TRABALHO AVALIATIVO – CONTOS NEGREIROS – MARCELINO FREIRE ANELISE XAVIER MIGUEL O conto é uma narrativa curta, e uma das formas contemporâneas que substituiu a estrutura clássica e rígida, por textos mais curtos, difundidos e aceitos. Há inúmeros novos contistas e a partir do gênero conto surgiram novos subgêneros cujas as normas de formação estão mais ligadas à sua extensão que, propriamente, a uma mudança estrutural - como os chamados minicontos e microcontos. Bem longe de ser apenas um texto em prosa literária mais curto, o conto tem o objetivo de conduzir o leitor para além das linhas, ele tem de ser capaz de captar o seu tempo de enxergá-lo. Como podemos observar no conto “Contos negreiros”, de Marcelino Freire: O meu medo é entrar na faculdade e tirar zero eu que nunca fui bom de matemática fraco no inglês eu que nunca gostei de química geografia e português o que que eu faço agora hein mãe não sei. O meu medo é o preconceito e o professor ficar me perguntando o tempo inteiro por que eu não passei por que eu não passei por que eu não passei por que fiquei olhando aquela loira gostosa o que é que eu faço se ela me der bola hein mãe não sei. O meu medo é a loira gostosa ficar grávida e eu não sei como a senhora vai receber a loira gostosa lá em casa se a senhora disse um dia que eu devia olhar bem para minha cara antes de chegar aqui com uma namorada hein mãe não sei. O meu medo também é do pai da loira gostosa e da mãe da loira gostosa e do irmão da loira gostosa no dia em que a loira gostosa me apresentar para a família como o homem da sua vida será que é verdade que isso é felicidade hein mãe não sei. O meu medo é a situação piorar e eu não conseguir arranjar emprego nem de faxineiro nem de porteiro nem de ajudante de pedreiro e o pessoal dizer que o governo já fez o que pôde já pôde o que fez já deu a sua cota de participação hein mãe não sei. O meu medo é que mesmo com diploma debaixo do braço andando por aí desiludido e desempregado o policial me olhe de cara feia e eu acabe fazendo uma burrice sei lá uma besteira será que eu vou ter direito a uma cela especial hein mãe não sei. (Canto XIV – Curso superior, p. 97,98).
As características do conto contemporâneo brasileiro é a presentificação, o imediatismo, ou seja, a urgência, a preocupação e a ânsia dos autores brasileiros em representar as grandes cidades, além das contradições e as preocupações do contexto histórico. Segundo Schollhammer existe uma necessidade de o escritor relacionar-se com o presente, e de mostrar o sentido trágico da realidade, assim, como expor os problemas sociais. O autor entende que os escritores têm pressa de
expressar o atual, ou seja, “a sensação, que atravessa alguns escritores, de ser anacrônico em relação ao presente” (2009, p.11). Situações bem visíveis no conto “Cantos negreiros” de Marcelino Freire: Violência é acabarem com a nossa esperança de chegar lá no barraco e beijar as crianças e ligar a televisão e ver aquela mesma discussão ladrão que rouba ladrão a aprovação do mínimo ficou para a próxima semana. Violência é a gente ficar com a mão levantada cabeça baixa em frente à multidão e depois entrar no camburão roxo de humilhação e pancada e chegar na delegacia e o cara puxar a nossa ficha corrida e dizer que vai acabar outra vez com a nossa vida. (Canto III - Esquece, p. 32).
Ainda de acordo com Schollhammer, é estabelecida uma relação entre a violência e as manifestações culturais e artísticas no Brasil, e assim, expõe um histórico de violência na literatura brasileira desde a “crueza humana” apresentada por Nelson Rodrigues, passando por Dalton Trevisan e chegando à produção de Rubem Fonseca nos anos 60. O “brutalismo” também está presente na obra de Freire, em que descreve e recria a violência social e doméstica da mulher, a mulher que deixou a prostituição para casar, porém é refém do homem, que a trata como objeto, e assim, percebe que sua vida é pior: U, hum. Agora ter que aguentar esse bebo belzebu. O que é que ele me dá? Bolacha na desmancha. Porradela na canela. Eu era mais feliz antes. Quando o avião estrangeiro chegava e a gente rodava o aeroporto. Na boca quente da praia. Pelo menos, um príncipe me encantava. Naquele feitiço de sonho. De ir conhecer outro lugar, se encher de ouro. Comprar aliança. U, hum. (Canto V – Vaniclélia, p. 41).
Schollhammer declara que nos anos seguintes surgem as vozes dos excluídos socialmente, por exemplo, os relatos carcerários, e uma tendência aos filmes como: Central do Brasil, Carandiru, Cidade de Deus, Tropa de Elite entre outros. O autor refere que “a representação da violência manifesta uma tentativa viva na cultura brasileira” (2009, p. 3), situações perceptíveis na obra “Cantos negreiros”: Não sei. As coisas se complicaram depois que meu pai morreu. Depois que incendiaram o barracão. Bateram na sua mãe. Corri lá para ver se você escapou do fogo.
Ali, sim, você ganhou uma cara dura, de demônio. Saindo do fogo e chorando. Chorando muito. Alguma coisa fumaçando no peito, sei lá. Eu entendo. Eu só não entendo a gente perdendo tempo com essa intriga. Daqui a pouco o pessoal chega, Nando. Porra, há quanto tempo! Não era bem assim que eu queria te encontrar. Os dois aqui, deitados, como naquele dia. Logo depois do roubo da padaria. A gente ficou em cima da laje, de barriga cheia, imaginando como seria a vida em outros planetas. Lembra? Se existiam favelas em outros planetas. Se era legal morar na Lua. Porra, Nando, não complica. Parece criança. Já falei para você esquecer, não adianta se arrastar na grama. Já perdemos muito sangue, Nando. Para que apontar essa arma para minha cabeça, amigo? (Canto XII – Policia e ladrão).
A obra “Contos Negreiros”, do escritor Marcelino Freire foi publicada em 2005, ela reúne 16 contos e ganhou o prêmio Jabuti, na categoria contos, em 2006. O tema e o enredo do livro expõem os personagens em situações de risco, o autor propõe uma perspectiva histórica aos problemas sociais, por meio de links com a escravidão e o processo de colonização do país. O texto apresenta uma distinção entre a urgência da denúncia e um humor que se apoia corrosivamente, com inversão de perspectivas, discursos orais e rimados. Marcelino Freire nasceu em Sertânia, interior de Pernambuco, em 1967. É um dos principais nomes da geração consolidada através das antologias da Geração 90. Entre seus livros, se destacam Angu de Sangue (2000), e os Nossos ossos (2013). Marcelino Freire fez um diálogo direto com a obra “Návios negreiros”, de Castro Alves, ambos escrevem, denunciam e reivindicam questões escravistas, racistas de humilhação e desumanização. O autor escreve sua obra mostrando a realidade atual dos trabalhadores negros, em que expõe a situação dos negros, eles possuem a mão de obra barata e os trabalhos subalternos, mas também podemos observar que eles não perdem sua identidade quando o autor dá nome africanos, ou de entidade do candomblé aos seus personagens. Enquanto Zumbi trabalha cortando cana na zona da mata pernambucana Olorô-Quê vende carne de segunda a segunda ninguém vive aqui com a bunda preta pra cima tá me ouvindo bem? [...] Odé trabalha de segurança [...] [...] Olorum trabalha como cobrador [...] [...] Quelé limpa fossa de banheiro [...]. (Contos Negreiros, 2005, p. 19).
Além disso a obra de Marcelino Freire é mostra que algumas pessoas ainda vivem à margem. Desta forma, o livro “Contos Negreiros” faz-se diferente, pois o
autor relata problemas sociais, e assim, deixam de ser fatos isolados de um mundo capitalista e ganham uma perspectiva histórica por meio das referências à colonização portuguesa e sobre a força da escravidão. E, o que era para ser visto de maneira evolutiva, revelou-se incompetente, pois a sociedade não superou o abismo que sempre existiu, e a divisão entre empregados e patrões, pobres e ricos, mansões e barracos ainda existe. A seguir no “Conto XI – Totonha”, da obra “Contos Negreiros”, de Marcelino Freire podemos observar claramente um drama social, em que Totonha é a narradora e protagonista da história, juntamente com uma professora, pois a narrativa ocorre em forma de diálogo na sala de aula, em uma escola do Vale do “Jequitinhonha”: “No papel, sou menos ninguém, no Vale do Jequetinhonha. Pelo menos aqui todo mundo me conhece. Grita apelida. Vem me chamar de Totonha”. O texto narra um drama social de maneira irônica e poética, expõe a vida de uma mulher adulta e analfabeta, que não quer aprender a ler: “Não preciso ler, moça. A mocinha que aprenda. O prefeito que aprenda”. “Totonha” não vê necessidade, porém sua fala se mostra politizada, há uma contradição em sua recusa a aprender a ler, ao mesmo tempo que expõe de maneira cínica um sistema social, em que as pessoas são ignoradas: “O governo me dê dinheiro da feira. O dente o presidente. O vale-doce e o vale-linguiça. Quero é ser bem ignorante”, ela faz ironia com os “benefícios” do governo. Entendemos visivelmente a existência de uma denúncia, por que “Totonha ‘ainda’ não aprendeu a ler”. A personagem mostra-se resistente a aprender a ler, e quer permanecer como está, para não destoar de seus pares, e usa da troca do nome dos programas do governo para mostrar uma desvalorização. E assim, uma reflexão: o nome da personagem – Tô-tonha – ‘estou atônita’ – a personagem quer ficar em paz, desacredita dos programas do governo e revela a falência do sistema político. Enquanto, a personagem secundária, a professora, para quem é dirigido o diálogo-protesto, não tem voz no texto. Por fim, compreendemos presença da personagem por meio da fala de Totonha: “Dona professora” [...] “moça”. Embora não fale é o elemento provocador da fala-protesto de Totonha, e assim, percebemos claramente a intenção do autor, que é dar voz a quem não tem em nossa sociedade.
Já nos contos “Canto III – Esquece” e “Canto VIII – Coração” o autor expõe temas distintos, um apresenta uma violência urbana, enquanto, o outro conto apresenta questões homossexuais. O conto “Esquece” define o que é violência aos olhos de um sujeito que sofre a exclusão social, e que representa tantos outros. O texto é marcado pela falta de pontuação, o conto é um desabafo diante das notícias frequentes sobre a violência urbana, um tema noticiado intensamente nos jornais e na televisão, através da lente das classes média e alta “Violência é ele ficar assustado porque a gente é negro [...], Violência é o carrão parar em cima do pé da gente e fechar a janela de vidro fumê e a gente nem ter a chance de ver a cara do palhaço [...]”. Nesse conto, a vítima está do outro lado, quase sempre esquecida: “Violência é a gente receber tapa na cara e na bunda quando socam a gente naquela cela imunda cheia de gente e mais gente e mais gente e mais gente pensando como seria bom ter um carrão do ano e aquele relógio rolex mas isso fica para depois uma outra hora. Esquece”.
Enfim, em cada conto conhecemos histórias distintas e de personagens que em algum momento possuem algumas características em comum, que as conectam, e que também as expelem: são
socialmente
marginalizadas
pela
cor, pela
pobreza, pela etnia ou pela orientação sexual. Assim os narradores de Marcelino Freire, com sua prosa particular, cheia de palavrões, inversões de narrativa feitas bem ao gosto do próprio pensamento vão, no decorrer da sua “conversa” com o leitor, apresentando-se como os tipos dos quais a sociedade não quer sequer saber o nome, como o homossexual, muito perceptível no “Canto VIII – Coração”, “Bicha devia nascer sem coração. É, devia nascer. Oca. É, feito uma porta. Ai, ai. Não sei se quero chá ou café. Não sei. Meus nervos à flor de algodão”, ou a prostituta do “Conto V – Vanicléia” ambos os contos relatam desejos simples de felicidade, além de algumas desventuras: “A pior coisa, amiga, é uma trepada quando fica engasgada. Vira uma lembrança agoniada. Uh!”. CORRÊA Thiago. I Contos Negreiros, Marcelino Freire. www.vacatussa.com/contos-negreirosmarcelino-freire. Acesso em 03/10/2016, às 00:07. FREIRE, Marcelino. Contos Negreiros. Editora Record. 2005.
SCHOLLHAMMER, E. K. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009a.