DOMINGO
OGLOBO (1904-2003) Roberto Marinho
BOA CHANCE
REVISTA O GLOBO
REVISTA DA TV
OS PEDIDOS MAIS ESDRÚXULOS FEITOS PELOS CHEFES
EM NOVA FORMA
ELA É CHEIA DE GRAÇA
SAÚDE
CÃES E GATOS MELHORAM A SAÚDE DOS DONOS PÁGINA 45 MORAR BEM
ESTUDO MOSTRA COMO SERÃO OS PRÉDIOS DO FUTURO LOGO
Estreando formato mais arejado e dinâmico, a Revista revela os bastidores das mudanças no Copacabana Palace para ficar mais acessível.
PARA MÃES DE TODAS AS TRIBOS Seção Achados Imperdíveis traz 90 dicas de presentes para o Dia das Mães.
Final da Taça Rio
oglobo.com.br
SEGUNDO CADERNO Foto ‘viva’
O ‘INFERNO’ DOS TRADUTORES Para evitar vazamentos, tradutores de “Inferno”, o novo livro de Dan Brown que sai no Brasil dia 24, trabalharam 7 semanas isolados, sob forte esquema de segurança.
O DESTINO DA OSB Secretaria de Cultura e Cidade das Artes divergem sobre possível sede para orquestra.
Enquanto mostra seu lado cômico em “O dentista mascarado”, Taís Araújo admite que ainda sente medo ao fazer humor e que, para superar críticas na novela “Viver a vida”, fez análise.
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Crianças tiram o olho mágico da porta de casa e levam para o campo. Nasce um filme. Use o QR code.
RIO DE JANEIRO
MÔNICA IMBUZEIRO
Irineu Marinho (1876-1925)
DOMINGO, 5 DE MAIO DE 2013 ANO LXXXVIII - Nº 29.126
CAETANO VELOSO O português diz “Percebes?” no filme, mas a legenda brasileira vai de “Você está entendendo?”
DE MÃE PARA FILHA
Botafogo joga como favorito
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Bolsa Família faz 10 anos e já chega à 2ª geração
Campeão da Taça GB, o Botafogo levará o título carioca se empatar com o Fluminense hoje. O tricolor tem de vencer para manter o sonho do tri. Para os colunistas RENATO M. PRADO e FERNANDO CALAZANS, o alvinegro é favorito. CADERNO ESPORTES
Quase metade de 1,2 milhão de domicílios incluídos em 2003 ainda recebe o repasse
Oriente Médio
Jovens que cresceram em lares beneficiados têm filhos e passam a ganhar o auxílio
ANDRÉ COELHO
Israel ataca depósito na Síria Com mísseis de longa distância, Israel destruiu armas no país vizinho. Segundo o governo, o material iria para o Hezbollah. PÁGINA 44
O Bolsa Família completa dez anos atendendo sua segunda geração: são jovens que cresceram enquanto os pais recebiam o auxílio, tiveram filhos, e passaram a também fazer jus ao benefício, informa DEMÉTRIO W EBER . Dados obtidos pelo GLOBO com base na Lei de Acesso à Informação mostram que 45% dos primeiros contemplados em 2003 seguem incluídos no programa. PÁGINAS 3 a 6
Exploração no mar
Leilão de petróleo traz risco ecológico Para especialistas, nova licitação da ANP, este mês, ameaça corais e manguezais de 18 áreas de preservação, do Amapá ao Rio Grande do Norte. PÁGINA 39
Para governo, ajuda não gera dependência
PERFIL
CARLOS IVAN
Copacabana até no sangue Defensor do bairro, Horácio Magalhães é bisneto de personagem com nome de rua. PÁGINA 36
Deodoro
Um bairro que renasce para 2016 Espremido entre a linha férrea e áreas militares, Deodoro, que ganhará parque olímpico, já atrai holofotes do poder público e da iniciativa privada. PÁGINA 15
Violência em Realengo
Mulher é estuprada em micro-ônibus PÁGINA 35
Luis Henrique Paiva, secretário de Renda de Cidadania, diz que 70% dos beneficiários de 16 anos ou mais trabalham ou procuram emprego. PÁGINA 4
Gerações. O Bolsa Família ajudou Doraci de Melo a criar suas três filhas. A mais velha, Irineide (com a filha no colo), agora também recebe o benefício
Casas sem empregada na mira das indústrias Fabricantes de eletrodomésticos e alimentos lançam produtos. Lavanderias têm expansão Como contratar uma doméstica está cada vez mais caro, lançamentos da indústria brasileira, desde eletrodomésticos e produtos de limpeza até alimentos, estão mirando as famílias que não têm empregada. Para desen-
volver os produtos, praticidade é a palavra de ordem na nova estratégia das empresas, informam CLARICE SPITZ e NICE DE PAULA. A instalação de lavanderias self service em condomínios também está crescendo no país. PÁGINA 37
COLUNISTAS
ELIO GASPARI Uma proposta para a maioridade penal.
Foto ‘viva’
Entreouvido no país das maravilhas
CHICO
PÁGINA 8
VERISSIMO Quando a realidade tem menos rigor científico. PÁGINA 17
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO Poder e protestos em tempo de Facebook. PÁGINA 14
Edição de Brasília • Preço deste exemplar no Distrito Federal R$ 6,00 - Circulam com esta edição: Segundo Caderno e caderno Esportes
— Majestade, eu não sou carta fora do baralho!
Domingo 5.5.2013
O GLOBO
País
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Uma década de Bolsa Família
DE MÃE PARA FILHA COMBATE À MISÉRIA Maior programa de transferência de renda do governo federal completa 10 anos com 50 milhões de beneficiados e já atendendo a segunda geração de contemplados numa mesma família SEM INTERRUPÇÃO Dados do Ministério do Desenvolvimento Social mostram que há 522 mil domicílios que nunca deixaram de receber a transferência; eles representam 45% do total de beneficiários originais ANDRÉ COELHO
Como nossos pais. Maria Dalva Ferreira, de 53 anos, teve 10 filhos e diz que, sem o Bolsa Família, sua vida teria sido muito mais difícil. Sua filha Maria Francisca, de 17 anos, é mãe de duas crianças e também se inscreveu no programa DEMÉTRIO WEBER Enviado especial demetrio@bsb.oglobo.com.br
pratos. Ganhava R$ 50 por semana, sem carteira assinada. Além do Bolsa Família, cujo dinheiro banca o aluguel, recebe outros R$ 80 por tomar conta das filhas da vizinha e mais R$ 100 de pensão do ex-marido. Quem paga as demais despesas é o atual marido, ajudante de pedreiro. A filha de Josias conta que largou a escola aos 17 anos, quando nasceu o primeiro filho. Depois voltou e concluiu o ensino médio no ano passado, numa turma de educação de jovens e adultos. Ela carrega o certificado de conclusão na bolsa, na esperança de conseguir emprego. E diz que gostaria de fazer um curso técnico de informática: — Sem o Bolsa Família, eu ia ter que trabalhar de doméstica — diz Silvana, afirmando que os salários na cidade giram em torno de R$ 300.
-CAMPO FORMOSO (BA), TIMBIRAS (MA) E FORMOSA (GO)- Perto de completar sua primeira década, o Bolsa Família já atende a segunda geração de beneficiários: são os netos do mais abrangente programa de transferência de renda do país. Os filhos que cresceram enquanto os pais ganhavam ajuda do governo tiveram seus filhos e constituíram a própria família, passando a receber também um novo benefício. Criado em outubro de 2003, o programa também mantém na lista dos beneficiários 45% das famílias que estavam cadastradas logo no seu início. São 522.458 benefícios pagos mensalmente há quase dez anos, de acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social 50 MILHÕES DE BENEFICIADOS O Bolsa Família atende atualmente 13,8 milhões e Combate à Fome. Não é possível afirmar se os 55% restantes que de famílias ou 50 milhões de pessoas, com previsão de gasto de R$ 24,9 bilhões neste estavam na lista original dos beneano. O valor médio dos repasses é ficiários deixaram de vez o prograU de R$ 149,70. É o mais visível proma ou retornaram mais tarde, e Números grama social do governo. Estudos quais as razões para isso. Eles poindicam que ele contribuiu para a dem ter saído do Bolsa Família porredução da desigualdade e alívio da que tiveram aumento de renda de 45% extrema pobreza na década passaoutras fontes, porque foram expulDAS FAMÍLIAS da. Entre 16% e 21% da queda da desos por não cumprir condicionalicadastradas no início sigualdade são atribuídos ao Bolsa dades ou simplesmente deixaram do Bolsa Família Família, que foi também um dos de ser elegíveis ao benefício porcontinuam na lista dos principais trunfos de Lula e Dilma que, por exemplo, o filho complebeneficiários do em suas campanhas presidenciais. tou 18 anos. programa Entre especialistas, há quem o critiNas últimas semanas, O GLOBO que por ser pouco efetivo na emancilocalizou e entrevistou famílias pação de seus beneficiados — que teatendidas desde a criação do proR$ 149,70 riam dificuldade para se inserir no grama em três estados: Bahia, MaPOR MÊS mercado de trabalho e deixar de deranhão e Goiás. Em Campo Formoé o valor médio dos pender do programa. Outro grupo, no so (BA), a 400 quilômetros de Salrepasses do programa, entanto, ressalta o papel importante vador, o pedreiro Josias Henrique que atualmente do Bolsa Família para aliviar a miséria de Oliveira e a mulher, a empregaatende 13,8 milhões em famílias extremamente vulneráda doméstica Maria Daura Santos de famílias ou 50 veis, justamente as menos capazes de Bonfim, contam que recebiam ajumilhões de pessoas conseguir emprego formal, garantinda antes mesmo do Bolsa Família: do que ao menos as crianças tenham primeiro com o Auxílio-Gás e depois com o Bolsa Escola, lançados em 2001 e mínimo acesso a serviços de saúde e educação. É o caso, por exemplo, de uma contemplada fundidos na criação do Bolsa Família. Josias, de 61 anos, trabalha por conta própria, desde a criação do programa, a técnica de enfersem carteira assinada, cobrando até R$ 60 por magem Clarice Batista da Silva, de 49 anos. Ela é diária. Ele é o titular do cartão e ganha benefício viúva e ganha R$ 70 mensais do programa. Os de R$ 70 por mês. Os filhos do casal já são adul- dois filhos de Clarice tomaram caminhos distintos. A mais velha, Silvana Santos Bonfim de Oli- tos: o mais velho, Alex Sandro, tem 28 anos, não veira, tem 25 anos, três filhos e também é bene- concluiu o ensino fundamental e está preso — segundo a mãe, por tentativa de homicídio. Alex ficiária: recebe R$ 282. No último dia 25, o GLOBO presenciou o mo- Sandro ingressou no Bolsa Família antes de ir mento em que Silvana chegou à casa dos pais, para a cadeia. Quem recebe o dinheiro — R$ 102 logo após sacar o benefício dela e o do pai. Tra- por mês — é sua mulher, Juliete dos Santos Dias, zia três guarda-chuvas que comprara para os fi- de 22. O casal tem um filho de 5 anos. — Se ele fosse filho de rico, já estava fora (da lhos (R$ 8,50 cada), além de um agasalho (R$ 20) para a caçula, Alice, de 4 anos. Após longa cadeia). O advogado cobrou R$ 5 mil. Não tenho esse dinheiro. Vou vender minha casa e morar estiagem, voltara a chover na cidade. Silvana já trabalhou como doméstica em resi- embaixo da ponte? Está nas mãos de Deus — dências e num restaurante onde a mãe lavava diz Clarice.
Já a filha Beatriz, de 25 anos, acaba de ingressar na faculdade, no curso de Pedagogia. Neste mês, começou a dar aulas de Artes e Educação Física numa escola pública. Beatriz tem um menino de 4 anos e está na fila para receber o Bolsa Família. Em Timbiras (MA), a 270 quilômetros de São Luís, Maria Dalva dos Santos Ferreira, de 53 anos e mãe de dez filhos, não está no Bolsa Família desde o início. Mas diz que o programa mudou sua vida. Ela passou a vida na roça, quebrando coco de babaçu para vender os caroços, que são usados na produção de óleo de cozinha. No mês passado, levou a filha Maria Francisca para também inscrever-se no Bolsa Família. Maria Francisca tem 17 anos, é solteira e mãe de duas meninas: uma de 1 ano e 7 meses e outra de 2 meses — cada uma de um pai diferente, sendo que nenhum deles vive com a garota. — Vai melhorar muito. Não terei mais que roçar e quebrar coco todo dia — diz Maria Francisca. Na mesma cidade, Maria do Socorro Gomes Lopes, de 53 anos, vive numa casa com paredes de barro, telhado de palha e uma vala nos fundos para evitar inundações quando chove. Ela lembra que já perdeu um filho no parto e outro de 8 meses, com diarreia. Maria do Socorro mora com o marido, três filhos e dois netos. Recebe R$ 70 mensais do Bolsa Família. Sua filha Maria Edinete Lopes dos Santos, de 24 anos, mãe de duas meninas, também está no programa: ganha R$ 102. Na trilha da irmã mais velha, a caçula Maria Ivanete, de 19 anos, quer receber o benefício. Maria Ivanete está no quinto mês de gestação. Maria do Socorro não esconde a contrariedade com a gravidez da filha, fruto do relacionamento com um rapaz que passou uma temporada na cidade: — É mais uma despesa. Quando tem o pai ajudando, é bom. Mas só despesa sobrando para a avó, não. Em Formosa (GO), a 70 quilômetros de Brasília, a diarista Silvana Cristina do Carmo, de 47 anos, mora no cemitério municipal Cruz das Almas. O atual marido, Antonio Matias dos Santos, de 59 anos, é o coveiro e zelador. Silvana o conheceu há cinco anos, quando foi fazer uma faxina na casa de um quarto erguida diante dos túmulos. Além do casal, uma filha de Silvana e três netos também vivem no local: todos dormem na sala. Os netos têm entre 4 e 8 anos de idade. São filhos de outra filha da diarista: Elisabete, de 25 anos, que trabalha em Brasília como doméstica. Segundo Silvana Cristina, Elisabete recebe Bolsa Família, mas se separou do marido e agora disputa quem ficará com o cartão. A filha que mora no cemitério é Danielle, de 17 anos. Grávida de seis meses, Danielle estuda à noite, no 1º ano do ensino médio, e diz que só espera a criança nascer para solicitar um benefício. — Ela está fazendo a família dela e vai ter o próprio Bolsa Família — diz Silvana Cristina.
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ACESSO À INFORMAÇÃO
TRÊS MESES E DOIS RECURSOS DEPOIS -BRASÍLIA- Para obter a lista de beneficiários
do Bolsa Família atendidos desde a criação do programa, em outubro de 2003, O GLOBO precisou valer-se da Lei de Acesso à Informação. O pedido foi protocolado no último dia 27 de dezembro e inicialmente rejeitado. O jornal recorreu contra a decisão em janeiro, mas sem sucesso. O Ministério do Desenvolvimento Social só disponibilizou a relação de 522.458 nomes em 5 de março, após analisar o segundo recurso apresentado em fevereiro. Primeiro, a pasta alegou que os dados estavam no site. Depois, sustentou que, segundo a Lei de Acesso, não era obrigada a compilar dados, e repassou ao jornal o número de beneficiados por município que estavam no Bolsa Família desde o seu início. Ou seja, o ministério havia compilado os dados e apenas não queria repassar os nomes dos beneficiários. Ao negar o primeiro recurso, a Secretaria Nacional de Renda de Cidadania (Senarc) justificou da seguinte forma: “(...) estes dados são de consulta pública através do endereço eletrônico: www.portaldatransparencia.gov.br. Além disso, conforme embasamento e orientação da Consultoria Jurídica deste ministério, a Senarc não precisa atender pedidos de informação que demandem trabalhos adicionais de análise, interpretação e consolidação de dados”. Quando foi apresentado novo recurso expondo a contradição, porém, o ministério decidiu liberar as informações. Antes de lançar mão da Lei de Acesso, O GLOBO chegou a solicitar formalmente a lista à assessoria de imprensa do ministério, em 11 de dezembro. A primeira negativa era sustentada com o argumento de que dados do cadastro eram reservados. As informações sobre os nomes dos beneficiários, no entanto, sempre estiveram na internet, e só não era possível saber quem tinha entrado logo no início e continuava no programa. Entre o pedido à assessoria e o recebimento do arquivo, em 5 de março, passaram-se quase três meses. A relação dos 13,8 milhões de beneficiários titulares do cartão do Bolsa Família pode ser acessada pela internet, na página da Caixa Econômica Federal e no Portal da Transparência.
Segunda-feira 6 .5.2013
O GLOBO
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Uma década de Bolsa Família ANDRÉ COELHO
BENEFÍCIOS DE MAIS DE R$ 1 MIL ACIMA DA MÉDIA Programas sociais sustentam famílias numerosas com repasses de até R$ 1.262 DEMÉTRIO WEBER Enviado especial demetrio@bsb.oglobo.com.br -CAMPO FORMOSO (BA).- Famílias numerosas e classificadas como miseráveis ganham benefícios muito acima da média do Bolsa Família. Isso ocorre desde o ano passado, quando o governo lançou o programa Brasil Carinhoso — uma complementação para garantir renda superior a R$ 70 mensais por pessoa, que é a linha oficial de pobreza extrema. Conforme o GLOBO revelou em junho, inicialmente, o repasse mais alto era de R$ 1.332 por mês. Atualmente, é de R$ 1.262, de acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Em Campo Formoso, na Bahia, há beneficiários recebendo R$ 842 e até R$ 994, o que corresponde a quase um salário mínimo e meio. Embora ninguém passe fome, transferências elevadas nem sempre bastam para reverter condições miseráveis de vida. Aos 36 anos, Helenice Alexandrino dos Santos é mãe de dez filhos. A caçula tem 4 anos e o mais velho, 18. Ela, o marido e o filhos — um total de 12 pessoas — moram numa casa sem banheiro. — É no mato — esclarece. Helenice dos Santos vive no povoado Casa Nova dos Ferreiras, nos arredores do remanescente quilombo Lages dos Negros, a 85 quilômetros da sede de Campo Formoso (60 deles em estrada de terra). A família começou a construir um banheiro no quintal dos fundos, mas parou por falta de dinheiro. Neste ano, porém, a casa de Helenice foi selecionada pelo governo da Bahia para ganhar um sanitário. Das 50 moradias do povoado, 14 teriam sido contempladas, segundo ela. Quando o GLOBO esteve na residência da família de Helenice, há duas semanas, três operários trabalhavam no local — as paredes de tijolos já tinham sido erguidas e os pedreiros aguardavam a chegada do vaso sanitário, da pia e do chuveiro. Os filhos de Helenice cavaram José Gessimo duas fossas. O benefício de R$ 842 men- Agricultor sais supera em mais de cinco vezes o valor médio de R$ 149,70 repassado pelo Bolsa Família no país. Helenice, contudo, diz que é pouco: — É só isso que eu tenho para comer, vestir, calçar, comprar caderno, lápis e remédio. Tinha que ter aumento. Como não há sequer loteria no povoado, os beneficiários do Bolsa Família precisam ir até Campo Formoso. A passagem de ida e volta custa R$ 20 e o ônibus sai por volta das 3h. Os gastos com transporte, café da manhã e almoço na cidade constituem uma espécie de “pedágio” para buscar o benefício.
de R$ 135 do garantia-safra, uma ajuda do governo federal para enfrentar a seca. Indagado sobre o que falta na região, ele responde: — Emprego. Até quatro anos atrás, era preciso buscar água em uma fonte fora de casa, usando latas para transportá-la. Hoje, a residência tem água encanada, embora não possua torneiras: um único cano deságua num tanque de alvenaria no quintal. Na maior parte do tempo, não sai nada dele, que é abastecido por um poço artesiano. A filha Edna Ferreira dos Santos, de 16 anos, está no 1º ano do ensino médio. Ela tem um pôster do jogador Neymar na parede do quarto e sonha cursar faculdade de Letras. Adora poesia e já escreveu mais de 300 em cadernos que guarda numa sacola plástica. “Já sei por que incomodo, é a minha cor. (...) Sou negra batalhadora. E luto pela verdade”, escreveu Edna. BENEFÍCIO SUSTENTA FAMÍLIA COM 18 FILHOS Em Tiquara, povoado na zona rural a 35 quilômetros da sede urbana de Campo Formoso, o casal de lavradores José Gessimo da Silva e Maria Lúcia tem 18 filhos, dos quais 15 moram com eles, sendo que duas filhas só nos fins de semana. Eles recebem R$ 994 do Bolsa Família. — Era para ser 20 — diz Maria Lúcia, de 45 anos, contando que sofreu dois abortos naturais. Sem interromper a entrevista, ela começa a amamentar a caçula Melissa Vitória, de 2 anos, que está em seu colo. O primogênito, Márcio, tem 26 e já saiu de casa — trabalha como operador de máquinas na mina de cromo da cidade. José Gessimo tem 53 anos e é o titular do cartão do Bolsa Família. Ele tem uma moto, comprada por R$ 4 mil, e uma caminhonete fabricada em 1975, movida a gás, que custou R$ 6,5 mil. José Gessimo diz que adquiriu os veículos com dinheiro que ganhou do pai, um pequeno proprietário rural de 89 anos que vendeu parte das terras para uma fábrica de cimento da região. José Gessimo tem uma plantação de sisal nas terras do pai, com quem divide a produção. Ganha cerca de R$ 80 por semana. O filho Josiel, de 18 anos, ajuda no serviço e recebe, em média, R$ 50. Maria Lúcia diz que também trabalhava no sisal, mas parou há dois anos por causa da dor nas costas. Atualmente, ela ganha R$ 10 por semana para varrer um ônibus de linha que fica estacionado na frente de sua casa. Devido à seca, a família também recebe o seguro-safra. A casa, originalmente, tinha três quatros. Hoje, são cinco. A reforma incluiu a ampliação da cozinha e a construção de um banheiro — uma casinha nos fundos do quintal foi desativada. A filha Eliana, de 18 anos, está no 3º ano do ensino médio. Ela ajuda a mãe a tomar conta dos irmãos e sonha em ser policial militar “para prender os bandidos”. A caixa d'água em cima do banheiro é abastecida manualmente: um filho fica no topo de uma escada, enquanto outros enchem baldes num tanque entregando-os a ele. José Gessimo usa a caminhonete para buscar água numa fonte a cerca de 5 quilômetros da casa. É com ela que tomam banho, dão descarga no vaso sanitário e lavam a moto. A água para beber e cozinhar vem de uma cisterna construída pelo governo federal e abastecida, mensalmente, por um carro-pipa do Exército. — O sisal não é fixo, é por produção. As pessoas que vivem no Sul não sabem as dificuldades do Nordeste: o clima, o tempo, a falta de chuva. A gente planta, mas é tudo perdido. Os programas do governo são a nossa sorte — diz José Gessimo.l
“A gente planta, mas é tudo perdido. Os programas do governo são a nossa sorte”
EMPREGO É CARÊNCIA NA REGIÃO Ao contrário da área urbana de Campo Formoso, a região do quilombo continua castigada pela seca, que já dura dois anos. As plantações de mandioca, feijão e milho não prosperam. E mesmo as de sisal, planta resistente à seca e base da economia local, cuja fibra é vendida à indústria têxtil, estavam murchando. Com poucos empregos no comércio, nas escolas e no serviço público, a saída para quem vive em Lages dos Negros, segundo Helenice, é buscar trabalho fora. Ela conta que o marido, Geraldo Ferreira dos Santos, de 40 anos, chegou a passar cinco meses em um garimpo, mas voltou de mãos vazias. — Meu marido não pode pegar trabalho pesado porque fica quase sem poder andar. É por isso que não vai para fora. Antes chovia e a gente não precisava comprar feijão nem farinha — diz Helenice. Ano passado, Geraldo recebeu cinco parcelas
Grande família. Helenice, Geraldo e oito de 10 filhos: vida marcada por falta de emprego e ajuda de programas sociais
GOVERNO EXIGE CRIANÇAS NA ESCOLA, MAS NÃO FISCALIZA ASSUNTO É O MESMO Aluna recebe livro de série anterior a que cursa, mas professora diz que serve -CAMPO FORMOSO (BA) E TIMBIRAS (MA) -
O Bolsa Família exige que os filhos de beneficiários frequentem a escola, mas não diz nada a respeito da qualidade do ensino nem da infraestrutura dos estabelecimentos. Falta de merenda, material didático defasado, cancelamento de aulas, atraso do início do ano letivo e queixas de pais e estudantes foram alguns dos problemas flagrados pelo GLOBO. Em Timbiras (MA), a diarista Maria dos Santos Lima Costa, de 31 anos, diariamente, leva e busca os filhos de bicicleta na Escola Maranhão Sobrinho. As aulas começam às 7h15m e deveriam terminar às 11h30m. No último dia 17, contudo, por falta de merenda, os dois meninos saíram às 10h30m. Maria contou que isso vem acontecendo desde o início do ano. O prefeito Carlos Fabrício Souza Araújo (PRB), de 32 anos, no cargo há mais de 100 dias, culpa a admi-
nistração anterior, que não teria prorrogado contratos, e diz que está sendo feita nova licitação: — Licitação é demorada mesmo. Aqui há uma cultura de favorecimento. Quando se tenta quebrar isso, a resistência é muito grande. Em Tiquara, na zona rural de Campo Formoso (BA), Lívia Pereira da Silva, de 9 anos, está no 4º ano do ensino fundamental, mas recebeu na Escola Municipal Nestor Carvalho do Nascimento livros didáticos do 3º ano. A mãe, Maria Lúcia Pereira da Silva, reclamou: — Estive com a professora na escola e ela disse que o assunto é o mesmo. Na zona urbana de Campo Formoso, Eduardo Oliveira Porfírio, de 8 anos, recebeu, em 2012, o troféu de melhor aluno do 1º ano do ensino fundamental na Creche Casulo Dr. Heraldo Rocha, que acaba de ser reformada. Ganhou forro ANDRÉ COELHO
no teto, piso de cerâmica, cadeiras e mesas para crianças. Há turmas do maternal ao 2º ano do fundamental. Na lousa branca, pincéis atômicos substituíram o giz. Não há telefone. O livro de atividades da creche registra a premiação, mas não os nomes dos agraciados. Por causa da reforma, o ano letivo começou em 3 de abril. No último dia 24, houve reunião de planejamento pedagógico. Pelo nome, nenhuma professora identificou Eduardo, que só foi reconhecido por foto. Sua professora, Maria Vivânia Silva Maniçoba, disse que o menino faltou à maioria das aulas este ano. A mãe dele é beneficiária do Bolsa Família. — Vamos mandar um bilhete. Se a mãe não vier, vamos à casa dele saber o que está acontecendo — disse a coordenadora Elisângela Maria Carvalho Monteiro. Filha de beneficiária, Beatriz Granjeiro dos Santos, de 25 anos, concluiu o ensino médio e, por R$ 160 mensais, cursa Pedagogia apesar do desejo de fazer Nutrição, curso inexistente por lá. Beatriz só tem aula aos sábados, das 18h às 21h. Está no primeiro semestre e dá aulas de artes e de educação física para turmas de 5º ano do ensino fundamental da Escola Nossa Senhora Auxiliadora.l
BB UMA DÉCADA DE BOLSA FAMÍLIA ONTEM:
Programa atinge segunda geração
NA WEB
oglobo.com.br/pais
VÍDEO: A vida de famílias que recebem o benefício
AMANHÃ:
Aulas. Beatriz dos Santos, filha de beneficiária, ensina artes na Bahia
Beneficiários temem perder ajuda
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Domingo 5.5.2013
Uma década de Bolsa Família
EM 10 ANOS, NOVO PERFIL DE POBREZA MELHORES CONDIÇÕES DE VIDA Casas dos atuais beneficiários do programa têm paredes de barro e telhado de palha convivendo com antena parabólica, máquina de lavar roupa e computador ANDRÉ COELHO
DEMÉTRIO WEBER Enviado especial demetrio@bsb.oglobo.com.br -FORMOSA (GO), CAXIAS (MA), TIMBIRAS (MA) E MACEIÓ (AL)-
Adultos desdentados, crianças na escola. Não faltam celulares e antenas parabólicas em casas de paredes de barro, telhado de palha e chão de terra. Mas os lares de quem recebe Bolsa Família também retratam uma mudança no perfil da pobreza brasileira: casas foram ampliadas e reformadas. Muitas passaram a ter piso de cerâmica, forro no teto e eletrodomésticos de todo tipo, como geladeira com freezer, máquina de lavar roupa, forno de micro-ondas e computador com conexão de banda larga na internet. Em Formosa (GO), a 70 quilômetros de Brasília, a empregada doméstica Doraci Pinto de Melo paga R$ 50 por mês pela conexão de internet. Suas filhas de 14 e 16 anos são as que mais usam o computador: para fazer trabalhos escolares e acessar o Facebook. No fim da década de 1990, a residência não tinha banheiro nem água encanada. Hoje o piso é de cerâmica. A casa de alvenaria está no meio de uma reforma: vai ganhar uma cozinha maior e um terceiro quarto, que se tornou necessário depois que a filha mais velha, Irineide, de 23 anos, e a neta Eloísa, de 3, voltaram a morar com a família. Doraci recebe R$ 248 do Bolsa Família. O marido é eletricista e tem moto. Seu emprego numa firma de construção de Brasília é com carteira assinada. As mudanças da última década são ainda mais profundas quando comparadas à melhoria das condições de vida entre gerações da mesma família. Em Timbiras (MA), a beneficiária Maria do Socorro Gomes Lopes, de 53 anos, é analfabeta e aprendeu a assinar o nome recentemente, depois de frequentar uma turma do programa Brasil Alfabetizado. Sua filha Maria Edinete, de 24 anos, está na faculdade e cursa Pedagogia. A geladeira foi comprada com o dinheiro que o marido ganhou, anos atrás, cortando cana-de-açúcar em São Paulo. Em Caxias (MA), a 360 quilômetros de São Luís, o ajudante de pedreiro Francisco das Chagas Sousa Silva, de 39 anos, conta que começou a trabalhar aos 10 anos. Filho de lavradores, ajudava os pais na roça. Seus dois filhos têm 18 e 20 anos e estão no ensino médio. O mais jovem ingressou este ano no serviço militar obrigatório. Francisco das Chagas é casado com Ana Natália Rodrigues Silva, de 38, beneficiária desde a criação do Bolsa Família. Ela recebe atualmente R$ 70 por mês e é a única que não tem celular. Na época em que se cadastrou, Ana Natália lembra que só tinha certidão de nascimento: foi preciso providenciar carteira de identidade, carteira de trabalho e CPF. A família reformou a casa no ano passado: as paredes de barro foram revestidas de cimento e pintadas de branco. O chão de terra também foi coberto com cimento. Ana Natália conta que usou o dinheiro do Bolsa Família para comprar o uniforme escolar : uma camiseta (R$ 16) e um par de tênis (R$ 49,50) para cada filho. Os tênis foram parcelados em quatro vezes. O armário da sala, em nove prestações de R$ 128,50 (total de R$ 1.156,50). Em Timbiras (MA), Francisco Rodrigues da Silva, de 60 anos, mora numa casa sem banheiro, geladeira nem água encanada, com paredes de barro, muitas frestas e telhado de palha. O chão de terra é inclinado. Quando
Beneficiário. Francisco Rodrigues da Silva com a família, em Timbiras (MA): na casa sem banheiro, geladeira ou água encanada, quando chove a água molha a TV de 14 polegadas dá temporal, a chuva molha a televisão de 14 polegadas, já providencialmente coberta por um plástico. A água usada para cozinhar e beber vem do poço de um vizinho e é carregada diariamente em baldes. Não há filtro. Francisco foi abandonado pela mulher há três anos e mora com três dos sete filhos. Diz que recebe R$ 366,50 do Bolsa Família. O Portal da Transparência, da Controladoria Geral da União, porém, registra R$ 392. Todos dormem em redes. O fogão é de barro. Cascas de coco são usadas como carvão. A fumaça deixa o ar irrespirável. O filho mais velho, dentre os que vivem com Francisco, tem 16 anos e abandonou a escola, sem nunca passar do 1º ano do ensino fundamental. As irmãs dizem que o garoto fuma maconha. Uma vizinha acusou-o de roubo. A casa tem apenas duas peças: um quarto e uma sala-cozinha. Sacos de arroz e outros alimentos ficam empilhados num guarda-roupa. Na cozinha, a carne é guardada em bacias. Ao visitar a casa de Francisco, no mês passado, O GLOBO encontrou apenas os filhos. O pai chegou mais tarde, de bicicleta, carregado de compras: trazia alimentos. As filhas de 5 e 11 anos tinham faltado à escola naquela semana. Segundo o pai, porque ficaram lavando roupa num poço próximo. A secretária de Assistência Social de Timbiras, Joyce Cachina, acompanhava a visita e acionou o Conselho Tutelar. — Sou pai e mãe — disse Francisco. Órfão desde criança, ele conta que cresceu na roça e trabalhava numa pedreira até recen-
temente. A antena parabólica foi comprada em cinco parcelas de R$ 54, segundo ele. Francisco está convencido de que sua vida vai melhorar: em março, ele passou a receber aposentadoria rural no valor de um salário mínimo (R$ 678).
Dez anos após Bolsa Família, Alagoas ainda é o primeiro em analfabetismo Em Maceió, dez anos e duas gerações depois, o programa Bolsa Família ainda sustenta a jovem Ana Vitória, de 12 anos, neta de Ione Miguel dos Santos. São pouco mais de R$ 50, que se misturam nas finanças da casa, no bairro de Pescaria, litoral norte da capital alagoana. A mãe de Ana Vitória, Alice, trabalha de faxineira. Cobra R$ 40. Tentou fazer um curso profissionalizante no Senai para mudar de vida. O acesso ao Bolsa Família facilita esse novo caminho. Ouviu que as salas estavam cheias de gente. Espera uma nova chance ainda este ano. O pai dela é quem salva o sustento da casa: ele é aposentado e recebe um salário mínimo. Faz ainda bicos. Eles tentam incluir a outra neta, Évia Lavina, de 2 anos, no programa: — Sem o Bolsa, meu filho, seria um sufoco — resume a avó de Ana Vitória, que virou a “babá” das netas. A pobreza da família atravessa o tempo e não envelhece. Dona Ione nasceu no bairro vizinho, Ipioca — berço do primeiro presidente do Bra-
sil, Floriano Peixoto. Casou e vive há 30 anos na mesma casa, onde nasceu Ana Vitória. Doente, a avó aposta no futuro da neta: — Ela nunca repetiu um ano. E só tira nota alta. Se Deus quiser, vai ser alguém na vida — conta a avó. A neta sorri e continua assistindo a um dramalhão mexicano na televisão. Perto dela, uma placa pendurada na parede oferece um “mimo aos netos”: “Na casa da vovó sempre tem 1 real”. A filha de Dona Ione é uma das 18.141 pessoas que dependem do Bolsa Família desde 2003 no estado — que, dez anos depois, é o terceiro mais pobre do Brasil, só perdendo para o Maranhão e o Piauí. Além disso, o nível educacional da população acaba por inviabilizar a instalação de indústrias ou mesmo supermercados. Alagoas ainda é o primeiro — como há dez anos — no número de analfabetos no país. — Meu filho, o que eu queria pedir a Dilma é que ela incluísse a minha neta Évia no Bolsa Família. O resto, a gente se vira. Foi sempre assim — diz dona Ione. (Colaborou Odilon Rios, de Maceió, especial para O GLOBO)
BB UMA DÉCADA DE BOLSA FAMÍLIA AMANHÃ:
Como vivem famílias numerosas beneficiadas pelo programa
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Quarta-feira 8.5.2013
Uma década de Bolsa Família
NO RIO, LINHA DE MISÉRIA FIXA LIMITE DE R$ 100
IMPACTO NO PRATO, MAS NÃO NAS SALAS DE AULA
PELO PAÍS RS e DF têm programas de transferência
SEM ILUSÕES Para especialista, desafio maior do programa de transferência de renda agora é garantir que beneficiários tenham acesso a educação de qualidade
A linha de miséria adotada pelo Rio de Janeiro é 42% mais alta do que a estabelecida pelo governo federal. No Rio, o programa Renda Melhor classifica como extremamente pobre quem tem renda familiar per capita de até R$ 100 mensais, enquanto no Bolsa Família o limite é de R$ 70. O governo fluminense, a exemplo de outros estados, mantém um programa vinculado ao Bolsa Família. O objetivo é complementar a renda dos mais pobres, para que ultrapassem a linha da miséria. O Rio Grande do Sul e o Distrito Federal também fixaram linhas de miséria de R$ 100. Portanto, acima da federal, que não é reajustada desde julho de 2009. — Sinaliza que em alguns estados brasileiros os governos estaduais, em parceria com o governo federal, podem fazer mais — diz o secretário nacional de Renda de Cidadania do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Luis Henrique da Silva de Paiva. De acordo com a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio, o Renda Melhor beneficia cerca de 249 mil famílias ou 1 milhão de pessoas, em 51 municípios. A ideia é chegar a 91 cidades neste ano, com previsão de gasto de R$ 280 milhões. O Renda Melhor também utiliza critério distinto do governo federal para aferir a miserabilidade dos beneficiários. Em vez da renda autodeclarada, como o Bolsa Família, o programa estima a renda familiar com base em indicadores socioeconômicos. Entre eles, acesso a serviços públicos (saneamento básico, destino do lixo e energia elétrica), características do domicílio, composição familiar (pessoas com deficiência, crianças e idosos) e escolaridade.
-BRASÍLIAO GLOBO
DEMÉTRIO WEBER demetrio@bsb.oglobo.com.br
Um programa bem focalizado, mas com impacto na edução limitado. Assim, especialistas avaliam o Bolsa Família, que hoje paga 13,8 milhões de benefícios e atinge um total de 50 milhões de pessoas. Especialista da Fundação Getulio Vargas em estudos sobre pobreza, o ministro interino da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, Marcelo Neri, aponta o Bolsa Família como o programa com maior foco nos miseráveis, dentre os principais programas da rede de proteção social brasileira, incluindo a Previdência Social e o Benefício de Prestação Continuada, que é dado a idosos e deficientes. — O Bolsa Família tem a capacidade de chegar aos mais pobres. É, disparado, o programa em que cada real repassado mais impacta na pobreza — afirma Neri, que é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Segundo o secretário nacional de Renda de Cidadania do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Luís Henrique da Silva de Paiva, estudos indicam que os filhos de beneficiários do Bolsa Família têm maiores índices de aprovação e menores taxas de evasão. O ministro Marcelo Neri, porém, demonstra pouco entusiasmo com o impacto educacional: — Não acho que seja uma revolução. O diretor de Estudos e Políticas Sociais do Ipea, Rafael Guerreiro Osório, vai além. Argumenta que a falta de qualidade do ensino público seria obstáculo até à superação da pobreza geracional. Motivo: a deficiente formação escolar oferecida aos filhos de beneficiários na rede pública. Indagado sobre o futuro das crianças que nasceram com os pais já recebendo Bolsa Família, o diretor do Ipea declarou: — Não dá para ter ilusão de que a transferência de renda, por si, vai ter grande efeito para o futuro. Elas só vão ter um futuro melhor do que os seus pais na hora em que a gente conseguir fazer com que o investimento do Estado na educação tenha o mesmo retorno que tem o investimento das famílias que pagam escola privada. Para receber o dinheiro, as famílias devem assegurar que seus filhos frequentem a escola. Na faixa dos 6 aos 15 anos, eles devem comparecer a pelo menos 85% das aulas. Para quem tem 16 e 17 anos, o índice mínimo de frequência é de 75%.
-BRASÍLIA-
Na risca. A família de Helenice tem 12 pessoas e ganha R$ 842 por mês, R$ 2 acima da linha de pobreza extrema U
ALUNOS SEM PROVA
‘A ESCOLA ERA MUITO ATRASADA AQUI’ -CAMPO FORMOSO (BA)- Casada e mãe de dez filhos,
Helenice Alexandrino dos Santos, de 36 anos, vive num povoado do remanescente quilombo Lage dos Negros, na zona rural de Campo Formoso, na Bahia. A família é classificada como miserável e está no Bolsa Família desde a criação do programa, em 2003. Antes recebia Bolsa Escola. Atualmente ganha R$ 842 por mês, valor suficiente para que a renda per capita ultrapasse a linha oficial de pobreza extrema, que é de R$ 70 mensais por pessoa. Helenice reclama do ensino na região. “A escola era muito atrasada aqui. Não tinha prova. Agora está mais ou menos”, diz ela.
Ciente da capacidade do Bolsa Família de transferir renda, Osório sugeriu ao governo que o melhor caminho para a presidente Dilma Rousseff cumprir sua promessa de erradicar a pobreza extrema até 2014 seria turbinar o programa. Osório apresentou a proposta no início de 2011. Foi ouvido no ano seguinte, quando o governo lançou o programa Brasil Carinhoso — complementação que garante renda per capita superior à linha oficial de miséria (R$ 70) para beneficiários do Bolsa Família. — (O Bolsa Família) não faz uma revolução, não muda da água para o vinho a vida dessas pessoas. Estamos dando um empurrãozinho, dizendo: "Olha, você vai poder contar com isso enquanto você precisar. Mas, se você quer realmente ter um nível de vida melhor, aí você vai ter que conseguir isso pelo seu próprio esforço." — diz Osório. Neri concorda: — Não há efeito preguiça, porque o benefício é pequeno. E tem a promessa de dar o peixe ao mesmo tempo em que ensina a pescar, com as condicionalidades — afirma o ministro interino.
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Programa tem 2ª geração de beneficiários SEGUNDA:
Benefício mais alto chega a R$ 1.262 ONTEM:
Famílias que abriram mão das bolsas
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Terça-feira 7 .5 .2013
Uma década de Bolsa Família
1,69 MILHÃO DE FAMÍLIAS ABRIRAM MÃO DAS BOLSAS MOTIVO INCERTO Beneficiários que deixaram programa são 12% do total; governo não sabe se renda aumentou ou se número de familiares diminuiu
ANDRÉ COELHO
DEMÉTRIO WEBER Enviado especial demetrio.weber@bsb.oglobo.com.br -CAMPO FORMOSO (BA), TIMBIRAS (MA) E FORMOSA (GO)- Em quase uma década, 1,69 milhão de famílias de beneficiários do Bolsa Família saíram espontaneamente do programa, depois de declarar que tinham renda familiar acima do limite permitido, que é de R$ 140 mensais por pessoa. O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome diz desconhecer, porém, quantas dessas pessoas de fato saíram porque conseguiram emprego e passaram a ganhar mais. O secretário nacional de Renda de Cidadania, Luís Henrique de Paiva, enfatiza que esses 1,69 milhão de beneficiários prestaram informações voluntariamente, durante a atualização cadastral, feita a cada dois anos pelas prefeituras. Segundo ele, o governo não sabe é se as pessoas passaram a ter mais renda ou ocorreu uma diminuição do número de integrantes da família, o que fez crescer a renda per capita. — O Brasil ainda não tem um Big Brother para saber, caso a caso, o que aconteceu — diz Paiva. Em relação ao universo atual de 13,8 milhões de famílias contempladas — totalizando 50 milhões de pessoas —, os beneficiários que deixaram o programa por informar renda maior que a permitida correspondem a 12%. Em outra frente, a fiscalização excluiu 483 mil beneficiários flagrados com renda maior do que a permitida. O balanço cobre um período de quase dez anos, desde a criação do Bolsa Família, em outubro de 2003, até fevereiro de 2013. Ao visitar famílias contempladas, O GLOBO constatou que não falta gente com medo de perder o benefício. Uma pergunta ouvida com frequência quando os repórteres batiam à porta das famílias sintetiza esse estado de espírito: “É para cortar?”, indagavam os moradores. — Estou até assustada. Daqui a pouco vão me prender por causa de um dinheirinho desse — foi logo dizendo a diarista Rosana Nascimento Oliveira, de 35 anos, que ganha R$ 172 por mês. Mãe de três filhos adolescentes, Rosana trabalha três vezes por semana, limpando residências e lavando roupas, em Formosa, Goiás. Diz que começou aos 12 anos, como babá, depois que o pai morreu. Ela cobra R$ 30 por diária. Rosana teme que um emprego com carteira assinada a impeça de receber o Bolsa Família. Ela está desinformada, pois o único critério levado
Desinformação. Rosana e sua mãe, ao fundo: diarista não quer carteira assinada por temer perder o Bolsa Família em conta pelo programa é a renda familiar per capita, obtida em emprego formal ou informal. — Eu nem procuro serviço fichado, com medo de perder esse dinheirinho. Diz que a gente não pode trabalhar. E esse dinheirinho é uma salvação. A hora que eu não tiver mais precisando, faço questão (de sair do programa). Mas, hoje, é muito útil para mim — afirmou a diarista. A empregada doméstica Doraci Pinto de Melo, de 44 anos, foi outra que ficou com um pé atrás ao receber a equipe do GLOBO, junto com uma assistente social da prefeitura de Formosa. Como O GLOBO revelou no domingo, 522 mil beneficiários permanecem na folha de pagamento desde o início do programa, o equivalente a 45% do total contemplado logo no mês de estreia, em outubro de 2003. É o caso de Rosana e Doraci. Os filhos de quem tem o benefício já cresceram, constituíram família e hoje ganham o próprio repasse. O Bolsa Família concede benefícios com base na renda autodeclarada. O cadastramento é feito pelas prefeituras, que são responsáveis por alimentar o Cadastro Único, onde são selecionados os bene-
ficiários. O crescimento do programa na última década deu origem a uma rede de assistência que lembra a dos postos do INSS. Diariamente, dezenas e até centenas de pessoas vão a cada secretaria municipal de assistência social no país solicitar benefícios, atualizar o cadastro ou tirar dúvidas. Em Timbiras (MA), a 270 quilômetros de São Luís, a secretária de Assistência Social, Joyce Cachina, condena o fato de o Cadastro Único ser autodeclaratório, preenchido só com base em dados prestados pelo interessado. Por falta de profissionais, somente casos mais extremos são fiscalizados in loco. — Não tenho como dar conta de 6 mil beneficiários na cidade. Nossa maior dificuldade é que as pessoas não querem informar renda nenhuma. Se os dados tivessem que ser provados, teríamos menos problemas — diz Joyce. Em Campo Formoso (BA), a 400 quilômetros de Salvador, há casos em que a renda declarada ao CadÚnico supera o limite do Bolsa Família. Portanto, é de conhecimento da prefeitura e do governo federal. Mesmo assim, segundo servidores municipais ouvidos pelo GLOBO, o benefício ainda é pago. l
‘É COVARDIA NÃO NECESSITAR E FICAR RECEBENDO’ ATITUDE EXEMPLAR Após obter sua casa, diarista devolveu cartão do programa ANDRÉ COELHO
-FORMOSA (GO)- A diarista Selma Patrícia da Silva, de
42 anos, conta que já foi beneficiária de programas de transferência de renda do governo, mas voluntariamente abriu mão depois que melhorou de vida. Selma diz ter recebido dinheiro do Auxílio Gás, do Bolsa Escola e do Bolsa Família na época em que ela e o marido faziam bicos como doméstica e pedreiro para sustentar os cinco filhos. Após construir a casa onde vive, em Formosa, a diarista decidiu devolver o cartão. — Pensei assim: da mesma forma que serviu para os meus filhos, vai ajudar outras pessoas. Acho muita covardia a pessoa não necessitar e ficar recebendo. Entreguei o cartão na mão da
Emoção. Selma fez primeira-dama de Formosa chorar
primeira-dama (do município), que começou a chorar — relembra Selma. Assistentes sociais da prefeitura conheceram Selma recentemente, quando ela foi solicitar benefício do Bolsa Família para a filha Vanessa, de 19 anos, mãe de um menino de 3 anos e uma menina de 1. — É para os meus netos. Quero que minha filha depois também faça o que eu fiz — diz Selma. Ela e o marido, hoje empregado numa construtora com carteira assinada, ajudam a filha dando fraldas e leite. Além de trabalhar como faxineira, Selma fez cursos de artesanato e manicure nos últimos anos. Ela costura bonecas e adereços de pano, que vende em feiras e na vizinhança.
Alertas de desmate na Amazônia caem 40% Quase todos os estados, porém, registraram crescimento, diz Inpe FLÁVIA PIERRY
flaviap@bsb.oglobo.com.br -BRASÍLIA- Os alertas de desmatamento na Amazônia somaram 175 km² em março e abril deste ano, queda de 40% em comparação ao mesmo período de 2012, quando foram verificados 292 km² de áreas com algum nível de devastação da mata. Os dados foram divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), com informações do sistema de detecção do desmatamento em tempo real baseado em satélites, o Deter. Em todos os estados, porém, com exceção do Mato Grosso e do Pará, foi apurado
crescimento na área de alertas de desmatamento em março e abril na comparação com os mesmos meses de 2012. No Mato Grosso, foi apurado recuo de 61% na área com alertas em março e abril, com 83,57 km² no bimestre contra 214,75 km² no mesmo período de 2012. A redução de 98% na área de alertas no Pará também puxou o recuo da área total de alertas nos sete estados da Amazônia analisados, passando de 41,55 km² em março e abril de 2012 para 0,59 km² neste ano. Os satélites apontaram 48,68 km² de áreas de alerta para desmatamentos em Rondônia, de 17,14 km² no Amazonas, e de 15,93 km² em Roraima, somando dados de março e de abril. Os estados com menor área de alertas de desmatamentos no bimestre são Pará, com 0,59 km²; Acre, com 1,24 km²; e Tocantins, com 7,78 km². Em comparação ao primeiro bimestre deste ano, os alertas de desmatamento
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Números
175 KM²
ÁREA COM ALERTA DE DESMATAMENTO
Em março e abril deste ano, segundo o Deter, do Inpe.
292 KM²
TINHAM ALGUMA DEVASTAÇÃO No mesmo período de março e abril de 2012 (40% a mais).
83,57 KM²
COM ALERTA EM MATO GROSSO
A redução foi de 61% em relação aos 214,75km² do mesmo período de 2012.
— que consideram os vários estágios de devastação da mata, inclusive os mais iniciais — caíram 37%, já que em janeiro e fevereiro os satélites identificaram uma área de 279 km². Porém, o Inpe desaconselha esse tipo de comparação entre dados de meses diferentes, em função da cobertura de nuvens variável de um mês para outro, o que atrapalha a visibilidade das áreas pelos satélites. O Deter é um serviço de alerta de desmatamento e degradação florestal na Amazônia Legal baseado em dados de satélite. Os alertas servem para orientar a fiscalização e garantir ações eficazes de controle da derrubada da floresta, explica o Inpe. Esse sistema registra tanto áreas de corte raso da mata, quando os satélites detectam a completa retirada da floresta nativa, quanto áreas com evidência de degradação decorrente de extração de madeira ou incêndios florestais. l
PROGRAMA PODE DEIXAR DE DAR VOTO, DIZ FLEISCHER RECONHECIMENTO PSDB admite avanço no combate à miséria -BRASÍLIA- O cientista político David Fleischer, da Universidade de Brasília (UnB), não tem dúvida de que o Bolsa Família dá votos, e que falar mal do programa tira votos. Ele questiona, no entanto, se esse modelo ainda perdurará nas eleições do ano que vem. — (Em 2006) O Bolsa Família empurrou o Lula para o segundo turno. Há uma pesquisa que demonstra isso claramente. Em 2010, o benefício continuou funcionando como captador de votos para o PT, mas não estou seguro se, em 2014, isso será tão forte como antes — afirmou Fleischer. Para ele, se o governador Eduardo Campos (PSB) entrar mesmo na disputa eleitoral, o Bolsa Família poderá perder seu caráter de canalizador de votos para o PT, pois Campos é do Nordeste, região mais beneficiada pelo programa. O líder do PSDB na Câmara, Carlos Sampaio (SP), reconhece que o programa avançou no combate à miséria e atribui a seu partido a implantação da ação, por meio do Bolsa Escola, implementado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. No entanto, ele condena o que considera uso político do tema: — O que critico é a utilização política do Bolsa Família por parte do PT, e a falta do segundo passo, que é a inclusão no mercado de trabalho. Mas o programa é louvável e nobre na sua função. Ontem, o senador Cristovam Buarque (PDT-DF) elogiou na tribuna do Senado a série de reportagens publicada pelo GLOBO desde domingo: — Seria uma tragédia se o Brasil de hoje não tivesse o Bolsa Família. E será uma tragédia se, daqui a 20 anos, a gente continuar precisando do Bolsa Família. E a saída é a educação — disse ele. O senador afirmou que o Bolsa Família é um avanço ao transferir renda para os mais pobres, mas fracassa por não oferecer ensino de qualidade aos filhos dos beneficiários. Ele criticou o governo Dilma por não apoiar projeto dele que obriga os pais a comparecer à escola dos filhos: — A matéria do GLOBO, a meu ver, tem papel histórico. Porque pela primeira vez se mostra, com dados, que as famílias estão perpetuando a necessidade de uma bolsa. E, se isso acontece, o programa fracassou, apesar de assistir bem. Assistiu, mas fracassou. É como você manter uma pessoa na UTI sem curá-la. l
Correção Diferentemente do que informou reportagem na página 6 de domingo, o nome da cidade de Floriano Peixoto, em Alagoas, é uma homenagem ao segundo presidente do país e não ao primeiro, que foi o marechal Deodoro da Fonseca. l
BB UMA DÉCADA DE BOLSA FAMÍLIA DOMINGO:
Programa tem 2ª geração de beneficiários ONTEM:
Benefício mais alto chega a R$ 1.262 AMANHÃ:
O que os especialistas acham do programa
| Opinião |
SÍMBOLO OUTRORA ÁREA produtiva, a Fazenda Itamarati, de Olacyr de Moraes, o “rei da soja”, foi retalhada para um projeto de reforma agrária, com a falência do empresário. POUCO MAIS de uma década depois, virou uma enorme favela rural, com 16 mil habitantes, muitos sobrevivendo à base do Bolsa Família. Até o tráfico de drogas utiliza a área como rota de distribuição. A HISTÓRIA da Itamarati é um símbolo da falência do programa de reforma agrária movido a slogans político-ideológicos.