DocCena jul 2014

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Alberti Daniel Perez Antônio José Ferreira da Silva Dyego Stefann Henrique Bezerra de Souza Herê Aquino Luiz Carlos Shinoda Luka Severo Mairton Paiva Mariana Elâni Santos Oliveira Rafael Barbosa Raimunda Cid Timbó Ricardo Guilherme Rodrigo Tomaz Silva Suzi Frankl Sperber Tomaz Aquino

fortaleza // julho // ano 03 // 2014

2014


Anderson Mendes e Neto Sier em Floresta dos Lobos Foto de Arlan Elton



// expediente diretoria Almeida Jr Felício da Silva Anderson Mendes Neto Sier jornalista responsável Andreh Jonathas Costa Alexandrino Mtb CE 1915 JP curadoria dos artigos Tomaz de Aquino projeto gráfico Andrei Bessa ilustração da capa Felício da Silva

ISSN 2318-0943

// editorial

Em 1999, Natércia Campos publicou a primeira edição de seu livro A Casa, no qual uma casa narra a história das várias gerações de uma família que habitou dentro de seus muros. A ênfase do livro não está nas paredes ou alicerces desta moradia, mas nas histórias vividas e contadas pelos personagens que nela residiram. Ocasionalmente, tais personagens contam muitas coisas que aconteceram além dos muros da casa em questão, mas que, de certo modo, foram influenciadas ou ainda reverberam nesta morada. A Casa de Natércia foi necessária para que pudéssemos conhecer a história de uma infinidade de indivíduos... Situação também vivenciada por uma outra casa na história do teatro, a “casa” da Companhia Teatral Acontece (CTA).


Em 2002, Almeida Júnior, um dos alicerces da CTA, vendeu a própria casa para angariar recursos para a primeira montagem da companhia: O casamento da Chapéu. A primeira vista pode parecer que ele se desfez de uma morada, que, de fato, após a venda não haveria casa alguma. No entanto, um olhar mais atento logo revela exatamente o oposto, foi aí que o teatro ganhou mais uma “casa” para habitar. O desprendimento desta morada física oportunizou o surgimento e a edificação da CTA e, com isso, várias “gerações da família do teatro cearense” foram abrigadas nestes muros subjetivos: O CITA (Curso de Iniciação Teatral Acontece) foi o berço de novos artistas, o FECTA surgiu como uma sala de experimentações e apresentações de novos trabalhos, a recente DocCena começa a alimentar uma “biblioteca” sobre o fazer artístico. Assim como a Casa de Natércia, a residência efêmera que a CTA criou, tornou-se uma figura viva que narra não só a própria história, mas também a de todos os personagens que nela passaram. Nas figuras penduradas em seus corredores pode-se ver os primeiros passos de uma “cambada” de artistas que convivem com tantos outros que ainda estão iniciando o trajeto, muitas flores e “damas” do teatro, atores em “crise” que insistem em “sonhar”; profissionais da cena, “estoriatores”, “clã destino”s atravessando “encruzilhadas”, subindo “degraus”. Somente nesta edição do FECTA é possível acompanhar o trabalho de mais de 20 grupos diferentes. Se este número for usado como referência para as edições passadas, significa que mais de 220 espetáculos passaram pelo palco do festival. Ou seja, inúmeros personagens transitaram e enriqueceram as narrativas desta casa sem muros. No entanto, as necessidades de seus habitantes cresceram e, esta casa, mesmo sem ter muros ou limites físicos, precisou de uma reforma. As experimentações práticas na sala do FECTA clamavam por outros suportes, por outras discussões. As reflexões que inspiravam as obras cênicas e acaloravam as noites de debate tomaram forma na DocCena. Aqui foi criado outro local de convivência nesta moradia. Os artistas-pesquisadores ganharam o espaço para desvelar um pouco mais sobre o próprio ofício, sobre este artesanato cênico. Neste campo foram reunidos artigos dos mais diversos assuntos, pleiteando desde a relação teatro/sala de aula até investigações sobre o papel do ritual no teatro contemporâneo. Não obstante, esta residência insiste em contar a história dos que por ela passam; esta edição, através do texto “Na página 54” de Rafael Barbosa, traz as angústias e orgulhos de uma mãe que vê seu filho ingressar no campo teatral. Em outro ponto, por meio das reflexões de Yasmin Élica, divide conosco a história dos lobos que por tanto tempo guardaram esta moradia. No fim, penso que é bastante interessante observar as diversas reformas que este “casarão” da CTA passou ao longo dos anos. A medida que mais personagens passavam por seus corredores, maiores se tornaram seus espaços de convivência. Acredito que “a Chapéu”, aquela que teve uma casa vendida para que seu casamento fosse realizado, não imaginou que iria ter tantos convidados, ou melhor ainda, que a festa resultante desta cerimônia duraria muito mais que alguns dias, que chegaria a marca dos 11 anos. Hoje, vejo como é curioso notar que o desapego de uma casa física não deixou ninguém sem moradia, mas pelo contrário, só instaurou uma residência tão ampla, tão “sem-limites” que deu a oportunidade para que muitos crescessem e povoassem seus corredores. Mesmo sem ter nenhum pilar estrutural, paredes ou vigas para sustenta-la, esta casa resiste ao passar dos anos e continua aceitando novos moradores que resolvem ingressar na prática cênica. Creio que esta ausência de delimitações físicas seja o motivo para sua longevidade... Afinal, para abrigar uma arte tão efêmera quanto o teatro talvez o necessário seja exatamente isto, uma casa sem muros.


08 // na página 54 12 // floresta dos lobos 15 // o teatro e o não produto 19 // o teatro performativo 23 // imagem, símbolo e cena 26 // teatro jesuíta no Brasil 30 // as três irmãs esperando godot


“a diferença que há em mim” // 34 a máscara física nas máscaras dell’arte // 38 o jogo ritualístico no teatro contemporâneo // 42 entre o treinamento e a criação // 46 o professor de teatro como perspectiva de mudança pedagógica e social // 54 o teatro não está em crise; o teatro é em crise // 61 a presença do eu na presença da cena // 64


Larissa Montenegro em Na Pรกgina 54 Foto de Arlan Elton


// texto de Rafael Barbosa vencedor na categoria de melhor dramaturgia no FECTA 2013

E agora o meu filho usa maquiagem, uma base, um batonzinho, pó e todo o diabo das cores. “Carrapato na pata do pato” é o que ele faz a manhã inteira. Estou num processo criativo, onde se tem como base a preparação vocal: o rato roeu, três pratos de trigo e isso é meu trabalhinho. Um médico, um executivo, ou até mesmo um professor, mas não! Ele prefere “carrapato na pata do pato”. Uma vergonha! E eu sou a mãe desiludida face a face com meu espelho de bronze. Uma rachadura na borda da cara, rugas profundas nas bochechas, caralho, estou velha! Estou envelhecendo enquanto meus olhos continuam enfiados em “100 passos da felicidade e blá, blá, blá” e outras porcarias literárias que nos fazem acreditar que existe cura. Budazinho e sua filosofia. Meu filho declamando tragédias desinteressantes no sofá e a Senhora-Mãe-Vadia sentada... Sentada não! Deitada nessa cama de parafusos enferrujados. Sistema feudal, arqueobactérias, pinacodermo, Báskara, mercúrio, isso, aquilo e outro. Eu estudo tudo! Até latim, e o meu menino a //09//


na página 54 // Rafael Barbosa

beijar diretores que fazem teatro, e diretores que fazem teatro só pra comer meninos, meninos que estão loucos para provar do banquete da arte. Um virgem nesse jantar maldito. Eu estou na montagem de um clássico europeu “Tristão e Isolda”, só que o diretor preferiu, em sua concepção, que fossem dois Tristões. Quer um pedaço de bolo de cenoura? Pergunto eu, a vaca. O Paolo disse que eu preciso emagrecer. O Paolo, o Paolo, o Paolo. Eu nunca gostei desse Paolo! Diretor respeitadíssimo, prêmio por “Madame Bovary”, o homem do nosso teatro político, o homem das lutas por políticas publicas para a cultura! – Tudo bosta! Um fracasso! E ainda tem a audácia de pôr brincos brancos femininos enquanto anda assoviando pelo centro da cidade – Um vírus que está contaminando a nossa juventude e principalmente o meu filho. É como se eu fosse apunhalada na coluna dorsal e eu dissesse: Pára! Isso dói! Então, ele enche o peito e volta a repetir: Eu sou ator, eu faço teatro, si-fúchi-pá, o rato roeu, viva a arte e hoje a noite tem “Tristão e Tristão” no Teatro Universitário. Mas que coisa mais sensacional... Uma salva de palmas para esse bando de bichinhas, para esses vagabundos, maconheiros de merda! Eu ponho na berlinda mesmo! Medo? Não, não, os medrosos são vocês! Eu já sei, na verdade eu não sei onde é o fim dessa praga, porque eu, euzinha, nunca que faria isso... Senhoras e senhores, damas e cavalheiro, hoje à noite vocês assistirão à Célia no espetáculo: “Isolda e Isolda”, “Julieta e Julieta”. Não, não sou disso. Maconha no bolso e pedindo moedinha pra pagar passagem. Estudei, lia bula de remédio, composição de sabonete, oito anos em medicina, isso aqui ó, debaixo dos meus olhos, é de passar a noite despalpebrada. Lendo e estudando tudo e o Joaquim com o pato no carrapato, ah sei lá, é carrapato na pata. A única coisa que sei é onde isso acaba – Mamãe! Estou sem dinheiro! – Quem é que vive dessa mixaria? Querido, o teatro que você faz é inútil, supérfluo, é uma arte, isso não vou negar, mas é ultrapassado. Já temos o cinema, o televisor, quer ver um ator, uma historinha, aluga um VHS e porra! Está ali na sua frente, na sua casa, quer ver homem se beijar?

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Vá a qualquer esquina que sem-vergonhice é o que não falta. Somos livres, não é isso que os homens que andam de brincos brancos femininos dizem? Ele diz que eu sou uma preconceituosa estúpida, enquanto alonga os braços em cima dos ombros, e eu sou, mas pelo menos não sou uma desocupada. Fui assistir a peça dele, uma merda, ninguém entendeu nada, eles ficavam enfiados em baixo de um plástico idiota falando feito macacos! Pós-dramático, ele disse! – Vamos trabalhar? Um, dois, três: Você é uma folha seda submersa na bruma marinha, deixa que as águas da suavidade lhe levem, olha a respiração, calma Joaquim, calma, mais, mais, mais, cadê a porra da emoção? Concentra caralho! Eu não vou repetir isso. Agora você é um bloco de chumbo, expressão pesada, trabalha o corpo, olha o estado criativo! – É tudo pretexto para não meter a mão na foice. Uma médica antiteatral, eu não sou essa panelada toda, acho que foi a má impressão que essa cambada causou em mim, ou talvez eu seja mesmo essa bruxa de Oz botando fogo nos espantalhos. O doce perguntou para o doce qual o doce mais doce que o doce de batata doce. Isso é mesmo uma titica, e eu é que estou entre os higiênicos, eu leite, ele queijo, eu real, ele centavo, sim, eu sei, um deriva do outro, espera, eu não sou burguesinha não, foi que preferiu o doce, o pato, o rato, os tigres e o carrapato. E sai por aí saltitando - O russo me mandou dançar balé. Ontem, o Paolo aqueceu a minha voz, o meu corpo, o meu coração... - é, porque só falta o coração, ou quem sabe isso já não aconteceu e aí eu estou fodida – A pessoa que está em sua frente é uma fogueira e você o pau que será queimado. Eu quero ver esses corpos em movimento, em fusão, em unidade, colados. Vamos, é teatro físico! É um corpo no ritmo do outro, olha a respiração Joaquim! Você é fogueira ou pau? – Ele começou a gritar, o Paolo. Nesse dia eu estava lá, passei para deixar um bolinho de abacaxi e Nescau e tive que assistir ao meu filho se esfregando no outro e dizendo – Eu sou fogueira! Eu sou fogueira! – E outro que estava com ele dizia – E eu sou o pau que está na fogueira! – Me deu vontade de jogar uma balde de água para ver se aquele

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na página 54 // Rafael Barbosa

fogo apagava. Eu quase morrendo de um infarto vendo tudo aquilo, perna com perna, cabeça com cabeça, homem com homem, mulher com mulher, e o meu filho. Eu já nem sei se isso é mais meu filho, só posso estar enlouquecendo, mas na semana passada ele disse que já sentiu vontade de transar com um rapaz do curso dele e que as pessoas não devem se rotular. Se não existisse rótulos teria muito boêmio reclamando que a Brama está com gosto de Kaiser! Veados e suas justificativas de merda! Outro dia o meu pai me perguntou: O Joaquim, o meu neto pré-doutor, o que ele está estudando? Ele ainda está se decidindo, disse eu. O teatro que ele faz é só pra perder a timidez, pois talvez ele faça direito na Universidade Federal. Devia dizer a verdade, devia! Ele vai ser “Tristão e Tristão”, ele vai ser carrapato, vai ser um macaco gritando debaixo de um plástico. Quer um pedaço de bolo de chocolate? O Paolo disse que dá espinha, e eu preciso de uma aparência mais adulta para o personagem. Uma florzinha descafeínada, desnatada e destrutiva, mas a mim não! Não irei me destruir! Estou velha, mas não me deixo destruir! Eu apenas reclamo comigo mesma na frente do meu espelho de bronze e hoje à noite eu sentarei a minha bundinha suada e assistirei ao “Macho e o Macho”. A vida é mesmo sabão, cada dia menor. O meu único defeito é não querer que o meu filho seja pequeno, que ele não seja, por exemplo, um carrapato, e sim um pato, ou até bem maior que tudo isso. Só fico no seu pé porque eu te amo. Eu sou uma... Sei lá! Talvez uma mãecarrapata, ou até mesmo uma mãe-rata, que rói suas roupas, sua vida, suas escolhas pessoais. Eu devia não gostar de você, se preocupar só comigo, esquecer tudo isso e voltar a enfiar a cara nos livros e dizer: Sistema Feudal é dividido em... Arqueobactérias são... Pinacodermo, biologia, física, anatomia, mestrado, mestre dos magos, doutorado, multinuclear, multimídia, multicor, multidiota, multisentimental, teorias na Mongólia, inglês, he, she, it, e a minha língua morta como eu a buceta do meu latim! Estou arrumada, vou assistir a peçinha dele. Espero que dessa vez não fique gritando uga-uga debaixo de

um plástico. Está na hora, melhor eu ir. De mim exala o perfume do amor, eu sou luz. Tenho em mim fluxos contínuos de bondade, na página 54, cadê essa página! Achei! Eu tenho fluxos contínuos de bondade e de compaixão daqueles que precisam das forças divinas, assim como eu. Sentada na cadeira do teatro, tremendo de ódio, ela por um momento ficou emocionada. A cena final era deslumbrante, seu filho declamava umas palavras formosas ao som de Maria Callas e por um momento ela percebeu seus próprios olhos cheio de lágrimas e subitamente refletiu: Resta a esperança, ele é talentoso, é bom ator, é bonito... Se Deus for bom, ele ainda pode ter um bom futuro. Talvez um dia, quem sabe, meu filho seja chamado para trabalhar na Globo...

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foto de Arlan Elton


Almeida Jr. em Floresta dos Lobos foto de Arlan Elton


uma apreciação do espetáculo da cia teatral acontece // Yasmin Élica

CIA TEATRAL ACONTECE A Cia Teatral Acontece em seus XII anos na cena teatral trouxe ao público um trabalho diferente, singular e algo que difere dos trabalhos habituais. A Cia tem seus caminhos percorridos na cidade de Fortaleza, e vem construindo a cada dia sua história junto à classe artística cearenses. E então para entender sobre o processo criativo do espetáculo FLORESTA DOS LOBOS nada melhor do que as palavras dos membros da Cia. Teatral Acontece que dizem: “Os atores, metaforicamente, enxergando a Cia. Teatral Acontece como: “a criança que completou 10 anos e que logo chegaria à adolescência”; decidiram nortear suas investigações a partir do adolescente problemático, em crise de identidade e com vontade de experimentar o que mundo teria a oferecer (outros territórios estéticos).” Essa crise foi o que levou o grupo em 2010 a tentar encontrar um meio artístico-cênico de //13//


floresta dos lobos // Yasmin élica

levar suas angustias ao palco. Não estou me referindo aqui ao teatro como uma terapia, mas uma área que trabalha com o ser humano e que por propiciar essa aproximação entre os participantes acaba por reverter seus receios em arte.

felizmente exemplificam a ação da Cia. Assim o espetáculo transmite essa vida cheia de percalços, mas que mantém viva a vontade e a fé em fazer e modificar através da arte, e do olhar do artista a realidade que nos cerca. A SAÍDA DA FLORESTA

FLORESTA X FORTALEZA Indaguei-me: porque floresta? Quem são esses lobos? Logo de inicio é dada uma explicação simples: há um paralelo com a famosa história infantil A chapeuzinho Vermelho. O mistério estava resolvido, ou não. Durante a história que é contada no palco sem uma ordem lógica aparente, há artistas comprometidos em instigar a imaginação da plateia que ali se encontra, então nada será entregue de 'bandeja' ao público. O grande paralelo que é feito entre o caminho trilhado pelo grupo e o caminho que aos poucos vai se desvendado na história, é o que na verdade enche os olhos e trás as diferentes reflexões. Há ali uma realidade em que o teatro cearense se encontra e que só pode ser descrita por quem a vivencia quanto artista, pesquisador, plateia ou colaborador. A repercussão que foi atingida na comunidade artística quanto ao espetáculo pode ser exemplificada com essas palavras de Barba (2010): Somente uma comunidade unida por vínculos fortes e profundos, e por uma visão de vida comum, pode reagir de maneira unânime a um espetáculo que, alcançando as nascentes de sua fé e de sua vida espiritual, torna-se possibilidade de ação. (Barba, 2010 p. 40) Se formos interpretar os paralelos do trecho diretamente com a comunidade-cidade podemos cometer equívocos, pois sabemos das desigualdades que persistem em Fortaleza e que também estão presentes em outras capitais do Brasil. Mas pensando na CTA como essa comunidade que se uni por acreditar no teatro como modificador social, as palavras de Barba //14//

foto de Arlan Elton

Há saídas? Há caminhos. A conclusão de que cada espectador se depara com uma experiência singular como na grande maioria dos espetáculos é obvia, mas alguns elementos propiciam uma sensação de identificação com o espetáculo. Ressalto que O teatro é ficção, visão. Só a intensidade de sua sugestão pode agir sobre os espectadores. (Barba, 2010 p. 41). E é com essas palavras que posso dizer que o ritual e o acordo pré-estabelecido entre os atores no jogo da vida e da cena conseguiram, naquele momento, me tocar em meu instante particular como público. Há ali uma intensidade que trás a reflexão sobre qual a importância em ser uma artista persistente nesta nossa Fortaleza. Obrigada a Cia Teatral Acontece pelos Lobos que são, e muito obrigada a Almeida Jr. por acreditar na Floresta que é a cidade de Fortaleza, pois agora sei que por essa estrada afora eu não vou sozinha. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS BARBA, Eugenio. Teatro: solidão, ofício, revolta. Tradução de Patrícia Furtado de Mendonça. – Brasília: Teatro Caleidoscópio, 2010.


considerações acerca da potência criativa desenvolvido em sala e a performance “Natércia”¹ // Luiz Carlos Shinoda²

¹ Com base no trabalho atoral, a performance “Natércia” possui o mesmo nome da atriz-aluna-performer criadora. ² Luís Carlos Candido Souza, ator, encenador e pesquisador. Graduando em Licenciatura em Teatro pelo IFCE. Bolsista do programa de iniciação a docência CAPES-PIBID-IFCE. carlinhosshinoda@hotmail.com //15//


o teatro e o não produto // Luiz Carlos Shinoda

RESUMO: Esse estudo pretende abordar de maneira introdutória e objetiva as abordagens práticas desenvolvidas na disciplina de “ator performer”, descrevendo alguns exercícios e abordar sucintamente a ação performativa “Natércia”, trabalho autoral, criado a partir das experiências em aula. Compreender esse processo investigativo como um teatro do não produto suscitou alguns questionamentos importantes para serem discutidos e explicitados. O presente trabalho tem como principio metodológico as vivências práticas e de observação do autor nas aulas, em momentos tanto em sala quanto em espaços alternativos. O presente trabalho tem como fonte de pesquisa as vivências dentro da disciplina correlacionando com os escritos de Burnier, Grotowski, Cohen, dentre outros que remetem a temas como processo criativo e trabalho atoral. Palavras-chave: Impulso; processos criativos; Natércia.

Introdução E se não precisássemos montar um produto final? E se a apresentação de um trabalho fosse também um processo investigativo de criação? Como o espaço reverbera-se no ator como potência energética e criativa? Há potência energética e criativa no trabalho do ator? Como gerar essa potência? Essas foram algumas das perguntas suscitadas pelo autor desse artigo em sala de aula. A partir dos elementos/exercícios experienciados na disciplina “Ator Performer”, orientado pelo professor John Pessoa, docente do curso de Licenciatura em Teatro do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Ceará. A práxis teatral experienciada durante alguns meses na disciplina está pautada na compreensão de técnicas, ferramentas e/ou materiais capazes de auxiliar e alicerçar o ator em seu percurso como compositor, às vezes visando a cena, outras a própria investigação de potências corpóreas e quebras de bloqueios.

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Desenvolvimento Um dos princípios de trabalho desenvolvidos em sala era o despertar de impulsos, acreditando que o mesmo fosse um ponto de partida para o trabalho do ator. Em sala temos o nome “impulso” citado por diversas vezes tanto pelo professor quanto por nós alunos. Esse uso repetitivo do termo suscitou a necessidade de questionar e reconhecer teoricamente o termo. Sobre os impulsos Grotowski afirma: E agora, o que é o impulso? Im/pulso – empurrar de dentro. Os impulsos vêm antes das ações físicas, sempre. Os impulsos: é como se a ação física, ainda praticamente invisível de fora, já tivesse nascido no corpo. É isso o impulso. Se vocês sabem disso, enquanto preparam um papel, podem trabalhar sozinhos sobre as ações físicas (apud RICHARD, 2012, p. 108). Compreender essa força interna é de extrema i m p o r tâ n c i a p a ra o e nte n d i m e nto d a performance ”Natércia” tema de nosso estudo na qual falaremos mais tarde. Ainda sobre tais princípios Ferracini descreve o seguinte: (...) o importante é observar e perceber que existe uma espécie de pré-ação ou préexpressividade latente, e essa energia está presente antes mesmo do nascimento de qualquer ação física orgânica visível no espaço. Essa pre-ação foi observada por quase todos os grandes pesquisadores do teatro. Pode existir uma ação na imobilidade, uma energia que pode estar "em potencial", uma dinamização corporal estática (2004, p.158). Haja visto, não somos os primeiros a dialogarem sobre o tema proposto “podemos encontrar o equivalente a impulso no que Decroux chamava de espasme, ou na biomecânica de Meyerhold o que é denominado pedigra” (FERRACINI, 2004, p. 158). Essa energia em potencial, assim como

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o teatro e o não produto // Luiz Carlos Shinoda

conceitua Ferracini, fazia-nos passar longas tardes em treinamentos corpóreos, acreditando despertar o mesmo para um estado de trabalho. O estudo sobre o corpo nos mostrava possibilidades de investigação cênicas, resultando em criações de partituras, estruturas e/ou matrizes curtas de no máximo dois minutos que apresentávamos aos demais colegas. (...) o trabalho do corpo é capaz de dar ao ator seu próprio texto, constituído de olhares, pausas, paradas, movimentos cênicos, gestos e procedimentos a que lhe permitam dar de seu corpo perspectivas visuais diferentes (Picon-Valin, 2006, p.28). Em sala o professor repassava alguns procedimentos técnicos corpóreos, partituras, sequências, dentre esses materiais destacamos: caçador, elástico e otkaz.

que são familiares a sensações compartilhadas por nós alunos. “A hiper-tensão determinava movimentos lentos. O ritmo das ações era lento e contínuo (...) elas iam recolhendo ou acordando sensações que se tornavam cada vez mais profundas (BURNIER, 2001, p. 98). O professor intervém na movimentação com alguns direcionamentos em relação a ritmo, a movimentos contidos e expansivos e exploração do espaço. O objetivo era expandir. Esse procedimento técnico-corpóreoatoral assemelha-se a ação performativa “Natércia”, cujo nome da aluna criadora da ação está inserido na nomenclatura do exercício. Surgido a partir da metáfora “as chuvas c h e ga ra m ”, n e s s a a ç ã o p e r fo r m a t i va , percebíamos uma ação em potencial num máximo de imobilidade.

(...) a técnica se traduz em uma base moldável, contingente para a otimização da autonomia criativa do ator (...) a partir de uma base sólida, o ator pode transitar com autonomia na descoberta de seus próprios meios de manusear e traduzir em cenas a sua experiência pessoal. (FISCHER, ano, p. 123) Na sequência do “caçador”, por exemplo, tínhamos possibilidades investigativas do movimento, tais como: articulação, rolamentos, quedas, sustentação, equilíbrio-desequilibrio, dança pessoal e treino criativo, esses dois últimos ganham destaque, pela capacidade de expressão e de experiência viva do corpo. Outro exercício bastante interessante e motivador foi o do “elástico”. O corpo ao chão tenso, hiper-tenso, analogicamente comparado a um elástico pelo professor, somente possuía movimentação através da retenção dos músculos. O objetivo de chegar ao nível alto era impelido por esse acumulo de força. A hipertensão dessa vez paradoxalmente é um canal de expansão. Burnier descreve em seu livro A arte do ator, conceitos

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Fig. 1 – Aluna/atriz Patrícia Moura na performance “Natércia” (Foto: Daniele Freitas).

Uma ação precisa, através de uma explosão interna de energia, de força. Uma ação de expurgar, de expressar, colocar para fora tensões, justamente a partir da tensão do próprio corpo por completo. Deixando surgir babas, olho irritado, veias saltadas. O corpo em estado de tensão extrema. “É a imobilidade móvel, a pressão das águas sobre o dique, vôo parado da mosca retida pelo vidro [...]. Assim como tensionamos um arco antes de mirar [...]. A

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o teatro e o não produto // Luiz Carlos Shinoda

imobilidade quando ocorre é um ato apaixonado” (DECROUX, 1963, PP. 71 e 105 apud BURNIER, 2001, p. 98). A sala de aula/trabalho tornava-se pequena para os anseios e desejos de expandir essa energia que vivenciávamos. A necessidade de estabelecer novos contatos, encontros, olhares, percepções, nos afetava e fazia-nos enxergar e sentir novas perspectivas. Por isso, o trabalho foi apresentado pelos alunos em salas de aula, pátios, corredores da instituição, na rua. Toda hora é hora! Todo espaço é espaço! Apresentávamos em qualquer horário e em qualquer espaço que estivesse com público aberto a assistir o trabalho (mesmo que fosse uma pessoa somente). Não era um trabalho de conclusão da disciplina, mas sim, um procedimento de criação/investigação. Os escritos de Renato Cohen aproximam o processo de construção do experimento cênico “Natércia”, da definição de work in process, pois esse conceito “(...) opera-se com o maior número de variáveis abertas, partindo-se de um fluxo de associações, uma rede de interesses/sensações/sincronicidades para confluir, através do processo, em um roteiro” (COHEN, 2006, p. 17). Assim como “Natercia”, tínhamos outras sequências/roteiros, com nomes de alunoscriadores, exercícios esses pautados numa “obra não acabada” (COHEN, 2006, p.18). Considerações Finais A arte teatral frequentemente está condicionada a produção massiva de espetáculos. A

necessidade do resultado como produto acabado amiúde, denigre o processo. Acreditar nesse processo é aceitar e se provocar a um mergulho em si mesmo, no seu emaranhado de dúvidas e fluxos desconhecidos. “O entender é muitas vezes limitado” já nos dizia Clarice Lispector. A subjetividade latente em aula e nas intervenções pulsava em nossos corpos, a busca do inatingível fazia-se presente em suor, gritos e não conceituação, mas em experiência viva. Entendemos esse processo investigativo não como finalização de um percurso, mas um começo. Pois a partir de cada novo espaço ocupado, cada olhar percebido e corpo encontrado estabeleciam-se algo novo, ainda difícil de explicar, mas forte de ser sentido. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS BURNIER, Luis Otávio. A arte de ator: da técnica a representação. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001. COHEN, Renato. Work in progress na cena contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 2006. FERRACINI, Renato. Corpos em criação, café e queijo. São Paulo: Campinas, 2004. FISCHER, Stella. Pedagogia do Teatro: Processo colaborativo e experiências de companhias teatrais brasileiras. São Paulo: HUCITEC, 2010. PICON-VALIN, Béatrice. A arte do teatro: entre tradição e vanguarda: Meyerhold e a cena contemporânea; organização Fátima Saadi. Rio de Janeiro: Teatro do pequeno gesto: Letra e Imagem, 2006. RICHARD, Thomas. Trabalhar com Grotowski sobre as ações físicas; Tradução Patrícia Furtado de Mendonça: São Paulo: Perspectiva, 2012.

Fig. 2 – Alunos/atores Jotacílio Martins e Luis Carlos Shinoda na Av. 13 de Maio em frente ao IFCE - Performance e instalação “Rennê” (Foto: Tatiana Amorim)


o conceito simondoniano no teatro contemporâneo // Dyego Stefann¹

RESUMO: O que pode a performance art? A característica hibrida dessa linguagem, esse lugar de entre lugares que ela se propõe estar, faz com que possamos perceber alguns traços e alguns conceitos e características suas em diversos outros segmentos da arte. Portanto, esse artigo se propõe fazer uma breve analise sobre do/da esquete/performance O Tempo de um Cigarro, de minha autoria, sob a perspectiva do conceito de Meio Associado proposto pelo filósofo francês Gilbert Simondon. Essa pesquisa, assim como a obra, se propõe a estar em eterno processo de entendimento e aprofundamento. A obra é o processo e não um produto final. Palavras-chave: Performance art, Teatro Contemporâneo, Gilbert Simondon, Meio Associado, O Tempo de um Cigarro. ¹ dyegostefann_@hotmail.com

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o teatro performativo // Dyego Stefann

O VAZIO/CHEIO, O OUTRO E O ESPAÇO Seria possível abstrair experiências? E mergulhar, voluntariamente, no vazio²? O que seria esse vazio e o que se espera com esse mergulho? A partir do caos me laço no vazio em busca de novas possibilidades. E é assim que gostaria de começar es s a es crita. C o mo u m Yves Klein ³ contemporâneo, saltando no vazio. Não se esvaziando, mas peregrinando por regiões (des)conhecidas do próprio ser. Desafiar o desafio do novo. Manter-se curioso e atento às pequenas descobertas. Descobrir o vazio a partir da relação com o(s) outro(s). Construindo um espaço de saberes coletivo. Preenchendo o vazio inicial de provocações até que transborde em formas de sensível. Assim foi meu encontro com esse tema. Um desnudamento consciente para uma relação escorregadia. Topa saltar? Já nesse lugar encontrei diversos percursos, artistas, pesquisadores procurando, acendendo problemáticas, manifestando ideias. Encontrei pessoas com olhares repletos de curiosidade e com almas cheias de vida que possibilitaram plantar em cada pedaço desse novo lugar um sentido para continuar. E essa mesma necessidade de jogar-se em um lugar novo e (des)conhecido impulsionou os movimentos artísticos dos últimos anos. Uma busca por formas diversas de conceber uma obra que fosse ao mesmo tempo potente e cheia de qualidades de afetações. Algo que atravessasse o espectador por outros meios. Modificasse sua forma de ver o mundo e de se relacionar com ele. Modificasse, inclusive, o próprio artista. Mutualmente. Assim ² Quando proponho dialogar sobre o vazio não estou dialogando com um conceito fechado, estou apenas sugerindo uma imagem. Do vazio, mas não estou me reportando a um lugar sem potência, insípido ou até mesmo frigido. Estou refletindo sobre um lugar repleto de possibilidades de ser/estar, de ocupação. ³ Yves Klein (1928-1962) foi um artista francês que causou grande polêmica com suas obras. Enquanto alguns estudiosos de sua época o classificam como neodadaísta outros dizem que Klein foi o precursor da arte contemporânea.

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surgem os primeiros pensamentos/vislumbres sobre o que mais tarde chamaríamos performance art4. Nasce nesse vazio o que mais tarde Cohen chamaria de “arte de fronteira” (2002, p.27), uma linguagem que busca no hibridismo5 entre linguagens novas possibilidades de conceber o fazer artístico, visando não só romper conceitos estabelecidos, mas levar o pensamento para outro lugar que não seja o é ou não é arte. Segundo Glusberg a performance art “é o resultado final de uma longa batalha para liberar as artes do iluminismo e do artificialismo” (2006, p. 46). E com o surgimento dessa nova forma de pensar a arte, surgem também outros pensamentos que preencheram esse lugar: Como se colocar diante dela? Quem são os artistas que se expressão através dessa linguagem? Como fazem? Fabião nos propõe uma ideia para pensar sobre esses artistas, os performers. Para ela, eles “são, antes de tudo, complicadores culturais. Educadores da percepção ativam e evidenciam a latência paradoxal do vivo – o que não para de nascer e não cessa de morrer, simultânea e integradamente. (FABIÃO, 2009, p.237) Voltando rapidamente para esse espaço que criamos/imaginamos, o vazio, onde tudo é nada e ao mesmo tempo tem a possibilidade de ser, uma semente foi plantada. Foi em 10 de dezembro de 1896 que o francês Alfred Jarry (1873 – 1907) apresenta para o público sua polêmica obra “Ubu Rei” no Théâtre de L'Oeuvre em Paris. Sua peça “demoliu os frágeis pressupostos dramáticos de sua época, atacando as convenções sociais e valendo-se das palavras para criar um clima eufórico e delirante” (GLUSBERG, 2013, p. 13). Ao 4

O termo performance ou performance art utilizado nessa escrita se reporta a ideia de linguagem artística independente. A mesma amplamente pesquisada e experimentada por artistas nos anos 60 e que veio ganhando espaço nas discursões culturais contemporâneas em todo o mundo. 5 Adj. e s.m. Diz-se de, ou animal ou vegetal que resulta de cruzamento: a mula é híbrido do asno e da égua. / Gramática Que é composto de palavras de duas ou mais línguas diferentes, como automóvel. / Fig. Em que há mistura de duas espécies diferentes: tinha uns belos olhos de cor híbrida. / Irregular, misto.

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o teatro performativo // Dyego Stefann

extrapolar os cânones teatrais de sua época, Jarry inaugura uma nova forma de pensar o teatro. Esse pensar fora dessas normas técnicas de convenções de sua época provocou uma ruptura no pesar não só teatral, mas também influenciando movimentos que mais tarde refletiriam sobre questões importantes ao pensar em performance art. Jarry pulou? Outra semente foi plantada em 20 de fevereiro de 1909, Filippo Tommaso Marinetti, poeta italiano, publica no jornal francês Le Figaro o seu Manifesto Futurista. Nesse movimento juntam-se vários outros artistas de diversas linguagens. Dois meses depois dessa publicação, Marinetti apresenta no Théâtre de L'Oeuvre, mesmo teatro de estreia de Ubu Rei, sua própria peça Roi Bombance. Não menos provocador e nem menos escandaloso que a “patafísica de Jarry” (GOLDBERG, 2006, p. 3). E Marinetti? Pulou? Bem, decidi pular. Sem medo. Apenas com essa necessidade de germinar no vácuo de infinitas possibilidades. E o que acredito ter percebido com esse mergulho foi a germinação de algo que, já em suas raízes, parece atrair-se para o que há de real. Parece querer buscar a (des)artificialização das artes, buscar a diluição de toda e qualquer artificialidade que se coloca nesse espaço. Atuante e plateia, vida e arte. Buscar um lugar (in)comum e não elitista. Um lugar de ser e ao mesmo tempo não ser. Um lugar de inclusão e não de exclusão. Longe de conceitos fechados e às vezes dicotômicos: O que presta e o que não presta; a arte e a não arte; o artista e o não artista. Tudo isso parece querer mostrar que a própria vida é capaz de virar arte à medida que faço dela esse lugar. Com isso surge mais uma semente, Allan Kaprow. Sua proposta com a não-arte era a desprofissionalizarção e a desintencionalidade nas artes. A intencionalidade, talvez, coloque a arte nesse lugar de distanciamento e elitista à medida que distância também o fazedor dela. O artista que se faz de ferramenta e não de meio sensível para a sua própria criação. Para ele “o praticante da nãoarte, que ele vai chamar de a-artista, do artista praticante da arte-arte, é a intencionalidade.”

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(COHEN, 2002, p. 46). Chegamos, talvez, a um ponto chave dessa reflexão: Se não existem divisões entre arte e nãoarte, entre arte e vida, atuante e audiência, então também não temos divisões entre esses e o meio. São associados, inclusive no fazer. Um depende do outro à medida que se modifica, modificando o outro e consequentemente a si à medida que modifica o meio. Ação e reação. Para refletir um pouco melhor sobre essa questão, que tal pensar no meio como parte de um conjunto de fatores (ambiente geográfico circundante e os componentes técnicos) que se liga com outros fatores criados nesse espaço e unidos criam uma dramaturgia do momento. Meio, atuante e audiência. O resultado não está em nenhum, mas sim no choque entre eles, gerando um quarto ponto que seria talvez o lugar relacional. Um lugar onde não se pode prever o depois, só se pode prever o não prever. Só se pode saber o estante. Assim o atuante lança no espaço os componentes técnicos ou os dispositivos de criação6 que colidem com sua audiência que ao reagir, recriam o espaço pré-preparado para a ação, fazendo ser necessária uma nova ação espontânea que virará um novo dispositivo que modificará o outro, o espaço e a si. Fazendo da obra não um produto acabado, mas o fazer. O meio associado é mediador da relação entre os elementos técnicos fabricados e os elementos naturais no seio dos quais funciona o ser tecno-estético, ou seja, o meio associado diz respeito ao meio tecnológico pelo qual a obra foi produzida e o meio geográfico em que ela se encontra – no momento de produção e da difusão -, sendo tais meios mediados pelo humano e resultando na obra de arte como um objeto tecno-estético. (OLIVEIRA, 2012, p. 102). 6

Entendem-se como dispositivos os artifícios criados para gerar movimentação criativa entre os elementos envolvidos no processo.

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o teatro performativo // Dyego Stefann

No esquete/performance O Tempo de um Cigarro do Grupo Panelinha de Teatro, o jogo se faz a partir da relação entre atuante, audiência e espaço. O que parece ressoar o conceito simondiniano de Meio Associado. Pois se um dos três elementos sumirem, nada acontece. O público é convidado a participar das ações desenvolvidas em cena e muitas vezes são os criadores dela. Tudo começa com a pergunta: alguém quer fumar comigo? A partir daí, do dizer sim para o jogo, o vivencial vira elementos principais do jogo. Os performers levam para o espaço esses dispositivos, mencionados anteriormente, que colidem com a audiência não avisada e ao reagirem modificam o espaço que provoca os performers a recriarem as relações através de novos dispositivos. Cria-se a atenção no presente, em si, no outro e no espaço. Dessa maneira se constrói uma encenação que lança no espaço alguns elementos para a criação de uma dramaturgia do momento. Entendendo a “importância de se considerar que há meios associados que abrigam obras e espectadores, os produzindo e sendo produzidos por eles” (OLIVEIRA, 2012, p. 102). O atuante é apenas alguém que fará com que alguns elementos apareçam, mas não dele, nem do texto, nem do figurino, nem da audiência ou do espaço físico, mas sim do que acontece nele a partir do choque entre esse dispositivo e o meio. E esse lugar de incerteza é uma imagem perfeita para concretizar a ideia de vazio que criamos. Esvaziamento do excesso de si para misturar com os diversos excessos e deixar transbordar essa inquietude em cada momento. Desta forma não se tem como prever a obra, pois ela é o processo de descoberta da própria obra à medida que alguns elementos sempre se modificam para novas criações. Pular é sempre muito difícil! Você pulou? REFERÊNCIAL BIBLIOGRÁFICO COHEN, Renato. Performance como Linguagem: criação de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo. Perspectiva, 2002. ___. Work in progress na cena contemporânea. São Paulo. Perspectiva, 2005. GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. Trad.: Renato Cohen. São Paulo. Perspectiva, 1987. GOLDBERG, RoseLee. A arte da performance – do Futurismo ao presente. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo. Martins Fontes, 2006. ARTIGOS FABIÃO, Eleonora. Estética teatral contemporânea: performance/encenação. São Paulo. Sala Preta, 2010. ___. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. Rio de Janeiro. 2009. PHELAN, Peggy. A ontologia da performance: representação sem produção. Lisboa. Revista de Comunicação e Linguagem – (Org.) Paulo Felipe Monteiro. Edições Cosmos, 1998. SCHECHNER, Richard. Performance. São Paulo. Sala Preta, Volume 9, 2009. ___. Pontos de contato entre o pensamento antropológico e teatral. Trad.: Ana Leticia de Fiori. São Paulo. Cadernos de Campo nº 20, 2011. OLIVEIRA, Machado Andréia. Corpos associados: a arte e o ato de experiência de acordo com Gilbert Simondon. Porto Alegre. Informática na Educação: teoria & prática, 2012. ___. Noções de meio associado e informação no sistema obra-humano-meio. 22º Encontro Nacional Ecossistemas Estéticos, Belém, 2013.

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o figurino em "como se fosse infância" // Rodrigo Tomaz Silva¹

RESUMO: Neste Artigo, apresento análises de figurinos do espetáculo Como se fosse Infância do Grupo Dois de Teatro, com recorte nos trajes da personagem Constelação de Crianças. Considerando a comunicação visual entre figurinos e espectador, aponto como são produzidas as imagens simbólicas nos figurinos, tendo como metodologia a observação dos figurinos em cena e considerando imagens da Pintura Gótica e da era Vitoriana que serviram como inspiração para Grupo criar os figurinos. Como fundamentação teórica para tais abordagens, apresento a definição de imagem de Rancière, trago o conceito de símbolos de Chevalier, e os conceitos de arquétipo e inconsciente coletivo de Jung. Como conclusões, reflito acerca da importância que os aspectos simbólicos do figurino têm dentro do espetáculo, bem como a contribuição que podem trazer para a narrativa cênica. Palavras-chave: Imagem; Figurino; Símbolo; Cena Teatral. ¹ Universidade Regional do Cariri, rts_tomaz@hotmail.com

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imagem, símbolo e cena // Rodrigo Tomaz Silva

INTRODUÇÃO: IMAGENS SIMBÓLICAS NO FIGURINO Independente de onde se originam as imagens, elas apresentam sentido a quem as observa. Muitas delas, também chamadas símbolos, oferecem significados de efeito coletivo. Jacques Rancière define as imagens como um objeto de dupla questão: “quanto à sua origem e, por conseguinte, ao seu teor de verdade; e quanto ao seu destino, os usos que têm e os efeitos que induzem.” (RANCIÈRE, 2009, p. 28). Quando uma imagem é produzida por um artista, entende-se que possui objetivo, a fim de provocar sensação e trocar experiência estética com o espectador por meio dos símbolos que constroem. Os símbolos estão no âmbito do desconhecido e por isso pode-se dizer que pertencem à imaginação. Para Chevalier “[...] eles dão forma aos desejos, incitam a empreendimentos, modelam comportamentos, provocam êxitos ou derrotas” (1994, p. 12). Segundo o Dicionário dos Símbolos, há símbolos universais e que ultrapassam o tempo. Há outros que se apresentam da mesma forma em diferentes lugares e seus significados dependem das condições culturais e temporais. A imagem, para ser símbolo, depende da interpretação do observador. Se apresentados como arquétipos, os símbolos exibirão feições visuais comuns ao inconsciente coletivo. O inconsciente coletivo é um dos três níveis da psique apresentados por Jung, e é composto por arquétipos, que significam “[...] modelo original que conforma outras coisas do mesmo tipo” (HALL; NORBY, 2005, pág. 33). Jung chama de “imagens primordiais” as imagens que competem ao inconsciente coletivo. O termo primordial é empregado por ele no sentido de que, essas imagens teriam sido criadas muito antes do nascimento da pessoa que as percebe. São imagens que antecedem muitas gerações e podem nunca ter sido acessadas em experiências anteriores de uma determinada pessoa. Sobre a imagem arquetípica, Palasmaa (2013, p. 58) //24//

acrescenta que “[...] os arquétipos não tem conotações simbólicas fixas e fechadas, porque funcionam como geradores de associações e e m o ç õ e s , a l é m d e i n c e n t i va re m u m a reinterpretação constante”. Assim, os símbolos apresentados por um figurino teatral são imagens que criam significado, códigos que constroem sentido imagético diante do espectador e apresentam uma multiplicidade de leituras que cada um pode desenvolver. O SÍMBOLO NO FIGURINO, O FIGURINO NA CENA Em meio aos símbolos que uma cena pode exibir, o figurino está condicionado a dialogar com outros elementos estéticos, mas, para tanto, precisa apresentar-se em sua totalidade e especificidades. O espetáculo Como se fosse Infância mostra maravilhas que se ocultam nos sentimentos tristes, e a personagem em questão é vítima de sua realidade incompreendida pelo mundo 'real'. A ideia propulsora para a concepção do figurino fundamenta-se na Pintura Gótica (século XIII), inspirado nos rituais sublimes do encontro entre divindades e seres humanos apresentados por esse movimento artístico, os quais, no contexto de Como se fosse Infância, remetem a cerimônias de purificação. Outra fonte de influência conceitual é a moda Ritualista da era Vitoriana (século XIX). A partir dessas referências foram feitas as bases formais do figurino da personagem Constelação de Crianças, que é interpretada por três atrizes. Só depois, foram colocadas sobre essas bases as informações específicas para compor a narrativa simbólica das imagens.

Figura 1: Croquis da base do figurino da personagem Constelação de Crianças do espetáculo Como se fosse Infância. Criação: Rodrigo Tomaz.

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imagem, símbolo e cena // Rodrigo Tomaz Silva

Na construção das bases formais apresentadas na Figura 1, a escolha das linhas, que se mesclam entre retas e curvas, propõe definir a vulnerabilidade que constitui a personagem dentro do conteúdo dramático, sugerindo para o espectador que, embora ela seja radicada no universo celestial, ela pode ser inserida e vitimada pelos costumes terrenos do Condutor de Estrelas. A narrativa do espetáculo apresenta oposições entre dois núcleos de personagens rivais: o Condutor de Estrelas: este traz no figurino linhas retas, opacidade e luz de natureza dura; e a Constelação de Crianças: com trajes opostos, é composto por luz difusa, brilho e linhas curvas. Essa diferença formal na construção dos figurinos pode ser percebida na Figura 2.

Figura 2: Núcleos de personagens opostos: Condutor de Estrelas X Constelação de Crianças. Espetáculo Como se fosse Infância. Foto: Luíze F.

Pensando nas características da personagem, no que diz respeito à cor, escolhemos branco embasados nas características da pureza eterna, difusão da luz e inocência (Chevalier, 1994). A escolha do branco também é proveniente da simbologia pensada por Chevalier quando trata da cor como elemento informativo presente em “[...] todos os níveis do ser e do conhecimento, cosmológico, psicológico, místico etc” (1994, p. 275). Tratando ainda sobre a cor em ritos religiosos e de purificação, escreve: “cor dos mortos, serve para afastar a morte. Atribui-se ao branco um poder curativo [...]. Nos ritos de iniciação, o branco é a cor da primeira fase, a da luta contra a morte” (CHEVALIER, 2009, p. 277 – 278).

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A relação terra/céu que vem da inspiração nas Pinturas Góticas é posta em cena por meio da transfiguração do ser vivo para outro estado, não o entendendo como morte ou fim, e sim, criando uma metáfora à eternidade da Constelação de Crianças. Quanto à funcionalidade cultural e sócio histórica, apesar de ter como referência a moda feminina da era Vitoriana, este Figurino não visa expressar classe social, época ou lugar específico. A tendência é apresentar simbologias individuais da personagem, sua inserção no conteúdo dramático, e narrar circunstâncias vividas pelo sujeito dentro da fábula. Remete diretamente ao mundo incompreendido da personagem. REFLEXÕES FINAIS Com esta análise do figurino da personagem Constelação de Crianças, é válido esclarecer que não defino os aspectos apontados como a única vertente simbólica. O que exponho são breves percepções, e o leitor poderá observar muitos outros aspectos para além dos que estão descritos, ou mesmo discordar. Do ponto de vista dos elementos formais, é uma alegoria da leveza e da confusão do universo infantil, bem como da multiplicidade de ideias e (in)compreensões acerca do mundo adulto. Simboliza o encontro entre bem e mal; vida e morte; eterno e finito; luz e sombra; realidade e fantasia. Percebo ainda, que os símbolos construídos pelo figurino em cena justapõem-se aos conteúdos da encenação. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Trad. Vera da Costa e Silva, 24. ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1994. HALL, Calvin S., NORDBY, Vernon J. Introdução à psicologia Junguiana. São Paulo, Cultrix, 2005. JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1964. PALLASMAA, Juhani. A imagem corporificada: imaginação e imaginário na arquitetura. Tradução: Alexandre Salvaterra. Porto Alegre: Bookman, 2013. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org.; Editora 34, 2009.

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missão ou escambo? // Mairton Paiva¹

RESUMO: Este artigo desvela uma compilação bibliográfica através de um questionamento acerca do período colonial com a chegada da companhia de Jesus ao Brasil. Traz a compreensão do uso do teatro como um recurso pedagógico utilizado na catequização indígena. Temos por pilar os autos escritos por José de Anchieta que foram inseridos concomitantemente à ocupação territorial patrocinada pela Coroa Portuguesa, visando um novo ideal de homem nesse novo território. Sobre o olhar de Cafezeiro e Gadelha, a pesquisa explana a missão jesuítica que ao aportar, percebe que o escambo seria a melhor forma de encontro na inserção de valores culturais sócio/políticos e econômicos. Palavras-chave: Teatro, catequização, jesuítas, indígenas. ¹Instituto Federal do Ceará - IFCE. Email: mairtonbacking@hotmail.com //26//


o teatro jesuíta no Brasil // Mairton Paiva

INTRODUÇÃO Com as missões originárias jesuíticas, temos como protagonista José de Anchieta que em meandros da tradição portuguesa ainda renascentista, se coloca como dramaturgo dessa historia a fim de civilizar o índio, utilizando-se do teatro como instrumento de catequização. Encena o que poderíamos chamar de “teatro dos mistérios”. O século XVI é marcado por um período em que o teatro é inaugurado como instrumento pedagógico nas escolas jesuíticas e no Brasil, fazendo Anchieta o primeiro a escrever obras em terras brasileiras. Obras estas que nunca foram encenadas com um fim último, pois sempre estavam inseridas em festas religiosas. Diante desse encalce pré estabelecido pela desbravação por terra e suas riquezas, o índio passa a conhecer seu adversário mais forte: o colonizador português. Diante dessa temática fica a interrogação sobre a “escravidão civilizatória” do índio, quando em missão os Jesuítas além de enfatizar os dogmas católicos, também fizeram escambo com a teatralidade já existente em terra brasileira. Cafezeiro e Gadelha (1996, p.29) pontuam, “não há dúvida que um instinto de teatralidade se manifesta na expressão de ocorrências que na natureza desperta no primitivo emoção estética”, e mais a frente alega que as danças são expressão e formas primitivas próprias do ser humano. Atesta que elas não se julgam impróprias para estabelecer pareia com o modelo europeu, eles admoestam: É preciso atentar para o caráter específico do próprio material. Trata-se de uma teatralidade, uma expressão cuja dificuldade de documentação incide na ausência do próprio texto. Ao lado disso, impõe-se um conceito de cultura estabelecido a priori e, através dele, as proibições advindas do poder (...) tais fatos fizeram (e continuam a fazer) que grande parte da expressão dramática primitiva de

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indígenas e negros brasileiros se tenha perdido. (CAFEZEIRO e GADELHA, 1996, p. 27) O fato é que índios aqui residentes contribuíam para o cruzamento de culturas, teatralizando o popular em verso ao erudito colonial em meados de 1553. Com a missão de evangelizar a colônia desabitada por gentis, Anchieta participa do Brasil colonial trazendo na mala uma herança europeia, desembarcando com valores arcaicos e medievais. Taxado com um catolicismo enraizado ortodoxo, fazia da religião um fator indispensável para a emancipação territorial pretendida por Portugal, e como a necessidade da igreja era de se expandir, mantinha esse projeto de evangelização como bandeira, resquícios das cruzadas. Roberto esclarece que por demanda da Contra-Reforma Católica e o medo do surgimento de novas religiões, criou-se a Companhia de Jesus por Inácio Loyola em 1539. Seu principal objetivo era o combate ao avanço protestante e a conquista de novos fiéis, com forte influência exercida pelos padres jesuítas na utilização do teatro como conversão religiosa, pela sua capacidade educacional. Passa-se então a utilizar o Teatro como recurso pedagógico, tanto nos colégios europeus quanto nos colégios fundados pela companhia de Jesus chamado Novo Mundo. O teatro jesuítico mostrou-se um eficiente recurso didático, que entre os anos de 1555 e 1572 foi utilizado amplamente nos colégios da Companhia de Jesus espalhados pela Europa, principalmente na Espanha, Itália, Alemanha, França e Portugal. A Companhia de Jesus catequizou os indígenas e conquistou novos fiéis, educando os filhos dos colonos aqui nascidos e assegurando a permanência da religião católica nas famílias e no Brasil. O Teatro Anchietano trazia temas que trabalhavam os mistérios da vida dos santos, milagres e a construção da moralidade cívica do povo que luta pra ser santo, uma das maiores causas do evangelho. Jose de Anchieta aplicava o teatro com um caráter transcendental na sublimação do ser. Seus autos trazem um gênero

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o teatro jesuíta no Brasil // Mairton Paiva

humanista do dogma católico, perpassando a realidade existente na junção e na formação do caráter pessoal. Anchieta obtinha sucesso ao aproximar os demônios da igreja católica dos demônios familiares indígenas, aqui já fixados com sua própria forma de vida e cultura “pois viviam numa terra em que tais leis não tinham a menor relevância” (CAFEZEIRO e GADELHA, 1996, p.50). Os autos escritos por ele materializavam moralidades e mistérios, figuras imagéticas como anjos/demônios, bem/mal, através de ritos de dança com a utilização de instrumentos indígenas, o que facilitou na evangelização.

mensagem cristã. A própria língua tupi-guarani foi inserida nos autos a fim de obter um maior convívio com os indígenas. Além das peças de teatro, Anchieta escreveu poesias, sermões, cartas e a gramática da língua tupi. Ao analisar a história da literatura brasileira, o teatro jesuítico é considerado por muitos como a primeira manifestação dessa arte no Brasil. O teatro Europeu nessa época estava se desenvolvendo como fenômeno urbano, enquanto que aqui no Brasil ainda era povoados e aldeias, pois não havia a ideia de cidade, apenas dotes de sesmarias e províncias voltadas para Portugal.

O teatro assim se tornava uma ferramenta “perigosa” ao passar dos anos para os jesuítas, em virtude de, ser uma arte que mexe com os baixos instintos, tornando subversivo conciliar teatro e os dogmas da igreja, servindo apenas para instruir e educar. Os mesmos autores falam que a grande motivação do espetáculo estava no martírio dos santos.

DISCURSÃO Ao esboçar essa leva de informações, cabe aqui afrontar o título eminente desse artigo, onde faço um questionamento no tempo: se o teatro jesuítico foi uma missão ou um escambo, na troca de ideias ou valores sócios econômico/culturais que contribuiriam de “certa forma” para o acontecimento teatral de nosso país. Pautado nos escritos de Cafezeiro e Gadelha (1996, p.36) norteadores desse trabalho, eles alegam que o cruzamento de culturas fez viver e reviver esse teatro, num conjunto de expressões reproduzindo tanto nas teatralizações populares como nas produções eruditas, conforme verificamos nos autos dos jesuítas. E se o escambo é a troca por interesses a um bem comum, ele valorizou o que de certa forma já existia aqui.

Geralmente os espetáculos tinham como elenco os índios catequizados, sendo apresentados na maioria das vezes ao ar livre, nas missas entre sermões e alguns deles tendo a selva por cenário, ao estilo do teatro medieval ou primitivo como denota os autores: Ainda do ponto de vista da cena, o espetáculo anchietano aproxima-se do teatro primitivo, que dificilmente se realiza em sua totalidade em ambientes fechados. Às vezes sai do adro da igreja para a r u a ( c o m o u m a p ro c i s s ã o ) o u , a semelhança do moderno teatro de rua, faz s u a p re ga ç ã o n a p ra ç a p ú b l i c a . (CAFEZEIRO e GADELHA, 1996, p. 50) O que tornava o teatro de Anchieta inovador era sua mobilidade, onde se enquadrava nas estruturas dos autos sua maior especialidade. Alguns peças do Pe. José de Anchieta eram escritas em diversos idiomas para facilitar o entendimento e aumentar o alcance da

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Desta maneira, mais uma vez, verificamos que a catequese de Anchieta encaminhava muito mais para uma atuação artística que propriamente religiosa, muito embora não saibamos fosse esta sua pretensão. O que impressionava crianças, índios, brancos e negros era sobretudo a arte. (CAFEZEIRO e GADELHA, 1996, p. 55) Sendo assim o teatro brasileiro nasce à sombra da religião, percebendo que a pedagogia só poderia acontecer através da troca, os jesuítas se moldaram ao uso da língua nativa. Araújo (2005, p.3) fala que “ao ocorrer esta tradução, a troca de

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experiência entre missionários e os indígenas aproximou o universo de ambos, proporcionando aos jesuítas um melhor entendimento acerca da religião e dos costumes indígenas.” A oralidade sempre foi essencial para a igreja, por isso a semelhança com o teatro, a fala como signo do sagrado foi de extrema importância para a catequização dos indígenas. Diante desses fatos passados, trazer o olhar da construção cultural para esse momento histórico de nosso país, nos faz supor que a chegada da Companhia no Brasil em 1549, trouxe não só a crença e a tarefa de evangelizar, mais somar com a estrutura aqui já existente pelos indígenas. Que além do uso da palavra falada, a imagem também fazia bastante efeito aos índios. Pois as imagens faziam parte do seu repertório natural nas danças e rituais, e desta forma, era percebido o entrelaçamento da cultura europeia com a indígena, e assim, vise e versa, tornando os ensinamentos cada vez mais perceptíveis a ambas as partes. CONSIDERAÇÕES FINAIS Na consumação do tempo nem todo acontecimento fica pra historia. Com base nos depoimentos dos viajantes (literários) dos séculos XVII e XVIII, quando alegam que fora pobre o teatro e a vida teatral no período colonial, estão de certa forma um pouco equivocados, se olharmos com o olhar do europeu colonizador. O que contou foi à dramaturgia de artistas amadores em ocasiões festivas, registrada apenas na memoria de quem presenciou no tempo, pois o teatro é o acontecimento do agora. Há uma tendência, entre os pesquisadores brasileiros, a considerar o século XVII como o inicio de uma época em que haveríamos de passar cento e cinquenta anos sem teatro. Antes de tudo, isto seria impossível: vimos que manifestações teatrais já encontramos nos índios e, por outro lado, a semente jesuítica não desapareceria assim. (CAFEZEIRO e GADELHA, 1996, p. 58) Podemos concluir esse artigo que o escambo entre culturas eruditas e indígenas existiu e contribuiu para que o os fatores sociais, políticos e pedagógicos redefinissem o contexto histórico, trazendo para o nosso estudo o entendimento do teatro Anchietano como processo pedagógico, pois desejou a transformação dos indivíduos neles atuantes. O teatro era celebrado no Brasil colônia como processo pedagógico atingindo um alto grau de sofisticação com fins educativos, antes e depois da chegada dos Jesuítas. REFERÊNCIAS ANCHIETA. J. Teatro de Anchieta. São Paulo: Edições Loyola, 1977. ARAÚJO, KAUIZA. Teatro jesuítico: um instrumento da pedagogia jesuítica. Artigo completo publicado na revista Póros: caderno de pesquisa em filosofia, vol. 1; com o tema: Marques de Sade: Entre o desejo e o prazer, 2005. BITTAR, Marisa. FERREIRA, Amarillio. Teatro jesuítico, catequese e pluralidade lingüística no Brasil do século XVI. Ambos são professores do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e doutores em História Social pela Universidade de São Paulo (USP-SP). 2009. CAFEZEIRO, Edwaldo. GADELHA, Carmen. Historia do teatro brasileiro: de Anchieta a Nelson Rodrigues. Editora UFRJ FUNART. Rio de Janeiro 1996. ROBERTO, JOÃO. História do teatro brasileiro – volume I. Editora perspectiva, 2012.

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um breve encontro entre dois clássicos do teatro // Mariana Elâni Santos Oliveira¹

RESUMO: O presente artigo pretende identificar uma intersecção entre duas peças teatrais, escritas em lugares e épocas distintas. São elas, As três irmãs (1900) de Anton Tchekhov e Esperando Godot (1952) de Samuel Beckett. Pensando na hipótese de haver uma linha tênue paralela entre as desesperanças das personagens de As três irmãs em face da incomunicabilidade de Esperando Godot, a pesquisa que está em andamento, pretende ainda, analisar semelhanças e disparidades entre as três personagens de Tchekhov e os protagonistas de Beckett, fundamentando-se no estudo dos escritos de RYNGAERT (1998) e das próprias peças em questão. Palavras-chave: intersecções entre obras; As três irmãs; análise de caso; Esperando Godot; desesperança. ¹ Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE. marianaelani2@hotmail.com Professor orientador: Fernando Leão //30//


as três irmãs esperando godot // Mariana Elâni Santos Oliveira

1. INICIANDO AS DISCUSSÕES As três irmãs (1900) foi considerada uma peça dramática para os espectadores e grande parte de críticos de sua época, no entanto, para o próprio autor, ela era inegavelmente uma comédia, quase uma farsa. Apesar de soar como uma formulação contraditória sua análise era sincera, possuindo testemunhos de amigos íntimos como Stanislavski (1863-1938). Ao passo que Esperando Godot (1952) irrefutavelmente foi concebido no gênero cômico, porém, quando a classificamos assim sem ter o devido zelo analítico, perdem-se características que formam uma corrente de pensamentos e reflexões a cerca do teatro do absurdo. Mas será que o desconexo visto em Beckett (1906-1989) é de fato absurdo a ponto de sucumbir pela sua atemporalidade e inexatidão? E será que o cotidiano mostrado por Tchekhov (1860-1904) não é realmente absurdo por ser de fato tão concreto? Tais questionamentos servirão como meio incitativo para o leitor, pois para respondê-las é preciso de um desenvolvimento argumentativo maior, porém, a pesquisa segue em andamento, o qual desejo debruçar-me ainda mais sobre esse estudo. 2. TRÊS MULHERES, UM SONHO A obra de Tchekhov, dividida em quatro atos, apresenta como sugerida no título, três irmãs que moram numa província russa próxima à capital (Moscou), onde moravam anteriormente e na qual sonham retornar para melhorar suas vidas, como supõem. Olga, a irmã mais velha, é considerada matriarca da família, pois está sempre aconselhando as outras irmãs, Macha que é casada e não mora com as irmãs, e Irina - a irmã caçula. As três ainda possuem um irmão (Andrei Prozorov) que é casado, mas permanece morando com as irmãs. O enredo todo se passa na casa das irmãs e especificamente no dia do aniversário de Irina. O que vemos retratado nessa obra é a construção de personas que anseiam uma mudança em suas vidas carregadas de monotonia e sofreguidão. A fatalidade a que elas estão fadadas e a acomodação de não saírem da província refletem-se em seus diálogos, em

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longos monólogos e até mesmo em pausas onde se localiza o verdadeiro ouro dado ao espectador. As entrelinhas, as pausas e as respirações das personagens dizem ainda mais de suas personalidades, anseios e desgostos. Mesmo dizendo todos os dias entre elas que iriam voltar à Moscou isso nunca aconteceu, as personagens permanecem paradas, atônitas aos acontecimentos, sem forças ou talvez até mesmo vontade legítima de despregarem-se da província e retornarem à capital. Vislumbrando a semelhança da situação descrita acima, em relação a um dos diálogos entre as personagens de Beckett que se segue abaixo, observemos o que há de semelhante entre as duas peças: “VLADIMIR - Nós ainda podemos nos separar, se você acha que será melhor assim. ESTRAGON - Agora já não vale mais a pena. (Silêncio) VLADIMIR - Não, agora já não vale mais a pena. Silêncio. ESTRAGON - E então? Vamos? VLADIMIR - Sim, vamos. Eles não se movem.” (BECKETT, final do I Ato, 1952) Percebe-se, a partir desse fragmento o que se aproxima e o que se distancia entre as duas obras. Neste caso, o que aproxima as duas obras transcende o texto em si, perpetua uma condição vivencial das personagens. Beckett, assim como Tchekhov, trabalham os silêncios minuciosamente, intensificando a ação do por vir ou até mesmo justificando os antecedentes da ação presente. O que distancia uma peça da outra, além das vanguardas que fazem partem (Beckett no teatro do absurdo e Tchekhov no teatro realista), são as características peculiares de cada autor em seus estilos de escrita. Por exemplo, enquanto Tchekhov traz diálogos muito elaborados, os chamados “bifões” (falas com um ou mais parágrafos extensos), Beckett simplifica o jogo dialógico com frases curtas de efeito ou não, repetições do que se fala, falta de lógica entre os

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diálogos e a ação, entre outras características constitutivas do teatro do absurdo. Além disso, quando falamos de vanguarda teatral, temos que levar em conta não somente o teor literário das obras que fazem parte de cada uma delas, e sim ter o entendimento de tudo que permeia as formas de se fazer teatro nesse lócus, abrangendo principalmente as formas de encenação de cada. Mas esse é um assunto a ser tratado pormenor em outro momento. Atemo-nos ao breve encontro entre as peças em questão. 3. DOIS PERDIDOS NUM DIA CINZENTO SEM FIM Esperando Godot divide-se em dois atos com estruturas semelhantes onde os personagens protagonistas, Vladimir e Estragon, esperam Godot, que não é esclarecido quem ele é ou o que eles desejam dele. Todavia, supostamente Godot seria a aglutinação das palavras em inglês: God + ot, no caso referindo-se a esperar por Deus. O cenário da peça é uma árvore que começa totalmente seca e no segundo ato possui algumas folhas, contudo, não é mencionado o lugar nem o tempo (atemporal). As falas exprimem um estado de desânimo, beira o incompreensível, não corresponde com a dinâmica de um jogo conversacional comum, onde um pergunta e o outro responde. Aqui ocorre uma repetição de fala alheia ou até mesmo uma pergunta seguida de outra, o importante é não fazer o sentido lógico nem no jogo de palavras, muito menos no jogo cênico. RYNGAERT (1998) fala acerca destas características do teatro do absurdo: “Os dramaturgos considerados 'do absurdo' fizeram da fala repisada, verborrágica, desregrada em sua necessidade e na segurança das informações que transmite, uma das chaves de seu teatro. A fala circular, de utilidade duvidosa, embaralha as trocas entre os personagens e lança, em direção ao espectador, informações incertas ou contraditórias.” (RYNGAERT, 1998) Diferente de As três irmãs, os diálogos de Beckett

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são curtos e contidos de trivialidade remetendo até às falas clichês e “sem significado”. No entanto, há abismos de silêncios entre uma fala e outra com muita frequência, não obstante da obra de Tchekhov, o qual trabalha com silêncios perturbadores também. Sobre o silêncio RYNGAERT (1998) diz: “Isso não quer dizer que o teatro é 'como' a conversação ou que ele decalca a vida, mas que, através da linguagem, ele dá conta das relações humanas mesmo quando as critica ou as parodia. O teatro do silêncio, que se estabelece, portanto em ruptura com a fala humana, interroga igualmente esta última, através de sua ausência.” (RYNGAERT, 1998) 4. OS DESATINOS E AS INTERSECÇÕES Em linhas gerais, Esperando Godot tem a intenção de reproduzir o desatino apoiando-se na falta de soluções em que estão imersos homem e sociedade. Enquanto As três irmãs despretensiosamente mostra o cotidiano de uma família comum em que as personagens devaneiam sobre o que poderiam ter sido ou o que poderiam ter feito surtindo um fluxo de consciência ligado às causas e circunstâncias apregoadas pelo teatro realista. A lei de ação e reação aqui aparece de dois modos não muito diferentes. Vladimir e Estragon sabem até mesmo inconscientemente que Godot nunca chegará, mas a reação deles é relativamente branda e esperada, porém, quando Irina cai em si, vendo que não voltará a capital, ela surta, para posteriormente acomodar-se como as outras irmãs. Regidos pelo tédio, todos eles sabem que o fim da linha é inevitável – o fracasso, e que algum esforço tirado de seus seres foram em vão pelo simples fato de não terem conseguido o que queriam de verdade. A despretensão de Beckett e Tchekhov em expor à sociedade as fraquezas humanas a partir de suas relações, tornam suas obras genuínas. Os dois autores, mesmo com muitas diferenças no estilo e forma de escrita, trazem a tona a relação do homem consigo e com

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o outro sem melindres, como um ato de (re)conhecimento do meio e como esse meio interfere nos seus desejos e angústias, refletindo ainda em suas limitações e fragilidades. Ambos demostram, em sua devida época, o que desejavam escrever por ânimo criativo impulsionado pela situação real. O que há de realmente absurdo na incomunicabilidade proposta por Beckett se a sociedade de seu período já a praticava com “requintes de crueldade”? Os porquês tomam conta dos protagonistas do absurdo e do realismo. Há respostas ou tudo se tornará uma rocha, na qual teremos que rolar ladeira acima todos os dias só para vê-la descer e termos que fazermos isso eternamente? O trecho abaixo foi tirado da peça de Tchekhov, é a última fala do último ato (IV ato): “OLGA - (abraça as duas irmãs) A música está tão alegre, tão animada, me dá uma vontade imensa de viver! Ai meus Deus! O tempo vai passando, nós partiremos, e seremos esquecidos para sempre [...] Oh, queridas irmãzinhas, a nossa vida ainda não chegou ao fim. [...] E parece-me que logo saberemos por que vivemos, por que sofremos... Ai, se soubéssemos por quê... Se soubéssemos por quê![...]” (TCHEKHOV, 1900-1901) Num ato reflexivo, a personagem, aparentemente tenta sobressair aos desalentos vivenciais, porém ao fim de tudo, os questionamentos ainda semeiam em seus pensamentos a desesperança, o conformismo. Nas entrelinhas dessas peças, temos como aprendizado para nossas vidas, a visão de que o homem precisa sair das conformidades dialéticas para assimilar o mundo com sensibilidade e atenção, modificando de fato seu rumo caso o queira a fim de melhorar seu/sua estado/situação de espírito e sua condição humana. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução: Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2005. RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. Tradução: Andréa Stahel M. da Silva. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1998. RYNGAERT, Jean-Pierre. Ler o teatro contemporâneo. Tradução: Andréa Stahel M. da Silva. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1998. TCHEKOV, Anton. As três irmãs/ contos. Tradução: Maria Jacintha e Boris Schnaiderman. São Paulo: Abril/ Victor Civita.

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o processo criativo e as questões que me levaram à montagem do espetáculo // Luka Severo¹

¹ Gp. Cícera de Experimentos Cênicos | Colégio Adahil Barreto,Iguatu Ce //34//


“a diferença que há em mim” // Luka Severo

RESUMO: Este trabalho propõe entender trataremos sobre como um artista-educadorpesquisador, transforma suas vivências fontes de criação e construção de obras de arte, e como essa produção poderá interferir-influenciar-instigar a vida de quem a pratica. Dessa maneira, analisaremos o processo criativo do Espetáculo “A Diferença que há em Mim” desenvolvido como pré-requisito para finalização da disciplina: Processo de Encenação III do Curso de Licenciatura Plena em Teatro da Universidade Regional do Cariri – URCA, em Juazeiro do Norte CE. O espetáculo se propõe a estudar possibilidades híbridas “entre as linguagens artísticas” e questionar as formas de colocá-las em cena, ou seja, o hibridismo na cena contemporânea, sem perder a célula geradora da criação cênica: o corpo enquanto memória, registro, invenções e (re)invenções de um “si” mesmo. A investigação é pautada nos princípios dos procedimentos de criação cênica, tendo como fonte de pesquisa o trabalho da coreógrafa Pina Bausch, do educador brasileiro Paulo Freire e nos princípios de Corponectividade da Pesquisadora Lenira Rengel. Disponibilizamos alguns dos procedimentos vivenciados com o desejo de contribuir como fonte de investigação e pesquisa metodológica-criativa para artistas, professores e pesquisadores que trabalham com essa mesma linha de pensamento no campo da Educação e das Artes Cênicas. Palavras-chave: Corpo, Memória, Processos de Criação, Pedagogia Teatral. “O COMEÇO SEMPRE VEM DEPOIS DE ALGO QUE NÃO SE CONTOU”. No ultimo semestre do Curso de Licenciatura Plena em Teatro, da URCA realizei uma montagem cênica a fim de discutir as questões homoafetivas, buscando uma forma sutil e delicada de exposição do tema que instigasse em intérprete-criadores e público uma reflexão sadia sobre o mesmo. Para a realização da montagem me vali de trechos de textos bíblicos, da literatura espírita homoafetiva: O livro “O Preço por ser Diferente” de Monica de Castro e “O 3º Travesseiro” de Nelson Luiz de

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Carvalho associados a um trabalho sob os princípios dos Temas Geradores da coreografa Pina Bausch associados às Palavras Geradoras do educador brasileiro Paulo Freire. Este processo se deu a partir de uma pesquisa que se apoia nos princípios de Bausch, nos corpos considerados “corpos psicológicos, afetivos, técnicos e culturais; que contam histórias, que possuem experiências, que não devem ser desprezadas” (TOSTA, 2013); e do Método Paulo Freire, que tem como ideia central a alfabetização e parte dos princípios do diálogo entre educador e educando, buscando despertar no discente, sua conscientização para que se perceba no mundo de forma crítica. O mesmo “prosseguia mediante entrevistas [...] e delas se extraíam as palavras geradoras – unidade básica na organização do programa de atividades e na futura orientação dos debates”. (BEISIEGEL, 1974, p. 165). É onde percebemos pontos em comum entre os princípios de Freire e Bausch trabalhados durante a criação deste espetáculo. Percebemos que tanto Palavras Geradoras quanto jogo de Perguntas e Respostas nos Temas geradores, têm como ponto de partida as vivências adquiridas pelo sujeito ao longo das relações estabelecidas nos grupos sociais dos quais fazem parte. Percebemos também que mesmo já tendo em mente um ponto focal que se deseja chegar: no caso de Pina Bausch o de trabalhar na montagem de espetáculos e Paulo Freire o de praticar o processo de alfabetização, ambos deixam o indivíduo à vontade, dando a este a licença para dizer que curso o processo deverá seguir até o foco traçado inicialmente. O ÁRDUO PRAZER DO PROCESSO CRIATIVO: PROPORCIONANDO O HIBRIDISMO ENTRE OS CORPOSMUNDOS. “Não quero lhe falar, meu grande amor, das coisas que eu aprendi nos discos, quero lhe contar como eu vivi e tudo que aconteceu comigo. Viver é melhor que sonhar...”. Como Nossos Pais. (Belchior, 1977)

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A partir de estudos téorico-práticos pudemos perceber o que de (in)comum havia em nosso cotidiano e como poderíamos traçar caminhos artístico-pedagógicos percurso do processo criativo. Assim percebemos que nossos corpos guardavam todas as nossas vivências (sociais, artísticas, afetivas) sendo este o intermediário entre o que eu penso e o que exponho através das movimentações cênicas e, sobretudo cotidianas. Nesta perspectiva: [...] corponectivo, corponectivar e corponectividade indicam mentecorpo no movimento conjunto. Claro que há várias instâncias sistêmicas corpóreas, porém codependentes[...] A mente corponectiva é parte do corpo vivido e é dependente dele para existir. As propriedades da mente não são puramente mentais: elas são formatadas de modos cruciais pelo cérebro e o resto do corpo e pela maneira que o corpo tem condições de operar na vida cotidiana”. (RENGEL, 2007, p. 2) Cada indivíduo vê e pensa o mundo de maneira diferenciada e que, ao entrar em contato com outras formas de pensamentos, pode ser unir, ou não, e dar vida a outra linha de raciocínio. Assim, passamos a experimentar o uso desses princípios como suporte para criação de (sub)partituras e (sub)textos com o estímulo a partir de músicas, vídeos, palavras do nosso cotidiano relacionadas ao tema que desejávamos trabalhar, trechos dos livros usados, etc. ... como caminhamos durante o percurso da construção cênica... - De portas fechadas e luzes apagadas, os intérprete-criadores estavam deitados no chão com os olhos fechados. Pedi que ouvissem a música “Poema” (1975), na versão de Ney Matogrosso. Deixei a música tocando uma vez e nesse momento eles deveriam apenas ouvir. Repeti a música novamente e agora eles deveriam se movimentar como o corpo pedisse – sem

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pensar no que iriam fazer: apenas fizessem, de acordo com o estimulo que viesse da música – fosse pela letra, pelo timbre de voz do intérprete, pelos acordes do instrumental da mesma, fosse pelo fluxo de sua respiração junto á música, etc., eles estariam à vontade para se relacionar como quisessem com o som que ouvissem, mas sempre se atentando a como o seu corpo respondia a estes estímulos e buscando “gravar” em seus corpos cada reação. Após algumas repetições, para que as movimentações se tornassem orgânicas, mas sem perder as intensões, os intérprete-criaodres deveriam imaginar uma sequencia de movimentos definindo um início e um fim para sua partitura da forma como quisessem e se sentissem à vontade. A partir disso isso, fui fazendo um processo de “escolha”, sem podar as intenções criadas por eles e assim construímos algumas partituras que podem ser vistas no decorrer das cenas do espetáculo. OUTRAS CONSIDERAÇÕES RELEVANTES – A DIFERENÇA QUE HÁ EM MIM. Acredito que tivemos êxito no ponto que chegamos até o momento: uma discussão sensível e despretensiosa acerca do que viria a ser aquilo que somos e da forma que nos propomos a amar – a nós mesmo, ao outro e com o outro. A maior dificuldade encontrada foi buscar possibilidades de fazer com que os intérpretecriadores percebessem a importância da necessidade de refletir sobre si mesmos e suas relações no meio social e assim buscarmos juntos uma maneira de tratar desse assunto de forma não agressiva, pois acreditamos que o que gera as dificuldades quando se trata dessa temática não é o preconceito em si, mas a forma como nos comportamos diante dele – do preconceito. Sendo assim, buscamos possibilidades de imprimir esse pensamento, e outros nas cenas, sem negar as nossas vivencias nem as realidades individuais de cada um de nós: intérpretes, encenador, técnica, etc. sejam esses hetero, homo ou biafetivos.

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Ao trabalhar com a realidade de cada intérprete, percebemos o desejo e a importância que se deve dar ao outro, e de como este se vê, percebe e se relaciona com o mundo a sua volta e quanto esta relação mútua de troca e de respeito pode contribuir para o nosso próprio crescimento, como sujeito social. Desta forma, enxergamos a possibilidade de se trabalhar com estes procedimentos no âmbito dos espaços educativos formais e não formais. O acesso ao trabalho onde o indivíduo possa se sentir livre e dizer o que pensa, a partir do trabalho com Arte, deve ser estimulado. Por esta razão, apontamos a metodologia exposta neste estudo, como uma possibilidade de trabalho que estimula a socialização e quebra dos mecanismos de censura impostos cotidianamente, também na escola, por ser um dos espaços de construção do conhecimento e do respeito múltiplo entre os seres humanos. A TEIA QUE TECI DURANTE ESTE ESTUDO BEISIEGEL, Celso de Rui. (1979). Cultura do povo e educação popular. Revista da Fac. de Educação da USP. São Paulo. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Método Paulo Freire. 11 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981. LANGER Roland, "Compulsão e Restraint, amor e Angst", dança Revista 58, não. 6 (1984). PORPINO, Karenine de Oliveira. Corpo, dança e memória: territórios convergentes. Disponível em: http://www.portalabrace.org /vicongresso/pesquisadanca/Karenine%20de%20Oliveira%20Porpino%20%20Corpo,dan%E7a%20e%20mem%F3ria-territ%F3rios%20convergentes.pdf, Acessado em 10/12/2013. RENGEL, Lenira. Dança: geometria metafórica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Disponível em: h t t p : / / w w w. p o r t a l a b r a c e . o r g / v c o n g r e s s o / t e x t o s / d a n c a c o r p o / L e n i r a % 2 0 R e n g e l % 2 0 %20DANCA%20GEOMETRIA%20METAFORICA.pdf. Acessado em 13/12/2013.

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// Henrique Bezerra¹

RESUMO: O presente artigo visa apontar a importância de uma construção física por parte do ator para elaboração dos personagens presentes na commedia dell'arte. De modo que, pretende defender que a existência da máscara objeto não é suficiente caso não haja uma máscara física no trabalho do ator. Tal processo parte das observações do autor sobre a experiência vivida na Scuola Internazionale dell'attore comico, situada em Reggio Emilia, Itália; em conjunto com as observações de pesquisadores sobre o gênero. Por meio desta articulação prática e bibliográfica, o artigo defende que a comunhão entre a construção física do ator e o uso da máscara objeto sintetiza o personagem dell'arte, possibilitando uma potencialização expressiva no ofício do artista, uma compreensão mais aprofundada da lógica particular dos personagens e, por sua vez, caminhos concretos para a edificação da improvisação. Palavras-chave: commedia dell'arte; construção corporal; ator; máscara. ¹E-mail: henriquebezerrads@gmail.com //38//


a máscara física nas máscaras dell'arte // Henrique Bezerra de Souza

“ARRIVO!” “Basic position! Change direction! Two time step!” Isto ainda soa como uma música repetitiva em meus ouvidos. Logo no primeiro dia de encontros do Stage Internazionale in commedia dell'arte², eu, em conjunto com outros 35 atores e atrizes, vivenciamos por cerca de oito horas o início da construção corporal de um dos principais personagens da commedia dell'arte, o Zanni. No fim do mês, havia apreendido a construção corporal deste personagem e um repertório gestual de pelo menos 17 ações específicas para o mesmo. Tal tipo de processo se repetiu ao longo dos meses com os outros personagens: Capitano, Pantalone, Dottore, Innamorati, Infarinato, Servetta. Ou seja, nesta perspectiva, os personagens dell'arte não se resumiam a máscara objeto, aquela que o ator coloca sobre o rosto, mas possuíam também uma construção corporal, e, somente por meio dela, é que o personagem se fazia completo. Em certo sentido, como observa a pesquisadora Joice Aglae Brondani³ (2010), tal construção funcionava como uma máscara em si, visto que continha a síntese da lógica de ações do personagem dell'arte. Desse modo, inspirado pela prática vivenciada no estágio e nas observações da pesquisadora, a partir de agora chamarei tal construção de máscara física. Diante destas observações comecei a questionarme como esta máscara física influi de fato no trabalho do artista. Não seria ela um elemento limitante na expressividade do ator? Preso a um condicionamento físico determinado, o artista não estaria restringindo possibilidades cênicas? E no caso específico do ator brasileiro, como se ² Tal estágio é oferecido uma vez por ano pela Scuola Internazionale dell'attore comico desde 1985. É coordenado pelo ator, diretor e pesquisador Antonio Fava, tem a duração de um mês e cerca de 160 horas de atividades. O relato desta experiência refere-se ao estágio que aconteceu no período de julho e agosto de 2013. ³ Joice Aglae Brondani é doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia e em sua tese traçou paralelos entre a commedia dell'arte e as manifestações espetaculares populares brasileiras, tais como: o cavalo marinho, a capoeira, o frevo, etc.

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daria esta construção? Visto que, a estruturação desta máscara física possui uma influência predominantemente europeia que pode dificultar o diálogo com a prática nacional. No entanto, como será visto nas observações a seguir, concluí que ao estabelecer limites é que o artista poderá encontrar sua liberdade. UMA MÁSCARA NO ROSTO, UMA MÁSCARA NO CORPO E UMA LÓGICA PARTICULAR Apesar de ser um elemento ícone da commedia dell'arte é interessante observar que muitos de seus personagens não usavam necessariamente uma máscara sobre o rosto, tais como: a Servetta, comumente conhecida como Colombina, o Infarinato, servo feito apenas por homens que usava uma pintura branca sobre o rosto, o casal de Innamorati, geralmente filhos do Dottore ou Pantalone que desejavam se casar. No entanto, a presença deste elemento estético era tão forte, que impactava até mesmo o corpo de tais personagens. Apesar de não possuírem a máscara objeto consigo, todos possuíam uma máscara física estruturada. Os Innamorati por exemplo, por serem a representação do amor e nobreza, assemelham-se ao ideal de heróis gregos, com postura ereta, peito para fora, cabeça voltada para o alto, etc. Já no caso dos personagens mascarados (a maioria dos Zanni, Pantalone, Dottore, Capitano), esta construção física era consequência do “peso” da máscara objeto sobre o corpo, pois como lembra Dario Fo: O uso da máscara impõe uma particular gestualidade: o corpo movimenta-se incessante e completamente, indo sempre além do mero balançar de ombros. [...] todo o corpo funciona como uma espécie de moldura à mascara, transformando sua fixidez. São esses gestos, com ritmo e dimensão variável, que modificam o significado e o valor da própria máscara. (FO, 2004, p. 53) Cada personagem dell'arte traz em sua essência u m a c a ra c t e r í s t i c a s u b l i m a d a d e s u a

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personalidade, quer seja a avareza de Pantalone, a covardia do Capitano, etc. Tal característica faz com que o personagem desenvolva uma lógica particular na condução de suas ações e esta lógica induz a construção da máscara física. Tomemos como exemplo Pantalone. Ele é um velho comerciante extremamente avarento e libidinoso, de modo que, sua máscara física deve expressar ao mesmo tempo, os anos vividos, a luxúria latente e amor pelo dinheiro. Seu corpo é caracterizado pelos joelhos flexionados e uma postura fechada onde o peito é lançado para dentro (a corcunda dos anos que passaram) em conjunto com o quadril que se projeta para frente (a luxúria latente). Ao contrário do que a ideia de um ancião deveria passar, o ritmo de Pantalone é extremamente ágil, suas mãos são vívidas como sempre estivesse contando dinheiro e seus passos são curtos e rápidos sempre na tentativa de pegar uma serva desprevenida.

Figura 1 – Henrique Bezerra com a máscara de Pantalone

Assim, um ator que colocasse sob seu rosto a máscara do Pantalone, mas não assumisse sua máscara física dificilmente engendraria a imagem do velho tão conhecido na commedia, mas apenas a de um indivíduo mascarado. Desse modo, é a junção da máscara objeto e da máscara física que faz Pantalone nascer. Como defende Brondani: Ainda a respeito da máscara, não se trata de um simples objeto, é um objeto/link atuante sobre o ator através da imaginação. [...] Esta ação da máscara sobre o corpo, transformando-o, faz com

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que ele também se torne uma máscara, porque a máscara/objeto necessita diferente do cotidiano para portá-la, necessita de uma gesticulação e energia em comunhão com ela [...] Não se trata de cristalizar o corpo em uma postura, mas de habituá-lo a uma nova “realidade física” a qual é compatível, em termos de caráter e qualidade de movimento, com a máscara objeto. (BRONDANI, 2010, p. 64). A estruturação desta máscara física impõe um uso particular do corpo do ator. No entanto não busca limitar seu potencial expressivo, mas justamente o contrário, ampliá-lo a partir de limites estabelecidos. Ao relacionar a lógica particular de Pantalone (o velho avarento e libidinoso) com o corpo que lhe é proposto, o ator deve reinventar seus movimentos para que eles dialoguem com esta proposta física, imprimindo assim em sua expressividade um caráter único e diferenciado para a situação cênica. Ainda de acordo com Brondani: [...] a máscara física não impede o ator de realizar nenhum movimento ou ação, o ator que faz Pantalone deve redescobrir as possibilidades de seu corpo dentro daquela máscara física: como sentar, como correr, como saltar, como fazer acrobacia, tendo a imagem de um corpo elástico, com uma forma e não uma 'deficiência', deve fazer tudo como qualquer outro corpo, sem esquecer-se de manter a forma da máscara física, entre uma acrobacia e outra e entre (ou durante) uma ação e outra, quando estas lhe permitem. Fica muito claro que, na máscara física, o ator deve desenvolver ainda mais as suas capacidades, não fazendo dela uma limitação e sim uma possibilidade de exploração. (BRONDANI, 2010, p. 65) Ao observar esta proposta sob a perspectiva de outros pesquisadores, pode-se perceber que esta máscara física, ao impor o uso diferenciado do

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corpo do ator, propõe-se até mesmo a retirá-lo da esfera cotidiana de ações. Em outras palavras, impõe uma série de tensões extracotidianas no corpo do ator4 que, possivelmente, podem conduzi-lo a construção de uma presença e energia cênica que em muito contribuem para a obra cênica. Afinal, de acordo com Eugenio Barba: Para um ator, ter energia significa saber como modelá-la. Para ter uma ideia e vivela como experiência, deve modificar artificialmente os percursos, inventando represas, diques e canais. [...] O corpo todo pensa/age com uma outra qualidade de energia. Um corpo-mente em liberdade afrontando as necessidades e os obstáculos predispostos, submetendo-se a uma disciplina que se transforma em descobrimento. (BARBA, 1994, p. 79) CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar de serem apenas apontamentos iniciais, é possível perceber a importância desta construção física na prática dell'arte. Sem a mesma, o indivíduo que utilizasse a máscara de um personagem não seria nada mais do que “um homem mascarado”. No entanto, ao somar o uso do objeto com a máscara física, observa-se um caminho possível para o nascimento do personagem. O uso diferenciado do corpo visa potencializar a expressão do ator ao retirá-lo da esfera cotidiana e lança-lo dentro de uma lógica de ações particular do personagem. Ao dominar esta lógica, o artista pode trabalhar com as situações de improviso de maneira mais fluída, visto que, quando qualquer imprevisto aconteça, ele já sabe como tal personagem lidaria com ele e, a partir disto, terá respostas apropriadas para esta situação.

No entanto, é válido ressaltar que tal processo não se caracteriza como uma “fórmula” a ser seguida. Ele é influenciado pelas particularidades do ator que o realiza, trazendo para cada experiência uma característica única. Ou seja, apesar de ter posturas e formas definidas previamente, a junção da máscara física e da máscara objeto torna-se individualizada ao entrar em contato com corpos de artistas diferentes. A partir dos limites estabelecidos pelas formas apreendidas e pela lógica particular de ações do personagem dell'arte, o artista encontrará possibilidades de caminhos a serem seguidos no processo de improvisação da cena. Contudo, tais caminhos serão escolhidos a partir das experiências prévias deste ator. De modo que, o profissional cênico tem a liberdade para moldá-los, individualiza-los, segui-los do modo que melhor lhe convier na cena. Assim, na incerteza do momento presente, a improvisação dos personagens dell'arte não é definida apenas nas regras fixas de um tipo cômico e físico, mas conta também com um aspecto que lhe dá um caráter imprevisível e, por isto mesmo, encantador: a individualidade do ator que o realiza. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBA, Eugenio. A canoa de papel: tratado de antropologia teatral. São Paulo: Hucitec, 1994. BRONDANI, Joice Aglae. Varda che baucco! Transcursos fluviais de uma pesquisatriz: Bufão, commmedia dell'arte e manifestações espetaculares populares brasileiras. 2010. 316f. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010. FAVA, Antonio. La maschera comica nella Commedia dell'Arte: Disciplina d'attore , universalità e continuità dell'improvvisa poetica della sopravvivenza. Collendara: Andromeda Editrice, 1999. FO, Dario. Manual mínimo do ator. São Paulo: Senac, 2004

4 Criando novas posturas corporais o ator altera seu centro de equilíbrio, constrói este corpo criando constantes oposições, altera até mesmo o ritmo pessoal, propondo maneiras equivalentes de realizar ações cotidianas dentro desta nova proposta, etc. Enfim, cria “obstáculos corporais” para se adaptar a eles e superá-los.

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// Herê Aquino

A atuação teatral e o jogo não constituem, naturalmente, um fim em si. A sua função é romper as convenções existentes, as ideias sobre a realidade, os fósseis mentais, descobrir semelhanças secretas e surpreendentes. J. Grotowski

Este artigo examina elementos que caracterizam a primeiras fase das pesquisas de Grotowski: teatro dos espetáculos. É um material reflexivo sobre um teatro que não se pretende apenas espetáculo, algo que se olha, mas algo de que se participa e cujos elementos estão pensados no intuito de restituir ao teatro o seu “princípio vital”, tal como definiu Grotowski. O artigo parte, principalmente, da discussão sobre teatro e rito desenvolvida pelo pesquisador, levando em conta as constantes e incansáveis transformações conceituais e metodológicas que perseguiram e embasaram os seus trabalhos. Elementos como a espontaneidade e a precisão; arte e vida; o jogo entre ator/espectador; a poesia corpórea do ator criador e a poética do espaço cênico fazem parte desse //42//


o jogo ritualístico no teatro contemporâneo // Herê Aquino

estudo que encontram sua legitimidade na reconstrução do jogo ritualístico como princípio vital do teatro. Palavras chaves: Poesia Corpórea. Poética do Espaço Cênico. Teatro Contemporâneo. O teatro contemporâneo¹ distinguir-se pela grande multiplicidade de estudos nas diversas linhas teóricas. Appia, Craig, Artaud, Grotowski, Brecht foram, apenas, alguns dos pesquisadores que revolucionaram a maneira de pensar e fazer teatro no século XX. O realce da figura do encenador, os questionamentos sobre a soberania do texto dramático, a quebra da quarta parede, a relação ator/espectador marcaram as incontáveis abordagens, problematizando a cena contemporânea mundial. Ao lado desses nomes, apareceram, também, vários estudos acadêmicos que investigaram os atributos do teatro, à luz da antropologia, da semiologia, da etnologia, da sociologia, entre outros, contribuindo para a formação de novos horizontes teatrais. O período de 1960 a 1980, estimulado pela exigência de uma sociedade que se transformava rapidamente, demarcou mudanças socioculturais, que levaram as pesquisas teatrais a um novo olhar sobre as origens do teatro, mas especificamente, para o teatro e o rito. Esse novo olhar negava firmemente o teatro respaldado exc l u s i va m e nte p e l a q u a r ta p a re d e e reencontrava-se na busca dos novos pensadores por elementos da comunicação, entre eles a relação entre o ator e o espectador e a experiência vivencial do espetáculo. Dessas buscas resultaram diferentes vertentes teatrais, centradas, sobretudo, nas tendências estéticas que questionavam o próprio conceito de teatro.

¹Cena contemporânea: a cena das vertigens, das simultaneidades, dos paradoxos próprios do Zeitgeist (espírito da época) contemporâneo. Cena das simultaneidades em seu conjunto de manifestações, espetáculos, acontecimentos. Caracterizado pela variedade de experimentações e estudos sobre o teatro. (COHEN, Renato, 2006).

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Nesse espaço do contemporâneo, Grotowski ultrapassa várias etapas de sua pesquisa, chegando mesmo a negar princípios anteriormente salientados. Apesar disso percebemos, em sua trajetória, que não são seus objetivos que mudam e sim os métodos aplicados para se chegar a eles. Várias questões vão ganhando o foco na cena contemporânea. Uma delas é o trabalho do ator, que Grotowski, na busca pelo jogo ritualístico no teatro, salienta ser imprescindível que este se doe, no intuito de alcançar: o ato de desnudar-se, de rasgar a máscara diária, da exteriorização do eu [...]. O ator deve estar preparado para ser absolutamente sincero como um degrau para o ápice do organismo do ator, no qual a consciência e o instinto estejam unidos. (GROTOWSKI,1971, p.165). Em sua busca, Grotowski elimina do teatro tudo que considera supérfluo, estabelecendo como essencial a relação e o encontro entre ator e espectador. Nessa nova estrutura o espectador deixa de ser voyeur do espetáculo e a barreira que o mantinha seguramente confortável em sua poltrona, e longe do risco de ser tocado ou atingido pela obra, é finalmente eliminada. Essa mudança de paradigma revoluciona a interpretação teatral. O ator passa a encenar entre o público e se antes os olhares não se cruzavam, agora eles se encontram frente a frente no meio da ação, estreitando cada vez mais a relação palco-plateia. A supremacia do texto no processo teatral era outro fator de investigação. A questão não se resumia em eliminar o texto do teatro, mas em retirar o mesmo do centro das atenções teatrais. Renan Tavares (2006, p.23), afirma que: “as experiências desse período não se traduzem por uma recusa total a toda escrita dramática, mas coloca em questão o lugar do autor enquanto

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artista autônomo, dotado de um estatuto privilegiado no processo de criação cênica”. O teatro de Grotowski, elaborado com ou sem texto, centra-se, principalmente, na relação entre o ator e o espectador. Ele afirma que para o ator e o diretor, o texto do autor é uma espécie de bisturi que possibilita encontrar o que está escondido dentro de nós e realizar o ato de encontrar os outros. Para mim, criador de teatro, o importante não são as palavras, mas o que fazemos delas, o que confere a vida às palavras inanimadas do texto, o que as transforma em "A Palavra". Vou mais longe: o teatro é uma ação engendrada pelas reações e impulsos humanos, pelos contatos entre as pessoas. Trata-se de um ato tão biológico, quanto espiritual. (GROTOWSKI, 1971, p. 42) A ultrapassagem do ficcional da obra teatral para o despertar de novas percepções da realidade era investigado, também, em meio as grandes possibilidades tecnológicas que começavam a influenciar o fazer teatro na época. Sobre isso Grotowski nos fala: [...] o espetáculo moderno: a cenografia usando esculturas atuais ou ideias eletrônicas, música contemporânea, os atores projetando independentemente estereótipos de circo ou cabaré. Conheço bem a coisa: já fiz parte disso. Nosso Teatro-Laboratório caminha numa outra direção. (GROTOWSKI, 1971, p. 13) Essa postura de Grotowski demarcava uma trajetória traçada a partir dos estudos sobre os ritos primitivos e colocava como essencial, para o resgate do princípio vital do teatro, a espontaneidade perdida dos rituais que deram origem ao teatro. Quando analiso atualmente aquele famoso ritual

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primitivo, o ritual dos selvagens, o que contém? Para o europeu que observa à parte, trata-se da espontaneidade, mas para o participante autêntico existe uma liturgia muito precisa, isto é, existe uma ordem original, uma certa linha preparada a priori, destilada pelas experiências coletivas, toda aquela ordem que se toma a base; e em torno dessa liturgia se entre cruzam justamente as variações; portanto é preparado a priori e ao mesmo tempo é espontâneo. Só quando a coisa está preparada se pode evitar o caos. Assim então se se quer traçar uma certa linha do comportamento humano que possa servir ao ator como uma espécie de pista de decolagem, como a chamava Stanislávski, é preciso possuir os “morfemas” dessa partitura, assim como as notas são os morfemas de uma partitura musical. (GROTOWSKI, Jerzy, FASZEN, Ludwski. 2007, p. 123). Para Grotowski, os morfemas são impulsos que transbordam do interior do corpo para encontrar o exterior, não é o gesto em si, este é somente o seu acabamento, o ponto final, mas a estrutura das articulações dos impulsos que fluem da vida. Se o ato tem lugar, então o ator, ou mesmo o ser humano, ultrapassa o estado de não completude, ao qual parece estar condenado na vida cotidiana, e faz com que a divisão entre pensamento e sentimento, entre corpo e alma, entre consciente e inconsciente, entre razão e instinto, enfim, entre dualidades fragmentadas, enfraqueça. “Não pretendemos ensinar ao ator uma série de habilidades ou um repertório de truques [...]. Nosso caminho é uma via negativa; não uma coleção de técnicas, é sim erradicação de bloqueios” (Grotowski, 1971, p. 03). As discussões giravam, também, em torno das questões sobre o que seria ou não “arte” e seguiam tendências que colocavam a arte sobre o prisma da artificialidade. Ou seja, algo que era construído e lapidado quando na criação de sua forma. E como o teatro era sempre, para Grotowski, um local de indagações provocativas, sustenta:

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Por que nos preocupamos com arte? Para cruzar fronteiras, vencer limitações, preencher o nosso vazio – para nos realizar. Não se trata de uma condição, mas de um processo através do qual o que é obscuro em nós torna-se paulatinamente claro. Nesta luta com a nossa verdade interior, neste esforço em rasgar a máscara da vida, o teatro, com sua extraordinária perceptibilidade, sempre me pareceu um lugar de provocação (GROTOWSKI, 1971, p. 08). O aparecimento dessas novas premissas levaram os pesquisadores para um novo campo de observação. A partir deste ponto tornava-se relevante a busca por elementos concretos, como a poesia corpórea do ator criador, a poética do espaço cênico, entre outras. Nessa perspectiva, tudo que era natural e orgânico não poderia ser artístico. O teatro ritualístico contemporâneo, diante desse novo horizonte, vai apreendendo o que, finalmente, Grotowski acreditou ser o cerne desse teatro, a arte do ator: O ator é um homem que trabalha em público com o seu corpo, oferecendo-o publicamente. Se este corpo se limita a demonstrar o que é - algo do qual qualquer pessoa comum pode fazer -, não constitui um instrumento obediente capaz de criar um ato espiritual. (GROTOWSKI, 1971, p. 18) O aprofundamento do trabalho de Grotowski continuou até a sua morte, no final dos anos 90, possibilitando uma investigação sobre a qualidade artesanal do ofício do ato criativo. Encerro este artigo ressaltando que independente da análise que façamos sobre a estética grotowskiana, são inegáveis as contribuições deixadas ao teatro por esse pesquisador e encenador polonês que, sem sombra de dúvidas, continua revolucionando a cena contemporânea. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA COHEN, Renato. Work in progress na cena contemporânea. São Paulo. Perspectiva, 2006 GROTOWSKI, Jerzy, FASZEN, Ludwski. O teatro laboratório de Jerzy Grotowski 1959 – 1969. São Paulo. Perspectiva, 2007. GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Rio de Janeiro. Civilização TAVARES, Renan (Org.). Entre coxias e recreios: recortes da produção carioca sobre o ensino do teatro. São Caetano do Sul, SP: Yendis Editora, 2006.

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uma breve reflexão sobre o trabalho do ator a partir de Januzelli e Grotowski

// Alberti Daniel Perez¹ Suzi Frankl Sperber¹

RESUMO: Confrontando alguns conceitos de Januzelli e Grotowski, esse artigo busca uma reflexão sobre o trabalho do ator/performer e a compreensão de algumas particularidades e diferenças entre o treinamento e a criação no teatro. Palavras-chave: ator, treinamento, processo criativo. Este texto começa com uma questão: o que é necessário para ser ator? Não é concebível a pessoa “ser ator” apenas no momento de encontro com o público. Ninguém nasce já apto para estar em cena. Para esse ofício, deve-se aprender algo. São necessários conhecimentos que lhe permitam estar ator. O momento da apresentação estabelece uma relação instável com o público, porém, de certa forma, já estabelecido e premeditado. São as relações pensadas no momento anterior à apresentação que ¹UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina, E-mail: daniel.alberti.perez@usp.br ¹UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas, E-mail: sperbersuzi@hotmail.com //46//


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preparam o ator para o encontro com a plateia; esse antes é quando o ator faz/treina determinadas “coisas” para “estar ator” durante a apresentação. É nesse anterior que se tem contato com técnicas que o preparam para o que deve ser feito. Esse aprendizado deve modificar o “como” ele age em cena. Por isso, suas ações, a qualidade de sua atenção, posturas, entre outras atitudes no palco, devem melhorar. Em cena, ele utiliza atividades e m o b i l i za c o n h e c i m e n t o s q u e ta m b é m influenciam sua vida cotidiana; por isso esse aprendizado também tem o poder de modificar sua vida. Isso significa que essa pedagogia tem algo de reinvenção de si. Nesse sentido, a fronteira entre arte e vida é menos clara, muitas vezes as duas se tornando uma só. Apesar de o termo “técnica” parecer associado a uma fabricação, tem aqui o sentido mais ligado a cultivo, um “cultivo de si”. O intérprete, assim como uma flor (aproveitando a metáfora do teatro Nô), deve desabrochar. Mas esse desabrochar se dá ao mesmo tempo para fora e para dentro. Para fora, pois essa abertura e maturação o tornam mais expressivo e apto à criação; para dentro, pois é um aprofundamento de sua percepção ao limite da micro percepção, de seu nível de atenção, reconhecimento e controle sobre os estados². Todas essas transformações, Antônio Januzelli sintetiza na fórmula: H A A partir do que Januzelli chama de “laboratórios dramáticos”, o Homem pode se tornar Ator em um caminho que propicia a reinvenção de si. A reinvenção de si parte de um conjunto de características que implicam temperamento e seus impulsos; memória ancestral de longo, ²Não seria um domínio sobre os estados, pois os estados são sempre momentâneos e o máximo que se pode fazer é, parafraseando Thomas Richards, construir a margem para

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médio e de curto prazo; reconhecimento de dificuldades e de obsessões e um conjunto de exercícios e atenções que levam a superações, portanto a modificações daquilo que se apresentava como base inicial, ou como memória. Essas experiências não precisam estar atreladas ao teatro, diretamente. Aqui se incluem vivências do cotidiano que contribuam para uma abertura de percepção para o tipo de teatro que se procura. A palavra laboratório não é utilizada à toa pelo teórico. Existe, no trabalho atoral, uma ligação intrínseca com a alquimia. A relação alquímica do trabalho do ator está no fato de experimentar, misturar e transformar as propriedades de seus próprios estados com o intuito de ultrapassar a borda de seus sentidos. Em relação aos estados mais cotidianos é, metaforicamente, a busca da pedra filosofal para a “transformação de qualquer metal inferior em ouro”, ou “fazer brotar o espírito encerrado na matéria”, ou ainda, “buscar o absoluto”. A experiência aparece para ultrapassar o sentido do “eu”. Nesse aspecto, essa busca da “pedra filosofal” remete à busca do artista pela sabedoria e perfeição. A modificação dessas intensidades permite uma transformação qualitativa de sua percepção. Em oposição à lógica científica que conhecemos, a qual procede por dedução e eliminação sucessivas, o alquimista cria uma espécie de dispositivo material imutável, na expectativa de um evento químico surgido da purificação extrema da matéria. (BORRIAUD, 2011, p.41)” O ator não “adquire” técnicas: ele se sensibiliza com elas. Outra relação do ator com o alquimista ocorre, pois ele seria um “cientista” mais atrelado, num certo sentido, à lógica da Idade Média – percebe o mundo pelas semelhanças – contrariamente aos cientistas modernos e contemporâneos que percebem o mundo pelas diferenças. Para Januzelli, os “Laboratórios Dramáticos” ocorrem em todo período anterior ao espetáculo. Ele escolhe a palavra laboratório, pois, segundo

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ele, “lembra operação, corte, experimentação, curiosidade, exame, toque, transformação, mistura, absorção, separação, ruptura, junção; descobertas de mundos presentes, mas velados” (JANUZELLI, 1992, p.51). Segundo o autor, a fase anterior à peça pode ser entendida por dois momentos que se fundem e são complementares – Treinamento e Ensaio. Sobre essa divisão Antônio Januzelli diz: – a primeira circunscreve-se à preparação do seu instrumental cênico, fundamentalmente corpo, voz e emoção. – a segunda refere-se ao ato criativo propriamente dito: a criação de um papel específico em uma encenação. (JANUZELLI, 1992, p. 30) Os laboratórios dramáticos na fase de treinamento têm a finalidade de afinar e aprimorar o “equipamento” de trabalho – corpo, voz, emoção, concentração, imaginação, sensorialização, auto percepção, percepção do outro, interação, percepção espacial, percepção da realidade e das correntes invisíveis, pulverização dos condicionamentos, diluição dos resquícios de personagens criados anteriormente. Já os laboratórios dramáticos, na fase de criação, são para o ator aprofundar-se no conhecimento orgânico do papel e do texto (ou roteiro, ou temas básicos) a ser encenado. Assim como Januzelli, Grotowski também propunha uma relação alquímica em seus processos criativos. Em seu texto “Da Companhia Teatral à Arte Como Veículo” também divide esse período em dois, chamando o primeiro momento de “ensaio não de todo para o espetáculo” e o segundo de “ensaio para o espetáculo". O TREINAMENTO Segundo Aslan, os atores orientais, assim como as antigas famílias de atores europeus, começam e começavam logo na infância a aprender o que

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seria representado pelo grupo. Essa prática ocorre pela repetição e acumulação de partituras ou de textos. Não existia, nesses casos, outro treinamento a não ser aprender e repetir as partituras. A necessidade de preparação do ator desligada de sua produção foi firmada em conservatórios e escolas do início do século XX, que tinham institucionalizado o treinamento do ator baseado no ensino de texto e elaboração de papéis. A preparação profissional e a invenção da pedagogia do ator são inovações revolucionárias iniciadas pelas escolas e ateliês que priorizavam a formação do ator independente dos espetáculos. Esta formação levava mais em consideração a p s i c o té c n i c a ( i n te n ç õ e s , s e n t i m e n t o s , identificação ou não-identificação dos atores com a personagem, emoções...) guiando o ator a um desejo de se expressar, mesmo sem ter determinado o que vai fazer. No início, a relação com o texto era o mais importante para a escola francesa. Por isso dedicavam-se mais à impostação, respiração, estudo do texto que ao trabalho de corpo. Podemos citar Pierre Regnier, Louis Jouvet. Jacques Coupeau, Charles Dullin e Constantin Stanislavski se opuseram a esse tipo de formação e propunham treinamentos paralelos de dança, ginástica, esgrima, pantomima, canto, ca m b a l h o ta s . E ra m p rát i ca s co r p o ra i s emprestadas de outras áreas. A técnica baseada na improvisação era voltada principalmente para as necessidades do drama. Os objetivos, o superobjetivo, o “se” mágico, a contra vontade, a linha direta da ação de Stanislavski têm como pano de fundo uma realidade de ação, personagem e conflito, base do teatro dramático da época. Com o tempo, muitos grupos e especialistas começaram a se dedicar ao desenvolvimento de um treinamento específico para atores.

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Mas o que seria exatamente treinamento do ator? Qual a diferença entre este e o treinamento teatral? O treinamento teatral consiste em uma prática executada por um grupo e que se desenvolve independente à montagem de espetáculos. Os exercícios são escolhidos e modificados de acordo com as pretensões do grupo e conforme as necessidades e o andamento de cada integrante. Fala-se, portanto, de um trabalho experimental, laboratorial, na busca de métodos e sistemas, que se fundamentam na ideia da formação do ator. Estabelecem-se como um espaço onde o ator alimenta a sua necessidade do teatro com dúvidas e inquietações pessoais, um espaço impalpável, além do plano físico para exercitar o autoconhecimento. Existe uma senda muito particular no processo da aprendizagem humana que possibilita uma experiência de auto-investigação do indivíduo, cuja proposta não se situa na área da terapia, mas sim no domínio do laboratório dramático teatral, e que tem nos jogos, nas improvisações, em exercícios específicos e na atitude reflexiva o seu centro de gravidade. (JANUZELLI, 1992) O treinamento teatral pressupõe o treinamento do ator, portanto vê o treinamento teatral como uma somatória. Do ponto de vista de Januzelli, todo esse processo leva a uma transformação de si - e leva tempo. As técnicas, mais do que aquisição de uma nova habilidade, são estratégias para se confrontar com algo que é seu, se contrapor com a percepção cotidiana para encontrar uma espécie de verdade pela Alethea (desvelamento) e conquistar uma nova postura perante si e o mundo. O treinamento é um pensamento, uma filosofia de vida. Ao mudar um hábito corporal, muda-se o pensamento. O treinamento está relacionado ao processo de esvaziamento do corpo, limpeza dos vícios que povoam o corpo cotidiano, para buscar uma disponibilidade física capaz de mergulhar em seu

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próprio interior e imagens. É o estado em que o ator se encontra aberto para afetar-se e reagir a estímulos. Existem caminhos diversos para “ser ator”. Cada grupo, cada ator, cada corpo constrói o seu próprio treinamento e este não é tão somente um trabalho realizado em sala por um período determinado de tempo. O treinamento é uma busca de estado de tempos de afetar e ser afetado, concomitantes, e não exercícios executados em um espaço-tempo exato em um agir mecânico. No estado do treinar, pouco importa a execução precisa e exata do exercício ou a evolução deste em complexidade. Importa, sim, o uso de trabalhos e exercícios para se atingir um limite, uma borda, criar uma fissura em sua géstica conhecida e cotidiana ou mesmo em seus clichês expressivos artísticos singulares, no caso de um ator com experiência. Acontece então que (...) ao pensar o corpo como uma singularidade que amplia sua potência nos encontros com outras singularidades externas (o outro ou outros) e ao verificar que uma ação física relaciona essas singularidades ou proporciona esses encontros podemos dizer que as bordas e fronteiras entre um suposto interno e um suposto externo se diluem na própria ação física. Ela - a ação - se projeta para fora ao mesmo tempo em que esse fora afetado, atinge e afeta ela mesma. A esse movimento em fluxo espiralado de diferenciação da ação física, a esse diluídoprojetado de sujeito e objeto dei o nome de corpo-subjétil. (FERRACINI, 2009, p. 3) Este corpo-subjétil, como o nomeou Renato Ferracini, buscado pelo treinamento é chamado por Januzelli de “Ponto Zero Elétrico” e por Grotowski de “Pré-Expressivo”. Ao que tudo indica, a proposta de Januzelli implica algo mais do que uma afetação: implica pontos de atrito com dificuldades, com nós, não em fluxo perceptível, mas em abertura sutil que acaba se manifestando com o tempo. Corresponde à mudança de si.

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Nos anos 60, Grotowski reconfigurou o termo préexpressividade, atrelando ao sentido inicial de preparação física o crescimento pessoal destruindo os automatismos da vida cotidiana. Assim, criar-se-ia outra qualidade de energia do corpo, fortalecendo o que a antropologia teatral chama de energia, presença e bios de suas ações. Adquire-se, então, uma inteligência física independente dos significados das ações que se pretende fazer – o nível pré-expressivo. A préexpressividade desbastaria os automatismos da vida cotidiana, do ponto de vista teatral, os movimentos, expressões, passos habituais, o que não implica uma mudança da qualidade intrínseca de si mesmo. Essa ideia nomeada como “pré-expressividade” perturba e confunde, porque todo corpo expressa, toda ação tem expressão. Parece ser um equívoco ler esse conceito da antropologia teatral como um conceito de ação não expressiva, ou ainda, ação antes da expressão. O corpo, mesmo na inação, no cotidiano, sempre expressa. O que esse termo quer dizer é sobre a disponibilidade que torna o ator apto a afetar-se. É o conatus que Espinosa propõe: deixar-se afetar e agir. Segundo Eugenio Barba, “Nos grupos de teatro autodidatas e autônomos [o treinamento] tornou-se a chave indispensável para a arte do ator” (BARBA, 1995) Outra possibilidade é entender a “expressividade” como correspondente ao momento da ação em cena. A ação “pré-expressiva” equivaleria à ação exercitada/exercida antes da cena, do espetáculo. Nesse estado, chamado por Januzelli de ponto zero elétrico ou de pré-expressividade por Grotowski, a ação física seria o ponto inicial de trabalho. Ele não teria como única função a investigação sobre a ação física: a questão do “sentido”, disparado pela ação física, também faz parte da pesquisa. Tem-se em vista que, segundo Bonfitto, o “sentido” diz respeito ao processo de conexão entre as dimensões interior e exterior do ator, desencadeado a partir da execução de suas a çõ e s s e m p re ve r n e c e s s a r i a m e nte a possibilidade de tradução, mas envolvendo tanto

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o ator quanto o espectador. Esse “sentido” que conecta o interior com o exterior é disparado por uma intenção que alcunha uma relação entre o sujeito e o ambiente, objetos, outros atores, espectadores. Já a intensão também seria um aspecto importante dentro do training, já que ele se refere à seleção de tais ações. “Desse modo, os processos intensionais adquirem um valor específico, na medida em que nos fazem perceber um caminho, nos mostram a existência de possibilidades que podem estar envolvidas no processo de instauração de sentido” (BONFITTO, 2005). O treinamento contém a ideia de embodiment (incorporação). Nele existem dois pontos de partida. No primeiro, o ator trilha o caminho passivo de inculturação (em que absorve e adapta organicamente condutas para incorporar ao seu repertório) conduzindo a variações e matizes do comportamento cotidiano. No segundo, a ideia de aculturação (a utilização de técnicas corporais que propicia uma disposição corporal distinta das usadas na vida cotidiana) leva o ator a artificializar ou estilizar o seu comportamento. Baseia-se na distorção da aparência “natural”, a fim de recriá-la sensorialmente, manifestando uma “qualidade e uma irradiação energética que é presença pronta a ser transformada em dança ou teatro.” (BARBA, 1995). Tanto a inculturação quanto a aculturação ativam a presença pronta para representar, que é base do treinamento. A CRIAÇÃO Cada tipo de teatro pressupõe um ator com determinadas características intrínsecas a essa experiência estética. A maneira de olhar para a cena é fundamental para o intérprete se propor práticas que dizem respeito ao seu projeto como ator. Assim como a ênfase dada nas práticas do ator determina sua estética, a cena implica seu treinamento. A abertura para a busca estética do grupo e do indivíduo é um ponto importante. Por isso o momento de criação tem um aspecto pedagógico

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diferente, mas relevante, pois busca do intérprete uma investigação sobre si. O objetivo primeiro de uma montagem tem (ou deveria ter) como foco principal a reinvenção do intérprete a partir de descobertas feitas no processo. Isso aproxima também muito o processo criativo do processo educacional. A busca por vivências que transformem o intérprete se reflete na enorme difusão de cursos e oficinas teatrais. A crescente procura por essas vivências tem cunho não apenas artístico, mas, também, pedagógico. Por isso o teatro é tão utilizado pela educação. Tanto um ator quanto um “não ator” pode valer-se de um processo criativo em teatro para o exercício do autoconhecimento e assim modificar sua relação com o teatro e com o mundo. A partir dos elementos ligados ao tipo de teatro que se quer vincular, criam-se conceitos que podem ser generalizados para o entendimento da construção de outras experiências cênicas. Apesar de não ter caráter normativo, esta proposta opera implícita ou explicitamente na criação artística de acordo com o propositor do processo. Desta maneira caminha-se conscientemente para a busca de uma poética pessoal. ENTRE O TREINAMENTO E A CRIAÇÃO Para Januzzeli, um dos aspectos que conecta o treinamento e a criação é o brincar. O ofício do intérprete se caracteriza pela comunicação com o outro, sendo seu objetivo a passagem desse território livre, disponível do “corpo fictício”³ para “o brincar”. É fundamental esta passagem, não apenas para o ator, mas também para o indivíduo durante várias etapas de sua vida. É nesta passagem do “deixar-se afetar” para a “resposta sinestésica” que ele experimenta de maneira diferente o mundo conhecido e repropõe suas relações com o outro. Só é possível ocorrer o processo de individuação a partir dessa relação. É ³ Termo que Eugenio Barba utiliza para o corpo que se compromete com certa 'área fictícia' que não representa uma ficção, mas que simula uma espécie de transformação do corpo cotidiano no que ele chama de nível pré-expressivo.

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pela percepção e resposta ao outro e ao meio que se pode encontrar a individualidade e a alteridade, fundamentais para o convívio social e para o funcionamento de um espetáculo. [...] o espaço potencial entre o bebê e a mãe, entre a criança e a família, entre o indivíduo e a sociedade ou o mundo depende da experiência que conduz à confiança. Pode ser visto como sagrado para o indivíduo, porque é aí que este experimenta o viver criativo (WINNICOTT, apud JANUZELLI, p. 55, 1992). O desenvolvimento desse momento criativo vem como um dos meios de libertar a criatividade do ator e o acolhimento do público. É ela que ativa o ator e coloca o “estar pronto” da etapa do treinamento em movimento; assim como a expressão desta criação abre virtualmente o espectador para uma recepção, ela também é criativa. A disponibilidade proporcionada pelo treinamento, inserido no contexto de uma montagem, por meio de técnica consciente, concretiza os objetivos do ator em cena. A prontidão para o jogo, para “o brincar”, o estado de prontidão (dados pelo primeiro momento do trabalho) são inseridos no jogo cênico proposto pela encenação. Cada uma dessas duas etapas tem grande importância; ambas têm relação com o processo artístico e com um processo pedagógico. A criação seria o “passo dois”, o desdobramento do trabalho sobre si em uma intervenção no “mundo público” (não necessariamente significa uma apresentação). É a preparação para o último elo do evento teatral – a relação com o público. Grotowski descreveu três elos que envolvem o evento teatral: o elo-não do todo para o espetáculo (o período de treinamento), o eloensaio para o espetáculo (o período de criação) e o elo-espetáculo. Por mais que o vetor dos “ensaios para o espetáculo” caminhe em direção a quem veio

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assistir ao evento, não significa que o ator deve buscar uma aceitação da plateia ou tentar seduzir os espectadores. Mais do que buscar uma relação de “cortezão” com o público, pode-se aproveitar a chegada do público para se trabalhar sobre si indiretamente. Não é fazer para os espectadores, mas fazer com os espectadores. Os ensaios não são apenas a preparação para a estreia do espetáculo; são para o ator um terreno em que descobrir a si mesmo, as suas capacidades, as possibilidades de ultrapassar os próprios limites. Os ensaios são uma grande ave nt u ra , s e s e t ra b a l h a s e r i a m e nte . (GROTOWSKI, 1989) Diferentemente do treinamento, o processo de criação envolve uma técnica que nada mais é do que dispositivos que sugerem caminhos. Todo o processo de criação é a construção de um saber fazer. Essa produção é um reflexo do que se é. Como o ato da criação é feito por escolhas pessoais que envolvem saberes já conquistados e posturas diante da vida, pode-se dizer que, necessariamente, é uma maneira de materializar em forma o que se é naquele período da vida. Com relação aos ensaios para o espetáculo, Grotowski afirma: Procuramos algo de que temos só uma ideia inicial, uma certa concepção. Se p ro c u ra r m o s c o m i n t e n s i d a d e e conscienciosamente, talvez não encontremos exatamente aquilo, mas poderá aparecer uma outra coisa que pode dar uma direção diversa a todo o trabalho. (GROTOWSKI, 1989) Qual seria, então, a diferença entre o treinamento e a criação? No fundo a linha entre treinamento e criação é muito tênue e essas etapas muitas vezes se confundem. Existe um elo forte entre essas duas etapas. Um momento do treinamento é

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pertinente à criação, pois são práticas que determinam uma estética; por outro lado, o momento de criação também se relaciona com o treinamento, pois o ator, quando cria, exercita determinados estados e ações que são ligados ao treinamento. Essa linha divisória pode ficar cada vez mais tênue, dependendo do projeto artístico. Grotowski afirmou que “a diferença está na sede da montagem”(GROTOWSKI, 1989). Por essa proximidade, a passagem de uma etapa para a outra se não ocorrer com o devido cuidado, para n ã o p erd er o a s p ec to p ed a gó g ico d e transformação de si, corre o risco de levar os atores a buscar efeitos vazios com pouca profundidade levando-os a se perderem em uma busca menos interessante, estabelecendo uma relação cortesã com o público. Na última fase de trabalho do diretor polonês (arte como veículo), a diferença dessas etapas é bem mais nebulosa. Nesse caso, a interseção dessas duas etapas é maior, pois o vetor em direção ao público é indireto. O treinamento ganha uma maior importância e a transformação de si vira o ponto central. O diretor seria a pessoa que teria a preocupação com a mudança de eixo do trabalho sem interferir na busca do ator. Januzelli acredita que existem particularidades da criação que é impossível não considerar e, por isso, seria também impossível destituir totalmente o momento da criação. Afinal, escolhe-se como vai ocorrer a relação com o público, a disposição da plateia entre outras coisas. Portanto, tendo como base os estudos de Januzelli e Grotowski principalmente, chega-se à conclusão que para “estar ator em cena”, o que seria a última etapa produtiva do teatro, são necessárias duas etapas pedagógicas complementares e muito próximas anteriores – o treinamento e a criação. Todas essas etapas têm em comum, para esses dois diretores, o aspecto pedagógico, por buscar uma transformação de si. A característica que diferencia esses dois momentos do processo basicamente é o enfoque. No treinamento o vetor é para o próprio ator, uma técnica de si que busca uma autotransformação; na criação, isso muda

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entre o treinamento e a criação // Daniel Alberti Perez; Suzi Frankl Sperber

com a soma de uma nova direção, desta vez para fora, uma técnica de si para quem está ou estará assistindo/compartilhando. A adição desse outro vetor para fora muda a escolha das práticas e muda até o sentido de um mesmo exercício apenas pela mudança desse foco. Mas para ambos os autores, para ser ator, não basta instrumentalizar-se “adquirindo” uma técnica. Importante, para ser ator, é sensibilizar-se por meio de uma técnica visando indiretamente uma peça, pois esse ofício necessita de um desmascaramento das camadas superficiais que abram a uma nova percepção e propiciem a cada passo a transformação do homem. REFERÊNCIAS ASLAN, O. O ator no séc. XX. São Paulo: Perspectiva, 1994. BARBA, E. & SAVARESE, N. A arte secreta do ator. Campinas: Hucitec, 1995. BONFITTO M. O ator compositor. São Paulo: Perspectiva, 2002. BOURRIAUD, N. Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si. São Paulo: Martins Fontes, 2011. GROTOWSKI, Jerzy. Em busca do teatro pobre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. GROTOWSKI, Jerzy. O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969. Textos e materiais de Jerzy Grotowski e Ludwik Flaszen com um escrito de Eugenio Barba. Curadoria de Ludwik Flaszen e Carla Pollastrelli com a colaboração de Renata Molinari. Tradução: Berenice Raulino. São Paulo: Perspectiva; SESC; Pontedera, IT: Fondazione Pontedera Teatro, 2007. JANUZZELI, Antônio. A aprendizagem do ator. São Paulo: Editora Ática, 1992. YUASA, Yasuo. The body, self-cultivation and ki-energy – New York: State University of New York Press, 1993. Revistas e publicações acadêmicas: BONFITTO, M. Sentido, intensão, incorporação: primeiras reflexões sobre diferentes práticas interculturais no trabalho do ator. In Revista Sala Preta, São Paulo, no 5, v 1, p 23-29, Março, 2005. FERRACINI, Renato. Corpos em criação, Café e queijo. 2004, 345f. Tese de Doutorado (Doutorado em Artes da Cena) Instituto de Artes, Unicamp, Campinas - SP, 2004.

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o professor de teatro como perspectiva de mudança pedagógica e social // Antônio José Ferreira da Silva; Raimunda Cid Timbó

RESUMO: Essa pesquisa foi desenvolvida visando apresentar o professor de teatro como mediador importante na transformação do meio pedagógico e social, mostrando seus desafios e metas no processo colaborativo junto a educação e a sociedade, viabilizando uma melhor formação profissional de encontro a uma nova educação. Com o objetivo de fazer refletir a importância desse ator aliado a educação, com o propósito de agenciar uma transformação no meio, proporcionando assim o melhor desenvolvimento do educando como ser social, como também na sua autonomia como indivíduo. Fundamentado nos conceitos dos teóricos como Kirr's (1984, p.32) “a função mais importante da educação, em qualquer grau, é desenvolver a personalidade do indivíduo e o significado da sua vida para ele mesmo e para os outros”. Nesse sentido foram desenvolvidas pesquisas de campo com educadores/atores em busca de um conhecimento mais aprofundado sobre a importância e os desafios do mesmo rumo a educação escolar e social. Finalizo-se ressaltando a importância desse profissional das arte/teatro para a formação pedagógica e social do indivíduo e como ele pode ser o objeto transformador de uma realidade social. Palavras–chave: Professor. Teatro. Mudança. Pedagógica. Social. INTRODUÇÃO Conhecendo se a necessidade do ensino de teatro e/ou artes nas escolas, percebendo se o preconceito com que essa disciplina é tratada busca se a interferir na inclusão desse profissional, valorizando o seu conhecimento pedagógico e cultural, vendo no mesmo a perspectiva de transformação dessa realidade. Diante de fatores como esses faz se aqui uma reflexão sobre a importância desse conjunto teatro e educador como forma de levar a capacitação integral aos educandos, fazendo com que os mesmos se desenvolvam potencialmente como indivíduos e cidadãos conscientes do mundo interior e coletivo, percebendo a

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relevância do mundo ao seu redor. Em busca dessa transformação e imbuindo-se de inquietações a respeito de cidadania, formação plural e consciência educacional, chegou-se a querer investigar esse profissional e sua respectiva importância na alteração social no ambiente escolar, nessa percepção pergunta se: De que forma o professor de teatro pode ser agente de transformação pedagógica e social? Justifica-se essa indagação buscando apresentar a importância desse educador, bem como a da disciplina em discussão apresentando a urgência de unir educação e artes/teatro usando como ferramenta principal na execução desse processo o seu principal ator, sem o qual se tornaria impossível essa mudança uma vez que ele é o agente causador de todo um crescimento pessoal e coletivo do individuo, no qual media passo a passo o desenvolvimento do mesmo em busca de um cidadão consciente e livre. Tendo o teatro como uma brecha que se abre a nova perspectiva de ensino aprendizagem uma vez que envolve uma gama de atividades e práticas lúdicas e pedagógicas visando o desenvolvimento do ser no seu intelecto e físico, essa brecha abre então possibilidades e desafios no conhecimento, rompendo com padrões que ainda hoje inferiorizam o ensino do teatro, assim como a discriminação do profissional dessa arte. A motivação para esse estudo nasce ao constatar que algo que é tão importante ao homem, é dele tirado muitas vezes por falta de conhecimento e preconceito, também pela percepção da falta de motivação desses profissionais diante de uma realidade que vem acompanhando esse ser a muitos anos. Tendo como base desse trabalho alguns teóricos que ajudaram à fundamentação do tema, acredita-se nessa transformação social através da mediação do professor/ator, conforme ressalta kirr's (1984, p.32)” a função mais importante da educação, em qualquer grau, é desenvolver a personalidade do individuo e o significado da sua vida para ele mesmo e para os outros”. A metodologia usada nesse trabalho foi a analise do pensamento de alguns teóricos como koudella

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(2006) que visa uma nova educação voltada a linguagem do teatro mediada pelo professor, sua importância no processo de aprendizagem e interação social do educando, e a pesquisa de campo voltada para a transformação pedagógica e social a partir desse profissional. O Professor de Teatro como Perspectiva de Mudança Pedagógica e Social Conhece-se a necessidade e a importância de que se faça a formação de professores de teatro, uma vez que a educação evoluiu, assim também o educador necessita caminhar de mãos dadas com esta evolução. Quando se fala nessa mudança, visa-se o novo perfil do educando voltado às novas tecnologias e aberto a novas inovações, cabe, pois ao educador estar apto a colaborar nesse processo. Citando Reverbel (1979) mais do que nunca se faz fundamental uma solidez na formação de professores como perspectiva de novos horizontes. “O professor é organizador do meio social educativo, o regulador e controlador de suas interações com o educando, portanto, onipotente em sua influencia indireta, através do meio social. O ambiente social é a autentica alavanca do processo educativo, e todo o papel do professor consiste em lidar com essa alavanca”. (Vygotsky, 2000, p. 34). Para tanto faz necessário uma formação que dê uma atenção especial a esse profissional, desde o estabelecimento na escola, como valorização do mesmo dentro da própria classe. Com a criação da LDB de 1961 que instituiu o ensino de artes, a lei exigiu habilidades específicas para esta área, mesmo com a criação de licenciatura ainda hoje se vê uma grande lacuna com relação à formação desse profissional. Citando Koudela; (ARÃO, 2006, p. 63) não somente na esfera do teatro como em

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qualquer outra área do conhecimento os pressupostos metodológicos de uma metodologia de ensino aprendizagem, empregando a incorporação do pólo instrucional ao pólo sociocultural. Nessa trajetória, o que se convencionou denominar de metodologia do ensino adquire um valor relativo que se configura no enlace entre educador e educando, em meio às condições objetivas (matéria, situação escolar, ambiente, etc.) e subjetivas (pessoas, comunidades, etc.). A psicologia histórico cultural aponta que ao aprender, o individuo não está isolado, mas sempre envolvido com outras pessoas em processo intersubjetivo constituído pelo sujeito que aprende, pelo sujeito que ensina e pela própria relação entre eles.Por falta desse conhecimento, muitas vezes o que os professores fazem quando atuam em sala de aula é ainda a reprodução de práticas pedagógicas ligadas aos modelos da Escola Tradicional ou Nova que enfatizam apenas a imitação ou o espontaneísmo como “produção” ou “educação” artística. É notório e se faz necessária uma mudança no perfil do profissional que se propõe a ensinar artes e/ou teatro, já que a própria pedagogia evoluiu. A partir de Paulo Freire, no novo modelo de professor, o educador e educando são sujeitos no ato do conhecimento trata-se de uma educação humanizadora em que o professor (mediador) deverá estar consciente e preparado. Vale lembrar que a metodologia de Boal (criador d o Te a t r o d o O p r i m i d o ) s e a p r o p r i a explicitamente da proposta de Paulo Freire quando vai buscar, através do teatro, a superação do conflito opressor/oprimido. Porém o que se tem a pretensão de colocar aqui é mostrar que os princípios educadores estão sujeitos a qualquer metodologia de ensino de teatro. O que se ressalta é que não seja apenas no ensino do teatro, mas em todas as linguagens e em todas as áreas do conhecimento, pois citando Freire (1999): é impossível existir sem sonhos!

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Torna-se necessário a existência e a manutenção do lúdico em cada educando, uma vez que as atividades externas a ele e as interações com o outro são transformadas em atividades internas e intrapsicológicas, aberto à sensibilidade criadora, existirá contato com os sonhos e objetivos de cada um, portanto cabe ao professor o incentivo na busca desse, visando sempre desenvolver o natural e social do indivíduo. Segundo a pedagogia atual os educandos precisam ser atores no processo ensino aprendizagem, buscando o signo mediador de condutas, gestos, sentimentos e pensamentos, valendo lembrar que toda e qualquer função psicológica superior foi social antes de se tornar interna ao indivíduo cabe, pois ao professor desenvolver essa personalidade intrínseca ao aprendizado em busca de si e do outro. Para Girrux, há necessidade de professores se colocarem como intelectuais, ou seja, “críticos engajados” para poderem mudar as condições que trabalham, no caso do professor de teatro: espaço físico inadequado, redução do tempo de aula, baixo status da disciplina “teatro”, assim o primeiro passo é ter clareza sobre o papel do teatro na formação do indivíduo. O teatro motiva os alunos á aprendizagem e lhes permite construir seu próprio conhecimento, por ser uma linguagem artística que possibilita o uso da linguagem oral de forma especial. Assim sendo cabe ao professor, mais que argumentar sobre a importância do teatro na escola, mas também lançar mão da própria arte como instrumento de conscientização e valorização das atividades que desenvolve. O ator, na maioria dos casos, é o centro das artes/teatro, deve ser explorado pelo educador dentro do espaço da sala de aula e com objetivo primeiro de desenvolver: as capacidades de expressão, relacionamento, espontaneidade, imaginação, observação e percepção, as quais são próprias do ser humano, mas necessitam ser estimuladas e desenvolvidas.

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A escola necessita ampliar o acesso á arte, e á cultura, sendo ela a instituição que em grande parte, cria a necessidade cultural e fornece os meios para satisfaze-la. Citando Peregrino, 1995, o desafio é a construção de caminhos que levem da camiseta ao museu, do rádio a sala de concerto, e da novela de TV ao teatro. Numa perspectiva diferente, Dominguez (1978) destaca sua experiência positiva com espetáculos teatrais no ambiente da escola, afirmando que a “produção de peças é uma das formas que a atividade “teatro na educação” pode assumir.” E que, ainda que o professor que trabalha com o teatro enfrente problemas como número de aulas insuficientes para o desempenho de um bom trabalho, classe inteira e com grande quantidade de educandos, o preconceito com a atividade artística, tida como empecilho para outras atividades intelectuais, essa é uma poderosa ferramenta para o desenvolvimento social, intelectual e cultural do educando. Em conformidade com a autora citada anteriormente, Dominguez considera que, ao se trabalhar com teatro na escola deve-se ter como objetivo levar os educandos a desenvolver características fundamentais para o melhor desempenho escolar como: espontaneidade, aceitação de regras, criatividade, auto conhecimento, senso crítico e raciocínio lógico. Qualquer que seja a opção da sua prática, próxima ao encenador, dramaturgo ou ator, a centralidade de seu papel é incontestável, o que exige do mesmo uma tomada de decisão, pois depois que se pisa no palco, algo tem que ser feito. Por isso torna-se de fundamental importância o capital cultural do professor, na mediação que faz para a aprendizagem dos conteúdos escolares. A aproximação do papel do professor de teatro ao do ator no contexto de sala de aula, em que o professor assume um papel social ou um personagem no processo de drama, para desafiar e estimular os educandos na construção da narrativa cênica que estiver sendo proposta.

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Nesse contexto os objetivos da pedagogia fazemse presentes na medida em que escolhas são feitas, diálogos e interação são estabelecidos em sala de aula. Como o teatro é uma arte híbrida, envolve l i te rat u ra e e n c e n a çã o, p e rc e b e - s e o encantamento mesmo com o advento da tecnologia, concretizando assim de maneira única o aprendizado, seja de maneira informativa ou cultural. Quando o professor se propõe a usar essa técnica em sala de aula, ele vê-se desafiado a evitar que essa atividade se transforme em um instrumento de exibição e opressão. Citando Nazareth (2009, p.60): “a arte é literária e o teatro é, sem dúvidas, das artes, expressão literária por excelência”. A possibilidade de “reviver” sentimentos e situações sem barreiras de tempo e espaço, de presenciar fatos de verdade ocorridos ou apenas existentes no imaginário do autor, possibilita o resgate do indivíduo na sociedade. Para isso o educador deve ter conhecimento dos princípios fundamentais que regem a prática teatral. Para que possa trabalhar nos educandos a prática teatral dentro da sala de aula possibilitando assim a aprendizagem de forma lúdica e inovadora, como principal atrativo ao interesse comum dos mesmos. Existem, porém questões cruciais para o educador no reflexo de suas habilidades, quanto às dimensões e saberes do ato de educar, uma vez que se compreende que “ensinar é uma especificidade humana”, citando Freire (2006, p. 91) é preciso considerar o saber como processo inacabado, por ser um ato humano e por se entender que o conhecimento do homem não é elaborado mecanicamente, mas na interação entre as várias de sua espécie, na construção e troca de valores sociais, afetivos e/ou culturais. Tendo o conhecimento que o professor é um profissional capaz de atuar-nos diversos âmbitos da educação, sabe-se que é necessário que ele

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e ste j a p re p a ra d o p a ra e nf re nta r co m competência e criatividade os desafios que surgem no seu laboral cotidiano necessita que seja ele, um educador diferenciado, flexível, tolerante e atento às mudanças comportamentais decorrentes da diversidade cultural que surge com a evolução da sociedade. Diante dos desafios de aprendizagem o professor percebe a importância do teatro na educação e o quanto essa linguagem artística contribui para o desenvolvimento dos educandos, porém lhes faltam a ampliação desta prática educativa e o conhecimento específico que é a arte teatral, pois essa linguagem também requer técnica, fundamentos teóricos e metodológicos. A pedagogia trata o ser em construção, assim sendo o teatro não poderia deixar de ser lhe aliado nesse processo uma vez que ele não trabalha somente as especificidades da linguagem como também se apresenta como elemento integrador, promovendo o exercício do diálogo, do respeito mutuo, da reflexão, fazendo com que o educando se perceba como sujeito de um processo social em toda a sua amplitude. A atuação do professor de teatro vem de encontro a esses desafios para mediar o processo de crescimento entre educandos e sociedade, no qual lança propostas de processos criativos e pedagógicos em que os mesmos percebam se como artistas adquirindo uma conscientização do seu valor para o processo artístico e social. Pode – se afirmar que o teatro estimula autonomia e a crítica permitindo um novo olhar do indivíduo com relação a si mesmo e aos outros, por isso é fundamental a importância da presença mediadora do professor / ator para que esse processo seja bem conduzido e aconteça na pratica. ...o artista-docente é aquele que, não abandonando suas possibilidades de criar, interpretar, dirigir, tem também como função e busca explícita a educação em seu sentido mais amplo. Ou seja, abre-se a

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o professor de teatro como perspectiva de mudança pedagógica e social // Antônio José Ferreira da Silva; Raimunda Cid Timbó

possibilidade de que processos de criação artística possam ser revistos e repensados como processos explicitamente educacionais. (Marques, 1999, p. 112).

corpo vibrante, que usa de suas potencialidades, investiga, descobre e vivencia esta aprendizagem através da manifestação do seu potencial educativo.

O professor de teatro lança mão da criatividade e se abre para inferir no educando as possibilidades criadoras do mesmo, interferindo apenas para que no processo de crescimento natural e artístico seja coerente, preparando os educandos para as muitas formas do atuar consciente em todos os níveis sociais.

Percebendo se no teatro um veiculo de inclusão e transformação e no professor/ator o condutor desse mediando a essa transformação pedagógica e social.

O teatro no ensino proporciona experiências que contribuem para o crescimento integrado do educando sob vários aspectos. No plano individual o desenvolvimento de suas capacidades expressivas. No coletivo o teatro oferece, por ser uma atividade grupal, o exercício das relações de cooperação, diálogo, aceitação das diversidades e aquisição de sua autonomia como resultado de poder agir e pensar em coerção. Pode se verificar que o professor de teatro como uma fonte de conhecimento da arte não é apenas uma ponte entre o educando e o teatro, como também um incentivador da criatividade coletiva e autônoma para que se possa vivenciar não somente o mundo artístico como o próprio mundo ao seu redor. É urgente que as escolas abracem a causa artística em seus currículos, para que espaços sejam dados aos educandos á descoberta de um mundo intrínseco ao seu, mas que como ele deve ser encarado com devido respeito, aos professores cabe a fomentação da cultura nesses espaços intermediando a ligação ente teatro/artes e a escola. Conclui-se então o valor do ensino do teatro quando se percebe a satisfação do aprender no semblante dos educandos. Cabe então ao professor de teatro/artes saber que não basta ter o conhecimento, mas é preciso ensinar a ser,

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CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo principal desse trabalho foi refletir como o professor de teatro pode vir a ser um agente transformador do individuo através da arte levando-o a ter um conhecimento sobre ser individual e social com base pedagógica e fundamental para a formação de um novo ser numa nova sociedade, sua importância como mediador, bem como suas expectativas e desafios da profissão. A partir dessa reflexão visa-se a aplicação pratica buscando uma melhor conscientização da importância do mesmo no processo de ensino aprendizagem. Por meio deste pode-se aprofundar o conhecimento e levantar questões inerentes ao ensino do teatro nas escolas, a importância dessa disciplina e da mediação de um profissional qualificado para a mesma, gerando o desenvolvimento psico pedagógico do educando, buscando transpor os desafios a fim de p ro p o rc i o n a r a o e d u c a n d o u m m a i o r conhecimento de si e do meio em que vive e ao educador um maior reconhecimento social. O teatro tem uma importante função transformadora dentro da educação, pois possibilita uma melhor comunicação entre os saberes e o homem, incentivando-o a socialização, criatividade e humanização necessária à formação. Na discussão sobre a formação do professor no processo de aprendizagem, verificou-se a necessidade de um maior conhecimento e reconhecimento enquanto profissional da área, considerando que essa disciplina é fundamental para o crescimento da

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personalidade humana trabalhando o perfil profissional de educadores para melhor resgatar esse instrumento de cidadania. Um dos aspectos mais importantes desse trabalho foi verificar na prática os desafios enfrentados por todos que acreditam nesse processo de aprendizagem e o trabalho de inclusão que esse agente desenvolve ao longo dos séculos em prol de nova sociedade. Certamente não acontecerão resultados imediatos nessa busca, mas gradativamente se encontrará na sociedade respostas que valerão os primeiros passos dados pelo professor de teatro ao encontro da transformação de vidas e de um mundo mais humanizado. Para que isso ocorra faz-se necessário uma continuada reflexão sobre a importância do mesmo no meio educacional, verificando erros e acertos ao longo dessa jornada. Como enfatizado no decorrer desse trabalho a importância desse profissional do teatro é fundamental na formação de caráter, no resgate a cidadania, cabendo aos órgãos governamentais o reconhecimento do mesmo verificando sua eficácia para a transformação social. Conforme a pesquisa de campo que será realizada durante esse processo poderá se perceber o quão é importante à junção professor/teatro educação uma vez que se comprovou com educadores e educandos o maior desenvolvimento da aprendizagem, constatando assim a transformação social através da mediação desse profissional.

formação cidadã o uso da linguagem artística para a sociedade como um todo, visando á comunicação, ainda existe preconceito quanto à realização da mesma por meio de educadores que desconhecendo o seu valor relutam na aceitação da sua prática pedagógica. Conclui-se observando que após todo esse processo ainda há muito fazer para que barreiras sejam vencidas e que o professor de teatro seja visto não como um r e c r e a d o r, m a s c o m o u m a g e n t e d e transformação pedagógica e social. REFERÊNCIAS BOAL, Augusto. A pedagogia do oprimido. CABRAL, Beatriz. O drama como método de ensino. São Paulo, Hucetex, 2006. CAVASSIN, Juliana. Perspectivas para o teatro na educação como conhecimento e pratica pedagógica FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia, saberes necessários a pratica pedagógica. Paz eterna Ltda. Revista Cientifica/FAP – Curitiba – V3 pg.39 – 52 jan. – dez.2008/pg.40 III parágrafo (cita – Chaves); 41 III parágrafo pp. 43 (dificuldades para a aplicação as disciplinas). SERRANO, Freire. Seja o professor que você gostaria de ter, wak. KOUDELA, Ingrid Dormien. A Nova Proposta de Ensino do Teatro. Sala Preta: Revista de Artes Cênicas, São Paulo, n. 2, p. 233-239, 2002. Debortoli, Camila Rodrigues. O Professo e artista ou artistaprofessor? Dra. BRITO, Luciana (Coordenadora);Ms. SELONKI, Marcus José Takahashi -Revista Iluminart do IFSP- Volume 1 número 2Sertãozinho - Agosto de 2009-ISSN: 1984 – 8625 - TEATRO: INSTRUMENTO DE REFLEXÃO HISTÓRICO-CRÍTICA, INTERAÇÃO SOCIAL E PRÁTICA PEDAGÓGICA Revista cientifica – educar, Curitiba nº. 36 p.11 – 93.20010. ED. UFPR – Teatro na escola: considerações a partir de Vygotsky – Oliveira, Maria José de- -Stoltz, Tânia

Assim ao longo dessa pesquisa pode-se perceber a importância do professor de teatro como ferramenta propulsora da pedagogia humana, perpassando pelas fases essenciais da formação do indivíduo, assegurando a arte do teatro e o professor como principal mentor na aprendizagem do homem como um todo e na sua coletividade. Finalizando esse trabalho podemos ressaltar que embora seja de fundamental importância na

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// Ricardo Guilherme

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o teatro não está em crise; o teatro é em crise // Ricardo Guilherme

O teatro cearense da atualidade deriva de um movimento quantitativa e qualitativamente irregular que se sustenta pela capacidade de reversão das adversidades demonstrada por alguns grupos. Lideranças teatrais, por motivação profissional e idealismo, insistem em manter uma militância de resistência, embora nem sempre consigam vencer as vicissitudes e conquistar a assiduidade que a própria atividade exige. O diagnóstico desta situação detecta, entre outros problemas, o da necessidade de um espaço de interação e convivência sistemática em que o embasamento teórico sobre a arte teatral possa subsidiar os processos de criação e produção dos grupos, reconhecendo, assim, que, além de fazer teatro, é preciso pensar o teatro que está sendo feito. A atividade cênica, por sua natureza efêmera, performática, requer um recomeçar sempre, induz a revisões, descobertas e experimentações constantes. Sua dinâmica justifica a alusão insistente e cíclica de que o teatro está em crise. Na verdade, o teatro não está em crise; o teatro é em crise e sua efemeridade o leva à ebulição, à inquietação que o mantem vocacionalmente voltado para a crítica concernente a si mesmo e à sua adequação ao momento histórico. Em função desse estado crônico de crise, salutar quando proporciona a oportunidade da crítica e

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da autocrítica, é necessário criar fóruns de reflexão como uma forma de aglutinar os agentes do panorama teatral, numa mobilização que poderia inclusive envolver a comunidade científica nas áreas de Antropologia, Psicologia, Sociologia, História e Comunicação Social com a problemática epistemológica suscitada pelas artes cênicas. Esse mecanismo de avaliação propiciaria aos núcleos teatrais de Fortaleza partilhar informações referentes aos modos operacionais que o mobilizam, com o objetivo de fomentar o intercambio de idéias sobre práticas, experiências, pesquisas e teorias teatrais, levando-se em conta a diversidade cultural, o pluralismo ideológico e o espectro de tendências que caracterizam o teatro cearense.

É inerente ao teatro, como arte de ação interpessoal e radicalmente coletiva, essa vocação dialógica que se fundamenta numa postura relacional, relativizadora e intersubjetiva. Criar, portanto, instâncias de convivência para conhecer e dar a conhecer as escolhas que os diferentes grupos engendram no encaminhamento de soluções dos impasses de criação e produção possibilitaria à chamada classe teatral inter-relacionar visões diferentes, comparar semelhanças e dissemelhanças nas suas diversas experiências.

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o teatro não está em crise; o teatro é em crise // Ricardo Guilherme

Além disso, esse procedimento certamente deflagraria considerações não apenas sobre os sistemas organizacionais da cultura que o nosso teatro apresenta, mas principalmente sobre os sistemas organizacionais da cultura de que o teatro é representante. Apesar das diferenças que separam especificamente cada atuação grupal, há pontos de interseção e zonas de convergência que ultrapassam especificidades de linguagem e de gerenciamentos e inserem as mais diversas iniciativas de produtores e criadores em circunstâncias de tempo, espaço e condições político-econômicas equivalentes. São essas circunscrições que reclamam o debate não somente acerca das estratégias de produção, mas ainda a respeito dos fundamentos semióticos, filosóficos e estéticos do nosso teatro. Uma questão pertinente a ser debatida seria, por exemplo, o modelo das politicas culturais que tentam aliar os incentivos do Estado à contribuição das empresas. Pautar a sintonia desta aliança de maneira a que o conceito de desenvolvimento auto-sustentável esteja imbricado com a elevação da qualidade de vida e dos padrões culturais é um desafio que extrapola as torres de marfim das tramitações burocráticas e faz com que os artistas, definidos pelo poeta Ezra Pound como as antenas da raça, voltem os

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seus radares para a captação de uma nova consciência política, social e artística. É isso, pelo menos, o que se espera de um teatro que, estabelecendo com a sociedade uma reciprocidade de influências, pretende impulsionar novas sincronias, ao rediscutir os f i l t ro s d e co n st r u çã o, re co n st r u çã o e desconstrução dos significados da História. Ao teatro é intrínseca essa estranheza problematizadora em relação a si mesmo e ao que o cerca, traduzida por um olhar dialético que, tanto na práxis vivencial da realidade quanto no campo do imaginário, ambiciona provocar questionamentos e expandir-se até mesmo para além da inserção na contemporaneidade, despertando revoluções e redimensionando volições. Afinal, como certa vez bem definiu o dramaturgo Eugène Ionesco, na voraz e veloz história das idéias, “estar apenas atualizado já é um atraso”.

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// José Tomaz de Aquino Júnior¹

RESUMO: Uma praia, um café e uma aula. Estes foram os motivos que me levaram a escrever estas poucas palavras sobre a artesania do ator. A praia é Jericoacara, nomeada por mim como a praia da energia espiritual. O café foi com a amiga e aluna Andrea Benício de onde várias inquietações sobre a vida e a espiritualidade foram motivadas e encontraram reverberações e link com as aulas do Prof. Guilhermo Cacace, no curso Teatro e Conexões Contemporâneas PMF/IFCE, no período de 13 a 19 de agosto de 2012. Abordarei nas próximas páginas a partir da experiência cotidiana de um ator, que antes de qualquer profissão é um ser humano, o encontro dessas inquietações com a revisão bibliográfica em Stanislavski e Artaud para a discussão de uma palavra essencial no trabalho do artista cênico: a presença. Palavras-chave: experiência; encontro; ator; presença cênica; corpo presente. ¹tomazdeaquino1@yahoo.com.br //64//


a presença do eu na presença da cena // José Tomaz de Aquino Júnior

E a questão que agora se coloca é saber se neste mundo em declínio, que esta se suicidando sem perceber, haverá um núcleo de homens capazes de impor essa noção superior de teatro, que devolverá a todos nós o equivalente natural e mágico dos dogmas em que não acreditamos mais. Antonin Artaud

EU, pronome pessoal do caso reto, primeira pessoa do singular no discurso que ocupa o lugar do sujeito. Pensar o EU para pensar à cena. A cena é o EU. Não um “Eu-centrismo” no qual o EU é o foco, mas um EU no sentido da descoberta de si. De uma respiração profunda que afeta o meu corpo. Um EU que proporciona no momento do jogo estabelecido pelo encontro com o outro e comigo, um ritual. Se não me alimento de mim, como vou alimentar os que estão fora. Potência. Potência de vida. O ator deve ter vida para estar em cena, pulsar em suas veias essa energia vital necessária em qualquer profissão. Para afirmar essa potência, tem-se que primeiro ter um contato com o seu interior oculto, adormecido. Tem-se que ter um trabalho de escuta muito sensível, mas não uma escuta para ouvir as lamentações do corpo e as couraças que já existem e que bloqueiam a arte e a emoção de acontecer, mas uma escuta que possibilite a libertação do que tem dentro, do leão que quer dominar a selva em seu reinado. O ator ao ter consciência do seu EU, poderá reinar em absoluto no reinado de sua cena em parceria com o diálogo, no encontro com o outro. Mas como chegar a esse estado de comunicar-se consigo? Uma pergunta difícil, tendo em vista em que vivemos em uma sociedade pós-moderna e que ainda impera o sistema capitalista, a relação da mais valia, e as “auto-estradas de comunicação”¹, (BOURRIAUD, 2009, p.11). Parar ¹ “Hoje, a comunicação encerra os contatos humanos dentro de espaços de controle que decompõem o vínculo social em elementos distintos. A atividade artística, por sua vez, tenta efetuar ligações modestas, abrir algumas passagens obstruídas, pôr em contato níveis de realidade apartados. As famosas “auto-estradas de comunicação”, com seus pedágios e espaços de lazer, ameaçam se impor como os únicos trajetos possíveis de um lugar a outro no mundo humano. Se por um

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ou dilatar o tempo seria um erro fatal nessa sociedade do consumo e do espetáculo. Respirar? Uma saída. Talvez! Mas como respirar se não nos damos o tempo nem de almoçar direito? Tempo! Tempo! Tempo! Será que o tempo é o que nos dão ou é o que nós nos damos? Chronos ou Kairós? O tempo dos homens ou o tempo de Deus? A desaceleração do tempo. Desacelera menino! Passei um domingo em casa, desacelerando, deitado a maior parte do tempo e minha sobrinha de quatro anos perguntou: “- Tio, o senhor tá doente?”. Sakura Matsuri – O jardim das cerejeiras². A desaceleração do tempo que incomoda. O desconforto. Na lentidão da respiração, talvez, possamos acessar esse interior do corpo, segundo palavras da Prof. Dra. Thereza Rocha, proferidas em aulas do Curso Teatro e Conexões Contemporâneas PMF/IFCE, no período de 09 a 13 de julho de 2102. “É nesse contato com a respiração, com o silêncio e na dilatação do tempo que acessamos as musculaturas mais profundas e que possivelmente, despertamos esse encontro e descoberta de si”³. Que despertamos emoções adormecidas a partir do próprio corpo que tem memórias e que pulsa vida. Por meio de uma experiência – refiro-me a quebra de fluxo, na experiência em Benjamin – e da/na vivência quem saiba possamos chegar a esse encontro verdadeiro com a alma e o corpo em uníssono. Como entrar em si? Como perceber-se? Boa pergunta. Um doce a quem souber responder. Tarefa difícil, mas não impossível. Creio que lado a auto-estrada realmente permite uma viagem mais rápida e eficiente, por outro ela tem o defeito de transformar seus usuários em consumidores de quilômetros e seus derivados. Perante as mídias eletrônicas, os parques recreativos, os espaços de convívio, a proliferação dos moldes adequados de socialidade, vemo-nos pobres e sem recursos, como o rato de laboratório condenado a um percurso invariável em sua gaiola, com pedaços de queijo espalhados aqui e ali.” (BORRIAUD, 2009, p. 11). ²Espetáculo teatral do grupo Teatro MiMO, de Fortaleza, que trabalha com o treinamento corporal para o ator e o mimo corpóreo. O espetáculo discute o homem e sua conduta em sociedade e a respiração da vida. ³ Informação verbal.

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existam várias maneiras, sem ter nenhuma receita de bolo, tendo em vista que cada organismo é autônomo e possui um histórico. Mas creio também que esse desacelerar o tempo pode influenciar nessa descoberta de si. Seja por meio de uma viagem à natureza, de um retiro espiritual, da meditação ativa etc, o fato é que é importante o EU ser tocado pelo próprio EU. E isso dói. É um processo doloroso. Em Diálogo com MerleauPonty (1999, p. 3-4), ele nos fala que Tudo o que sei do mundo, mesmo devido à ciência, o sei a partir da minha visão pessoal ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência nada significariam. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se quisermos pensar na própria ciência com rigor, apreciar exatamente o seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é experiência segunda. [...] eu não poderia aprender nenhuma coisa como existente se primeiramente eu não me experimentasse existente no ato de apreendê-la.

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por os seus músculos em condição adequada, para que não lhes estorvem as ações. [...] a pressão de um músculo num só ponto, conseguira desequilibrar-lhe o organismo todo, espiritual e fisicamente (STANISLAVSKI, 1989, p. 123-124).

O autor ainda comenta no mesmo capítulo que Por algum tempo consegui libertar-me da tensão localizada no pescoço e nas costas. Não posso afirmar se isso me deu qualquer sensação de vigor renovado, mas o fato é que esclareceu, para mim, como estamos sujeitos a tantas tensões supérfluas, prejudiciais, sem disso nos darmos conta (STANISLAVSKI, 1989, p. 127-128). Finalizando esse diálogo com Stanislavski (1989), o autor ainda discorre no referido capítulo sobre o relaxamento dos músculos e a tensão necessária para sustentar uma atitude quando compreende o centro de gravidade como os centros que estabelecem o equilíbrio ou os centros de peso [...] compreendeu a importância dos centros de gravidade. Viu até que ponto de agilidade, flexibilidade e adaptabilidade pode treinar-se o corpo humano e que nessa tarefa os músculos fazem o que for necessário por um senso de equilíbrio (STANISLAVSKI, 1989, p. 129).

Creio que o silêncio e a respiração são uma boa porta de entrada para esse contato consigo. Alguns teatrólogos, como Artaud, Decroux etc têm na respiração essa porta para o contato consigo e com as emoções. Um contato verdadeiro. Uma respiração que pode auxiliar nessa entrada em si e no descobrir-se. Uma respiração que oxigeniza a musculatura e permite um relaxamento ativo ou uma liberdade muscular, um corpo neutro para que as emoções surjam e não se bloqueiem, como dialogava Stanislavski, em sua A preparação do Ator, quando discorre sobre o capítulo Descontração dos Músculos:

Na cena queremos verdade, e essa verdade só será possível se esse contato/encontro com o EU for verdadeiro. Para Decroux, o movimento é verdadeiro quando ele parte da respiração e influencia todo o corpo no seu executar, partindo do tronco e transformando-se em ação, pois o corpo como um todo está comprometido.

Enquanto se tem essa tensão física é impossível sequer pensar em delicadas nuanças de sentimento ou na vida espiritual do papel. Por conseguinte, antes de tentar criar qualquer coisa vocês têm de

Em oficina realizada em 2007, na cidade de São Paulo, ministrada pela atriz e diretora teatral Silvana Abreu, no Estúdio Luís Louis, tive a oportunidade de experimentar esse contato comigo. De início, pensei, estou fazendo terapia.

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Sim, pois a arte tem hoje em dia essa função, e qualquer pessoa em um trabalho na descoberta de si, pode tender a esse pensamento. Mas o que se estudava naquele estúdio era a descoberta de si para potencializar a sua cena, o seu ser enquanto ator. A descoberta de suas potencialidades, ou conforme Grotowski aborda em seu texto Em busca de um teatro pobre, a via negativa4. Penso nessa descoberta de si não como arte-terapia, pois como os próprios pensadores da Antropologia Teatral que foram buscar as bases de suas pesquisas em rituais indígenas ou africanos, tinham o limiar do transe, como sendo a mola propulsora para a descoberta de si. Seria nesse estágio que o ator deveria chegar para tocar a si e despertar o leão adormecido, tendo consciência que o que se esta fazendo é arte e não terapia. E assim, temos o que chamamos hoje de treinamento pré-expressivo que Eugenio Barba cataloga em sua A canoa de papel – e aponta princípios que retornam – como sendo a mola mestra para o ator ter a técnica em vida e alcançar a presença cênica. Mas esta, parte do EU. Do EU no agora, no momento do presente, do pensamento colado ao corpo, tendo consciência que o que sou hoje é reflexo do que eu fui ontem, mas sendo o hoje, e não o amanhã que é incerto.

coisas. Construímos a percepção com o percebido. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 2526). Corpo-mente, alma-corpo, como sugere Spinoza5 em sua Ética do corpo ou uma integralidade como sugere Ken Wilber6. Quando esses dois se tornam um, a potência brota de forma contagiante como a peste negra. Contagiar, contaminar, esses seriam os verbos artaudianos, mas só contamino alguém se eu estiver doente, então, nesse contato consigo, busquemos nossa doença que é a verdade e a pulsação da vida, a alimentação da alma e do espírito e contaminemos, para que tenhamos uma arte verdadeira e plena, sem proformidade, mas uma arte que contamine e que possa levar também a reflexão além do entretenimento, que as pessoas saiam daquele espaço de rito com a reverberação deixada pelo acontecimento que acabara de se realizar. Que a sensação do sentido sinestésico possa promover essa identificação e que a partir do contato consigo, eu consiga entrar em contato com o outro e realmente fazer do teatro essa arte do encontro que ainda se mantém em tempos pósdramáticos. O verbo é Estar!

Nós acreditamos muito bem o que é 'ver', 'sentir', porque há muito tempo a percepção nos deu objetos coloridos ou sonoros. Quando queremos analisá-la, transportamos esses objetos para a consciência o que os psicólogos chamam de "experience error", quer dizer, supomos que de um só golpe em nossa consciência das coisas aquilo que sabemos estar nas 4

“Não educamos um ator, em nosso teatro, ensinando-lhe alguma coisa: tentamos eliminar a resistência de seu organismo a este processo psíquico. O resultado é a eliminação do lapso de tempo entre impulso interior e reação exterior, de modo que impulso se torna já uma reação exterior. Impulso e ação são concomitantes: o corpo se desvanece, queima, e o espectador assiste a uma série de impulsos visíveis. Nosso caminho é uma via negativa, não uma coleção de técnicas, e sem erradicação de bloqueios.” (GROTOWSKI, 1987, p. 14-15).

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Referências Bibliográficas ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BARBA, Eugênio. A canoa de papel: Tratado de Antropologia Teatral. Trad.: Patrícia Alves Braga. Brasília: Teatro Caleidoscópio, 2009. GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Trad.: Aldomar Conrado. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1987. MERLEAU-PONTY, Maurice. Femenologia da percepção. Trad.: Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999. STANISLAVSKI, Constantin. A preparação do ator. Trad.: Pontes de Paula Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.

5 Filósofo da corrente da Filosofia Moderna do Século XVII, nascido em Amsterdã. 6 Criador da Psicologia Integral na qual a desenvolve o conceito do holárquico diferindo-se do hierárquico. Para ele a consciência se organiza em esferas evolutivas que sucessivamente incluem e transcendem a camada anterior.

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