semanal - 14/11/16
Hip Hop PortuguĂŞs
Editorial
Samuel Mira apaixonou-se pelo rap em torno de 1993. O lançamento do seu primeiro álbum, Entre(tanto), em 1999, foi influenciado pelos lançamentos de mixtapes por parte de DJ Bomberjack. Nesses anos muitos rappers queriam ser independentes de editoras, porém o segundo álbum de Sam The Kid, Sobre(tudo), acabou por ser editado pela Edel. Nessa altura o rapper já dava bastantes concertos, por exemplo no Hard Club, muitas vezes convidado pelo Mundo Segundo, nas sessões “Nova Gaia Sessions” que este último fazia. No ano de lançamento de Sobre(tudo), 2002, Sam The Kid lança também um álbum de instrumentais, Beats Vol 1: Amor, a pedido do jornalista Rui Miguel Abreu, que foi o primeiro a passar-lhe uma MPC. O álbum é conceitual e baseia-se na historia de amor dos pais do artista. Foi gravado em casa usando samples que abrangem filmes pornográficos, telefonemas, novelas e registos de soul e jazz. Em 2005 participou em algumas faixas da banda sonora do filme português O Crime do Padre Amaro. Nesse mesmo ano colaborou no álbum Amália Revisited, um tributo à fadista portuguesa Amália Rodrigues.
Em 2006 foi lançado o seu tão esperado quarto álbum, chamado pratica(mente). Samuel Mira, mesmo sabendo que já havia editoras maiores interessadas em editar o álbum, deu outra vez o voto de confiança à Edel. O álbum chegou a ser disco de ouro, vendendo até 10’000 cópias. Em 2009 surgiu o projeto bastante inovador chamado Orelha Negra, com o DJ Cruzfader, Fred Ferreira (Ferrano), João Gomes e Francisco Rebelo. O projeto consiste na produção de canções instrumentais, nas quais se fundem vários estilos. A banda conta já com vários álbuns e mixtapes. Recentemente Sam The Kid tem trabalhado com o MC português Mundo Segundo, DJ Guze e DJ Cruzfader na criação dum álbum, do qual já sairam dois singles, Tu Não Sabes e Também Faz Parte. Mais recentemente e ao mesmo tempo, Sam The Kid criou um projeto novo ligado ao hip hop chamado TV Chelas, que tem como plataforma de distribuição principal um canal de Youtube dedicado. O canal publica músicas inéditas de Sam The Kid e outros artistas, videoclipes, podcasts, entrevistas, instrumentais, alguns arquivos relacionados com hip hop nunca vistos, e potencialmente mais coisas.
Sam The Kid Pratica(mente) foi um dos discos maiores do ano 2006 no que toca à música portuguesa. Mereceu todos os elogiospelas canções que contém, mas, também, pelo novo plano que representa para o hip hop português. Elevou o fasquia, dizemos com segurança agora que a poeira assentou. Disco reflexivo, com recortes da vida de Samuel Mira e do seu posicionamento enquanto artista, carrega dois triunfos: o de Sam, enquanto artista maior e emancipado, depois do aclamado Beats Vol. 1: Amor (2002); e o do nosso hip hop.
Ao quarto disco, saíste do teu quarto e foste para um estúdio gravar. Quiseste elevar a fasquia? Quis experimentar e fazer pela primeira vez um álbum sem desculpas. Os meus álbuns anteriores eram discos em que dizia “Dá um desconto, gravei em casa, a qualidade não está muito fixe”. Havia pessoas que gostavam de mim e eu suspeitava se seria por ser uma coisa artesanal. Quis fazer um álbum sem desculpas, com todos os meios possíveis. Como é que olhas para os discos anteriores? Sentes-te confortável com eles? Não oiço os meus discos de rimas anteriores. O de instrumentais [Beats Vol. 1: Amor] ainda consigo ouvir. São coisas que, pela altura em que saíram, não me envergonham. Se resistiram ao tempo é outra questão. Se o Entre(tanto) [1999] e o Sobre(tudo) [2002] saíssem hoje não estavam a altura. O álbum de instrumentais ainda estaria à altura. Como é que foi o processo de fazer o disco? Levaste quatro anos. Grande parte do álbum foi previamente pensada. Já estava no estúdio a saber que estava a gravar faixas para o álbum. Quando estamos em casa, gravamos faixas que depois inserimos num contexto. O álbum de instrumentais teve um história, mas isso não quer dizer que quando fiz os beats estava a pensar num fio condutor. Neste caso, já pensei muito no álbum previamente. É o disco em que tens mais convidados. Foste ambicioso? Como estive quatro anos a fazer o álbum, tive muito tempo para pensar. Quando fazes as coisas em casa, é a coisa do momento: quem está é quem entra, quando a música já está boa fecha-se a loja. Aqui, foram-se limando as arestas. São quatro anos a adormecer com as músicas e a pensar o que é que poderia estar melhor. Há uma coisa muito contraditória: é o meu álbum mais pessoal.
Qual é a tua relação com a MPC, a máquina em que fazes música? É um aparelho espectacular. Não são as coisas mais avançadas que fazem as músicas. O que eu preciso para fazer música está ali. Quando se liga a máquina não há ali som nenhum, és tu que tens que os pôr lá e depois sequenciá-los, cortá-los e brincar com eles. Eu falo mesmo com a máquina. É como uma pessoa: podes conhecer a máquina há bastantes anos mas ela tem coisas lá dentro que não sabias. Hoje, como está a relação com o hip hop? Mal. Há uma coisa que está na Net, que é um DJ que se arriscou a juntar durante 50 minutos pedaços de 800 músicas – aquilo retrata a história do hip hop. Há ali uma fase – 1993, 94 e 95 – em que é só grandes sons. Depois desse pico as minhas reacções de wow! começam a ser mais esporádicas. A qualidade vai descendo. A última música que o DJ passa é uma nova do Nas, que se chama Hip hop is dead e até parece uma mensagem subliminar… Esse declínio existe a um nível mainstream ou mais underground? É em tudo. É claro que existe bom hip hop, mas tens que tirar muita merda de cima para chegares lá abaixo e tirares dali uma música à maneira. Os beats em 93, 94, 95 eram grandes sons, os grupos tinham mais identidade e traziam algo para a arte, para o hip hop. Hoje em dia é uma indústria que vive muito à pala dos produtores. O produtor hoje tem um papel tão relevante ou maior que o próprio rapper. Há pessoas que compram um disco por ser produzido por Neptunes e sem conhecer o rapper. O pior é que os Neptunes produzem 10 grupos que estão a sair na altura e acabam por monopolizar a variedade de sons. Disse Neptunes, mas podia ter dito outra coisa qualquer. Depois de um Beats Vol. 1: Amor, é de esperar um segundo volume de temas instrumentais? Já tenho aqui muita coisa. O mais difícil é montar o puzzle, contar a história. É preciso tomar decisões, haver critérios.
SAM THE KID: A arte superior de um contador de histórias
É sabido como o storytelling é um elemento co-natural ao hip hop, circunstância que pode ser testemunhada pelo facto de inúmeros rappers (e já nem vamos aos proto-rappers, dos The Last Poets a Gil Scott-Heron) a ele se dedicarem desde que o género deu os primeiros passos, bastando, para isso, pensarmos em gente, e para abreviar, como Slick Rick (“Children’s Story”), Notorious B.I.G. (“I Got a Story to Tell”), Common (“I Used To Love Her”) ou Gang Starr (“Soliloquy of Chaos”). Com o passar do tempo, a arte e o engenho de contar, de forma encadeada e metódica, determinada história ou episódio através de um vocabulário rimado em batidas sincopadas ganhou contornos de tradição, não havendo, hoje em dia, praticamente um grande rapper que não tenha no seu repertório pelo menos um exemplar. Se da música não se pode dizer, com tanta segurança como alguns dizem do cinema (embora redutoramente), que ela é um meio de contar histórias, a verdade é que, não sendo apenas isso, também o é. E se, na música em geral, o “contar histórias” é algo transversal (desde logo nos blues, cuja influência no hip hop ainda está por avaliar, focados que os estudiosos têm estado, até esta parte, na soul e no funk), no hip-hop, o storytelling tornou-se um campeonato à parte, quase um género, servindo mesmo para se catalogar alguns rappers como sendo “de” storytelling.
Trata-se, para o intérprete, de um exercício intelectual e técnico exigente, uma vez que implica uma engenharia complexa, de conjugação de vários elementos e recursos, isto para além da habitualmente necessária destreza no manejar das palavras, a escolha do termo ou expressão certa para sugerir algo de uma determinada forma ou a capacidade de alternar entre um léxico ora mais erudito, ora mais popular (e brejeiro, até). Complementarmente, então, exige-se a criação de uma história cativante para o ouvinte e a qual o mantenha permanentemente interessado e curioso em acompanhar o desenrolar dos acontecimentos; a habilidade para o fazer visualizar aquilo que só está a ouvir (como que uma extrapolação dos sentidos, audição e visão); a capacidade, enfim, de aliar um discurso mais realista (no sentido da descrição de um espaço-tempo), focado no particular, com um discurso mais abstracto e de alcance universal. Afinal de contas, as grandes histórias são sempre aquelas que, no seu particularismo, fazem ressoar as vidas e as questões de todos nós. Bigger than life: é assim no cinema e não o deixa de ser também na música. No hip hop português (no espectro mais lato da música portuguesa, há uma enorme tradição de cantautores férteis neste campo, desde Sérgio Godinho a Fausto, de Zeca Afonso a Jorge Palma, até gente mais recente, como B Fachada ou Nuno Prata), dir-se-ia que os Dealema (de quem talvez o expoente máximo seja a velhinha “O Começo”), Pacman (“O Remorso”, dos Da Weasel, é a canção-ressaca da chegada da sida a Portugal), Boss AC (os seus dois primeiros álbuns são riquíssimos no género), Valete (“Roleta Russa” é incontornável para meio Portugal nascido algures em 80), Sam The Kid (“O Recado”, alegoria brilhante sobre a “crise de valores” de que tanto se fala, é justamente uma canção que faz a tal ponte entre o particular e o universal) e, mais recentemente, Nerve (conferir “O Serviço”, com Blasph, canção noir que merecia um videoclipe protagonizado por um James Cagney), são alguns dos melhores praticantes que temos por cá (a lista não pretende ser exaustiva).
“Na obra de Sam The Kid (STK), porém, o storytelling atinge níveis superlativos, em virtude da carga introspectiva presente, a que se aliam agudas descrições sensoriais e de tempo-espaço, num hiper-realismo altamente estimulante para os (cinco) sentidos do ouvinte.” Na obra de Sam The Kid (STK), porém, o storytelling atinge níveis superlativos, em virtude da carga introspectiva presente, a que se aliam agudas descrições sensoriais e de tempo-espaço, num hiper-realismo altamente estimulante para os (cinco) sentidos do ouvinte. De facto, é impressionante o grau de minúcia, quase neurótico, com que visualizamos, cheiramos ou tocamos – e saboreamos, até, como acontece com as bebidas que o narrador vai bebendo – o “quadro” que nos é descrito, como se efectivamente estivéssemos naquele local, envolvidos pelo seu ambiente, a presenciar as pessoas que o ocupam, as suas vozes e gestos, as luzes, as cores, o ruído, o silêncio, a temperatura (literal e metaforicamente falando). Estamos totalmente a par de como esta ou aquela “personagem”, ou o próprio narrador, se sente: o que lhe vai na cabeça, se está confortável, sentado ou em movimento, ofegante ou com a respiração tranquila, sentindo frio ou calor, o modo como interage com as pessoas em seu redor, o efeito das substâncias que lhe correm no sangue. Daí que não seja estranho aludir, a este propósito, a uma certa dimensão cinematográfica, na medida em que a voz do narrador funciona como a câmara – uma câmara ao ombro, oscilante, quase documental, ao estilo de uns Jean-Pierre e Luc Dardenne, os manos mais importantes do cinema belga contemporâneo – que serpenteia pelo local em que a acção se desenrola.
Não é um storytelling, digamos, convencional, em que ouvimos uma história bem contada do princípio ao fim. Mais do que um fio narrativo, estão constantemente a ser introduzidos descrições de movimento, tempo e espaço, acompanhadas de apontamentos introspectivos, ora irónicos e humorísticos, ora graves e carregados de um sentido moral. A reflexão subjacente a esses apontamentos – e o tempo, a lentidão lhe está associada – contrasta, pois, com a aceleração ou “imediatividade” do que se está a passar, dessa forma quebrando-se a distância entre narrador e ouvinte, no sentido em que o primeiro, quando os faz, deixa de estar imerso no ambiente descrito e passa a ser um sujeito consciente e reflexivo – um espectador (cinema, uma vez mais) – como nós, ouvintes. Ele é narrador e voyeur, e a sua narração a “janela indiscreta” hitchcockiana que permite ao ouvinte, como a James Stewart em Rear Window (A Janela Indiscreta, 1954), observar, a par e passo, os movimentos (e os segredos) do narrador e dos terceiros que com ele se cruzam. Mas como estar absolutamente seguro da fiabilidade do seu relato quando ele próprio, como iremos ver, já está com a percepção alterada, nomeadamente, pelas bebidas que tomou?… O que acontece frequentemente no storytelling mais tradicional é o facto de a história, por melhor que seja, ser à partida perspectivada pelo rapper já como isso mesmo: uma história passada, um acontecimento mais ou menos remoto que vai ser relatado a alguém. O ponto de partida de quem a constrói é, assim, o proverbial “Era uma vez…”. “It Was A Good Day” é a história cantada por Ice Cube e que, ainda antes de a ouvirmos, já nos remete para o passado (“was”), para algo já vivido, algo no qual, por isso, nem o narrador nem o ouvinte vão poder participar activamente. Ora, isso é algo que não acontece no storytelling de STK, que é, neste sentido, muito menos previsível, já que a narrativa é co-contemporânea do momento em que o ouvinte a está a escutar, como se os passos do narrador estivessem a ser acompanhado in loco, naquele preciso momento, pelo ouvinte, como se este estivesse nas suas costas ou mesmo, para utilizar a expressão dos americanos, in the shoes do narrador. É, assim, um storytelling revestido de uma forte actualidade, de tal modo que momentos há em que nos fundimos mesmo com a personagem central (o narrador) e passamos a ver o exterior através dos seus próprios olhos.