Tato Visual

Page 1

T A TO V ISU A L



TA TO V ISU A L poem as

A ndrĂŠ M iranda Silva

2017



S U M Á R IO I. TATO ................................................................. 5 No escuro .................................................. 7 Análise paleográfica .................................. 9 tatua-se no tempo ................................... 10 Estudos (para catedrais) ......................... 11 Talvez ..................................................... 12 Quero morrer de coisas assim ................ 13 de certo modo os homens ...................... 14 Dezembro ................................................ 15 O diâmetro do mundo ............................ 16 beijar o sal das lágrimas ......................... 18 II. EXATIDÕES ..................................................... 19 Primeira hora .......................................... 21 o tempo escoa ......................................... 22 Notas para o dia de eleição .................... 23 Beco ....................................................... 24 tento atingir um princípio ..................... 25 Boletim .................................................. 26 Ensaiozinho ............................................ 27 a queima das horas ................................ 28 um exercício .......................................... 29 a luz da manhã ..................................... 30 a preguiça leva um largo espaço ............. 31 III. FIN DE SIÈCLE ............................................... 33 Corredor ................................................. 35 Turismo histórico ................................... 36


Cena patética ....................................... O baobá ............................................... Dezembro ............................................. senhor .................................................. os esforços ........................................... agora é tarde ........................................ percorremos dias e camas .................... Télos .......................................................

37 38 39 40 41 42 43 44

ANEXO SECRETO ................................................. 45 caio nos seus braços ............................. 47 a praça é mais ampla que o céu ........... 48 beijar o sono em suas pálpebras ........... 49 diante de ti se revogam as ideias .......... 50 beijar o som de quando diz meu nome .. 51 eu me descobrir de repente ..................... 52


I T A TO



N O ESC U R O

de olhos cruzados de álibi na mão nenhum pretexto inspirar

expirar

2. o ar exala um perfume de instante exato secreta exemplos do que não fazer exemplo: não fazer

3. respiração espessa de canal fechado não pra impedir pra deixar passar e bailar o baile em círculos e suspirar 7


4. uma lacuna morna onde havia carne o fantasma dos latidos taquicardíacos ar entrelaçado aos dedos o espaço em branco doença do que vai

8


A N Á LISE P A LEOG R Á FIC A

a mão que escreveu a carta era feita de carne e erro a tinta ferrogálica escrita pesada da sucata dos sentimentos uma folha sulcada manchada do ranço de palavras tombadas dobrada em quatro formando uma encruzilhada onde se oferta o “coração em flor” [sic] nenhuma informação sobre o suicídio do autor sem data

9


III

tatua-se no tempo uma memória roxa dos habitualmente singrados por saudades desconexas do concreto de palavras que há muito não se usavam dias cítricos de ar ensolarado entretanto é de uma luz sombria que mal se estenda os dedos tudo desvaneça como espuma coada pra viver sem se engasgar

10


E STU D OS ( P A R A C A TED R A IS )

um fantasma diminuto recortado pelo sol quase restrito ao ser morte que aumenta no derreter das horas o ser comprimido pelo corpo levantado ao seu redor vida que arrebenta a carcaça da matéria a luz que se espraia cria um longo corpo do que não é luz e o ser só projeta sombras para dentro

11


T A LV EZ para o Rocha eratóstenes mediu a terra como quem resolve um poema como quem constata que a fruta é vermelha como quem deflagrou no ar inflamável a primeira palavra faísca na fala potencial

ou

eratóstenes inventou a terra como quem inventa a esfera para dizer seu diâmetro como quem desenha o poema para impor seus limites como quem pinta a fruta que nunca foi colhida mas poderia 12


Q U ER O M OR R ER D E C OISA S A SSIM

não dizer a morte certa: acalentar ilusões com ternura esquecer a luz lentamente aproveitando o sol não dizer aquilo mas gritar todo o resto não gritar é aquilo: a ingratidão com o mundo acariciar o vento: apertar a mão do medo: beijar vorazmente esse arrepio de talvez não dar outro passo não dizer a morte mas aprender cotidianamente a paralisia através da dança não dizer dizendo e enlouquecer de sanidade

13


V II

de certo modo os homens são o próprio frio dos cinemas que frequentam sem ninguém e são as ruas habitadas por almas cor de sódio atravessadas sem pedir perdão pra inclinar o corpo e olhar pra baixo o reflexo das luzes se afogar no rio implorando que o rio não apague a noite cobrindo de surpresa a cidade com seu corpo e depois de tudo os homens são bem mais que espelhos em que todos enxergam cada um criados com bolsos pra guardar as mãos e olhos de correr na chuva a diluir a emoção

14


D EZEM BR O

vendem-se verdades nas vitrines e outdoors na beira das calles anunciam-se pedaços de protestos nas marquises dos prédios o pixo é o bicho roedor na porta dos condomínios boa noite morador nas testas das casas luzes de natal votos de boas festas nas calçadas declarações de amor eterno nas pontes e o amor de volta nos postes e os amantes que se abraçam nos cantos e os amantes que se amassam nos carros e o calor que domina a cidade e a lua que a todos protege

15


O D IÂ M ETR O D O M U N D O ( OU : C OM P OSIÇ Ã O C OM C H U V A , V OO E N OSTA LG IA )

na pré-história de mim sempre que janeiro eu acordava chovendo e chovia o dia inteiro quando então eu rastejava de déjà vu em déjà vu entre memórias falsas de um dia no quintal ter levantado voo ao longo dos dias longos andando sob a pele como formigas que me roessem sem vestígios algo escorria e eu não sabia que era a vida todo o depois que havia era daqui a pouco e não existia mais mundo que a distância entre o portão da rua e o muro do fundo  cinquenta passos de criança tropeçando no entulho da própria cabeça pra entrar de volta 16


quando a voz perdida chama a voz que não é mais minha e me embrenhar cada vez mais dentro do labirinto dentro e me perder no começo do caminho e me ter de volta ao filme mudo da janela do filme b da aula pesco uns estilhaços de conversas mas estou lá fora no vento sentindo o tempo na pele e sinto que sempre tinha sido agora e sinto que agora é para sempre

17


X

beijar o sal das lágrimas o trilho de lesma das lágrimas em pleno século das festas e casas iluminadas e caras valorizadas por camadas de atitudes e conversas e noites experimentadas nas calçadas e parques e praças a tristeza das telas não combina com a vida das garrafas e as cores das luzes que o escuro destaca e o estrondo da música que perpassa o corpo e faz vibrar até a fibra mais íntima por isso é um mistério que se tenha que lamber o mar morto das lágrimas quando tudo é alegre e bom selvagem melhor: engole o choro e tudo que estrague o clima de cristal líquido da nossa idade

18


II E X A TID ÕES

19


20


P R IM EIR A H OR A

a manhã entra pela boca entreaberta apagando resquícios dos ossos da febre suspende o corpo de umidades frágeis jogo de cristaizinhos de açúcar que é e leva a passeio pelo vidro do banheiro pela mesa do café

a manhã pura fluida e leve na língua melzinho claro para o palato toca a nudez das coisas e não sente pecado já a pele muda contra o ar gelado se envergonha toda arrepio de cacto 21


o tempo escoa pelas fendas do chão ainda mais rápido pelas da pele insetos e plantas são os anos da casa não admira que o mato cresça nas gretas dessa cara como por fendas entre tijolos a morte é quando os tijolos esfarelam e as formigas se mudam de nós

22


N OTA S P A R A O D IA D E ELEIÇ Ã O

dormir até tarde e profundo sem nem pensar na hora demorar no café na releitura de um poema dar bom dia às amigas com delicadeza perguntar da noite de sono só então se dirigir com calma absoluta ao local determinado e decidir em três segundos os negócios do estado

23


B EC O

nos olhos calados do cachorro eu vejo a sombra do mundo ou será meu rosto refletido o pedaço de couro e osso que se espreme contra o muro parece que esconde um tesouro a chave do mistério que ele oculta com o corpo só pode ser algo raro uma borboleta azul uma caneta tinteiro o segredo da paz mundial mas eu vejo a língua brilhante turvar o céu numa poça de água suja putrefeita às vezes a gente sempre se engana

24


tento atingir um princípio de sonho contando os azulejos da sala tenho notícias remotas de lugares distantes de fora do dia estou ouvindo a vida acontecer e a vida é tão obscena que eu cubro meus olhos de criança

25


B OLETIM

o silêncio rondando o bairro no calor de meia tarde aqui e ali cortado por um latido logo engolfado pela calma geral o cachorro rondando o campinho onde os de camisa e sem camisa decidem questões vitais expulso por um grito uma bola nas costelas os tênis enforcados no fio telefônico: únicas testemunhas

26


E N SA IOZIN H O para a Anne os olhos andam cansados luzes bruxuleantes néon faróis sódio de olhos descalços a beira poça ato reflexo sem nem ver um banho por dois centímetros não de sangue

27


a queima das horas é mais derretida e ágil nos não recintos lá fora sem cercas no tempoespaço a poeira fininha circula e corrompe tudo sem aviso sem que percebamos o real erodido em suas bases

28


um exercĂ­cio para esses dias sem fim: amar o que nunca atĂŠ porque nunca apostando a vida que um dia vai acontecer

29


a luz da manhĂŁ desenha um arco claro na pele a carne do seio ganha contornos de sol das nove na cama sĂł existe o real nu inatingĂ­vel

30


a preguiça leva um largo espaço para se acomodar espalhada no piso embora entre nossas mãos não se passe um instante ainda é líquido o que sinto no ar até que meus dedos alcancem e afundem na gravidade do seu rosto (espera um momento e pergunta uma palavra ao acaso meu nome rodopia no tempo de uma língua que não conheci a fundo e é como se não houvesse língua só intermitências do silêncio em carne viva) estamos submersos no pátio de hoje sem conhecer o que somos: inatingíveis por trás desses olhos de estátuas incapazes de chegar ao toque somos vontades que doem tudo até botar fogo no mundo

31


32


III F IN D E SIÈC LE

33


34


C OR R ED OR

no caminho para a sala um objeto de tempo a marca do retrato que nรฃo estรก mais o olho constrรณi outra foto sobre os destroรงos da que havia mas a parede se agarra ao calcanhar da memรณria

35


T U R ISM O H ISTÓR IC O

descidas as portas de ferro tudo fica com um ar desolado de deserto ou cidade fantasma e nem há meia hora isso aqui era vivo e ativo e não se achava jeito de estar sozinho fica todo dia essa impressão de caminhar por entre destroços de grandeza bonitos e inúteis como a glória das ruínas

36


C EN A P A TÉTIC A

todo mundo esqueceu como se telefona se eu discasse seu número não saberia dizer uma palavra depois do alô e seria como se eu tivesse um embrulho nas mãos a boca seca e você desse as costas à minha mudez e eu voltasse para casa desolado com o rosto colado à janela do ônibus cego pela luz laranja que vem de trás dos prédios no fim das tardes tristes

37


O B A OB Á

na barriga da árvore estão dormindo o pai o avô e o bisavô do bisavô seguem contando histórias que a história não guardou e estrelando o caminho da noite dos griôs iluminam a memória de seus filhos para que nunca esqueçam o caminho que os levou a ter caminhos

38


D EZEM BR O

vendem-se verdades nas vitrines e outdoors na beira das calles anunciam-se pedaços de protestos nas marquises dos prédios o pixo é o bicho roedor na portaria dos condomínios boa noite morador nas testas das casas luzes de natal votos de boas festas nas calçadas declarações de amor eterno nas pontes e o amor de volta nos postes e os amantes que se abraçam nos cantos e os amantes que se amassam nos carros e o calor que domina a cidade e a lua que a todos protege

39


senhor tenho desde sempre e constante ajudado tua morte contínua senhor tenho reiterada e há muito assistido tua morte perpétua senhor carrego comigo como uma flor atrás da orelha a memória de teu sangue senhor tens me enfeitado com um vestido cortado de tua mortalha senhor quanto mais senhor será preciso que morras antes que eu viva?

40


os esforços com que me desvelei para esconder as fugas vãs com que tentava chegar ao ponto de partida não querer querer ao ponto de arrancar o corpo e jogar no chão até ser só algo que não é que não se sabe até ser só uma voz perdida no rumor caco em meio aos outros cacos

41


agora é tarde já se apagaram os vagalumes e a música dos vizinhos ouço que os carros rompem a barreira do silêncio na rodovia um amontoado de palavras desconexas na minha mente atravessam a madrugada enquanto as sombras vão virando monstros latidos vão virando uivos motores vão virando os últimos estertores da noite e minha cama inquieta reflete o labirinto dentro e a claridade externa cega e já se ouve os passarinhos loucos por algo novo logo de manhã agora é cedo

42


percorremos dias e camas à espera de uma hora não insistimos em revisitar os minutos incansáveis de escorrer pelas calhas dos acontecimentos insaciáveis de acontecer inconscientes mudos fundos até que simplesmente não

43


T ÉLOS

é mais uma vez a poeira do sono que tapa os olhos e obstrui as ruas quem não consegue enxergar o concreto nunca chegará à luz do sol pior: nunca chegará à carne das coisas banhada pela luz do sol

44


A N EX O SEC R ETO

45


46


caio nos seus braços como quem pula da ponte por excesso de consciência daquele último instante salto para o beijo como se para o precipício pela urgência de me saber vivo no percurso quero me entregar ao grande silêncio de sentir o seu corpo pulsar ao meu lado

47


a praça é mais ampla que o céu mais clara nenhum espaço separa a minha e a sua mão a conjunção das nossas bocas as poucas camadas de roupa entre nossos corpos a mornidão dos seus olhos agora atentos logo depois fechados (sem olhar para ver melhor)

debaixo do sol fazemos nossa própria fusão nuclear

48


beijar o sono em suas pálpebras até que a vibração me tome todo na frequência em que descansa a vida que ocupa seu corpo

49


diante de ti se revogam as ideias como que isolado dos ruídos íntimos diante de ti cessa o rumor as vagas a ressaca do intelecto diante de ti é o que é porque é e não preciso me saber porque estou

50


beijar o som de quando diz meu nome beijar seu nome e a ideia do seu rosto beijar lembranças escondidas em seu corpo beijar seu solo de guitarra favorito beijar os primeiros dias de agosto beijar as praças em que nos beijamos beijar seu desprezo pelo que é velho enquanto fazemos algo novo à sombra da estátua de um homem morto

51


eu me descobrir de repente ao seu lado é como acordar devagarinho no meio de uma música inesperada e aos poucos através do sono ir reconhecendo as palavras as notas purificadas pela confusão os acordes feitos mais claros pela obscuridade dos meus olhos e essa tontura que dá solidez e faz saber que estou plantado firmemente numa terra onde é possível morrer amanhã mas não sem ter mergulhado na beleza de me descobrir de repente ao seu lado

52


53


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.