Estou Atrás de Você (amostra)

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John Ajvide Lindqvist

Estou atrás de você

Tradução de Renato Marques de Oliveira


Copyright © 2014 John Ajvide Lindqvist Copyright da tradução © 2016 Tordesilhas Publicado mediante acordo com Leopard Förlag, Estocolmo, e Leonhardt & Høier Literary Agency A/S, Copenhague. Título original: Himmelstrand Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida – em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico –, nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorização da editora. O texto deste livro foi fixado conforme o acordo ortográfico vigente no Brasil desde 1o de janeiro de 2009. edição utilizada para esta tradução  John Ajvide Lindqvist, I Am Behind You, Melbourne, The Text Publishing Company, 2016. preparação  Pedro Biondi revisão  Dan Duplat e Bruno Lippi projeto gráfico  Kiko Farkas/Máquina Estúdio adaptação de capa Rodrigo Frazão imagem de capa Jill Bataglia/Arcangel.com (trailer), Robert_s/ShutterStock.com (gramado) 1a edição, 2017 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Lindqvist, John Ajvide Estou atrás de você / John Ajvide Lindqvist ; tradução Renato Marques de Oliveira. -- São Paulo : Alaúde Editorial, 2017.

Título original: Himmelstrand ISBN: 978-85-8419-057-7

1. Ficção sueca I. Título.

17-06784 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura sueca 839.73

2017 Tordesilhas é um selo da Alaúde Editorial Ltda. Avenida Paulista, 1337, conjunto 11 01311-200 – São Paulo – SP www.tordesilhaslivros.com.br /Tordesilhas

CDD-839.73


Em memรณria de Peter Himmelstrand (1936-1999)


Sumário

1. Fora 13 2. Dentro 117 3. Além 325


Estou atrás de você


Conhecemos uma pessoa por seus defeitos. Podemos formar uma impressão a respeito de alguém reparando em seus talentos e qualidades, bons ou ruins – tudo que aparece na superfície. Mas se quisermos realmente compreender quem a pessoa é, devemos adentrar a escuridão e nos familiarizar com as imperfeições dela. O dente faltante da engrenagem define a máquina. Um quadro é julgado por uma pincelada malfeita, um acorde dissonante faz uma canção desandar. Ou a torna interessante. Esse é o outro lado da moeda. Sem nossos defeitos seríamos como uma máquina bem azeitada de funcionamento impecável, e nossos pensamentos e ações poderiam ser previstos por meio de simulações, se ao menos tivéssemos suficiente poder de processamento. Isso jamais vai acontecer. Nossas imperfeições são uma variável fora do escopo desse tipo de cálculo, e nos levam a formidáveis realizações ou a atos absolutamente desprezíveis. Se você quisesse, poderia dizer que isso é o que faz de nós humanos, imperfeitos e maravilhosamente interessantes. Poderia também dizer que isso nos transforma em répteis, rastejando de um lado para o outro entre o céu e a terra, à procura de algo que preencha o vácuo. Qualquer que seja a verdade, são esses defeitos que nos impelem para a frente e nos fazem seguir adiante, saibamos disso ou não. E, assim como tudo o mais, eles podem chegar a uma massa crítica, a um ponto em que mudam de feitio, reconfiguram-se e se tornam uma outra coisa. Muitos eventos que consideramos inexplicáveis podem ser explicados dessa forma. O relato a seguir é um exemplo. Eu acendo a luz. 11


1. FORA


– Mamãe, preciso fazer xixi. – Bom, então vá ao banheiro, ué. – Não está lá. – Claro que está. É aonde você foi ontem. No bloco de serviços. – Não está lá. – Pelo amor de Deus, será que você não pode me deixar dormir pelo menos uma vez? – Mas eu preciso fazer xixi. Vou molhar as calças. – Então vá até o bloco de serviços. Fica só a quinze metros de distância daqui. Com certeza você dá conta de ir sozinha. – Não está lá. – Está. Vá lá fora, vire à esquerda e dê a volta por trás deste trailer nojento, depois continue seguindo em frente. É lá que fica o bloco dos banheiros. – Qual lado é a esquerda? – Ah, faça xixi na grama, pelo amor de Deus, e me deixe dormir. Se você vai insistir em encher o saco e causar problema, então acorde seu pai. – Sumiu quase tudo. – Como assim? Do que você está falando? – Vem dar uma olhada. – Dar uma olhada onde? – Pela janela. Sumiu quase tudo. Isabelle Sundberg apoia-se no cotovelo. Sua filha de seis anos de idade, Molly, está ajoelhada junto à janela. Isabelle empurra a menina para o lado e afasta a 15


cortina. Está prestes a apontar na direção do bloco de serviços, mas sua mão desaba e o gesto é interrompido a meio do caminho. Seu primeiro pensamento é: Cenário. Como a cortina que faz as vezes de pano de fundo na traseira do trailer de Mickey Mouse no desenho que a tv exibe na véspera de Natal. Algo artificial, irreal. Mas os detalhes são nítidos demais, as três dimensões claramente perceptíveis. Aquilo ali não é pano de fundo. – Preciso fazer xixi preciso fazer xixi preciso fazer xixi! A voz estridente da filha machuca os tímpanos de Isabelle, que esfrega os olhos. Tenta apagar a visão incompreensível. Mas ela ainda está lá, exatamente como o monótono choramingo da filha. Ela se vira de lado e, impulsionando o joelho, cutuca as costas do marido. Puxa a outra cortina. Ela pisca, balança a cabeça. Não faz a menor diferença. Ela cerra a mandíbula, estapeia o próprio rosto. Sua filha fica em silêncio. A maçã do rosto de Isabelle está ardendo, e nada mudou. Tudo mudou. Ela agarra o ombro do marido e o chacoalha com força. – Peter, acorde, pelo amor de Deus. Aconteceu alguma coisa.

Trinta segundos depois, Stefan Larsson é acordado pelo estrondo de uma porta sendo fechada com violência em algum lugar. Seu pijama está colado ao corpo; dentro do trailer faz calor, está muito quente. Stefan já está de saco cheio disso. Todo mundo tem ar-condicionado. Mais tarde, ainda hoje, quando forem às compras, ele vai comprar uns dois ventiladores elétricos decentes para pôr na mesa, pelo menos. – Bim, bim, bum. Bum. O filho de Stefan, Emil, está cantarolando baixinho no beliche, absorto em alguma fantasia, como sempre. Stefan franze a testa. Alguma coisa está errada. Ele estende a mão para pegar os óculos de aros grossos e pretos e, já munido deles, olha ao redor. O velho e leal trailer está idêntico. Quando ele e Carina o compraram, quinze anos atrás, o trailer já havia rodado no mínimo outros quinze, mas depois de incontáveis férias, feriados e expedições para a observação de pássaros, parecia um amigo, e ninguém vende um amigo pela internet em troca de alguns milhares 16


de coroas. As superfícies gastas adquirem um lustro verde embaçado na luz que penetra as cortinas ralas. Nada de insólito nisso. Carina está dormindo, com o rosto virado para o outro lado. Ela chutou para longe o lençol, e a generosa curva de seus quadris tem um quê de pintura antiga. Stefan reclina-se sobre a mulher e fareja o aroma salgado do corpo dela; pode ver as minúsculas gotículas de suor na linha de contorno do cabelo. Ventiladores decentes, é disso que eles precisam. O olhar fixo dele aferra-se à tatuagem sobre o ombro dela. Dois símbolos do infinito. O anseio por um amor duradouro. Ela as fizera quando ambos eram jovens. Stefan a idolatra. É uma palavra estranha para usar, mas a única adequada. Os olhos dele se arregalam. Agora ele sabe o que é. O silêncio. A não ser pela respiração de Carina e pelo cantarolar de boca fechada de Emil, o silêncio é total. Ele olha de relance para o relógio: quinze para as sete. Um acampamento de trailers nunca é silencioso. Há sempre o zumbido do maquinário em modo de espera, aparelhos de ar condicionado. Mas não agora. O lugar parou de respirar. Stefan sai da cama e olha de soslaio para o beliche. – Bom dia, garotão. Emil está totalmente concentrado em seus bichinhos de pelúcia, deslocando-os de um lado para o outro enquanto sussurra: – Mas e eu? Eu não posso…? Não, Bengtson, você está encarregado de cuidar das armas. Stefan vai até a pia e está enchendo a cafeteira de água quando movimentos e vozes no gramado lá fora chamam sua atenção. O jogador de futebol e sua esposa também já estão de pé e na ativa. A filha deles também. A criança está agarrada às pernas nuas da mãe enquanto a mulher gesticula furiosamente diante do marido. Stefan inclina a cabeça. Num universo paralelo ele seria obrigado a cobiçar sexual­ mente aquela mulher. Ela não está vestindo nenhuma outra roupa exceto calcinha e sutiã, e parece ter saído diretamente de uma campanha publicitária. Ela é o tipo de mulher que os homens supostamente deveriam desejar. Mas Stefan escolheu algo diferente, e não vai se abalar. É uma questão de dignidade, entre outras coisas. O vidro da cafeteira está cheio. Stefan fecha a torneira, despeja a água dentro da máquina, coloca uma colherada de pó de café no filtro, depois aperta o botão de ligar. Nada acontece. Com petelecos leves ele aciona o botão de liga/desliga algumas vezes, verifica se a cafeteira está corretamente plugada na tomada, depois pensa: 17


Corte de energia. O que explica também a ausência do zumbido elétrico. Ele despeja a água dentro de uma panela e a coloca sobre a chapa de aquecimento elétrico. Alô? Coça a cabeça. Se há falta de energia, o fogão elétrico também não vai funcionar, obviamente. Quando se inclina para acionar o gás, Stefan dá uma olhada de relance pela janela, e seu olhar passa pelo casal às turras para ver como está o tempo. O céu está límpido e azul, então tudo leva a crer que vai fazer um lindo… Stefan engasga e agarra a borda da pia no momento em que chega mais perto da janela. Não consegue entender o que está vendo. O aço inoxidável é morno ao toque; ele se sente tonto e seu estômago revira. Se soltar a pia, ele vai desabar no vazio.

Peter encontrou um bombom no bolso direito dos shorts. Há um ligeiro ruído de papel farfalhando quando ele esmaga o bombom dentro do punho cerrado. Isabelle está berrando com Peter, e ele fita o exato ponto da bochecha dela onde a palma da sua mão poderia pousar caso não estivesse totalmente ocupada com o bombom. – Como você pôde ser tão estúpido, porra? Ficou bêbado que nem um gambá a ponto de deixar as chaves no contato e aí algum idiota pegou o carro e saiu dirigindo e largou a gente neste… neste… Peter não deve bater nela. Se fizer isso, o equilíbrio de poder vai se alterar, acordos de paz temporários serão rasgados e tudo será sugado caos adentro. Ele bateu nela uma vez. A satisfação foi enorme; as consequências, insuportáveis. Ambos os aspectos o apavoravam: o prazer que ele extraiu por infligir dano físico a ela e a capacidade dela de causar estragos mentais nele. Peter pensa: Dez mil. Não. Vinte mil. É a quantia que ele estaria disposto a pagar por cinco minutos de silêncio. A chance de pensar, de formular uma explicação. Mas as palavras de Isabelle são como marteladas em cima dele, e as retesadas cordas de seu autocontrole vibram. Ele só é capaz de fazer uma coisa: esticar e destruir a embalagem do bombom. Molly está agarrada às pernas da mãe, fazendo o papel da criança assustada. Ela desempenha muito bem esse papel, exagerando apenas um pouco, mas Peter sacou a jogada. Ela não está minimamente com medo. De alguma maneira que Peter não compreende, a menina está adorando aquilo. 18


Ele ouve uma discreta tossida. O homem de óculos grossos do trailer ao lado, a personificação do tédio, está caminhando na direção deles. Neste exato momento ele é uma visão bem-vinda. A torrente de palavras de Isabelle seca, e Molly encara fixamente o recém-chegado. – Com licença – diz o homem. – Vocês têm alguma ideia do que aconteceu? – Não – responde Isabelle. – Por favor, me conte você. – Não sei muito mais que vocês. Tudo desapareceu. Isabelle dá uma brusca sacudida na cabeça e vocifera: – Você também? Acha que do nada apareceu alguém e levou embora os outros trailers, sumiu com o quiosque e o bloco de serviços, a porra toda? Isso faz algum sentido lógico? Alguém mudou a gente de lugar, idiota. O homem de óculos olha para os trailers, tudo que resta da área de acampamento de trailers de Säludden, e diz: – Neste caso, parece que alguém mudou muitos de nós de lugar. Molly puxa com força a calcinha de Isabelle. – Quem são eles, Mamãe? Quem fez isso?

Quatro trailers. Quatro carros. Os trailers têm diferentes idades, diferentes tamanhos, diferentes modelos, mas são todos brancos. Os carros têm menos em comum, mas dois deles são da marca Volvo. Todos têm um engate, é claro. Dois têm bagageiros de teto. De resto, nada além disso: nada a não ser pessoas. Três adultos e uma criança, zanzando em meio aos trailers, e os carros, os outros ocupantes ainda dormindo, talvez sonhando, sem saber do ocorrido. Para além do pequeno círculo se vê apenas grama. Uma vasta extensão de relva, cujas folhas têm, cada uma, pouco mais que três centímetros de comprimento, alongando-se até onde a vista alcança em todas as direções. É um espaço vazio. É impossível saber o que há além do horizonte, sob o chão, acima do céu, mas no momento é um espaço vazio. Nada. A não ser pessoas. E cada pessoa é um mundo dentro de si mesma. 19


*** Molly insiste em que Isabelle a acompanhe quando vai atrás do trailer da família para fazer xixi. Peter se agacha e desliza a mão entre os cabelos, soltando um pesado suspiro. – Onde diabos a gente veio parar? – pergunta Stefan para ninguém em particular. – Nunca vi nada parecido na vida. Os cantos da boca de Peter se contraem. – Eu já. Passei metade da minha vida em gramados assim. Primeiro o futebol, depois o golfe. Mas como pode estar tão… arrumado? O gramado tem a aparência de um jardim ou um campo de golfe bem cuidado. Stefan arranca um pequeno tufo e o esfrega entre os dedos. É grama de verdade; há terra grudada nas raízes finas. Seria preciso um exército de jardineiros para manter a grama tão baixa e aparada assim. Existe alguma variedade de grama que cresce só até certo comprimento? Isabelle e Molly retornam. Isabelle é estonteante, sua filha é uma gracinha, linda de morrer. Uma cabeleira longa e ondulada emoldura o rosto pequeno e redondo da menina de grandes olhos azuis. Ela está usando uma camisolinha cor de rosa com a imagem de uma princesa de conto de fadas que não é muito diferente da própria Molly. Sem falar em Peter: cabelos loiros cortados bem curtos e uma linha do maxilar bem marcada. Quadris estreitos, peito largo, bíceps claramente definidos sob a pele. Três pessoas tão próximas da perfeição já seriam menos que plausíveis num catálogo da Ikea *, quanto mais num acampamento de trailers fuleiro e mal-ajambrado. A mudança de ambiente tornou sua presença menos antinatural; o descampado infinito é um cenário mais adequado para Isabelle do que um campo de minigolfe caindo aos pedaços. E, mesmo assim, ela é a mais agitada. – Puta que pariu, isto aqui é absolutamente ridículo – diz ela. – Onde diabos a gente está? Stefan olha ao redor e fita a grama, os trailers, os carros. Ele avista o utilitário preto estacionado ao lado do trailer da família perfeita. *

Uma da maiores redes multinacionais de móveis e decoração. (N. T.) 20


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