como nos últimos anos, nunca fomos expostos a tantos mundos de imagens diferentes, e nunca o modo como as imagens são produzidas mudou de forma tão essencial.” (GRAU, 2004: 15)
Nossa relação com o mundo se dá através de códigos - a linguagem - estes constituem o cerne da nossa relação com o mundo. Pensar tal relação é essencial para nos apropriarmos e se necessário modificarmos as formas através das quais entendemos nosso meio, como conformamos nossa cultura. As imagens fazem parte desse conjunto de instrumentos que temos para nos apropriarmos do nosso meio. Seja na tentativa de representar o bisão visto em meio aos glaciares com carvão na
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parede de uma caverna, ou no robô de um filme hollywoodiano idealizado por desenhistas através de softwares de modelização em três dimensões. Elas povoam nosso imaginário, fazem parte do repertório afetivo através do qual concebemos nossa realidade. Existem diferenças na forma com a qual recebemos os diferentes tipo de imagens. O bisão não nos impressiona da mesma forma que o robô. Nossa bagagem cultural é a base de nossa relação com as imagens e por conseguinte com o mundo. Mudamos nossa percepção em função de nossa bagagem cultural. Nossa percepção é culturalmente construída a partir da dialética entre nossa visão de mundo e as imagens.
KOUDELKA, 2003
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Imagem instrumento
(maquinismo/humanismo) As imagens técnicas têm diferentes funções. O fácil acesso à produção expande seus usos e as questões relativas à linguagem não mais se limitam às máquinas fotográficas e filmadoras, suas parentes mais próximas. Se expandem a outros instrumentos produtores de imagens, os computadores por exemplo, que funcionam de forma programática, e que alcançaram outros níveis de complexidade Ainda há uma constante entre todo e qualquer tipo de imagem. Para serem produzidas sempre é necessário um instrumento. Desde o desenho mais primitivo nas paredes de uma caverna, passando pelas pinturas, fotografias, até o ambiente de realidade virtual. Independente do nível de complexidade tecnológica, para que haja imagem precisa haver uma tecnologia para fabricá-la.
NIO, 2013
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Toda e qualquer imagem “pressupõe gestos de fabricação de artefatos por meio de instrumentos, regras e condições de eficácia, assim como de um saber.” (DUBOIS, 2004: 31) Quanto mais complexo o aparelho produtor de imagem, menos aparente se manifesta a subjetividade humana em seu produto final. Porém é falso dizer que a imagem está mais atrelada ao funcionamento do aparelho quanto mais complexo for seu funcionamento. Toda imagem é gerada a partir da relação do homem com a matéria, seja ela física, química ou eletrônica, seja esta relação consciente ou alienada. Não importa o nível da relação, ela sempre pode ser entendida como um instrumento gerador de conhecimento, seja na própria matéria geradora de imagem, seja no que está sendo representado, ou também no nosso olhar sobre o que está sendo representado.
GAUTHEROT, 1958
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da Fotografia
Captação e organização da luz A câmera fotográfica é constituída por um mecanismo óptico-mecânico cuja função é captar por um tempo determinado a luz que está diante do aparelho, organizá-la e então projetá-la para que possa ser posteriormente processada, química ou eletronicamente. Esta parte do processo fotográfico é o cerne que o distingue de outros processos geradores de imagem. Aqui estão presentes características particulares no que se refere à constituição espaço-tempo do universo fotográfico. Um grupo de lentes conduz, refrata e conforma os raios luminosos que adentram a objetiva da câmera, formando assim uma imagem legível em um determinado plano do outro lado. Este não é o primeiro nem o único aparato que utiliza desse artifício para este fim. Tais objetivas eram usadas muito antes das máquinas fotográficas existirem. Elas derivam/simulam um princípio matemático desenvolvido na renascença, a perspectiva artificialis, que já era usado em pinturas com o intuito de convencionar uma representação bidimensional de um espaço com três dimensões, mais próximas à nossa forma de perceber. Posteriormente vários
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aparatos ópticos auxiliaram pintores ao longo do tempo, originando as objetivas que usamos nas câmeras fotográficas. Ao ser realizada por uma máquina, a imagem traz a ilusão de captura e congelamento do real, como nenhuma outra forma de representação traz. A imagem se apresenta como estática obtida a partir de um gesto de seleção de uma fatia do tempo, ou seja, a partir da determinação de um início e de um fim de captação, condensamos algo que se manifesta temporalmente em uma informação atemporal, estática. Esta talvez seja a maior contribuição da fotografia para outros campos. Podemos retomar o exemplo do cavalo, cujas imagens sequenciais obtidas de seu galope nos revelam o tempo no qual ele não toca o chão, ou também as micro expressões faciais que revelam trejeitos que só são revelados a partir de uma fotografia.
KOUDELKA, 1976
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Perspectiva artificialis
procedimentos e estratégias de visualização do espaço A maioria das câmeras são equipadas com um grupo de lentes cuja função é organizar a luz antes que essa entre em contato com a superfície sensível a ela, produzindo uma imagem legível. Caso não houvesse essas lentes, ao expormos as películas ou qualquer outra superfície sensível não obteríamos imagem legível, mas somente uma superfície totalmente sensibilizada pela luz. A objetiva, como é chamada, tem a função de qualificar a luz à qual a câmera está sendo exposta, fazendo com que esta entre no corpo do aparelho de forma controlada, organizada e quantificada, para a superfície sensível à luz. Essa propriedade de conformar uma imagem do que está sendo visto através de um conjunto de lentes foi desenvolvida ao longo de séculos. Seu intuito é simular a perspectiva artificialis,
STRUTH, 1986
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maneira de obter uma realidade onde todas as linhas paralelas convergem para um mesmo ponto, representa uma teoria matemática em que observador é um ponto no espaço e existe um plano no qual são projetadas as linhas que ligam o ponto do observador aos objetos, permitindo assim suprimir uma das dimensões do espaço para representá-lo. O sistema óptico que é utilizado na maior parte das câmeras fotográficas foi desenvolvido para reproduzir um sistema de representação de um espaço de três dimensões em um plano de duas dimensões. Esta é uma forma particular de representação da realidade que convenciona um olhar matemático sobre o mundo. Sua descoberta introduz uma maneira de percepção da realidade, ilustrando questões teóricas, tais como a posição do homem no mundo, ou a maneira como vemos a ciência. “A descoberta renascentista da perspectiva artificialis introduziu distância e rupturas na percepção, antes diretamente orientada para a representatividade dos objetos. Em épocas anteriores, isso também era caracterizado por uma relação simbólica, mas agora todo processo de percepção reduzia-se à forma matemática.” (GRAU, 2005: 60)
A partir de um pretenso realismo, a perspectiva artificialis fixa um ponto de vista no espaço, condicionando toda conformação espacial dos objetos, posições e dimensões, matematiza o espaço. Conseguimos a partir dela medir as coisas, analisar suas características superficiais, separando-as de suas qualidades subjetivas. Fixamos o sujeito, seu olhar sobre o mundo. Afinal nosso olhar está naturalmente atrelado às questões psíquicas do indivíduo, valorizamos aquilo que nos é caro e mal percebemos o que não nos é importante. A perspectiva matemática vem para homogeneizar a visão.
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A fotografia deve ser pensada em seu processo
GHIRRI, 1985
O presente trabalho partiu da necessidade de entender como percebemos o mundo, como construímos essa percepção. A fotografia é uma das ferramentas que estão presentes na constituição dessa reflexão. Ela representa uma cisão na forma como produzíamos e percebíamos as imagens. A existência das imagens tradicionais depende inteiramente de nossa consciência, ao menos no que diz respeito ao produtor de tais imagens. A fotografia aparece em um momento em que o papel do produtor se dilui em um vasto processo programado. A presença de um autor, um concebedor da imagem se perde, ela não depende mais do indivíduo. Com o aumento da acessibilidade a aparelhos produtores de imagem fotográfica é difícil saber onde há desejo humano e onde começam os condicionantes do próprio programa. As in-
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tenções se diluem e não mais sabemos mais quais são os papéis do fotógrafo e do aparelho. Existem hoje diferentes tipos de fotógrafos. Desde aqueles completamente alienados que não compreendem porque o gesto de um dedo faz captar uma imagem, passando por aqueles que dominam os recursos que utilizam, até aqueles que intervêm diretamente no programa do aparelho, nos interstícios da máquina. É evidente que não é só a intenção do fotógrafo, ou seu grau de interferência na imagem que agrega significado à imagem. O fotógrafo está presente tanto no que está sendo retratado quanto na maneira como está sendo retratado. Não olhamos uma imagem no jornal da mesma maneira que olhamos um álbum de família, ou uma foto pendurada na parede de um museu. Existe uma gama enorme de fatores presentes no momento que percebemos uma imagem, internos e externos ao aparelho, ao fotógrafo e ao espectador. Nós sabemos que ao acionar o dispositivo fotográfico obteremos uma interpretação da cena que ocorreu naquele instante diante do aparelho. Mas poucos conhecem a fundo as equações necessárias para conceber o conjunto de lentes de uma objetiva, muito menos os processos, sejam eles químicos ou digitais, que armazenam a imagem. Não precisamos sabê-lo para fotografar. Será possível produzir imagens fundantes sem compreender as raízes dos processos que a concebem? Deve o fotógrafo intervir nos processos internos do aparelho fotográfico para produzir algo próprio, não estereotipado, exercer seu ofício com liberdade? Existe uma grande diferença entre o artista que se apropria da máquina para seu trabalho e aquele que vive em função dela.
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MUSA, 2011
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Considerações finais Vejo-me incumbido pela fotografia de representá-la com o mundo. Já não digo mais sobre ele, e sim sobre ela através dele. Meu instrumento se impõe através dos circuitos, códigos, operações. Automatização do fazer. Meu fazer, muito menos ambicioso do que o dispositivo, é investigar através dele as conformações espaciais que nos são dadas há muito. Nossa relação visual com o espaço está intrinsecamente relacionada com as formas que desenvolvemos para representá-lo. O dispositivo óptico do aparelho fotográfico, do qual poucos optam buscar alternativa, existe além dele. Produzo sem ter em mente onde quero chegar. Ao rever o enorme compêndio de imagens acumuladas ao longo dos anos, me vejo novamente. Vejo os lugares por onde passei, as coisas que olhei, aquelas que guardei. Elas não estão nas imagens e sim na memória. Eu agora, vendo novamente a imagem da coisa, me aproprio dela de maneira diferente. Quero transformá-la não para mostrar aquilo que vi, nem muito menos aquilo que o aparelho viu por mim. Eu quero mostrar o que eu penso, da maneira que penso. Talvez esta esteja contaminada por onde passei, pelo que vi. Certamente está. Apresento um grupo de imagens que atravessam minha produção. Elas se tocam naquilo que acredito ser a maneira da fotografia pensar o espaço. Porque, para além da imagem anteriormente constituída pelo dispositivo, existe a imagem concebida. A edição das imagens ocorreu no sentido de potencializá-las, tornar o conjunto escolhido coeso. Essa fotografia ao lado por exemplo, onde o ângulo de visão é superior ao que está sendo retratado. Não sabemos ao certo de qual distância ela foi tirada, na imagem não temos indício, os objetos que a integram parecem estar vistos de lado e de cima ao mesmo tempo. 34
NANTES, 2013
Após a precipitação da neve observamos os percursos feitos na praça. As pessoas que passaram imprimiram na superfície branca seus pés ou pneus de bicicleta, fundindo os cristais de água com seu peso, para revelar o piso. Essas impressões se integram a outros elementos vivos como os galhos das árvores ou o ciclista que está passando, assim como outras superfícies verticais onde não há neve depositada. Talvez muito por sua potência gráfica, distinta das fotografias que integraram o conjunto final do trabalho, mas principalmente por conter elementos já demasiado localizados, cuja presença nos faz atribuir a imagem a um local, essa imagem não faz parte do livro final. Junto com ela existe uma infinidade de outras, as quais não caberia justificar uma a uma a sua ausência. Todo o processo de seleção caminhou na tentativa de mostrar como a fotografia pensa o espaço, e como pensamos espaço a partir da fotografia.
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Bibliografia DUBOIS, Philippe. Cinema, Video, Gordard. São Paulo: Cosac Naify 2004 DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico e Outros Ensaios. Campinas, Papirus 2011 (1990) FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. São Paulo, Annablume 2011 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas – uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo, Martins Fontes 2000 (1966) GRAU, Oliver. Arte Virtual – da ilusão à imersão. São Paulo, Senac 2005 (2003) MACHADO, Arlindo. A ilusão especular: Introdução à fotografia. São Paulo, Brasiliense, 1984
imagens
página
MEYEROWITZ, Joel. Cape Ligh, 1979
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RESTIFFE, Mauro. Obra 4, 2012
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Struth, Thomas. El Capitan (Yosemite National Park) 1999
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rodchencko, Alexander. Residência estudantil 1932
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KOUDELKA, Josef. Tepoztlán, Morelos, 2003
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NIO, Tatewaki. Escultura do inconsciente, 2012
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GAUTHEROT, Marcel. Esplanada dos Ministérios em construção. Brasília, 1958
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KOUDELKA, Josef. Great Britain. England. 1976
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STRUTH, Thomas. Shinju-ku (Skyscrapers), Tokyo 1986
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GHIRRI, Luigi. Versailles, 1985
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MUSA, João Luiz. Ilha Solteira, SP 1994
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TURAZZI, André. Nantes, França 2013
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