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PubDate: 17-02-2013 Zone: Nacional Edition: 2 Page: PAGINA_A User: Asimon Time: 02-16-2013 19:23 Color: C K Y M
DOMINGO
OGLOBO Irineu Marinho (1876-1925)
DOMINGO, 17 DE FEVEREIRO DE 2013 ANO LXXXVIII - Nº 29.049
REVISTA DA TV
(1904-2003) Roberto Marinho
SEGUNDO CADERNO
ARQUIVO
BOSSA PARA O MUNDO
SÉRIE As maldades ficaram para trás
CAETANO VELOSO
DIVULGAÇÃO
Impressiona-me a exigência das críticas ao carnaval baiano.
REVISTA O GLOBO
AMOR
CHICO
Dias de folia/Conclusão:
Obra em progresso. João Gilberto e Stan Getz em estúdio
Casais de Espanha, Grécia, Itália e Portugal contam como poupam a relação dos efeitos da crise econômica na Europa e apontam o Brasil como um Eldorado.
BOA CHANCE
MORAR BEM
SAÚDE
Um terço dos jovens reconhece que bate-papo virtual atrapalha produção.
Preço médio de imóveis no Leblon se distancia de Ipanema. Leme bate Copa.
Médico brasileiro desenvolve terapia contra vício em heroína. PÁGINA 44
NAS REDES, NA EMPRESA
oglobo.com.br
NA RIQUEZA E NA POBREZA..
Os bastidores e a história de “Getz/Gilberto”, disco que consagrou internacionalmente a bossa nova, gravado há 50 anos.
Com um currículo repleto de vilões no cinema, Kevin Bacon vive um mocinho em “The following”, sua grande estreia na TV.
RIO DE JANEIRO
BAIRROS-IRMÃOS DO RIO
DESINTOXICAÇÃO RÁPIDA
— No carnaval — ou não — o ser humano é a maior diversão!
LOUCURA ATRÁS DAS GRADES
Renúncia do Papa
Conclave pode ser antecipado
Brasil mantém doentes mentais presos ilegalmente _
A assembleia de cardeais que escolherá o próximo Papa pode ser antecipada para antes do dia 15 de março, informou o Vaticano. O gesto foi visto como uma tentativa de evitar que o cargo fique vago por muito tempo. PÁGINAS 37 a 40
Ao menos 800 que deveriam receber tratamento estão detidos em cadeias comuns
Rede de intrigas na Santa Sé
Sem atendimento médico adequado, pessoas com transtorno psiquiátrico vivem ao lado de porcos, submetidas a hipermedicação e eletrochoques, além de fazerem uso contínuo de crack
Renúncia de Bento XVI atrai os olhos do mundo para rixas na Cúria, relata DEBORAH BERLINCK.
Um levantamento feito pelo GLOBO junto às secretarias de administração penitenciária e ao sistema judiciário mostra que há, no país, pelo menos 800 pessoas absolvidas pela Justiça em razão de transtornos psiquiátricos cum-
Ainda mais perigoso
Meteoro era mil vezes maior
prindo penas em presídios comuns, em muitos casos dividindo celas com os demais detentos. Por serem considerados inimputáveis, eles deveriam estar em hospitais de custódia, clínicas ou ambulatórios. Em visita a nove presídios,
alas de tratamento e manicômios judiciários, foram flagradas situações degradantes e doentes mentais mantidos presos sem prontuário e sem perspectiva de tratamento médico, revela VINICIUS SASSINE. PÁGINAS 3 a 6 ANDRÉ COELHO
O meteoro que explodiu na Rússia pesava 10 mil toneladas e liberou energia de 30 bombas de Hiroshima, segundo a Nasa. PÁGINA 43
‘Es la economía, estúpido’
Bonança embala Correa nas urnas
Apesar do estilo personalista e dos ataques à imprensa, o presidente do Equador deve ser reeleito hoje, apoiado na estabilidade econômica. PÁGINA 41
Vereadores do Rio
Metade dos vereadores defende interesses religiosos, de áreas de milícias ou tem centros assistenciais. PÁGINA 25
PERFIL
Um sonho com o Pink Floyd
ANA BRANCO
Os projetos de Luiz Oscar Niemeyer, que pôs o Brasil na rota dos megashows. PÁGINA 32
Mensalão mineiro
Indicado de Dilma será relator do caso no STF PÁGINA 11
No lugar errado. Mesmo diagnosticado como doente mental, André Gomes, viciado em crack, tem surtos frequentes e vive numa pequena cela na Casa de Prisão Provisória de Goiânia
DANIELA DACORSO
Assistencialismo e religião na Câmara
CONSTRUINDO A NOVA ESTAÇÃO ANTÁRTICA Um operário trabalha no desmonte da antiga base, que pegou fogo no ano passado. Novos módulos de pesquisa já estão sendo montados na Ilha Rei George, conta a enviada especial ROBERTA JANSEN. Eles começam a funcionar no mês que vem. PÁGINA 42
2ª Edição • Preço deste exemplar no RJ, MG e ES: R$ 4 • Os suplementos Morar Bem e Boa Chance circulam apenas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, na Costa Verde, na Região Serrana e na Região dos Lagos (menos Macaé e Rio das Ostras)
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l O GLOBO
Sábado 16.2.2013
Página 2
a Personagens do dia
FESTA NA BAHIA, VETADO POR FAZER PROCESSO NA FRANÇA AUTOMEDICAÇÃO Teodorin Obiang Mangue O vice-presidente da Guiné Equatorial passava o carnaval em Salvador quando a Justiça francesa pediu sua prisão. Ele deixou o Brasil sem ser preso.
HERDEIRO DA HERMÈS ESCOLHE O BRASIL
Thiago Neves
JOÁ SOUZA/AGÊNCIA A TARDE
PAÍS, PÁGINA 7
O Fluminense não sabe quando terá o seu camisa 10, que, inadvertidamente, tomou remédios com substâncias proibidas e não joga no domingo.
Panorama político
Dimitri Mussard RUI PORTO FILHO/FOTOARENA
Uma reforma confusa
aLeia também nesta edição
Marina evita personalizar Piada sobre Renan causa Compra da Heinz na o seu novo partido demissão de estagiárias mira dos Estados Unidos
Dólar volta a bater em R$ 1,95 e BC intervém
Imagens de Marina não aparecerão em banners no evento que dá início à criação do seu partido. PAÍS, PÁGINA 6
O Banco Central tentou frear a queda da moeda, que fechou a R$ 1,965, com alta de 0,35%. ECONOMIA, PÁGINA 23
A primeira vez das mulheres no UFC
Gente bêbada e furiosa pelas ruas da cidade
Engenheiro sugere fiscalização em túnel
Homossexual e ex-militar, Liz Carmouche enfrentará Ronda Rousey no 1º duelo feminino do UFC. CADERNO ESPORTES
Motorista bêbada atropela gari e policial na Zona Sul. Passageiro soca motorista de ônibus, que bate. RIO, PÁGINA 12
Depois de deslizamento no Túnel Acústico, engenheiro diz que há ângulo favorável a novas quedas. RIO, PÁGINA 13
ILIMAR FRANCO _ SIMONE IGLESIAS (INTERINA)
ELA, PÁGINA 3
A xerife do mercado nos EUA investigará uso de informação privilegiada na compra da Heinz. ECONOMIA, PÁGINA 26
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_ DIVULGAÇÃO
Descendente da família que fundou a grife de luxo, francês de 29 anos abre no país uma empresa para representar marcas pouco conhecidas.
CADERNO ESPORTES
Duas estagiárias do Senado foram demitidas por postarem foto de rato com referência a Renan Calheiros. PAÍS, PÁGINA 4
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Panorama Esportivo
Paes levará à Sapucaí turma do COI que cobra orçamento da Rio-16. CADERNO ESPORTES
A presidente Dilma não está conseguindo se fazer entender nas reuniões em curso com os aliados para tratar da reforma ministerial. PDT, PR e PMDB estão insatisfeitos com a falta de objetividade. Não sabem se ela quer uma reforma com base em mudanças administrativas, para destravar o governo; ou uma reforma com vistas à sua reeleição, acomodando interesses partidários.
Terra de ninguém Os problemas da presidente Dilma começam no PMDB. Surgiu desconfiança com a atuação do ex-presidente Lula, tirando o vice Michel Temer do cargo para dá-lo ao PSB. Há, ainda, divergências entre os peemedebistas da Câmara e do Senado, que estão rachados. Nenhum dos cinco ministros tem controle sobre as bancadas, o que dá margem a inúmeras negociações com o governo. Dilma conversou com PSD, PDT e PR, mas, apesar de oferecer ministérios, nenhum desses partidos quer se comprometer agora com o apoio em 2014. Os três negociam paralelamente com o PSB de Eduardo Campos.
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“Achamos um erro o PDT ficar amarrado por um ministério, no lugar de ser independente, à esquerda do governo PT/PMDB/PP”. Cristovam Buarque e Pedro Taques Senadores, PDT DF e MT _
Mais um round O presidente da Câmara, Henrique Alves (PMDB-RN), está pedindo aos aliados que aceitem votar os vetos a toque de caixa, terça-feira. A bancada do Rio está com mandado de segurança pronto para impedir a medida.
Briga de alto nível AGÊNCIA CÂMARA/16-2-2012
Visões
Uma imagem para sempre
A foto do sueco Paul Hansen de palestinos carregando corpos de crianças nas ruas de Gaza após ataque israelense foi a grande vencedora do World Press Photo. O júri destacou o contraste entre o rosto sereno das crianças e o desespero dos adultos. l
FOTO: PAUL HANSEN/AP
JANAINA LAGE, janaina.lage@oglobo.com.br
Conflito de interesses
O GLOBO Por Dentro
O deputado Jorge Pozzobom (PSDB) foi escolhido pela Assembleia gaúcha para presidir comissão de investigação sobre o incêndio em Santa Maria que matou 239 pessoas. Escondeu dos colegas que foi advogado de um dos sócios da boate Kiss.
ANDRÉ COELHO
Esquecidos pelo poder público
U
Autocrítica NA PÁGINA 3 DE ONTEM:
s penitenciárias do país vivem abarrotadas. Entre os presos, gente que não poderia estar ali: centenas de doentes mentais esquecidos pelo poder público. Para contar essas histórias, O GLOBO começa a publicar amanhã uma série de reportagens. As matérias dão a dimensão do problema e retratam o sistema prisional, chamado em 2012 de “medieval” pelo ministro da Justiça. Durante dois meses, o repórter VINICIUS SASSINE trabalhou para identificar o número de casos espalhados pelo Brasil. Em seguida, ele e o fotógrafo ANDRÉ COELHO saíram a campo para flagrar a violação de direitos humanos cometida com a tolerância do Estado. Os dois conseguiram acesso e visitaram estabelecimentos em Brasília, Goiânia, São Luís e Teresina. Contaram com a ajuda da juíza Telma Aparecida, do juiz Douglas de Melo e do promotor de Justiça Eloi Pereira Júnior. Os registros estarão a partir de amanhã no papel e também no site do GLOBO, onde vídeos
A
Foto ‘viva’ Instruções
A conversa entre o PDT e a presidente Dilma sobre troca no Ministério do Trabalho abriu uma guerra. Juliana Brizola, irmã de Brizola Neto, declarou que o lema de Carlos Lupi e do deputado Vieira da Cunha, foto, é “pagando bem, que mal tem.” Vieira entrou na Justiça. Leonel, o outro irmão do ministro, partiu para cima de Vieira: “Canalha não tem honra”.
“Políticos longe da rede de Marina”. “A proposta é de que a nova sigla não tenha um presidente nacional...” Um “de” a mais. Certo: “A proposta é que a nova sigla...” P. 11: “‘Eu quero um carnaval melhor’”. “...e foi por isso que lembrei de roubar a frase do Nelson...” Erro de regência: Certo: “...que me lembrei de roubar...” P. 18: “O chavismo e uma nova desvalorização cambial”. Em ação. Vinicius Sassine e André Coelho no Piauí “Com a Venezuela desarrumada e mais inflação, poderão haver serão exibidos. — A dificuldade de apurar informações foi novas alterações cambiais” muito grande — conta Sassine. — Há uma blin- Erro de concordância verbal. dagem dos gestores do sistema prisional. Es- Certo: “Com a Venezuela quecidos pela família e nos próprios presídios, desarrumada e mais inflação, poderá haver...” os loucos infratores parecem não ter história. O fotógrafo André Coelho também se surpreendeu: — Encontrar as pessoas naquelas condições foi muito chocante. Gente que já sofre com o isolamento da própria mente em virtude da doença e vive trancado em meio ao caos das prisões. l
Resumo da crítica feita e supervisionada pelos professores Ozanir Roberti e Sérgio Nogueira, sob a coordenação do jornalista Aluizio Maranhão. Distribuída todos os dias na Redação. LEIA A ÍNTEGRA DA COLUNA NA WEB
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Segurança papal A Abin recomendou à Arquidiocese do Rio que o Papa Bento XVI se hospedasse no Palácio do Sumaré, por questão de segurança. Mas a opção acabou sendo o Palácio São Joaquim, pois exigiria menos deslocamento do pontífice, com saúde frágil. Depois da renúncia, a agência voltou a insistir no Sumaré, para reforçar a segurança da estadia do novo papa na Jornada da Juventude.
Estrelismo Há deputados que decidiram não ir para o partido que a ex-ministra Marina Silva está fundando porque acham que ela tem temperamento difícil e que, no fim das contas, se tornará mais um cacique partidário.
As filas estão de volta A despeito dos recorrentes problemas no INSS, o tempo médio de espera, ontem, na agência da Asa Sul de Brasília, que deveria ser referência de agilidade no país, era de quatro horas, sem o mínimo respeito à prioridade legal aos idosos.
_ SUBIU NO TELHADO a indicação de Paulo Safady (MG) para a Secretaria de Aviação Civil. A presidente Dilma deve dar ao PSD só um ministério.
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Loterias
DUPLA SENA
O leitor deve checar os resultados em agências oficiais e no site da CEF porque, com os horários de fechamento do jornal, os números aqui publicados, divulgados sempre no fim da noite pela CEF, podem eventualmente estar defasados.
09 l 10 l 13 l 18 l 21 l 44 l 2ª l 04 l 22 l 28 l 35 l 41 l 47
l
1ª
1.151
LOTOFÁCIL
868
01 l 02 l 03 l 08 l 09 l 10 l 12 l 13 l 14 16 17 19 21 22 24 lllllll
QUINA
3.120
26 l 30 l 31 l 39 6 0 ll
Com Luiza Damé, sucursais e correspondentes
panoramapolitico@oglobo.com.br
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PubDate: 18-02-2013 Zone: Nacional Edition: 1 Page: PAGINA_C User: Asimon Time: 02-17-2013 21:50 Color: C K Y M
País
Segunda-feira 18 .2 .2013
O GLOBO
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LOUCURA ATRÁS DAS GRADES
TORTURA E ABANDONO EM HOSPITAIS DE CUSTÓDIA _
TRATAMENTO DESUMANO Relatório da ONU aponta potencial de maus-tratos em unidades para pessoas com transtornos mentais, inclusive no Rio; profissionais de saúde sofrem limitações para cuidar de doentes FOTOS DE ANDRÉ COELHO
PI: duas décadas em manicômio, sem laudo Em uma das piores unidades do país, mistura entre loucos e presos comuns -TERESINA- Algemado, a caminho
Descaso. Gregório de Barros está em “enfermaria” de unidade no Piauí desde 2007, mas a Justiça nunca se manifestou sobre seu quadro clínico VINICIUS SASSINE vinicius.jorge@bsb.oglobo.com.br -BRASÍLIA- Hospitais de custódia usados para abrigar pessoas com transtornos mentais e em conflito com a lei são potenciais espaços de tortura, conforme constatação de um comitê da Organização das Nações Unidas (ONU), a partir de visitas feitas no país. O Subcomitê de Prevenção da Tortura (SPT), vinculado à ONU e com a participação do Brasil, concluiu um relatório sobre a privação de liberdade em quatro estados e incluiu impressões sobre instituições que deveriam oferecer tratamento psiquiátrico a loucos infratores. O Centro de Tratamento em Dependência Química Roberto Medeiros, um dos três manicômios judiciários em funcionamento no Rio de Janeiro, é citado no relatório com apontamentos sobre tortura. O documento foi encaminhado à Casa Civil e à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. O Roberto Medeiros fica no Complexo Penitenciário de Bangu e recebe presos provisórios ou condenados, ainda sem a absolvição decretada em função do transtorno mental. Boa parte dos detentos é dependente de drogas. Cerca de 90 pessoas estão na unidade. Concluído em 2012, o relatório do subcomitê da ONU aponta a existência de “altas doses de medicamentos psicotrópicos ministradas a 95% dos pacientes”. “Eles tinham de manter suas cabeças abaixadas e as mãos para trás quando caminhavam pela instituição. A equipe de saúde mental se encontrava sob estresse, mal paga e sujeita à autoridade dos guardas da prisão. O objetivo da instituição era punitivo, e não terapêutico”, conclui o subcomitê, que pede a transferência dos dependentes químicos para um espaço adequado. Outra instituição visitada e citada no relatório do comitê da ONU é a Unidade Experimental de Saúde, em São Paulo. O espaço abriga seis jovens que, na adolescência, cometeram crimes graves com grande repercussão na mídia. O Ministério Público pediu a internação compulsória dos seis jovens assim que completaram 21 anos de idade. O organismo da ONU recomendou a desativação da unidade, concebida exclu-
Comunidade. Loucos e presos comuns dividem espaço no Hospital Penitenciário Valter Alencar sivamente para abrigar os seis internos e sob a responsabilidade do governo de São Paulo. Para a ONU, a “liberação deve ser compulsória aos 21 anos”. INTERNAÇÕES ACIMA DA PENA MÁXIMA São Paulo tem três manicômios judiciários, em Franco da Rocha e em Taubaté. As unidades estão abarrotadas: são quase mil pessoas. E ainda existe uma fila de 972 detentos ou ex-detentos aguardando vagas, segundo a Defensoria Pública do estado. Funcionários dos manicômios relatam episódios de “tortura psicológica” e de “excesso de medicação” nas unidades. O GLOBO mostrou ontem que pelo menos 800 pessoas cumprem medida de segurança em presídios, determinada após constatação do transtorno mental e absolvição da Justiça. Nos manicômios judiciários ainda em funcionamento, a realidade também é de cárcere e desrespeito à lei. Os hospitais de custódia surgiram no Brasil na década de 20. Loucos infratores à espera de laudos ou em cumprimento de medidas de segurança são encaminhados para essas unidades. Ainda estão com as portas abertas 26 hospitais de custó-
dia e alas de tratamento psiquiátrico, onde estão internadas — ou presas — quase 4 mil pessoas com transtornos mentais e em conflito com a lei. Um censo sobre os manicômios, concluído no fim do ano passado pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis) e financiado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, revelou que 21% das pessoas estão internadas há um tempo superior ao de uma eventual pena máxima pela infração cometida. Os hospitais de custódia contradizem a Lei Antimanicomial, que prevê há 12 anos internações mínimas para loucos infratores. No Pará, um jovem de 20 anos com síndrome de Down ficou preso por três meses e meio no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, depois de peregrinar por quase um mês por cadeias públicas no interior do estado. Acusado de estuprar a mãe, o rapaz foi levado para o manicômio por determinação judicial. A Defensoria Pública do estado interveio e a Justiça determinou a desinternação, no último mês de dezembro. Até agora, segundo a Defensoria Pública, não foi expedido um laudo psiquiátrico.
de uma audiência no interior do Piauí, Francisco das Chagas Diolindo, de 20 anos, está dopado por medicamentos. Fala pouco. E o pouco que diz é sobre as músicas que compõe no cárcere. Há quase um ano, Diolindo foi absolvido de um crime em razão de um transtorno mental e começou a cumprir medida de segurança no Hospital Penitenciário Valter Alencar. Passa os dias e noites numa cela, trancada o tempo todo por agentes penitenciários. — Você é como rosa, suave como o vento do macio azul do mar — canta, numa de suas composições. No mesmo hospital, um grupo de presos provisórios — sem exame de insanidade mental, sem a decretação da medida de segurança e sem processo na Justiça — está isolado nos fundos da unidade, alguns deles há 22 anos. Para quem os visita (quase ninguém ao longo de décadas), eles cantam “Minha amiga”, da cantora Bianca, sucesso na década de 80. A música tocava insistentemente no rádio quando o grupo ainda tinha liberdade. “As amigas que eu tenho não se comparam a você”, diz a canção. As letras são uma ironia diante da realidade flagrada pela reportagem do GLOBO no hospital penitenciário, um dos piores manicômios judiciários do país. A unidade está ao lado da Colônia Agrícola Major César Oliveira, um presídio de regime semiaberto que abriga 33 pessoas com transtornos mentais, misturados aos presos comuns. No hospital psiquiátrico, são mais 74 internos. Quase todas as “enfermarias” misturam pacientes com transtornos mentais e pessoas com outros diagnósticos, como hanseníase e doenças decorrentes da Aids. As portas ficam sempre trancadas. No dia em que O GLOBO esteve na unidade, que fica a 30 quilômetros de Teresina, não havia um único médico ou enfermeiro. FUNCIONÁRIOS FANTASMAS Das 74 pessoas no hospital, apenas 13 cumprem medidas de segurança. A maioria, 41, é de presos provisórios. Há casos de internação compulsória sem determinação judicial; de aplicação de medida de segurança sem um laudo psiquiátrico; e de medidas de segurança cumpridas sem a realização de exames de cessação de periculosidade, que asseguraria a volta ao convívio social. Uma auditoria realizada pela Controladoria Geral do Estado (CGE) revelou pagamentos indevidos de R$ 1,8 milhão a funcionários da Secretaria de Justiça, boa parte fantasmas, segundo a investigação. A maioria dos supostos fantasmas — 36 pessoas — estava lotada no hospital penitenciário, no nú-
cleo de serviços de saúde mental e na colônia agrícola. O documento se refere aos anos de 2010 e 2011. Outra auditoria da CGE mostrou a existência de equipamentos hospitalares encaixotados há mais de dez anos no Valter Alencar. — As pessoas estão sendo bem atendidas no hospital. E essas acusações são anteriores à minha gestão — diz o secretário de Justiça do Piauí, Henrique Rebelo, deputado estadual pelo PT. O hospital não é credenciado ao SUS. Diante dessa realidade, o Ministério Público pediu que a unidade não receba mais loucos infratores, o que foi determinado pela Justiça em setembro. Eles passaram a ser levados para outros presídios. A reportagem constatou que o hospital ainda recebe presos comuns, que ficam em celas minúsculas para “triagem”. Um dos quatro detentos nessa condição estava lá há aproximadamente um mês por ter levado uma pancada. PROCESSO DESAPARECIDO Toinha é um dos presos provisórios do hospital penitenciário. O GLOBO descobriu que ele é um detento sem processo na Justiça, sem informações no prontuário, sem família. Os registros mostram que Antônio Vieira Lima chegou à unidade em 6 de julho de 2000, três dias depois da abertura de um inquérito policial. Os arquivos da Secretaria de Saúde apontam que Toinha foi internado compulsoriamente, a pedido de um juiz, em 1992. Ele já passou por um sanatório desativado em Teresina, ficou um tempo no presídio e agora passa os dias nos fundos do Valter Alencar, juntamente com outras 17 pessoas. A reportagem tentou localizar algum processo de Toinha na 1ª Vara do Tribunal do Júri. Ele é suspeito de ter assassinado o pai, mas não há uma sentença para o caso, que ainda estaria na fase de inquérito policial. Depois de vasculhar os armários da vara, o escrivão disse que o processo “desapareceu”. Toinha tem esquizofrenia, a mesma doença da maioria de seus colegas de ala. — Tenho vontade de sair. Não saio porque minha família não vem me buscar — diz Toinha. Presos provisórios estão espalhados pelo hospital. Gregório de Barros, um homem franzino e com limitações físicas, chegou ao presídio ao lado em 1999. Desde 2007, divide uma “enfermaria” que mistura pacientes com transtornos mentais e clínicos. Agentes dizem que ele não tem problemas psiquiátricos. A Justiça nunca se manifestou sobre o quadro clínico de Gregório. l
BB LOUCURA ATRÁS DAS
GRADES ONTEM:
Retratos da vida insana AMANHÃ:
SUS chega a menos da metade da população carcerária
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PubDate: 19-02-2013 Zone: Nacional Edition: 1 Page: PAGINA_C User: Asimon Time: 02-18-2013 21:28 Color: C K Y M
Terça-feira 19 .2 .2013
País
O GLOBO
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LOUCURA ATRÁS DAS GRADES _
ANDRÉ COELHO
CNJ dá 15 dias para juízes de execução penal se explicarem ‘A situação apontada é um verdadeiro escândalo nacional’, diz fiscalizador do sistema carcerário
ABANDONADOS ATÉ PELO SUS
Sem tratamento. Presos no Hospital Psiquiátrico Valter Alencar, em Teresina: não há vagas para loucos infratores nas comunidades terapêuticas instaladas na capital do Piauí
MINISTÉRIO RECONHECE que apenas 38% da população carcerária recebem atendimento e que cobertura de saúde mental é ainda mais baixa VINICIUS SASSINE Enviado especial
vinicius.jorge@bsb.oglobo.com.br -SÃO LUÍS- O Sistema Único de Saúde (SUS) chega a menos de quatro entre dez detentos nos presídios brasileiros. Um levantamento oficial do Ministério da Saúde aponta que apenas 38% da população carcerária recebem atendimento primário por equipes financiadas pela União. Isso significa que 310 mil presos, de um universo de 500 mil, não são acompanhados diretamente por uma equipe do SUS. Técnicos do ministério ressaltam que a cobertura de saúde mental é ainda bem inferior ao índice de 38%, uma vez que faltam psiquiatras nas equipes médicas montadas no cárcere. Há dez anos, os ministérios da Saúde e da Justiça instituíram a Política Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário. Portarias editadas pelas próprias pastas são descumpridas na execução do programa. Em 2007, os valores a serem repassados anualmente às 27 unidades da Federação foram atualizados para R$ 46,1 milhões. Ano passado, os estados receberam apenas R$ 8,3 milhões para gastar com atendimento em saúde nos presídios, 18% do valor estipulado em portaria. No Maranhão e no Piauí, a realidade da loucura no cárcere foi mostrada pelo GLOBO nas primeiras reportagens desta série. Os dois estados aderiram ao programa em março e dezembro do ano passado, respectivamente. Os repasses de dinheiro para custeio de equipes multiprofissionais de saúde nos presídios são feitos a partir da aprovação da adesão. No caso dos dois estados, a inclusão demorou dez anos para ocorrer. Os recursos são repassados conforme o tamanho da população penitenciária. Para o Maranhão estão previstos, desde 2007, R$ 583,2 mil anuais. Para o Piauí, R$ 648 mil. Nos presídios em que a equipe de reportagem esteve, não havia médicos ou enfer-
ABSOLVIDO E AINDA PRESO Na Casa de Detenção (Cadet) em São Luís, José das Chagas Silva Costa cumpre duas medidas de segurança. Ele passa os dias numa rede, sem atendimento médico, num antigo refeitório que passou a funcionar como cela. Divide o espaço com presos comuns. Técnicos de saúde do sistema prisional em São Luís dizem que ele tem transtorno de personalidade antissocial. José das Chagas foi absolvido pela Justiça em dois processos. Mesmo assim, continua preso — segundo ele, desde 2003 — e sem perspectiva de tratamento médico para seu transtorno de personalidade. — Queriam me matar e me jogar no mar, no porto. O psiquiatra mandou me matar — disse ele.
-SÃO LUÍS-
meiros atendendo. Outro estado visitado, Goiás, teve o repasse suspenso, em 2011, em razão da baixa execução dos recursos. A decisão do Ministério da Saúde atingiu mais sete estados naquele ano. Enquanto o SUS não chega aos presídios, a Justiça no Maranhão trava uma batalha com o governo do estado para conseguir tratamento psiquiátrico e internação aos loucos infratores que estão presos. Um termo de compromisso, por iniciativa da 2ª Vara de Execução Penal, chegou a ser firmado para que o Hospital Psiquiátrico Nina Rodrigues — o único da rede pública — abra vagas aos pacientes. A unidade rejeita internações, como ocorreu com Francisco Silva Costa. Absolvido pela Justiça em função de esquizofrenia e em cumprimento de medida de segurança, ele permanecia preso na cadeia de Poção de Pedras, no Maranhão. Francisco foi encaminhado ano passado para o Hospital Nina Rodrigues, que se recusou a interná-lo. O detento voltou para a cadeia no interior e, poucos dias após, cometeu suicídio. O caso foi encaminhado ao Conselho Nacional de Justiça. — Viemos para cá e depois voltamos para Poção. Disseram que a gente não precisava estar numa clínica, mas na cadeia. Ele botou na cabeça que ia morrer e então decidiu se matar — conta Reginaldo Silva, ex-colega de cela de Francisco, agora internado no Hospital Nina Rodrigues. Outro programa federal, o De Volta Para Casa, praticamente excluiu pessoas em cumprimento de medidas de segurança. O projeto do Ministério da Saúde vigora há dez anos e busca a reinserção social de pacientes psiquiátricos, oriundos de longas internações. O programa surgiu na esteira da Lei Antimanicomial, de 2001, que preconiza a internação mínima de pessoas com transtornos mentais. Uma lei de 2003 instituiu o pagamento do auxílioreabilitação psicossocial, forma de estímulo ao retorno à comunidade. Em 2012, foram pagas 4,1 mil bolsas, cada uma no valor de R$ 320 por mês. O be-
nefício não chegou aos loucos infratores oriundos de presídios, manicômios judiciários e clínicas. — O programa De Volta Para Casa não tem nada a ver com o sistema prisional. Não há pacientes oriundos de prisões ou manicômios judiciários. Esse é um mundo à parte, que estamos discutindo agora com o CNJ — diz o secretário de Atenção à Saúde do ministério, Helvécio Magalhães. Não é o que diz a lei que instituiu o auxílio-reabilitação: “Egressos de hospital de custódia e tratamento psiquiátrico poderão ser igualmente beneficiados, procedendo-se, nesses casos, em conformidade com a decisão judicial”, diz o texto. Outro ponto crucial são as chamadas residências terapêuticas, custeadas pelo SUS para receber pacientes oriundos de hospitais psiquiátricos. O dinheiro é repassado aos municípios. A gestão cabe aos estados. — As residências terapêuticas não contemplam presos nem oriundos de manicômios judiciários. As pessoas têm de estar fora do sistema judiciário — diz Helvécio. O juiz Luciano Losekann, auxiliar da presidência do CNJ, critica o baixo alcance do programa. Funcionam hoje, no país, 636 residências terapêuticas; 145 estão em fase de implantação: — O De Volta Para Casa não funciona. Faltam residências terapêuticas, e a participação de egressos de presídios e manicômios é muito baixa. No Maranhão, apenas São Luís e Imperatriz têm residências terapêuticas em funcionamento. Nenhuma vaga é destinada aos loucos infratores. Também não há vagas para esses pacientes em Teresina, única cidade do Piauí a contar com residências terapêuticas. O Ministério da Saúde diz que vai ampliar a cobertura de saúde em presídios e cadeias públicas. — Queremos chegar a 60% de cobertura nos presídios ainda neste ano. O valor repassado por equipe de saúde hoje é de R$ 3,7 mil. O projeto é passar a R$ 35 mil por equipe — diz Helvécio. l
ANDRÉ COELHO
-BRASÍLIA- O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu cobrar explicações das varas de execução penal em São Luís, Goiânia e Brasília sobre os processos das pessoas com transtornos mentais detidas em presídios, situações mostradas pelo GLOBO no domingo. O juiz Luciano Losekann, auxiliar da presidência do CNJ e coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário, elaborou os ofícios ontem, com base nas reportagens do jornal. Ele pede que os juízes que atuam nas três capitais forneçam informações sobre o andamento dos processos e sobre as circunstâncias das prisões de pessoas já absolvidas pela Justiça em razão de transtornos mentais. O prazo dado pelo juiz é de 15 dias. No documento enviado às varas de execução penal, Losekann cobra informações sobre cada um dos detentos mostrados nas reportagens do GLOBO. O juiz do CNJ quer saber o que foi feito em relação à situação jurídica dos presos. Se ficar constatada a omissão da Justiça nos estados, o CNJ poderá instaurar procedimentos administrativos disciplinares contra os magistrados responsáveis, segundo Losekann. O CNJ também deve enviar as informações sobre violação de direitos humanos nos presídios ao Ministério Público nos estados, para apuração das responsabilidades dos governos estaduais. — A situação apontada é um verdadeiro escândalo nacional. Essa é uma das áreas em que encontramos mais dificuldades, pois a solução não depende apenas de decisão judicial, mas de perícias médicas que podem levar anos para ser realizadas — disse Losekann. O CNJ também vai averiguar a situação dos presos colocados em um manicômio judiciário, o Hospital Penitenciário Valter Alencar, e num presídio de regime semiaberto em Teresina. Reportagem publicada ontem mostrou que detentos provisórios estão no hospital há mais de 20 anos, sem laudos psiquiátricos, sem decisão da Justiça e sem aplicação de medida de segurança. Presos com transtornos mentais ficam misturados com presos com outras doenças. O órgão vai fazer um mutirão nas unidades prisionais do Piauí em abril e, na ocasião, vai analisar os prontuários de cada um dos internos mostrados pelo GLOBO. — A verificação da situação pessoal de cada um definirá se eles serão colocados em liberdade — afirmou o juiz auxiliar da presidência do CNJ. A presença de repórteres nos presídios já motivou providências nos estados visitados. Em São Luís, a Defensoria Pública pediu a instauração de incidente de insanidade mental e a consequente aplicação de medida de segurança (reconhecer a absolvição e determinar a transferência para local apropriado) ao detento José Antônio dos Santos, o Cola na Cola, que vive num buraco na Casa de Detenção (Cadet). A Justiça pediu celeridade na tramitação do processo de Paulo Ricardo Machado, diagnosticado com esquizofrenia e preso na Cadet, onde passou a ter surtos depois de sofrer violência sexual. No último dia 8, Francisco Carvalhal foi transferido de um Centro de Detenção Provisória para o Hospital Psiquiátrico Nina Rodrigues, por determinação judicial. Carvalhal tem esquizofrenia, foi absolvido pela Justiça e, depois de ser rejeitado pelo Nina Rodrigues, matou a mãe. A Justiça o reencaminhou à unidade dez dias após O GLOBO encontrá-lo no CDP. Em Goiânia, a juíza Telma Aparecida Alves, da 1ª Vara de Execuções Penais, diz ter aplicado medidas de segurança para parte dos casos contados na reportagem. Para outros, ela determinou que o estado faça os laudos psiquiátricos. Em Brasília, quatro loucas infratoras cumprem medidas de segurança no Presídio Feminino, em celas onde estão presas comuns. (Vinicius Sassine) l
BB LOUCURA ATRÁS DAS GRADES DOMINGO:
Retratos da vida insana no cárcere ONTEM:
Tortura e abandono em hospitais de custódia AMANHÃ:
Programas tidos como modelo também falham
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LOUCURA ATRÁS DAS GRADES
RETRATOS DA VIDA INSANA NO CÁRCERE _
TRATAMENTO DESUMANO Ao menos 800 doentes mentais acusados de crimes e que deveriam estar em clínicas ou hospitais de custódia vivem ilegalmente em prisões comuns; ‘terapia’ tem choque, mas não remédio FOTOS DE ANDRÉ COELHO
VINICIUS SASSINE vinicius.jorge@bsb.oglobo.com.br -SÃO LUÍS- Num buraco ao lado de uma criação de porcos, da tubulação de esgoto e do resto da comida servida na Casa de Detenção (Cadet), Cola na Cola passa as noites e cumpre sua pena. José Antônio dos Santos não admite mais ser chamado pelo nome, refuta pai e mãe, veste-se com roupas femininas e se considera mulher. Só atende pela alcunha Cola na Cola, uma expressão que ninguém sabe explicar de onde surgiu. — Fui eu que mandei fazer essa cadeia. E não estou preso. Fico aqui pelo chamado para acabar com a corrupção — diz ele. O Estado nunca diagnosticou seu transtorno mental. Nos últimos dois anos, ele não aderiu a qualquer tratamento psiquiátrico, não tomou uma única medicação nem esteve numa consulta médica. O buraco onde mora está na entrada do presídio, na parte de dentro, onde ficam os porcos, as galinhas e o lixo. No pátio de uma pequena igreja improvisada numa das celas da Cadet, o maior presídio de regime fechado de São Luís, um jovem de 24 anos estende um colchão para passar as noites. Paulo Ricardo Machado tem os olhos esbugalhados, frases aceleradas, uma postura impassível. Há dois meses, foi diagnosticado com esquizofrenia paranoide e dependência ao crack. A loucura de Paulo Ricardo explodiu na Cadet depois que um preso introduziu um cabo de vassoura no ânus do jovem. Para conter os surtos, técnicos de saúde da unidade pediram a aplicação de oito sessões de eletrochoque no rapaz. Eles dizem ter sido atendidos. Num cubículo de cela, sem nada, Francisco Carvalhal, 50 anos, tenta domar a agressividade. Ele já foi absolvido uma vez pela Justiça, em razão de a esquizofrenia paranoide ter impedido a compreensão de um ato ilícito. O juiz determinou que Francisco fosse internado no Hospital Psiquiátrico Nina Rodrigues, o único existente na rede pública em São Luís, para o cumprimento de uma medida de segurança. O hospital rejeitou o paciente. Dias depois, sem medicação e em surto, ele matou a mãe. Para escapar de um linchamento, foi levado para o Centro de Detenção Provisória (CDP) Olho D'Água, onde permanece há dois meses.
800 ABSOLVIDOS AINDA DETIDOS Cola na Cola, Paulo Ricardo e Francisco somam-se a outros presos portadores de doença mental que vivem à margem das estatísticas oficiais e da lei. Na teoria, a existência do transtorno mental e a consequente aplicação de uma medida de segurança a partir da absolvição pelo juiz impedem a permanência de loucos infratores nos presídios. Levantamento inédito do GLOBO revela a extensão do universo de loucos nos presídios brasileiros — um grupo cuja existência parte da sociedade brasileira prefere ignorar. Pelo menos 800 pessoas absolvidas pela Justiça em razão de transtornos mentais e em cumprimento de medida de segurança estão detidas em presídios e cadeias públicas país afora. A medida tem um prazo mínimo de um a três anos, é determinada pelo juiz responsável pelo processo — logo após a absolvição do acusado — e deve ser cumprida em hospitais de custódia, clínicas ou ambulatórios. Essas pessoas são consideradas inimputáveis ou semi-imputáveis, uma vez que a manifestação dos problemas psiquiátricos impediu a compreensão dos crimes, e deveriam estar em tratamento médico. Na prática, cumprem pena no cárcere. A quantidade pode ser até três vezes maior: outros 1,7 mil brasileiros acusados de diferentes crimes já receberam indicação da Justiça de que podem ter transtornos mentais e aguardam, além de um laudo psiquiátrico, tratamento médico
“Cola na Cola”. Encontrado pelo GLOBO num buraco ao lado de porcos e do lixo na Casa de Detenção de São Luís, José Antônio dos Santos nunca recebeu diagnóstico de transtorno mental
Esquecidos. Em São Luís (MA), doentes mentais são mantidos presos sem tratamento
Misturado. Eugênio de Jesus, com transtorno de personalidade, preso em cadeia comum
dentro de presídios, em casa ou nas ruas. Em alguns estados, como São Paulo, a espera numa fila dura mais de um ano. Em outros, o laudo nunca é elaborado. O levantamento do GLOBO foi feito junto às secretarias de administração penitenciária, defensorias públicas e varas de execução penal nos estados, além de consultas a fontes nos Ministérios da Saúde e da Justiça. O Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (Infopen), alimentado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, registra a existência de 3,9 mil pessoas em cumprimento de medida de segurança, seja em internação ou em tratamento ambulatorial. Os doentes mentais nos presídios identificados pelo jornal não entram na conta. Os números oficiais tratam dos 26 manicômios judiciários e alas de tratamento psiquiátrico — anexadas a presídios — ainda em funcionamento em 20 unidades da federação. Cabe a esses hospitais de custódia receber os loucos infratores submetidos a medidas de segurança de internação. O Infopen ignora as pessoas que cumprem a medida em prisões e até mesmo os inscritos em dois programas em Goiás e Minas Gerais que pregam a desinternação, como preconiza a Lei Antimanicomial de 2001. Somados os três universos — manicômios, presídios e programas de desinternação —, a quantidade de loucos infratores é de 8,1 mil, mais do que o dobro do que consta no Infopen. — A situação mais grave envolvendo medidas de segurança é a dos detidos em presídios. A responsabilidade pela integridade física do preso é do Executivo e, pelo andamento do processo, da Justiça. A Lei de Tortura prevê responsabilização por ação e omissão. Não há qualquer justificativa para as prisões — afirma o juiz Luciano Losekann, auxiliar da presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário. Para a produção de uma série de reportagens sobre o assunto, O GLOBO esteve em sete presídios, uma ala de tratamento psiquiátrico e um manicômio judiciário em São Luís, Teresina, Goiânia e Brasília. Nas três primeiras cidades, a equipe conseguiu entrar nas unidades prisionais na companhia de
juízes e de um promotor de Justiça. Em Brasília, uma autorização judicial permitiu ter acesso às prisões. A reportagem flagrou uma realidade de uso contumaz do crack, hipermedicação e inexistência de prontuários em Brasília; a existência de uma ala específica para presos com transtornos mentais num presídio de regime fechado em Goiânia, além de pessoas em cumprimento de medida de segurança misturadas com detentos comuns; e doentes mentais nos mesmos espaços de pacientes com hanseníase e aids no manicômio em Teresina. Em São Luís, pessoas com transtornos mentais estão presas sem qualquer perspectiva de decretação da medida de segurança. Não há laudos, exames ou psiquiatra: a única que atendia no complexo prisional deixou de ir ao trabalho porque está sem pagamento desde dezembro. Um rol de irregularidades que combinam com o “sistema medieval” descrito pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, no final do ano passado. SEGURANÇA NÃO GARANTE TRATAMENTO Pelo menos 25 pessoas cumprem medida de segurança nos presídios em São Luís. Não é o caso de Cola na Cola, o detento que vive num buraco na Cadet há três anos. Condenado a 19 anos de prisão pela suposta prática de dois estupros, é a terceira vez que ele passa pelo presídio. Mesmo com um evidente quadro de loucura, nunca houve um exame de insanidade mental. A medida de segurança não garante tratamento psiquiátrico. Francisco Carvalhal, absolvido num processo por homicídio em razão da esquizofrenia, deveria permanecer internado “pelo tempo necessário à sua recuperação”, como decidiu a Justiça em São Luís. O Hospital Nina Rodrigues deu alta a ele mesmo com a “falta de clareza” sobre a possibilidade de convívio imediato. No mesmo mês, Francisco matou a mãe. Ela relatava desde 2001 ameaças e pedia a internação do filho. Após a reportagem do GLOBO flagrar as três situações no Maranhão, a Defensoria Pública pediu aplicação de medida de segurança a Cola na Cola e a Paulo Ricardo, e o juiz Douglas de Melo Martins decidiu reencaminhar Francisco ao Hospital Nina Rodrigues. A Secretaria da Administração Penitenciária do estado não respondeu aos questionamentos da reportagem.
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MERVAL PEREIRA |
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TRANCADO NUM CUBÍCULO ESCURO, ANDRÉ COMBINA REMÉDIOS E CRACK |
Visão social Um dos temas mais interessantes do debate promovido pelo Instituto Fernando Henrique Cardoso em torno da atualidade do economista britânico John Maynard Keynes (1883-1946) diante da crise financeira que se abate sobre o mundo desde 1998 foi o destaque dado ao lado social de suas teorias, ressaltado pelo ex-ministro Delfim Netto e por Julio Gomes de Almeida, professor da Unicamp.
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rimeiro secretário de política econômica do ministro Guido Mantega, ele foi o orientador da tese de doutorado do economista José Roberto Affonso, cujo primeiro capítulo deu origem ao livro “Keynes, crise e política fiscal”, que estava em discussão. O Instituto Fernando Henrique Cardoso colocou no YouTube (http://bit.ly/YweALT) somente agora uma edição do debate, que foi fechado a um grupo reduzido de economistas. Gomes de Almeida citou três pontos que considera essenciais para entender a teoria de Keynes: a socialização dos investimentos, com o Estado como indutor; a redistribuição de renda a partir da tributação e a eutanásia do rentista, isto é, fazer com que seja muito difícil viver de sua renda passada e não do seu trabalho. Para Delfim Netto, o resumo seria a busca de uma sociedade mais igualitária, mais preocupada com o bem-estar do cidadão. “Essas coisas estão lá em Keynes com bastante clareza. Todo mundo tinha que partir do mesmo ponto, uma sociedade de igualdade de oportunidades absoluta. Ele era democrata e republicano”, ressaltou. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso lembrou que o contexto em que essas teses foram defendidas era “a formação do estado social, depois da guerra”, e que esse ideal “surge toda vez que vem uma tragédia, como agora”. Para ele, “uma utopia inalcançável, mas que é bom que exista para você tentar se aproximar do modelo ideal”. Delfim lembrou que esses princípios estão na nossa Constituição, e funcionando. “As instituições são cada vez mais fortes”, segundo Delfim. Ele e Fernando Henrique concordaram que a nossa “é uma boa Constituição, tem lá todo esse ideal igualitário”, inclusive a preocupação com o direito à saúde e à educação, “que é o que ela tem de melhor”, na opinião de Fernando Henrique. O cientista político Sérgio Fausto colocou a discussão num plano mais ligado à nossa realidade atual do investimento público, lembrando as dificuldades operacioU nais; questões de controle democrático do Os pontos-chave investimento, como a questão ambiental, e Keynes: a socialização perguntou como é dos investimentos; a possível ir desamarredistribuição de renda a rando esses investipartir da tributação; e a mentos públicos. O eutanásia do rentista. economista Roberto Macedo expressou um ceticismo absoluto, inclusive sobre a utilizaO problema a que Keynes ção de parcerias públise refere é o da confiança, co-privadas, as PPPs. resume Delfim Netto. Delfim disse que as críticas às privatizações são equivocadas porque as taxas de retorno A intenção de Keynes hoje consideradas abé encurtar o tempo do surdas só existiram trabalho para liberar o porque o risco Brasil sujeito para viver sua vida. naquela ocasião era de 1.400 pontos, e hoje é de 100 pontos. José Roberto Affonso lembrou que o Keynes original defende que situações distintas recebam tratamentos distintos, e que a participação do Estado em situações de grande depressão é para evitar que a situação piore; não é o Estado que vai conseguir tirar o país da recessão. Para Fernando Henrique Cardoso, o capitalismo sempre vai ter crise, e por isso o Estado tem que estar presente. O que se discute é que tipo de atuação. O ex-ministro Delfim Netto, com sua veia sarcástica ativa naquele dia, disse que tanto Keynes quanto Marx “tiveram o destino de sofrer na mão dos marxistas e dos keynesianos. Se os dois pudessem matar todos os seus seguidores, acho que fariam isso com grande satisfação”. Para ele, o que Keynes disse foi que “quando o mundo muda, eu mudo”. O problema a que Keynes se refere é o da confiança, resume Delfim. “Todo nosso sistema, nossas convenções, estão baseados na confiança. É o que controla tudo”. Para Delfim, ninguém inventou a economia de mercado. O homem saiu da África há milhares de anos e foi procurando meios de construir sua própria subsistência, que combinasse com um pouco de liberdade. Para ele, “o homem não nasceu para trabalhar, e tem que encontrar um jeito de viver sua humanidade. A intenção do Keynes é encurtar o tempo do trabalho para liberar o sujeito para viver sua vida”. Por isso, foi um defensor do sistema de proteção social — desde o seguro para o desempregado até a aposentadoria. l
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Domingo 17 .2 .2013
DOPADO Sem tratamento psiquiátrico prescrito há seis anos, jovem vive em ala comum da prisão; equipe médica não suportou seus surtos ANDRÉ COELHO
VINICIUS SASSINE vinicius.jorge@bsb.oglobo.com.br
As fotos de André Wender Gomes Ribeiro sumiram da espaçosa sala da casa da mãe, no Centro de Goiânia. Nas paredes estão apenas as imagens da irmã mais nova, retratada como filha única nos quadros. André tem 24 anos, olhos verdes e um corpo franzino, marcado por furúnculos, feridas, uma queimadura no ombro e sangue nos dedos. Passa as 24 horas do dia numa pequena cela da Casa de Prisão Provisória (CPP), no complexo prisional da capital goiana. Não há um único equipamento dentro da cela, nem mesmo uma escova de dente: tudo é destruído pelo jovem ou convertido em crack e maconha, combustíveis da loucura de André. A mãe, Marilda Gomes Ribeiro, de 45 anos, afirma textualmente: não quer o filho em casa, pelo menos no atual nível de loucura atingido pelo jovem. — Daquela forma, não quero ele na minha casa. Sempre digo a ele: “Você não é meu filho. Meu filho era outro” — diz a cabeleireira. André reclama das baratas na cela, mostra os ferimentos no corpo provocados por pauladas desferidas por outros presos. Os surtos incomodam colegas de ala no presídio. A queimadura no ombro foi causada por água fervente, jogada por um detento. Quando O GLOBO descobriu André numa das celas da CPP, isolado e agitado, ele tentava ajeitar uma fiação para a instalação de uma lâmpada. No cubículo escuro, o rapaz dorme numa cama de cimento e toma banho com a água que escorre de um furo na parede. Um papelão — o único objeto presente na cela, até a chegada da lâmpada — cobre a cama. O Estado atestou a loucura de André em 2007. Um laudo da Junta Médica do Poder Judiciário em Goiás apontou um quadro de doença mental — “transtorno bipolar de humor, em episódio maníaco com sintomas psicóticos” — e de dependência química. Quase seis anos atrás, os psiquiatras que assinam o laudo já faziam um alerta: a doença se tornaria crônica, caso André “não receba o tratamento psiquiátrico e psicológico adequado, com remédios e terapia para a vida toda”. A internação num hospital psiquiátrico deveria ocorrer com urgência. “Há periculosidade atrelada ao tratamento e aos períodos de crise.” Na cela onde está preso há oito meses, sem direito a banho de sol e com uso contumaz do crack e da maconha, André é dopado pelos agentes -GOIÂNIA-
Tratamento errado. André na cela: “Os psiquiatras me disseram que tenho transtorno bipolar, seguido de psicopatia”
“O André troca a comida que eu levo por crack. Eles misturam maconha com crack, o chamado ‘jambrado’. Ali tudo entra” Marilda Ribeiro Mãe de André penitenciários. O rapaz toma medicamentos com efeitos sedativo, anticonvulsivo e antipsicótico. Mesmo assim, vive em surto no cubículo do presídio. Alterna euforia durante o dia com choros prolongados à noite. Nas celas, onde a direção da penitenciária segrega detentos provisórios com problemas psiquiátricos, a equipe médica não suportou os surtos de André e o mandou para uma ala comum do presídio. — Eu gosto só de fumar pedra. E cocaína e maconha. Fiz pacto com o demônio — diz André. — Todos os psiquiatras me disseram que tenho transtorno bipolar, seguido de psicopatia — repete o jovem. André não deveria estar preso, tanto do ponto de vista legal quanto médico. A Justiça já determinou por quatro vezes a absolvição do jovem em processos que o acusavam de furto, agressão e tráfico de pequenas por-
ções de droga. O transtorno mental o impedia de ter ciência completa dos atos, conforme laudos médicos corroborados por juízes. Inimputável, André foi absolvido e submetido a medidas de segurança. Deveria estar numa clínica psiquiátrica. Voltou ao presídio por um flagrante de furto. O rapaz está incluído no Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (Paili), que acompanha 240 pessoas em cumprimento de medida de segurança em Goiás. A filosofia do programa da Secretaria de Saúde, considerado modelo no país, é a da não reclusão e do acompanhamento psiquiátrico contínuo. O projeto falhou e falha com André. Ele fugiu na maioria das sete vezes em que esteve numa clínica psiquiátrica. Enclausurar o jovem numa cela, dopá-lo e permitir o consumo do crack e da maconha foram as soluções encontradas para a psicose do rapaz. “FÓSFORO RISCADO NA LÍNGUA” Quando criança, André começou a arrancar todo o cabelo da cabeça para comê-lo. Desenvolveu mania de limpeza: a mãe conta que, uma vez, ele se esfregou por duas horas com uma escova de lavar roupas. André tem “megalomania notória”, segundo laudos psiquiátricos. Aos três anos de idade, foi atropelado por um carro. — Ele parou de arrancar e comer o cabelo quando começou a fumar maconha, aos 12 anos — conta Marilda. Num dos inúmeros depoimentos à polícia, André fez um relato sobre o uso de drogas: “A primeira droga que usei foi um fósforo riscado na língua.” Na adolescência, passou por centros de internação para infrato-
res. Já adulto, cumpriu quatro anos de prisão, em regimes provisório e fechado, em diferentes passagens por presídios. Na maior parte do tempo, já estava absolvido pela Justiça. A mãe desistiu de levar escova de dente, roupas, toalhas e comida ao filho, sempre trocados por crack. Marilda não entra mais na cela, desde o dia em que foi agredida dentro do cárcere. Em 2007, ela denunciou André à polícia por agressão: levou uma violenta cabeçada do filho. Naquele mesmo ano, o jovem foi acusado de extrair uma tira de lençol da cama de uma clínica, laçá-la por duas vezes no pescoço de um paciente e estrangulá-lo até a morte. Em razão dos transtornos mentais, foi absolvido pela Justiça. Há muito tempo André não aparece no salão de beleza e na ampla casa da mãe, que fica no andar de cima. A mente do jovem produz um emaranhado de frases desconexas e sem sentido, com poucas exceções, entre elas o endereço e os telefones da mãe. Foi a partir das informações fornecidas por André que a reportagem do GLOBO chegou até Marilda. Ela quer a internação compulsória do filho. Marilda diz que visita André na prisão todo domingo e que o estado do filho é deplorável. Segundo ela, não falta droga dentro do presídio. — O André troca a comida que eu levo por crack. Já observei um menino puxando a droga com um rodo. Eles misturam maconha com crack, o chamado “jambrado”. Ali tudo entra. Uma vez, uma marmita cheia de “pedra” caiu nos pés de um juiz — conta Marilda, que se sente de pés e mãos atados: — Meu filho briga muito. Peço a Deus para protegê-lo.
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Domingo 17 .2 .2013
LOUCURA ATRÁS DAS GRADES _
MAIOR PRESÍDIO DE GOIÁS TEM ‘ALA DE PSIQUIATRIA’
ANDRÉ COELHO
DOZE DETENTOS COM transtornos mentais vivem isolados; processos têm laudos inconclusivos VINICIUS SASSINE vinicius.jorge@bsb.oglobo.com.br -GOIÂNIA- O maior presídio de Goiás isola 12 detentos com graves transtornos mentais em duas pequenas celas, em regime fechado, sem atendimento psiquiátrico por meses a fio. Homicidas e latrocidas dividem espaço com acusados de furtos e crimes menores. Uma consulta aos processos na Justiça revela uma realidade de laudos psiquiátricos inconclusivos. Não se sabe com exatidão o problema mental dos presos, apesar de estarem numa “ala de psiquiatria” improvisada na Penitenciária Odenir Guimarães (POG), o antigo Cepaigo, que fica numa cidade vizinha a Goiânia. Também não há posição definitiva da Justiça sobre a periculosidade desses presos — boa parte já cumpriu tempo de pena suficiente para ganhar as ruas. A juíza titular da 1ª Vara de Execuções Penais em Goiânia, Telma Aparecida Alves, responsável pelos processos dos detentos em regime fechado, disse desconhecer a existência da “ala de psiquiatria”. Foi informada pelo GLOBO. A reportagem teve acesso à penitenciária na companhia da magistrada, que coletou os dados dos presos com transtornos mentais para verificar os processos e os laudos médicos. Gerentes do presídio negaram que pessoas em cumprimento de medida de segurança, aplicada
após absolvição em função do problema mental, estejam nas celas. Mas, entre os 12 presos em regime fechado, parte já foi absolvida, como O GLOBO constatou nos processos. Documentos internos do presídio apontam a existência de pelo menos cinco detentos cumprindo medida de segurança. Um psiquiatra que atuou por vários anos na unidade estima que entre 15 e 20 presos estão absolvidos e que entre 40 e 50 internos aguardam laudo sobre os problemas psiquiátricos. Um dos casos de maior gravidade encontrados pela reportagem na “ala de psiquiatria” é o de Marcelo Neves da Silva, de 32 anos, preso desde abril do ano passado. Dopado por medicamentos, tremendo e num intermitente e alternado movimento das pernas, Marcelo não conseguia pronunciar frase conexas. Apenas riu quando falou de um assassinato cometido numa briga de bar: — Nenhum familiar vem me visitar. Eles não sabem que eu estou aqui. Marcelo foi absolvido pelo Tribunal de Júri em Goiás em novembro de 2009, em razão do transtorno mental, e obrigado a cumprir medida de segurança pelo prazo mínimo de um ano. No processo em curso na Vara de Execuções Penais não há qualquer documento referente ao período entre 2003 e 2007. No último mês de dezembro, o Ministério Público pediu a efetiva aplicação da medida de segu-
Descaso. Na Penitenciária Odenir Guimarães, preso fica no pátio: detentos escolhem quem vai para “ala de psiquiatria” rança, com a inclusão de Marcelo no Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator, que busca oferecer atendimento psiquiátrico fora dos presídios. Os laudos existentes no processo são inconclusivos. “Não foi realizado exame de insanidade mental. Não há elementos para conclusão diagnóstica”, diz um parecer da Junta Médica de 2002. No ano anterior, médicos já atestavam “quadro psicótico grave”. Há relatos no processo de “péssimo comportamento carcerário” e de “liderança de rebelião” no presídio. Com acusações de latrocínio, homicídio e roubo, e diversas passagens por presídios nos últimos dez anos, o caso de Marcelo segue indefinido. Na mesma ala está um jovem condenado a 25 anos de prisão pelo assassinato de um promotor de Justiça em Goiânia. José Huadson Correia, de 28 anos, pode ganhar as ruas sem que o estado tenha concluído um laudo sobre seu estado de saúde mental. Uma audiência da Justiça vai definir se ele seguirá para o regime semiaberto. Apesar da
“gravidade do quadro clínico”, atestada por psiquiatras da penitenciária, a Junta Médica da Justiça em Goiás nunca concluiu um laudo. Dentro da “ala de psiquiatria”, detentos dizem estar há três meses sem ver um psiquiatra. A juíza Telma Aparecida relata que a penitenciária já chegou a ficar cinco meses sem um profissional. Medicamentos não faltam aos detentos da ala. As celas são imundas, fétidas e insalubres. Não há camas e colchões em condições mínimas de uso. Os presos passam a maior parte do tempo num pequeno pátio. O crack chega com facilidade. Nas celas ao lado, estão dependentes químicos em tratamento. A “escolha” de quem será levado para a “ala de psiquiatria” é feita pelos próprios presos: monitores que adentram as alas da massa carcerária identificam casos de surtos e manifestações de transtornos e fazem os encaminhamentos aos agentes penitenciários. Poucos são os servidores que entram nessas alas, onde estão 1,6 mil presos.
Internação não pode ser em presídio Contexto
Presos com transtorno mental devem ser tratados em hospital de custódia ou clínica
O
juiz aplica uma medida de segurança quando, por conta de um transtorno mental, o responsável pelo crime compreende parcialmente a ilicitude ou é incapaz de compreender. Essas pessoas são, então, consideradas semi-imputáveis ou inimputáveis. Um exame determina a incidência de insanidade mental. Ao acatar os resultados do exame, o juiz absolve o acusado e determina a aplicação da medida de segurança. O prazo mínimo é de um a três anos. Se a periculosidade persistir, a internação prossegue por tempo indeterminado. Para que o fim da medida seja decretado, é exigido um laudo de cessação de periculosidade. Os apenados com reclusão devem ser internados num hospital de custódia ou numa clínica psiquiátrica. No entanto, o juiz
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oglobo.com.br/pais No maior presídio da capital do Maranhão, um detento com esquizofrenia vive num buraco, ao lado do esgoto e de uma criação de porcos l VÍDEO:
l VIDA NO CÁRCERE: O drama de um jovem com transtorno mental absolvido pela Justiça e que vive isolado dos demais presos em uma cela l FOTOGALERIA:
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deve dar preferência ao tratamento ambulatorial, em consonância com a Lei Antimanicomial, em vigor desde 2001. Mas, em qualquer situação, o infrator obrigatoriamente deve ser tratado por uma equipe de saúde mental. Qualquer pessoa que for presa e desenvolva algum tipo de surto já na cadeia, deve receber atendimento na rede de saúde mental, conforme o transtorno desenvolvido ou agravado. O atendimento ambulatorial pode ser realizado no presídio. No entanto, se a partir desse episódio, o juiz optar pela absolvição e pela aplicação de uma medida de segurança, a pessoa deve ser levada para um hospital de custódia, uma clínica psiquiátrica ou para tratamento ambulatorial fora do cárcere. Tanto o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) quanto a Procuradoria Geral da República (PGR) consideram inadmissíveis o cumprimento de medidas de segurança em presídios e cadeias públicas. Todas as portarias e resoluções que estão em vigor, alinhadas com a Lei Antimanicomial, vetam a prática. l
imagens da situação de alguns detentos em presídios, manicômio judiciário e ala de tratamento psiquiátrico Relembre a cobertura completa do maior escândalo já julgado pelo STF
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Depen: faltam hospitais para presos com doença mental Órgão não sabe, porém, quantos estão em situação irregular O Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, diz ter conhecimento de doentes mentais que cumprem medida de segurança em presídios e cadeias públicas, mas não informa quantas são essas pessoas. O Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (Infopen), alimentado pelo Depen, não faz esse registro. “Nem todos os estados possuem hospitais de custódia e alguns utilizam ala específica dentro dos estabelecimentos penais. O Infopen traz apenas as informações no âmbito do sistema prisional”, afirma o Depen, por meio da assessoria de imprensa. O órgão diz que um censo dos manicômios judiciários, financiado pelo Ministério da Justiça, “traz uma avaliação estado por estado”. O levantamento, porém, não levou em conta as pessoas que estão em presídios e cadeias públicas, mas somente os que estão internados em hospitais de custódia e alas de tratamento psiquiátrico anexadas a presídios. Um grupo de trabalho interministerial vai discutir modelos que substituam a aplicação de medidas de segurança, segundo o Depen. “O conhecimento produzido pela pesquisa vai auxiliar no aperfeiçoamento dos processos de saúde mental no sistema prisional.” Fazem parte do grupo o Depen, o Ministério da Saúde, o Ministério do Desenvolvimento Social, o Conselho Nacional de Justiça e o Ministério Público Federal. l -BRASÍLIA-
BB LOUCURA ATRÁS
DAS GRADES AMANHÃ:
A situação de doentes mentais em Teresina
Product: OGlobo PubDate: 20-02-2013 Zone: Nacional
10
l O GLOBO
Edition: 1
Page: PAGINA_J User: Asimon
Time: 02-19-2013 21:49 Color: C K Y M
l País l
Quarta-feira 20 .2 .2013
LOUCURA ATRÁS DAS GRADES _
ATÉ PROGRAMAS-MODELO FALHAM NO ATENDIMENTO
Em Goiânia, jovem preso aguarda exame psiquiátrico Detido porque um amigo portava maconha, ele diz não saber quem é sua mãe e o motivo da prisão
EM MINAS E EM GOIÁS, projetos não acabam com filas de espera por tratamento psiquiátrico nem com a prisão de doentes mentais ANDRÉ COLEHO
VINICIUS SASSINE vinicius.jorge@bsb.oglobo.com.br
Os programas que mais se aproximam dos parâmetros preconizados para o tratamento de loucos infratores contêm falhas e um alcance restrito, o que vem impedindo a retirada completa dessas pessoas de presídios e manicômios judiciários. A existência dos projetos em Minas Gerais e em Goiás não conseguiu eliminar filas de espera por atendimento psiquiátrico nem acabar com a realidade de pessoas com transtornos mentais no cárcere nos dois estados, uma regra nos quatro cantos do país, como O GLOBO vem mostrando em série de reportagens publicadas desde domingo. Considerados modelos no país e as únicas iniciativas aceitáveis na aplicação de medidas de segurança, o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ), em Minas, e o Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (Paili), em Goiás, se aproximam do que prevê a Lei Antimanicomial, de 2001: “a internação só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”. Na prática, o PAI-PJ e o Paili acompanham com regularidade a aplicação de medidas de segurança, estipuladas pela Justiça para acusados diagnosticados com transtornos mentais. Os loucos infratores são inseridos em serviços públicos de saúde, como Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e clínicas psiquiátricas. O objetivo é o de internação e prisão mínimas. O programa em Minas é vinculado ao Tribunal de Justiça, em auxílio direto aos juízes criminais. Existe como projeto em Belo Horizonte desde 2000 — foi pioneiro no país — e somente em 2010 passou a contemplar casos em cidades do interior do estado. Juízes ouvidos pelo GLOBO que participam de mutirões no país para acompanhar o cumprimento de medidas de segurança afirmam que “a estrutura do PAI-PJ é muito precária, tirando Belo Horizonte”. — Em Minas, não há a celeridade que dizem ter. Os programas de acompanhamento processual são primários — diz um magistrado. Mesmo com a existência do programa, três manicômios judiciários continuam em pleno funcionamento em Minas, um deles entre os mais antigos do país: o Hospital Psiquiátrico e Judiciário Jorge Vaz, em Barbacena, aberto desde 1929. As três unidades abrigam 300 pessoas. Uma peculiaridade do Hospital de Barbacena é a grande quantidade de pacientes idosos, internados há décadas na unidade. — Desde 2000, o PAI-PJ fez diminuir a porta -BRASÍLIA-
Precariedade. Detentos na Penitenciária Odenir Guimarães, em Goiânia, onde há ala improvisada para doentes mentais de entrada em Barbacena, mas ainda há uma lista de espera para manicômios no estado inteiro. Já houve diversos casos de saída dos manicômios e inclusão no programa — afirma Fabrício Ribeiro, psicólogo que atua no PAI-PJ. O Paili não é diretamente vinculado à Justiça em Goiás, mas à Secretaria de Saúde do estado. Funciona desde 2006, inspirado no projeto de Minas. O programa atende hoje 243 pessoas e outras 55 já tiveram a medida de segurança extinta pela Justiça após o tratamento psiquiátrico. O foco principal do Paili é a capital goiana. No interior do estado, loucos infratores cumprem medidas de segurança em cadeias públicas em péssimas condições, conforme denúncias encaminhadas ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em Goiânia esta também é uma realidade, como já mostrado na série de reportagens. Os gestores do programa informam que 15 dos 243 pacientes em tratamento estão presos. Há uma lista de espera para inclusão no projeto. — Muitas vezes um novo delito é cometido porque a doença não é tratada. O índice de reincidência em crimes entre os pacientes do Paili é baixo, inferior a 10%, a maior parte por conta de
usuários de drogas e psicopatas — diz Cláudia Loureiro, psicóloga do programa. Um anteprojeto de lei elaborado por técnicos de diferentes ministérios, entre eles o da Justiça e o da Saúde, prevê expressamente que pessoas com transtornos mentais não poderão ser mantidas em prisões e que a periculosidade não deve ser determinante para o afastamento do convívio social. O tempo de uma medida de segurança, conforme o projeto discutido, não deve ultrapassar o tempo de pena estipulado para o crime equivalente. O grupo de trabalho quer que o Código Penal faça as mesmas previsões da Lei Antimanicomial. Os projetos de lei sobre o assunto que tramitam no Congresso não estão alinhados com a Lei Antimanicomial, segundo entendimento da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, da Procuradoria Geral da República (PGR). Já o novo Código Penal em discussão no Senado prevê a continuidade da reclusão de pessoas em medida de segurança mesmo após a cessação da periculosidade, na esfera cível. A proposta encontra resistência no Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
-GOIÂNIA- “Você vai me tirar daqui”, pergunta Fabrício Arlindo dos Santos, de 23 anos, de dentro de uma cela da Casa de Prisão Provisória (CPP), no complexo prisional em Goiânia. O jovem está preso porque um amigo portava seis porções de maconha, de 93 gramas ao todo, na periferia da capital goiana. A pergunta e o nome completo são as únicas palavras que Fabrício consegue pronunciar, ainda sim com dificuldades na fala. O rapaz não sabe dizer o nome da mãe, qual acusação pesa sobre ele, há quanto tempo está preso, o dia em que nasceu. Se continuar sem um diagnóstico psiquiátrico e sem atendimento médico, poderá repetir as histórias de vida mostradas pelo GLOBO ao longo desta série de reportagens. Fabrício toma seis psicotrópicos, segundo os enfermeiros responsáveis pela ala onde ficam pessoas com transtornos mentais detidas em flagrante. Ele divide a cela com outro preso com transtorno e com um detento paraplégico. O jovem tem epilepsia e crises convulsivas. O único psiquiatra da prisão provisória “está de férias”, segundo a equipe de saúde. No processo de Fabrício, não há qualquer exame ou laudo que tenha sido realizado desde a sua prisão, no começo de janeiro. O único registro sobre sua saúde é o do exame de praxe feito pelo IML: “bom estado geral”. Apontado por policiais militares como “intermediário” na venda da droga, Fabrício não portava maconha. À polícia, negou ser traficante. Disse ser servente, ter carteira assinada e um salário mensal de 622 reais. O rapaz deixou de responder à grande maioria das perguntas na delegacia e confirmou já ter se internado para tratamento de “enfermidade mental”. Sua prisão provisória foi convertida pela Justiça em preventiva. O motivo: “garantir a ordem pública”. l NA WEB
oglobo.com.br/pais
Confira o ambiente multimídia da série de reportagens iniciada no domingo BB LOUCURA ATRÁS DAS GRADES DOMINGO:
Retratos da vida insana do cárcere SEGUNDA:
Tortura e abandono em hospitais TERÇA:
Abandonados até pelo SUS