Água, terra, fogo e ar.

Page 1

1

Aluna: Angela Ferrara

Titulo: Água, terra, fogo e ar: uma poética da imaginação material Trabalho de conclusão do curso de pósgraduação apresentado ao Centro Universitário Senac – Santa Cecília como exigência parcial para a obtenção do título de especialista em Design de Interiores.

Orientador: Prof. Dr. Luís Antônio Jorge

Conclusão em sessão pública realizada em

05/06/2006


2

INTRODUÇÂO Vamos examinar a simbologia dos elementos estéticos água, terra, fogo e ar.

Salientaremos o campo imaginário na intenção de transcender o significado das imagens. Reavivaremos o poder de imaginar o ambiente através dos elementos de forma poética e metafórica. A imagem lendária do psiquismo humano pretenderá ser sensibilizada pelos símbolos. Entraremos na intimidade de cada elemento, na matéria onde descobriremos nossa própria imagem, uma espécie de fusão entre mente e espaço, assim os objetos pertencentes a ele, personificarão as relações entre os indivíduos. Familiarizando-nos com as propriedades mais evidentes dos objetos externos, gradualmente, acumulamos conhecimentos sobre a natureza da água, da terra, do fogo e do ar. Desta maneira trataremos essas imagens como identidades materiais que envolvem o campo imaginário. Ao aprofundarmos nos domínios dos quatro elementos, seja na forma codificada, seja em sua forma dinâmica dos sonhos, isto é visões, procuraremos delimitar o campo da ação simbólica. O senso estético derivado dos quatro elementos básicos poderá construir uma dialética baseada em nossa ancestralidade, onde a atração do mundo simbólico se traduz em múltiplas expressões artísticas e arquitetônicas. Dedicamos um capítulo aos quatro elementos com uma visão coletiva e emblemática para conduzir o pensamento nos próximos capítulos referentes aos quatro humores filosóficos e seqüencialmente a cada um dos elementos. Assim, buscaremos compreender a verdadeira sintaxe material baseada numa crença no aperfeiçoamento. Com o decorrer desta monografia pretendemos capturar imagens cuja vida metafórica seja fugaz, as quais mesmo assim insistam em sua existência nas obras de arte, o que nas palavras de Bachelard poderiam ser imagens que “cantam a realidade”. Nessa condição seremos acompanhados pelo pensamento de Bachelard, buscando a essência da femenologia da imaginação material, que seja suficiente para transcender a imagem em todos os significados. Valorizando os devaneios existentes nos reinos materiais, dentro da sintetização de suas imagens.


3

Para melhor abordar essa analogia, procuramos abordar diversas imagens existentes nas pinturas e esculturas, que de maneira contemplativa às usufruiremos associadas aos elementos. E também nos estender à arquitetura e ao cinema, buscando novas formas da contemplação da paisagem. Queremos encontrar a essência de cada elemento em sua história, buscar na individualidade elemental o caráter de imagem material, que sintoniza os nossos sonhos com o universo. Os espaços naturais ou edificados guardam um mistério contínuo de um reino intermediário, onde a ação onírica está sempre presente, impregnada pela simbologia dos quatro elementos, que de certa forma podem nos transportar para além de uma materialidade visível que interioriza suas funções oníricas, que mediante a busca da unidade em todas as coisas, alimenta-nos de visões e sensações. Se em tudo há ou pode haver uma ação simbólica entre o ser e o objeto, em uma sucessiva conjunção de analogias, sem que o simbólico se contraponha com o existencial. Nas representações dos quatro elementos resgataremos o caráter espiritual e contemplativo presente em diversas culturas. Tentaremos restituir cada elemento ao pensamento de Bachelard, buscando profundidade e fidelidade poética. Acreditamos que esse contato com cada um dos elementos assuma uma potencialidade discursiva que pretenda compreender seu valor estético dentro da imaginação material. A linguagem da estética simbólica envolve o entendimento do universo do indivíduo, de modo que componha uma visão de natureza individual, na qual faz parte de um todo, que busca externamente estabelecer contato com o repertório de imagens que cada um guarda dentro de si, assim ocorre o contato, imagens e sensações subjetivas se comunicam entre si, dentro do pensamento. As imagens conscientes e os devaneios estão sob a dependência dos quatro elementos. Através de uma analogia das emoções estéticas vamos divagar nos estudos dos devaneios materiais, que antecedem à contemplação. Sonha-se antes de contemplar. Antes de ser um espetáculo consciente, toda paisagem é uma experiência onírica. A harmonia preestabelecida entre ambiente e imaginação desperta a nossa memória juntamente com os nossos sentidos latentes, dentro de uma dinâmica que liga o efeito e a causa. Assim tentaremos traçar caminhos estéticos através das imagens em uma continuidade de significados. Esperamos que a percepção em relação aos quatro elementos seja despertada no decorrer da leitura desta monografia. E cada elemento vivificado em sua imagem produza outras significações dentro do campo imaginário.


4

OS QUATRO ELEMENTOS

O tecido simbólico engloba o espaço, como um universo particular e profundo, arraigado de crenças. O homem recebe do ambiente sua adequada nutrição e alimentação, tanto pela extensão como pela segurança. Todos os elementos prodigalizam certezas ambivalentes, confidências, secretas e mostram imagens resplandecentes, que acreditando serem leais a uma imagem favorita, estão, na verdade, sendo fiéis a um sentimento humano arcaico, a uma realidade orgânica primordial, a um temperamento onírico fundamental. Segundo BACHELARD (2001): “A alegria terrestre é riqueza e peso; a aquática é a brandura e repouso; a ígnea é o desejo de amor; a aérea é a liberdade de movimento”. 1

Desde o início de nossa cultura os homens encontram um significado mítico no espaço em que vivem, buscando uma representação subjetiva em um mundo idealmente perfeito. Homens e ambientes estão estritamente ligados pela memória e ação simbólica dos ritos, que são vivenciados no tempo e no espaço. A adoração aos deuses se materializava nas artes. Buscando uma arte arraigada em tradições mitológicas, encontramos na Suméria, uma cultura ancestral, que cultivava a adoração aos quatro elementos como deuses. A primordialidade artística revela características de qualidade estética que ultrapassam o campo simbólico. As divindades mais importantes correspondiam aos elementos (fig. 1): Anu, deus do céu correspondia ao ar; Enlil, deus da tempestade correspondia ao fogo; Ninhursaga, deus da terra; e Enki, deu da água. Essas divindades esculpidas em pedra adornavam os antigos templos assírios. 1

BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos. Martins Fontes. Tradução de Antonio de Pádua Danesi, São Paulo. 2 ed. 2001. p.136.


5

1 – Deus Anu em baixo-relevo, (722-705 A.C.), Museu do Irac, Bagdah. www.ezida.com/museer.htm, consulta em 22 de março de 2006.

No período pré-socrático os quatro elementos foram fontes inesgotáveis para os devaneios criadores, as fantasias poéticas dos grandes artistas. Permanecendo nas essências materiais recorrentes, substâncias arquetípicas que alimentam a novidade interminável da arte. (EMPÉDOCLES, apud KIRK, RAVEN, 1982):

“Tessara gar panton rizomata proton akoue Zeus argues Hera te jeresbios ed Aidoneus Nestis q e dakriois teggei kroynoma broteion.”

2

2

KIRK, G.S. e RAVEN, J.E. Os Filósofos Pré-Socráticos, tradução de Calouste Gulbenkian Lisboa, 1982. p.335. “As quatro raízes de todas as coisas ouve primeiro: Zeus brilhante, Hera portadora da vida, Edoneu e Néstis, que com suas lágrimas umedece a fonte dos mortais”.


6

De acordo com Empédocles, Zeus corresponde ao fogo, Hera ao ar, Edoneu à terra e Néstis à água. Estes quatro elementos estariam sujeitos a mudanças de acordo com sua alternância, seja pela força agregadora do amor (Philias) ou separados pela força desagregadora da discórdia (Neikous). Segundo CHAUÍ (2003): “a natureza, ‘único animal’ cujas partes estão vinculadas pela alma do mundo e pelo espírito do mundo, é regida pelo amor, Eros que une os semelhantes e produz a atração e repulsão dos contrários”. 3 Existe uma atração elemental, de maneira natural os elementos se atraem ou se repelem. Dessa forma encontramos o masculino e o feminino, que segue a mesma linha de pensamento da filosofia chinesa Yin (água e terra) e Yang (fogo e ar), o fogo se encanta com o ar que faz arder suas chamas, e a água fecunda a terra em uma deliciosa germinação de seres vegetais. Constituindo a idéia de combinação dos elementos, o universo se constitui da variedade material, e das alternâncias das composições. Segundo BACHELARD (2002): “A imaginação material, a imaginação dos quatro elementos, ainda que favoreça um elemento, gosta de jogar com imagens de combinações. Quer que seu elemento favorito impregne em tudo, quer que ele seja a substância de todo o mundo. Mas, apesar dessa unidade fundamental, a imaginação material quer guardar a variedade do universo. A noção de combinação serve para esse fim. A imaginação formal tem necessidade da idéia de composição. A imaginação material tem necessidade da idéia de combinação”. 4

Os elementos buscam o significado do arquétipo quaternário como estrutura da criação, presente nos quatro pontos cardeais, nas quatro estações do ano, nas quatro fases da Lua, nas quatro cores primárias. O homem, submetido aos processos da natureza, sofre os efeitos das quatro fases da vida: infância, juventude, maturidade e velhice. De acordo com o gráfico abaixo (fig. 2), os elementos combinam entre si. O vigor da filosofia Hipócrates a qual delimitava os quatro humores fundamentais, tenta sintetizar com a teoria aristotélica dos quatro elementos e das quatro qualidades fundamentais da matéria: o calor, o frio, a secura, a umidade.

3

CHAUI, Marilena. O olhar in Janela da alma, espelho do mundo, Companhia Das Letras, São Paulo,10 ed. 2003. p.52. 4 BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos, tradução de Antonio de Pádua Danesi. Martins Fontes. São Paulo. 3 ed., 2002. p. 97.


7

FOGO

SECURA UMIDADE

TERRA

CALOR

AR

VERÃO

PRIMAVERA

APOGEU

INÍCIO

FLEUMÁTICO

SANGUÍNEO

OUTONO

INVERNO

DECLÍNIO

FINAL

COLÉRICO

MELANCÓLICO

FRIEZA

ÁGUA

2 - Gráfico apresentado no programa Café Filosófico em 06 de novembro de 2005, sob a curadoria e apresentação do filósofo Renato Janine Ribeiro.

Assim os elementos se personificam nos quatro estados da matéria. Os quatro humores se enquadram claramente na concepção filosófica da estrutura do universo, numa correspondência com os quatro elementos (terra, ar, fogo e água), com as quatro qualidades (frio, quente, seco e úmido) e com as quatro estações do ano (inverno, primavera, verão e outono). Essa efemeridade das quatro fases analógicas pode ser percebida também na paisagem que se transforma a cada estação, mudando a nossas necessidades de habitar. Na analogia da essência e da matéria, a imaginação material liga-se aos quatro humores filosóficos. Como princípio da antiga filosofia grega os quatro elementos eram relacionados com as quatro faculdades do homem: moral com o fogo, estética e alma com a água, intelectual com o ar e física com a terra, que se tornavam assim as marcas dos quatro humores filosóficos:


8

HUMOR FLEUMÁTICO

3 BOTTICELLI, Sandro, Detalhe do Nascita di Venere (1448) - Galleria degli Uffizi, Florença, Itália. Têmpera sobre tela, mede 1,72.5 x 2,78.5 m. - www.uffizi.firenze.it, consulta em 22 de março de 2006.


9

Associada a água à expressão estética fleumática representa a profundidade, as paixões compulsivas e seduções irresistíveis, até a totalidade do amor universal. Encontramos no mito “O nascimento de Vênus” (fig. 3), representado pelo Artista Florentino Sandro Botticelli (1445-1510), que adere à exuberância mítica de uma misteriosa concha, onde o nascimento é expressado delicadamente dentro de um sentimento fleumático. A paisagem da concha está em contato com a unidade de toda a criação artística. A imagem de Vênus se entrega prazerosamente à vida interior, como uma perola que brilha internamente, na vida marinha. Pela própria natureza da concha, o espaço contemplativo é adornado de sentimentos, a vida uterina, na terna dimensão onde prevalecem as memórias da água inerte, e vai mais além dentro do simbolismo da pérola, que habita escondida no interior da concha, como a alma habita o corpo. Para BACHELARD (1970): “Rêver la coquille est d'habiter un logement fantastique”. 5 As formas ondulantes de Vênus repetem os ciclos das águas, na superfície clara de sua pele se sente a brisa marinha, como o sopro de um anjo. A volúpia se adere a um cenário inerte. A naturalidade dos acontecimentos exprime uma cena sensual que dentro do universo simbólico retrata uma sexualidade enrustida entre os cabelos, que fluem sob o corpo de Vênus, cobrindo sua feminilidade, que se fecha em seu próprio corpo. A imagem virginal adere a uma sexualidade prometedora pela plena exposição do corpo, que resplandece dos antigos mitos gregos trazendo para tela de Botticelli os mais profundos mistérios do arquétipo feminino. A bela Vênus emerge do mar para entregar ao mundo toda a beleza divina, expressa o modo de como os antigos enxergavam o mistério das águas míticas. Segundo GOMBRICH (1978): “Vênus emergiu do mar numa concha que é impelida para praia pelos alados deuses eólicos, em meio a uma chuva de rosas. Quando está prestes a pisar em terra, uma das ninfas recebe-a com um manto de púrpura”. 6 A harmonia do conjunto dessa obra aderida ao contorno gracioso das formas femininas intensifica a delicadeza e ternura das imagens. Vênus habita a concha, como um ser que tivesse nascido dela, uma perola humana. 5

BACHELARD, Gaston, Le droit de rever. PUF, Paris, 1970. p. 14. “Sonhar a concha é habitar a moradia fantástica”. 6 GOMBRICH. Ernest Hans. A história da arte. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 1 ed. 1978. p.199.


10

HUMOR MELANCÓLICO

4 DÜRER, Albrecht – Melancolia -1514. Gravura de 239x188mm: Oeuvre gravé : les musées de la ville de Paris, éditions dês Musées du Petit Palais, 1996 . p.549.


11

A terra se relaciona com o humor melancólico, na gravura renascentista de Dürer (fig. 4), encontramos as determinantes terrestres, que se enquadram esteticamente na descrição deste humor, que possui natureza delicada e apurada, ao afirmar sua vida mental se retrai na vida concreta. Sobrevive na profundidade de um mundo seletivo e complexo. Afastado dos instintos se fecha nos recursos intelectuais buscando refúgio na abstração de seu interior. O anjo de Dürer participa subjetivamente da paisagem, vive em um universo sombrio. Dentro das representações cromáticas do claro e do escuro da gravura, a melancolia se anuncia no fundo da cena trazendo luz. O anjo, este sintonizado na imagem da vida psíquica não enxerga a luz, apenas observa as sombras de seu próprio inconsciente. O olhar perdido e ausente nega a realidade, um ser que vira as costas para o mundo, para ficar diante de Deus. Segundo ARGAN (2003): “È a melancolia, o sentido de vazio que sucede à ação: portanto, não um sentimento definido, mais um estado de espírito, um aspirar a algo de vago sem saber se é a espera do futuro ou a nostalgia do passado. Inutilidade da ação, da historia; e melancólica efusão do sentimento na natureza sem história, onde tudo acontece sem que uma vontade decida. [...] No contorno que recorta as zonas de sombra e sublinha as zonas de luz contra o fundo do céu. Não há pois, que o mundo não compreende porque a sua razão está além do horizonte mundano, do espaço natural como do tempo histórico”.

7

Questões como estas impregnam a gravura de Dürer de significados, e demonstra o quanto complexo é o ser corporalmente terrestre dentro da abstração sua própria paisagem mental. A solidez da composição aderida à eterna procura de si mesmo, o anjo abandonado à inclemência do caos, nega sua própria existência. Atrás dele uma construção esconde-o da visão iluminada, fazendo-o viver em um mundo de sombras. Os vários objetos existentes na gravura delimitam o campo material em contraste com o mundo espiritual, estruturando um mundo multifacetado, onde o material repete as imagens do espiritual, na harmonia perfeita na representação de dois planos. 7

ARGAN, G. C. História da arte italiana – De Giotto a Leonardo - Cosac & Naify, São Paulo, 2003, volume II, p. 260.


12

HUMOR COLÉRICO

5 – A construção da cabana primitiva, segundo Vitruvius Teutsch. - RYKWERT, Joseph. A casa de adão no paraíso. Editora Perspectiva. São Paulo. 2003. p. 115.


13

O fogo relacionado ao humor colérico, à personalidade dinâmica empenhada no domínio do mundo, à paixão desenfreada, à ambição e a afirmação. Atendendo a uma necessidade imperiosa dos impulsos, na ostentação através das guerras, domínio e poder empenhados na conquista material. Na gravura de Vitrúvio (fig. 5), o homem primitivo aderido ao ímpeto colérico, trabalha incansavelmente na concretização de seus desejos materiais. Surgem as primeiras cabanas dando ínicio ao processo de apropriação do espaço e do mundo. O processo colérico de dominação do ambiente foi o impulso que fez o homem construir a primeira cabana. A cólera se refere a uma energia universal entusiástica, onde a luz irradiante colore o mundo, que de certa maneira flui espontaneamente na dinâmica da paisagem. A liberdade colérica se expressa naturalmente na apropriação por territórios e no ideal da casa sonhada. (RIKWERT, 2003 apud LAUGIER, 1980): “[...] Uma caverna surge a sua frente: ele escorrega para dentro, sentindo-se protegido da chuva e encantado com a sua descoberta. Mas, novas inconveniências tornam essa moradia do mesmo modo desagradável [...] Alguns galhos quebrados da floresta serão o material para o seu propósito. Ele escolhe quatro dos mais fortes, erguendo-os perpendicularmente ao chão formando um quadrado. Sobre esses quatro, ele apóia quatro outros, dispostos de través e, acima desses, outros ainda, inclinados para ambos os lados e que se encontram num ponto no centro. Este tipo de telhado é coberto por folhas espessas o suficiente para protegê-lo do sol e da chuva: e assim o homem se encontra alojado”. 8

Essa insatisfação colérica desbravadora levou o homem a obter muitas conquistas em seu meio ambiente. O ser colérico relacionado ao outono se protegeu com um teto de folhagem densa, cujo princípio da construção de sua casa se baseou nos quatro pilares, nas quatro forças primordiais, como as do nosso tema em questão. Em uma analogia entre corpo e moradia, encontramos o impulso que fez com que o humor colérico inclinado às necessidades corporais, buscasse a perfeição dentro de seu habitat natural. 8

RYKWERT, Joseph. A casa de adão no paraíso. Editora Perspectiva. São Paulo. 2003. p. 40.


14

HUMOR SANGUINEO

6 – SEGANTINI, Giovanni - L’amore alla fonte della vita. (1896) Óleo sobre tela, cm 70x98. Milão, Civica galleria d'Arte Moderna. www.segantini.it/quadri/amoreallafonte.htm, consulta em 22 de março de 2006.

O ar se relaciona ao humor sanguíneo, a energia vital dos aspectos mais intelectuais da existência. Uma natureza exuberante que desabrocha no espaço, cujo desejo de viver obedece aos instintos e desejos sensoriais.


15

O humor sanguíneo toma forma estética na pintura de Giovanni Segantini (fig. 6), a leveza impressa nos personagens que compõem a imagem. A alvorada se expressa em totalidade na juventude aérea, banhados de uma luz infinita, vivem os devaneios mais complexos. A cena estimula ao pensamento no início da primavera. Um universo iluminado convida aos devaneios aéreos, e se expande para a convivência tranqüila de todos os seres. Segantini (1858-99) demonstra uma atmosfera vibrante em sua pintura aderida de uma linguagem moderna. A sensação pós-impressionista participa da pintura, transportando luz e calor através das combinações cromáticas. Observamos a essência do humor sanguíneo, revelada nas pinceladas curtas e imprecisas. A pintura capta sensorialmente o campo da visão poética, organizado na estrutura natural da paisagem em contraste com a imagem vaporosa dos seres nela constituídos. Permanecendo o aspecto esboçado e leve através da luminosidade da cena. Caracterizamos a luz como elemento fundamental na variação das cores, projetando o aspecto aéreo nas formas humanas e angelicais da obra de Segantini, na exata mistura de pigmentos expandidos ao campo imaginário. Dentro da concepção divisionista, aspectos esboçados em partes constituem no processo de observação de uma nova perspectiva, que dependendo do ângulo de visão recria a própria pintura. Com as mentes suspensas no ar, o humor sanguíneo busca a paisagem abstrata que se constrói nas nuvens. Para BACHELARD (1970): “Les nuages, la brume, obscurcie dessinent le mobile de horizontes, superranks de horizontes. Tous ces êtres flottants sont des réalités évidentes des grands cercles du ciel”. 9 O ar associado às forças geométricas molda os sonhos, ainda que a paisagem não se realize, continua existindo na mente sanguínea. O espaço, mesmo que apenas idealizado, existe na abstração que emerge da mente. 9

BACHELARD, Le droit de rever.op. cit., p.22. “As nuvens, as brumas, os nublados desenham horizontes móveis, horizontes superpostos. Todos esses seres flutuantes são realidades visíveis dos grandes círculos do céu”.


16

ÁGUA

A água, como força primordial da criação imprime na memória as sensações que nos transportam a qualquer tempo, ao reino dos devaneios marinhos. A imagem ideal da água está além dos sentidos, acrescida de consciência estética que dinamiza a visão. Uma imagem envolvente e doce, que abrange todos os reinos primordiais da criação, da maternidade marinha que criou o mundo. Assim assemelhamos a água ao leite materno. O leite designa os devaneios da maternidade, que relata o grande mistério da vida. Em reforço à lembrança da água dos jardins paradisíacos, das cenas bíblicas, das águas correntes, que percorreram os milênios. Apenas uma gota é capaz de conter toda a grandeza dos mares, carregando a memória de todos os tempos. A água, como elemento fluído, percorre a paisagem e purifica o corpo. Como elemento de purificação, a simplicidade do banho nos remete ao passado. Em sua transparência expansiva, as águas veneradas eram moradas de seres mitológicos, que em sua imersão relatam o grande dilúvio, a grande entrega das formas simbólicas que se desfazem nos elementos materiais, produzindo estados cósmicos. Como um elemento feminino de veneração, por sua transparência e profundidade, explica boa parte das mitologias. Das profundezas do mar, surge o ser mitológico que mostra seu eterno poder de mobilidade sobre as águas, simbolizando o dinamismo em toda sua grandiosidade que se faz contemplar, alimentando a visão de devaneios profundos. A gravura Leviathan de Albrecht Dürer (fig. 7), poetiza o mito das águas, numa reflexão superada pela beleza estética da cena. O Leviathan descrito no velho testamento como o maior dos monstros marinhos foi representado em sua forma metade humana, metade monstro. O cenário bucólico envolve o lago. A banhista, em ondulações opressivas era levada por Leviathan, que parecia ter saído do mundo das ilusões aquáticas, ultrapassado a barreira que separava o reino terrestre do reino marinho.


17

7 – DÜRER, Albrecht. Leviathan, 246 x 187mm (1498).. Ouvré Gravé de Dürer, Bokking International. Paris. 1994. p. 540.


18

Na arquitetura românica as fontes possuíam poder central. Na vida monástica adornada de claustros cujo seu simbolismo interior lembra a origem da vida. A fonte expressa a juventude aquática, do tempo em que habitávamos o ventre materno, onde o paraíso imaginado nos abrigava, preparando-nos para as felicidades da vida. As “águas maternais”, como doce expressão do caráter abrangente da vida protegida. Para BACHELARD (2003): “Essa volta à mãe, que se apresenta como uma das mais fortes tendências para a involução psíquica, é acompanhada, ao que parece, de um recalque das imagens. Entrava-se a sedução dessa volta involutiva ao precisar-lhe as imagens. Nessa direção, com efeito, encontramos as imagens do ser adormecido, a imagem do ser de olhos fechados ou semicerrados, sempre sem vontade de ver, as próprias imagens do inconsciente estritamente cego que forma todos os seus valores sensíveis com suave calor e bem-estar”.

10

No período de gestação as águas são dormentes, paralisam as imagens inconscientes. A água possui caráter de elemento sensível que desperta a alma, exercendo de maneira transformadora a experiência da vida real, desperta o sentimento de algo mais elevado. De natureza refletiva a água demonstra o poder dos espelhos interiores, que mostra as invisibilidades do espírito. O tempo como espelho do mundo é encontrado em sua essência no poema de Octavio PAZ (1998): “No importa, pues, que las respuestas que demos a nuestras preguntas sean luego corregidas por el tiempo; también el adolescente ignora las futuras transformaciones de ese rostro que ve en el agua: indescifrable a primera vista, como la piedra sagrada cubierta de incisiones y signos, la máscara del viejo es la historia de unas facciones amorfas, que un día emergieron confusas, extraídas en vilo por una mirada absorta. Por virtud de esa mirada las facciones se hicieron rostro y, más tarde, máscara, significación, historia”. 11

10

BACHELARD, Gaston.A terra e os devaneios do Repouso, tradução Paulo Neves, Martins fontes, 1 ed, São Paulo, 2003, p.42. 11 PAZ, Octavio. El Laberinto de la soledad, Fondo de Cultura Econômica, México, 1998. p. 21. “Não importa, pois, que as respostas que demos a nossas perguntas sejam depois corrigidas pelo tempo; também o adolescente ignora as futuras transformações desse rosto que vê na água: indecifrável a primeira vista, como a pedra sagrada coberta de incisões e signos, a máscara do velho é a história de umas facções amorfas que um dia emergiram confusas, extraídas em vilo por uma mirada absorta. Por virtude dessa mirada as facções se fizeram rosto e, mais tarde, máscara, significação, história”.


19

A beleza dos espelhos d’água também encontra seu tempo na obra de Tadao Ando (fig. 8), onde a água reflete o céu emoldurado com a imagem circular da arquitetura, que repete imagens cósmicas. No fundo do lago as pedras incrustadas ecoam o brilho das estrelas da noite. Numa simbologia espiritual, a obra de Tadao Ando une as imagens da terra e do céu num espelho repousante no limite dos elementos. A calmaria e introspecção das águas assumem muitas formas, com o infinito movimento das ondas, fazem-nos refletir sobre um ambiente melhor do que vivemos, a força lúdica da vida que germina sementes na terra e nos envolve em nosso primeiro abrigo e aconchegante abrigo no ventre materno. Inspirada de reflexos a água de um azul infinito que brilha permanecendo na imaginação, deserto de água que espelha em um céu sem nuvens. Afirmou BACHELARD (2002): “a própria água é plana e sólida”.12

8 ANDO, Tadao - Naoshima Contemporary Art Museum- Japan - www.galinsky.com/ buildings/naoshima, , consulta em 22 de março de 2006. 12

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos, op. cit., p. 90.


20

Como símbolo de imaginação a água reflexiva em sua superfície busca a essência de todas as coisas. A água reflete sua identidade dual entre as fronteiras do real e simbólico, uma construção signíca da realidade. Como uma figura emblemática, o lago captura as imagens dando a elas transparência e profundidade em sua significância onírica. A água é o cenário formado de imagens captadas, a cena terrena se repete no mundo aquático, que reflete do universo. A poética revela que os espelhos adquirem significado na poesia das águas refletidas. Encontramos essa imagem no poema de MALLARMÉ (2002): “Ô miroir ! Eau froide par l’ennui dans ton cadre gelée Que de fois et pendant des heures, désolée Des songes et cherchant mes souvenirs qui sont Comme des feuilles sous ta glace au trou profond, Je m’apparus en toi comme une ombre lointaine, Mais, horreur ! des soirs, dans ta sévère fontaine, J’ai de mon rêve épars connu la nudité ! Nourrice, suis-je belle” ? 13

Sob signo dos espelhos, as águas mitológicas representam um romântico lago de águas cristalinas, que reflete a estética universal, onde a autocontemplação se projeta. O olhar de narciso purifica a si mesmo, quando enxerga a divindade de sua própria alma. Caravaggio dispõe a figura de Narciso (fig. 9), numa dualidade de significações, a imagem refletida do ser oculto, imerso na água e o ser terrestre, que na profundidade de seu olhar busca a si mesmo.

13

MALLARMÉ, Stéphane. Selected poems, bilíngüal edition. 2002. Hérodiade. Ó espelho! Água fria pelo tédio em seu caixilho gelada. Quantas vezes durante horas, desolada. Dos sonhos e buscando minhas lembranças, que são. Como folhas sob teu gelo no oco profundo, Em ti eu me vi como uma sombra distante,mas, horror! Algumas noites em tua severa fonte, De meu sonho esparço conheci a nudez!


21

9 CARAVAGGIO Narciso –1599 Galleria Borghese, Roma. http://it.wikipedia.org/wiki/Immagine:Michelangelo_Caravaggio_065.jpg, consulta em 22 de março de 2006.

A forte característica de luz e sombra repete a natureza dual da cena em que o real e o imaginário dividem a mesma paisagem. O lago é onde as paixões humanas se projetam, a autocontemplação de um universo refletido como um imenso Narciso. Para BACHELARD (2002):


22

“Narciso vai, pois, a fonte secreta, no fundo dos bosques. Só que ali ele sente que é naturalmente duplo; estende os braços, mergulha as mãos na direção de sua própria imagem, fala à sua própria voz. Eco não é uma ninfa distante. Ela vive na cavidade da fonte. Eco está incessantemente com Narciso. Ela é ele. Tem a voz dele. Tem seu rosto. Ele não a ouve num grande grito. Ouve-a num murmúrio de sua voz sedutora, de sua voz de sedutor. Diante das águas Narciso tem a grande revelação de sua identidade e dualidade, a revelação de seus duplos poderes viris e femininos, a revelação sobre tudo, de sua realidade e de sua identidade.”.14

Da água se escutam vozes e gemidos que se silenciam nos ecos das imagens aquáticas. Na horizontalidade reflexiva da água encontramos o elemento inconsciente associado à memória. Narciso representa a gota d’água que se dissolve para ser o próprio lago. A água concebe a sensação de eternidade. Nesse pensamento diz BACHELARD (2002): “Desaparecer na água profunda ou desaparecer no horizonte longínquo, associa-se à profundidade ou a infinidade, tal é o destino humano que extrai sua imagem do destino das águas”.15 Veneza como uma “cidade-narciso” onde a continuidade do tempo espacial é expressa nas águas. A cidade repousa sob o oceano, dormente em si mesma. Contempla-se em seus sonhos diurnos. Considerada por Ruskin como “rainha dos mares”, guarda todos os encantos terrestres e marinhos em na superfície espelhada de suas águas. Assim como Narciso acumula suas imagens e significados em suas águas dormentes. A travessia suave na cidade das águas pode ser mais que poética se penetrarmos suas ruas delicadas com a contemplação do espírito de narciso. Assim veremos o que ressalta RUSKIN (1992): “que as águas que a cercavam haviam sido escolhidas antes de servir de espelho do que para abrigar sua nudez e que tudo aquilo que na natureza é feroz e implacável – o tempo é o declínio, bem como as ondas e a tempestade – se havia para orná-la e não para destruí-la e para poupar ainda, nos séculos vindouros, essa beleza que, para aí estabelecer seu trono, parece ter parado a areia da ampulheta ao mesmo tempo que a areia do mar”. 16

14

A água e os sonhos – op. cit. - p.25. A água e o sonhos – op. cit. - p.14. 16 Pedras de Veneza. – op. cit. - p. 29. 15


23

Veneza existe em todas as partes, em cada gota d’água que contenha sua essência, a beleza de suas construções estão impregnadas no universo como a eterna consciência narcisista. A ambivalência das imagens refletidas em si mesmas, como símbolo dual de uma realidade simétrica. Diz BACHELARD (2002): “O verdadeiro olho da terra é a água. Nossos olhos é a água que sonha.” 17

10 Imagens do Filme Death in Venice (1971) http://jfd8.tripod.com/tadzio, consulta 29 de março de 2006. 17

A água e os sonhos. – op. cit. - p. 33.


24

Os filmes são nossos sonhos captados que em um segmento de imagens fluem na rapidez de nossos pensamentos, agem na memória onírica, no ritmo imaginativo da mobilidade sem tempo e nem espaço, sem uma seqüência especifica projeta os desejos mais profundos guardados na intimidade da vida interior. Inspirado no livro de Thomas Mann, o filme Death in Venice (fig. 10), dirigido por Luchino Visconti. As águas de Veneza criam os cenários dessa grande obra poética e cinematográfica. Visconti impregnou suas cenas com a contemplação da beleza humana. O filme enfatiza o amor pelo belo, como um sentimento espontâneo e puro. Uma beleza que só se alcança através do espírito. Na ambigüidade das cenas presente e passado se misturam. As memórias do protagonista o acompanham até sua morte, que morre admirando a beleza de Tadzio mergulhando nas águas. Tadzio representa o Eros que existe dentro de cada um. Apaixonar-se por Tadzio é apaixonar-se por si mesmo, achar-se e se perder nas águas de Veneza, morrer de amor diante da beleza em sua forma mais pura. Ao vermos o experimentamos sua complexidade dos espelhos d’água que desperta a consciência para o passado. Despertando a substancia adormecida que existe na realidade substancial da água, provocando imagens verdadeiras e profundas capazes de se contemplarem no devaneio do aprofundamento da substancia, derivando a partir da imaginação todas as formas possíveis. As águas acariciam as pedras antigas da construções, por seu reflexo as águas abrigam as imagens do céu, Veneza também é celeste e pode existir oníricamente na paisagem difusa da chuva que a torna completamente marinha. Em seus mármores a cidade adormece em sua própria morte que lentamente a envolve quando as águas penetram cada vez mais suas ruas. Estar imerso em um mundo de formas hídricas criando mundos poéticos, que assumem o caráter dinâmico dos espelhos d’água como um acontecimento dinâmico.


25

Em Veneza, o teatro das águas apresenta o grande espetáculo. Claude Monet quando pintava Veneza (fig. 11), desejava captar o instante que Bachelard descrevia como realidade. O instante em que Veneza se dissolve na luz refletida pelas águas. Na pintura de Monet a superfície da construção recebe a textura da água iluminada e vaporosa. De maneira Monumental a água se projeta nos reflexos como num sonho que reúne as memórias da paisagem. Veneza desenha a si mesma na superfície das águas, numa pintura efêmera.

11 MONET - Palácio de Contarini, 1908. - Heinrich, Christoph. Claude Monet. Benedikt Taschen.Germany. 1995. p 21.


26

Uma visão silenciosa e transparente emergida da vida marinha. Misteriosa luminosidade manifestada por imagens visionárias, exilado da terra, o Palácio de Contarini vive aprisionado no reino das águas. O espelho d’água que reflete o invisível, traduzindo imagens materiais em substancia sensível. Completa a paisagem de maneira secreta, submerge as imagens universais onde o homem se observa a si próprio no cosmos. No reflexo das águas a arquitetura se duplica na grandiosa obra de Frank Gehry. Guggenhaim de Bilbao (fig. 12), emerge das águas em suas formas absolutas. Um grande e imponente ser de titânio.

12 GERY, Frank – Guggenhein, BIlbao –- www.travelthewondersofspain.com/north.html, consulta em 22 de março de 2006.


27

Um grande olho cósmico que se abre nas águas. Abordando o olho num sentido cósmico, segundo SCHOPENHAUER (2003): ”[...] pois sentimos a brevidade da vida, o efêmero da grandeza e pompa humana em face da duração dessas obras. O individuo se escolhe e vê-se como extremamente pequeno, mas o conhecimento puro o eleva acima disso, ele é o eterno olho cósmico que a tudo vê, o puro sujeito de conhecer. É o sentimento sublime”. 18

Paul Valéry demonstra o desejo de se dissolver no mar como Narciso. A ardência solar refletida no mar guarda a iluminância divina, que delira na multiplicação de si mesma. Ele entende o

mar como: ”olho do inconsciente [...] O mar é infinito na imensidade intemporal da vida divina”. (VASCONCELOS, 1982 apud VALÉRY, 1982) O sol se desfaz divinamente na água como Narciso mergulha na imensidão aquática. A água guarda a consciência do sol, expressada na estrofe XXIII: Oui! Grande mer de délires douée, Peau Pantére et chamyde trouée Mille et mille idoles du soleil, Hydre absolue, ivre de ta chair bleue, Qui te remords l’étincelante quene Dans um tumulte au silence pareil”. 19

As profundezas marinhas abrigam moradas, em sua escuridão noturna protegem a simplicidade das conchas que convidam a habitar. A umidade marinha se aloja na mais íntima das espirais de uma concha, quando a matéria mole encontra proteção na forma dura.

18

SCHOPENHAUER, Arthur de. A metafísica do belo. Tradução de Jair Barbosa. Unesp. São Paulo, 1 ed., 2003. p. 113. 19 VALÉRY, Paul. Cemitério Marinho. Edição Bilíngüe. Tradução de Edmundo Vasconcelos. Massao Ohno – Roswitha Kempf Editores. São Paulo, 1982. p.81. “Sim! Grande mar, cheio de delírios, pele de pantera, clâmide perfurada. De milhões de imagem do mesmo sol formada, hidra absoluta, ébria da tua carne azul, que remordes a calda flamejante. Num rumor ao silencio semelhante”.


28

Seguindo a metáfora da concha encontramos o significado condensado de seu interior em um Sutra hindu: “No paraíso de Indra, dizem que existe uma rede de pérolas, dispostas de tal maneira que, quando você olha para uma delas, vê todas as outras refletidas nela”. Assim encontramos o tesouro de habitar as conchas, as pérolas universais que significam todas as outras, como habitar o mundo inteiro em apenas uma concha. A paisagem marinha guarda os devaneios das cidades submersas, seres fantásticos que vivem em uma vastidão de bizarra. A imaginação humana vive salpicada de cenas marinhas. Imagens que como reflexo do mundo terrestre existe no universo marinho. Nossa visão divaga nas imagens aquáticas. Sua força onírica invade nossa percepção, busca o desejo infantil de habitar tais castelos. A suave ondulação exibe azuis mais delicados adornados de serias imateriais, seres que nadam na mente como pinturas viventes, cultuam a imensidão das águas e do inconsciente. As profundezas humanas conhecem a imensidão aquática que na visão de BACHELARD (2002): “As outras forças imaginantes escavam o fundo do ser; querem encontrar no ser, ao mesmo tempo, o primitivo e o eterno. [...]. Na natureza, em nós e fora de nós, elas produzem germes; germes em que a forma esta encravada numa substancia, em que a forma é inteira”. 20

Quantos devaneios devem guardar suas profundezas, na intemporalidade que inunda o mundo. A água pode conter a essência do psiquismo hidrante onde o oceano em sua vastidão, sonha a si mesmo, vive dormente na realidade hidrante. Despertando sentimentos adormecidos, em toda sua profundidade, a água se integra no campo das experiências, sua forma representativa inserida dentro da morada real produz sentimentos associados com a percepção, que invade o campo mental e imaginativo. A sensibilização aliada à ilusão dos objetos, cores associadas à água criam um reino intermediário, formado pela intuição da representação.

20

A água é os sonhos – op cit. p 01.


29

A vida nas águas é intraduzível nos outros elementos, apenas a terra pode participar de seu êxtase. Segundo a Cabala judaica, a água pertence à coluna direita, assim como o sêmen revela a vida. As águas vivem uma união quase sexual com a terra mediante o papel fecundador da chuva. (CLAUDEL apud BACHELARD, 2002): “É como a gota seminal fecunda a figura matemática, repartindo a isca fervilhante dos elementos de seu teorema. Assim o corpo de gloria deseja sob o corpo de barro, e a noite ser dissolvida na visibilidade”.21

A chuva também pode representar a ira, num aspecto abstrato a tempestade sobre um mar tempestuoso é signo mítico que toma beleza artística na obra Turner, que exprime a dramaticidade da tempestade em pinceladas furiosas. A audácia das pinceladas luminosas forma uma paisagem marinha fantasmagórica. A luz se dissolve na água em uma cena sublime onde o mar revolto toca o céu. Buscando a significação marinha, vemos que Turner (fig. 13), vivencia a essência da água numa representação clara da luz, em uma explosão de cores e significados. O movimento rompe as barreiras visuais em sua profundidade. Um navio aprisionado na revolta das águas, a imagem fantástica da tempestade movimenta o mundo das águas numa experiência violenta e onírica, como nas paisagens de Turner, as águas dos celestes se encontram com as águas terrestres. As inconsoláveis ondas derramam sua fúria sobre o barco, que ainda assim insiste em permanecer na paisagem. As artes buscam o sonho que se move como as águas, como evento onírico as imagens formadas na mente se exteriorizam por caminhos indetermináveis. A imaginação enche o temperamento linfático de sentimento artístico, que impregna o mundo com sua marca aquática de belas obras de arte. Numa significância maior das águas em fúria, busca por meios visuais a unidade que solidifica a metamorfose das imagens que parecem estar em constante movimento. Temos um desejo insaciável de encontrarmos um lugar onde possamos expressar nossos desejos e guardar a intimidade. Símbolos e representações de nossa história particular não tem nenhum compromisso com a realidade. 21

A água é os sonhos – op cit. p. 42.


30

13 TURNER, W. - Tempête de neige, 1838; Óleo sobre tela, 91 x 122 cm; National Gallery, London www.nationalgallery.org.uk, consulta em 22 de março de 2006.

Certas imagens podem nos transportar para qualquer tempo, até mesmo a momentos que não tenhamos vivido fisicamente, apenas na imaginação. A imaginação poética se encontra na divindade da água na imagem de Netuno, que desperta o reino das emoções profundas, da intuição e da sensibilidade. Na astrologia tradicional netuno é símbolo do inconsciente, das emoções profundas simboliza as profundezas da alma acentuada com as paixões desordenadas. Essa simbologia acrescenta nas águas o caráter de abismo, de mergulho profundo no subconsciente.


31

A vida marinha faz alusão aos seres mitológicos que encontram seu lugar nas obras literárias. Netuno aparece em sua figura emblemática e misteriosa, que percorre as águas dando profundidade aos versos, VIRGILIO (1955): “Inda assim, em Netuno assegurada, Sulca impávida a frota o plaino amaro: Já remonta os cachopos das Sereias, Que, então riscosos, de ossos alvejavam; Roucas do salso choque as rochas soam. Sem piloto à matroca o barco Enéias Sente, e em pessoa por noturnas ondas Magoado o rege, lamentando o amigo: Ai! nu, que em céu fiaste e em mar tranqüilo, Jazerás, Palinuro, em praia ignota”.22

No inverno a água endurece a paisagem, a simetria do gelo encontra seu espaço moldando as formas frias. A casa da cascata adormece no espaço gelado, vivificando o sono das pedras. Como dizia SCHOPENHAUER (2002): “O gelo se congela no vidro da janela conforme as leis de cristalização que manifestam a essência da força natural que aqui aparece”. 23 O gelo produz a inércia das paisagens, adormece a imagem afirmando sua existência metafórica e estática. A paisagem se interioriza nas memórias das águas cristalizadas. Desprende-se de sua forma original aderindo-se a outras formas superficiais que escondem sua verdadeira essência. Frank Lloyd Wright premeditou toda a poesia nas combinações dos quatro elementos e as estações do ano. Na natureza do gelo a água guardou seus sonhos de primavera. Estátuas de gelo efêmeras adornam as pedras, num espetáculo inesquecível, paralisado no infinito da realidade do espírito. Nas formas mutantes que encantam, Wright ergueu seu sonho de pedra na arquitetura das águas solidificadas.

22 23

VIRGÍLIO, Públio, A Eneida, tradução de Nicolau Firmino, Livraria Simões, Lisboa, 1955: p. 19. SCHOPENHAUER, op cit. p. 52.


32

14 – WRIGHT, Frank Lloyd Casa da Cascata, http://faculty.evansville.edu/rl29/art105/img/wright_fallingwater.jpg, consulta em 22 de março de 2006.

A Casa da Cascata (fig. 14), isolada na água cristalizada do inverno, se afirma e se deixa representar como uma pintura invernal. Guarda em sua fisionomia estrutural a serenidade de outras estações. Pacientemente aguarda a passagem do tempo, imóvel e irredutível, a casa da Cascata guarda um calor intenso na intimidade de sua lareira. O fogo interior nega a paisagem gelada que a cerca de ausência. Na densidade da água cristalizada o elemento aquático se assemelha ao elemento terrestre, que num mesmo cenário se unem materialmente em uma paixão sólida onde os devaneios se misturam entre si num momento petrificante. A Casa da Cascata é uma aparição fria que desejava romper o gelo que a encobre numa paisagem inexprimível, desprovida de qualquer limite de interpretação dando lugar ao grande acontecimento de sua existência.


33

TERRA

A maternidade da terra que nos alimenta com seus frutos, poderia ser associada ao paladar, gerando o gosto do alimento que colhemos imaginariamente. A terra fértil materializa, sustenta e potencializa as formas. Despertamos as qualidades adormecidas dos materiais, quando interferimos em sua forma para compormos nosso lar, assim descobrimos o espírito terrestre além das dimensões territoriais. É através das formas que expressamos as aparências do campo dos signos, as imagens da terra estão registradas em nossa percepção, através dos sonhos de refúgio. A casa imaginada se ergue da terra, como se já existisse no mundo subterrâneo. A terra desperta a beleza das formas imaginadas. As imagens materiais são ativas e cheias de valores estéticos, que despertam um mundo de imagens mentais. Na interpretação de Bachelard “a matéria é um centro de sonhos”. Aquilo que buscamos na alma, só a terra tem o poder de tornar real. A terra existe de maneira plena, vivendo intrinsecamente em nossos pensamentos. Sonhando com intensidade, é possível penetrar à simbologia da terra, vivenciando sua realidade mitológica. Na potência inspiradora, a iconografia terrestre é esculpida e adormecida no universo onírico. As significações se manifestam num mundo de símbolos, onde a substância caminha junto com a imaginação. A terra emoldurada pela casa deseja ser intensamente imaginada pelo sonhador, de maneira acolhedora a casa existe oníricamente nas substâncias elementares. Explorando a paisagem onírica encontramos o elemento material que particulariza a imaginação. A terra é uma imagem primordial, um ser vivente que é real na profundidade da casa, que pode ser submersa, como produto de isolamento e reflexão. O plano do piso se esquadrinha na terra, ativando a vontade de moldar as superfícies terrestres. Nas profundezas, as imagens são imóveis e acolhedoras, imaginadas intimamente, ocultas nos mistérios transcendentes da terra.


34

15 – GAUDI, Antoni. Parque Güell - ZERBEST,Rainer. Antoni Gaudí. Tacshen. España. 1985. p. 139.

Ao construir o Parque Güell em Barcelona (fig. 15), Antônio Gaudí vivifica o elemento terra ecoando a imagem terrestre em toda a sua naturalidade. O parque é adornado por construções que reverenciam a terra. Segundo ZERBEST (1985): “Efeitos, que atraem magicamente o olhar, mas que estão englobados numa harmonia em que se funde numa unidade”. 24 O elemento terrestre envolve e substancializa os sonhos de habitar a caverna onírica, no interior de todas as coisas. Penetrar as profundezas subterrâneas de si mesmo. A caverna é como um quarto escuro em que nos protegemos, onde criamos cenários metafísicos através do ato de sonhar. Formações rochosas emergem das formas imateriais transformando a terra em grandiosas aparições. Presente em diversas formas, em nossos lares a terra simboliza as formas estáveis das estruturas.

24

ZERBEST,Rainer. Antoni Gaudí. Tacshen.Barcelona, 1985. p. 148.


35

Simboliza também a caverna, na alegoria platônica da caverna, é produzida uma interpretação sensível diretamente relacionada com as conotações do ambiente. Definindo o platonismo da caverna, afirma LEBRUN (2003): “Enquanto a alma, prisioneira do corpo, se detiver no espetáculo do sensível, não possuirá o saber”. 25 Platão nos assegura que percebemos objetos e imagem através de nossos sentidos embora não possamos ver a realidade existente no exterior da caverna. Assim como a caverna de Platão, as paredes refletem as sombras de uma vida subterrânea, que duvida da existência terrestre, a sombra que duvida da luz. Habitar a caverna é estar profundamente protegido, nessa dimensão íntima encontramos a beleza de morar. A felicidade de ser abrigado, de recuperarmos o ventre perdido é também dinamizar o quarto escuro. A caverna é um estado mental que habitamos em pensamento, que vivenciamos constantemente na literatura, como nas aventuras de Júlio Verne no seu livro “Viagem ao centro da Terra”, onde adentramos um mundo subterrâneo repleto de seres fantásticos. A literatura como cenário construído pela imaginação se cria a cada parágrafo: “Meu leito, feito com todos os cobertores da viagem, fora instalado numa gruta encantadora, enfeitada de magníficas estalagmites, o solo recoberto de areia fina. Nela reinava a penumbra. Não havia qualquer tocha ou lanterna acesa, mas alguns clarões inexplicáveis iluminavam-na de fora por uma abertura estreita. Ouvi também um murmúrio vago e indefinido, semelhante ao gemido das ondas que se quebram na praia, e às vezes o assobio da brisa”.26

O subterrâneo indissolúvel capaz de guardar em profundidade o desejo de habitar. Como refúgio sonhado a caverna abriga valores ocultos em suas reentrâncias rochosas, o abrigo secreto materializado pela imaginação. As cavernas são como os olhos da terra, cegos pela escuridão, um buraco negro habitado por sombras.

25 26

LEBRUN, Gerard. O olhar in Sombra e Luz em Platão. Companhia das Letras. São Paulo. 2003. p.25. VERNE, Julio. Viagem ao centro da terra. L&PM Editores S.A.,1a. Edição, São Paulo, 2002. p.70.


36

Antigos textos cabalísticos revelam que o Zohar, a obra mais importante da cabala foi escrita dentro de uma caverna pelo Rabino Shimon Bar Yojai, que ouvia as pedras ecoarem a voz dos profetas do velho testamento. Para BACHELARD (2003): “[...] grutas formam a mais clara antinomia da vontade de habitar. Estar alhures, estar lá, eis o que não se exprime apenas por visões geométricas. É preciso haver uma vontade. A vontade de habitar parece condensar-se em uma morada subterrânea”.27

A caverna petrifica a solidão, quando ouvimos as vozes mais secretas, as pedras sussurram silenciosamente. Certamente muitos poetas podem ouvir “vozes subterrâneas”. Para BACHELARD (2003) “todas as grutas falam”: “A voz áspera, a voz cavernosa, a voz trovejante são as vozes da terra”.28

16 VINCI, Leonardo da. Citta' ideale de - forum.istruzione.it/eng/counter/homepage.php, consulta em 22 de março de 2006. 27 28

BACHELARD, A terra e os devaneios do repouso, op cit., p. 142. BACHELARD,A terra e os devaneios do repouso, op. cit. p. 142.


37

O subterrâneo sonha um novo mundo, uma nova cidade. Na utopia do renascimento, Leonardo da Vinci devaneou o esse tempo enterrado, como as raízes de uma frondosa árvore, o sonho subterrâneo idealiza os projetos da Citta ideale (fig. 16). Uma cidade oculta da luz que recebia timidamente apenas alguma claridade das aberturas que existiam nas ruas por cima. Travessias subterrâneas levariam à caminhos secretos, adornados pela penumbra, como as antigas casas, o projeto da cidade possuía um porão. Pedras ocultas na estrutura da casa, imagem que proporciona estabilidade e solidez. A vida mineral guarda segredos terrenos. A casa petrifica os sonhos de habitar o subterrâneo. Afirma BACHELARD (2001): “É esse mundo que chamamos de subterrâneo que é o verdadeiro mundo do esplendor; ora, existe certamente uma vasta parte da superfície ainda desconhecida do homem, onde alguma fenda [...] lhe permitiria descer até a região das gemas e contemplar, a céu aberto, as maravilhas [...] vistas em sonho”. 29

A vida metafórica dos signos inconscientes, dentro de cada elemento busca as qualidades da vida imaginária. A casa está enraizada em um “sentimento de profundidade”. A imaginação terrestre vive silenciosamente enterrada assistindo a força do tempo. Na terra está enterrado o passado, ruínas e casas desabitadas, que apesar de terem se misturado com o elemento terrestre, ainda existem bem nítidas na imaginação. (RYKWERT, 2003 apud LOBKOWITZ): “O homem pecou e foi expulso do paraíso: as muralhas que o impediram de retornar constituíram então a primeira arquitetura, guardada por anjos com espadas flamejantes, que teriam sido os primeiros soldados [...]. Gigantescas paredes de pedra, defendidas pelos resplandecentes cavaleiros celestes, evocam as imagens descritas pelos viajantes e fabulistas medievais do inaccessível ‘paraíso terrestre’ .” 30

29

BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios da vontade. Tradução Maria Ermantina Galvão, 2 ed, Martins Fontes, São Paulo: 2001. p 122. 30 RYKWERT. op. cit., p. 149.


38

17 – Cidade medieval - www.cb-virtual.pt/historia.htm, consulta em 22 de março de 2006.

Vastas muralhas de pedra (fig. 17),adornadas de símbolos sagrados contornavam e protegiam as cidades medievais, como nas imagens da matéria que envolve o espírito. O muro como “símbolo materno”, abriga e protege, delimitando o espaço privado. Imagens estáveis e sólidas, de formas evidentes que escondem forças oníricas. Como nenhum elemento, a pedra grava o tempo em impressões passadas nas ruínas antigas. Buscando na essência das pedras sagradas encontramos as pedras babilônicas, na construção da grande torre de Babel, que, todavia é o primeiro edifício descrito nas escrituras, representado suntuosamente por Brueguel (fig. 18). Os antigos textos cabalístas diziam que a grande torre era construída sem que ouvisse um só ruído, ela se fazia a si mesma.


39

18 – BRUEGUEL - The Tower of Babel 1563; oleo sobre painel, 114 x 155 cm; Kunsthistorisches Museum Wien, Viena . www.ibiblio.org/wm/paint/auth/bruegel/babel.jpg, consulta em 22 de março de 2006.

A fertilidade feminina associada ao elemento terra regenera os minerais nas profundezas do solo. A terra está presa nas formas que vivem no território matéria, elemento criador do espaço que de maneira surreal também vive no espírito. A pedra se traduz em sua essência na construção dos sonhos terrestres. As ruínas expressam o passado das pedras, na suntuosa arquitetura bizantina adornada do mais puro mármore e ouro formavam mosaicos que contornavam o espaço de um tempo sagrado, que na opinião de RUSKIN (1992): “A arquitetura bizantina tal como a religião que ela traduzia, caiu num repouso estranho, dourado, embalsamado, em que ainda vegeta, nos lugares em que seu langor não foi perturbado”.31

A pedra também pode assumir diferentes formas nas esculturas, define a metamorfose pedra como corpo, assumindo diversas formas pelas mãos sonhadoras do homem. (BACHELARD, 2001 apud Vitor HUGO, 1890): 31

RUSKIN, op cit., p 13.


40

“O arenito é a pedra mais divertida e mais estranhamente formada que há. Dentre as rochas, é o que o olmo é entre as árvores. Não há aparência que não assuma, não há capricho que não tenha, não há sonhos que não realiza; tem todas as figuras, faz todas as caras. Parece animado de uma alma múltipla”. 32

Encontramos inspiração na produção das formas petrificadas, que resgatam as historias das pedras.

Compreendemos a imaginação da matéria nos textos de RUSKIN

(1992): “Imaginem por um momento a imensa diferença que essa simples condição estabelece entre as esculturas do estilo incrustado e as das sólidas pedras do Norte, que devem ser serradas e talhadas em cavernas escuras; que devem passar da escuridão a estranhas projeções; que devem ser rasgadas em sulcos sinuosos por rudes ferros encarregados de fixar, sob as lascas que saltam de todo o lado, o pensamento e os contornos decididos pelo desenhista. Poderosas estátuas vestindo longas túnicas e com cabeça coroada, ardem ao sol espectros ameaçadores, dragões misteriosos afundam-se nos recantos cheios de sombras. Pensem em tudo isso, na plena liberdade deixada à mão e à imaginação do escultor e a imaginação do escultor, que podem correr ao seu bel-prazer, e consideram o quanto deve ser diferente o desenho destinado a ser gravado numa delgada placa de mármore. Cada linha deverá ser traçada com o mais terno cuidado, para não partir a delicada pedra, e a mais ínfima fantasia de concepção é vedada, por ser capaz de prejudicar a leveza imposta à mão. Como toda a forma humana deve ser representada numa superfície plana, as dobras dos planejamentos ou a redondez das pernas devem ser de tal modo reduzidas e submetidas à regra, que a escultura se torne antes uma bela obra de desenho. O leitor de ter compreendido a que ponto são infinitas as divergências forçosamente impostas aos desenhos ornamentais na arquitetura incrustada”. 33

32 33

BACHELARD, A terra e os devaneios da vontade, op. cit., p. 159. RUSKIN, op. cit., p. 60.


41

19 – Erehctheiom, Acrópole, Atenas - www.sikyon.com, consulta em 22 de março de 2006.

Na mítica Acrópole antigos pilares com forma feminina, as chamadas Cariátides, sustentavam e adornavam o Erechtheiom (fig. 19). As Cariátides sabiamente aceitavam o destino de carregar o peso do templo, como as mulheres de Atenas. Uma escravidão petrificante que atravessa o tempo no murmúrio das ruínas antigas, que ainda guarda todo o esplendor belamente jônico. Como essência deste pensamento encontramos na antiga Mesopotâmia, estranhos guardiões de cinco patas protegiam os templos de Asíria. Lamassus (fig. 20) eram chamados os animais de pedra que davam a impressão de movimento que, dependo da perspectiva apenas se visualizava quatro patas. Vivenciar essas imagens mitológicas aderidas aos templos é participar de sua existência imaginária, é transbordar a pedra em sonhos edificantes no cenário da cultura mesopotâmica.


42

20 – Lamassu - 883–859 AC. Excavado em Nimrud (antiga Kalhu), norte da Mesopotâmia - British Museum, London. The metropolitan museum of art. New York. www.metmuseum.org, consulta em 22 de março de 2006.

Na glorificação da matéria, a escultura narrativa da pedra alada pertence a todos os reinos da imaginação mítica. Os devaneios de proteção são expressamente esculpidos em baixos-relevos nos painéis assírios. Poetas da pedra transcenderam a arte e desenvolveram a estatuária de forma original. Inserindo dramaticidade às pedras, diz NIETZSCHE (1983): “O coração do velho demônio das rochas começa a tremer”. 34 34

NIETZSCHE, op. cit., p.137.


43

As pedras são universos de sensações primordiais que reavivam o sentimento primitivo de habitar, é preciso tocá-las para resgatar toda a ancestralidade do tempo. Parece que ainda existe um dialogo entre pedra e homem, apesar de fisicamente separados permanecem oníricamente juntos. As pedras sempre exerceram um grande fascínio sobre o homem, o mistério da pedra está impregnado da solidão. Para (CAMUS apud BACHELARD, 2003): “um rosto que sofre tão perto das pedras já é pedra também”.35 Em um universo estático, o homem rompe a barreira da obscuridade humana, penetrando o interior das pedras. O homem petrificado pela arte, como um ser vivente dentro da pedra, estátuas quase humanas criadas por mãos quase divinas. “Os sonhos de pedra procuram forças íntimas. O sonhador apossa-se dessas forças e, quando as dominou, sente brotar nele um devaneio da vontade de poder que apresentamos como um verdadeiro complexo de Medusa”.

36

Medusa se petrificou para sempre na poesia, como demonstrou o

poema “Medura” de SHELLEY (1999): “It lieth, gazing on the midnight sky, Upon the cloudy mountain peak supine; Below, far lands are seen tremblingly; Its horror and its beauty are divine. Upon its lips and eyelids seems to lie Loveliness like a shadow, from which shine, Fiery and lurid, struggling underneath, The agonies of anguish and of death. Yet it is less the horror than the grace Which turns the gazer's spirit into stone; Whereon the lineaments of that dead face Are graven, till the characters be grown Into itself, and thought no more can trace; 'Tis the melodious hue of beauty thrown Athwart the darkness and the glare of pain, Which humanize and harmonize the strain. And from its head as from one body grow, As [ 35

36

] grass out of a watery rock,

BACHELARD, A terra e os devaneios da vontade. op. cit., p. 82. BACHELARD, A terra e os devaneios da vontade. op. cit., p. 9.


44

Hairs which are vipers, and they curl and flow And their long tangles in each other lock, And with unending involutions shew Their mailed radiance, as it were to mock The torture and the death within, and saw The solid air with many a ragged jaw. And from a stone beside, a poisonous eft Peeps idly into those Gorgonian eyes; Whilst in the air a ghastly bat, bereft Of sense, has flitted with a mad surprise Out of the cave this hideous light had cleft, And he comes hastening like a moth that hies After a taper; and the midnight sky Flares, a light more dread than obscurity. 'Tis the tempestuous loveliness of terror; For from the serpents gleams a brazen glare Kindled by that inextricable error, Which makes a thrilling vapour of the air Become a [

] and ever-shifting mirror

Of all the beauty and the terror there A woman's countenance, with serpent locks, Gazing in death on heaven from those wet rocks”.37

37

SHELLEY, Percy Bysshe, The complete poetical works of Percy Bysshe Shelley, 1999www.Bartleby.com/139, (consultado em 22 de março de 2006) “Ela jaz, mirando o céu da meia-noite. Sobre os enevoados picos supinos; Abaixo, é vista uma terra tremulante; seu horror e sua beleza são divinos. Sobre seus lábios e pálpebras se deita. Amabilidade escura, com os brilhos, Chamejando em luta oculta e forte, Das agonias da angústia e da morte. Ainda assim não é tanto o horror mas a graça. Que torna o espírito do observador em pedra; Sobre a qual os lineamentos dessa face. Morta são gravados, até que a marca cresça. Em si mesma, e o pensamento não mais trace; são os matizes melodiosos da beleza. Espargidos na luz e sombra da dor, Que humanizam e harmonizam todo o esforço. Da cabeça como de um corpo crescido, Como [ ] limo em rochas molhadas, Cabelos víboras, se enrolando e fluindo. Nas suas longas tranças entrelaçadas, e com tramas infinitas demonstrando. Irradiações, ironias escamadas. De tortura e morte embutidas, serrando. O ar sólido com mandíbulas rasgadas. E de uma pedra ao lado, uma venenosa. Lagartixa espia esse Górgone olhar; Enquanto no ar um morcego espaventoso. Desprovido de juízo, bate as asas. Da caverna que essa horrível luz rachou, e vem como uma mariposa a atacar. Uma lâmpada; e o céu da meia-noite. Fulge, numa luz mais fúnebre que a sombra. Esta é a adorável fúria do terror; Pois das serpentes cintila um brilho brônzeo. Inflamado pelo inextricável erro. Que faz o vapor eletrizante do ar. Tornar-se um [ ] e sempre cambiante espelho. De toda a beleza e terror que estão lá – Um rosto de mulher, com serpeantes cachos, Mirando a morte no céu, de úmidas rochas”.


45

21 MARQUESTE, L.H. Perseus and medusa – 1875 – 1903 –- Ny Carlsberg Glyptotek, Copenhagen, Denmark - www.artandarchitecture.org.uk, consulta em 22 de março de 2006.


46

O mármore pode ser humanamente sedutor. A Medusa (fig. 21) expressou toda a beleza estética humana incrustada no mundo mineral. Assim como pedras podem assumir formas humanas através da arte, de acordo com a sabedoria da cabala impressa no Zohar38, certos espíritos podem assumir formas minerais. Dentro da pedra podem viver espíritos, assim como a magia árabe acredita que gênios habitem as garrafas. Uma antiga lenda judaica une o humano e o terrestre no mito do Golem, um monstro de barro que havia sido criado pelos judeus. Essa figura cabalística apareceu com freqüência na literatura judaica e alemã do século XIX.

22 – Imagens do filme “Der Golem” 1931 - www.silentorchestra.com, consulta em 22 de março de2006.

38

Yojai, Rav Shimon bar. Zohar, The book of splendor. Kabbalah Centre. Jerusalém. 1985. 26 volumes. (Edição dos manuscritos escritos no século X por Shimon Bar Yojai).


47

Encontramos em um antigo texto sobre o Golem, que segundo (SAÁDIA apud SCHOLEM, 2004) dizia: “Tome pó de uma montanha, terra virgem, esparrame tudo pela casa e limpe seu corpo. Desse pó puro faça um golem, a criatura que deseja fazer e dar-lhe, e sobre cada um de seus membros pronuncie a consoante que lhe é atribuída no Sefer Ietzirá, e combine-as com [...] nome de Deus”. 39

A lenda foi exibida cinematograficamente por Paul Wegner (fig. 22), como um dos clássicos do expressionismo alemão, influenciando outros filmes como Frankenstein. A lenda do Golem poderia ser muito bem expressada na mão criadora de Bachelard. A terra é matéria que narra a si mesma. Parece que essa lenda foi inspirada em Adão, que segundo o Gênesis também foi criado da terra. Segundo SCHOLEM (2004), a velha tradição judaica contem varias referências a um espírito terrestre, telúrico, habitado dentro de Adão. Continuando com o pensamento cabalista que não vê diferença entre uma pedra e uma montanha, a visão de unidade sobre elementos aparentemente separados argumentados poeticamente por RUSKIN (2203), que parece também ter percebido a vida nas pedras: “Levemos o olhar mais além, para dentro da rocha, e a vemos tocada e agitada [...], enquanto a rocha vibra nas próprias entranhas, como nas cordas de uma harpa eólia [...]. No âmago de todas essas grandes montanhas, em cada projeção de suas cristas sem limites e bem no fundo de todos os seus desfiladeiros insondáveis, lateja [...] sua substancia”.40

Wrigth como leitor e admirador de John Ruskin também encontrou a vibração musical em compor as pedras, onde soube expressar intimamente em sua arquitetura, enxergando na simplicidade das pedras todas as suas formas ocultas. Na interpretação de Frank Loyd Wright um edifício não deve estar sobre uma colina, e sim fazer parte dela, como se tivesse nascido da terra. Na geometria seca da pedra, na casa Jacob (fig. 23), Wright conjugou seus sonhos estruturais na amplitude da paisagem. 39 40

SCHOLEM, Gershom. A cabala e seu simbolismo. A idéia do Golem. Perspectiva. São Paulo. 2004. p. 221. Pedras de Veneza, op cit,, p.15.


48

23 WRIGHT, Frank Loyd. Casa Jacob - www.wisconsinhistory.org/turningpoints/exhibit/index.asp?id=19, consulta em 22 de março de 2006.

O professor Luís Antônio JORGE (1999), em sua tese de doutorado estabeleceu uma relação profunda entre arquitetura e paisagem: “As pedras, como a terra são para sempre, o tempo não as consome. Imóveis no seu sono profundo, lá estavam antes do arquiteto reuni-las e misturá-las novamente no solo numa massa contínua, desde a fundação até a parede que serve de abrigo”. 41

A terra como uma forma de abrigo, nos envolve na morte, assim nos petrificamos com descreve NIETZSHE (1983) em Aurora: “Quão necessário é petrificar-se – tornar-se duro, lentamente como uma pedra preciosa – e finalmente permanecer ali tranqüilamente, para a alegria da eternidade”.42 Os egípcios davam um caráter monumental aos templos e às construções mortuárias. Considerando a vida após a morte mais importante que a própria vida. 41

JORGE, Luís Antônio. Espaço Seco. Imaginário e poéticas da arquitetura moderna na América. Tese de doutorado. USP. 1999. p.56. 42 NIETZSHE, Fridrich. Os pensadores. Aurora. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. Abril Cultural. 3 ed. São Paulo. 1983. p. 159.


49

24 - Câmara mortuária no Egito - www.touregypt.net, consulta em 22 de março de 2006.

O túmulo também foi um lar sonhado, mesmo que inconscientemente, o sonho de habitar transcendia a barreira da morte. Seria então chamada de moradia da alma. Os egípcios consideravam as moradas dos vivos como estadias temporárias; ao contrario dos sarcófagos que poderiam ser moradas eternas (fig. 24). Talvez tenha sido por isso que adornavam mais seus túmulos do que suas próprias casas. Viviam em um tempo além da realidade, esperando o que viria depois, como se deixassem o presente de lado.


50

Impressões terrestres vivem no inconsciente humano, por vezes, habitar o subterrâneo do mundo provoca os devaneios mais terríveis. Uma espécie de pesadelo que vem completar as imagens do medo. Sentir-se engolido pela realidade do tempo. Segundo LANGER (1980): “Os grandes túmulos são a imagem de um mundo ínfero; suas paredes sem janelas criam um útero da terra, embora sejam construídos acima do solo e em plena luz do sol. Destinam-se ao silêncio e ao reino da morte. Contudo, artisticamente, não há nada de mais vivo do que a tensa quietude de tais câmaras; nada expressa uma presença e seu domínio tão inequivocamente quanto um tumulo egípcio. [...] É o reino da morte visualizado”. 43

O medo da morte fez com que os sarcófagos significassem uma outra vida, abordando essa visão RUSKIN (1982) diz que: “Uma mudança mais significativa ainda ocorreu na forma de sarcófago. Vimos, respondendo ao desenvolvimento do orgulho da vida nos túmulos, aparecer neles o medo da morte. À medida que aumentam seu esplendor e suas dimensões, percebemos um desejo crescente de tirar do sarcófago seu verdadeiro caráter. Nos primeiros tempos, o sarcófago fora apenas uma massa de pedra; depois, foi decorado com esculturas. Só em meados do século XV é que se mostrou o desejo de disfarçar sua forma: ele foi enriquecido por flores e escondido por Virtudes. Finalmente, perdendo sua forma oblongo, passou a se assemelhar a urnas antigas, cujos modelos graciosos eram tão distantes quanto possível do esquife. De elegância em elegância, acabou não sendo mais que um pedestal para a estátua do defunto, levada, por uma curiosa seqüência de transições a representálo.” 44

Habitar a morte é como descer degraus, ir para o reino sombrio, onde guardamos os demônios que não queremos ver durante a vida, Mário QUINTANA (1986) em seu poema “Os degraus” escreve:

43

LANGER, Susanne K. Sentimento e forma. Tradução de Ana Golberger Coelho e J. Guinsburg. Editora Perspectiva. São Paulo. 1980. p. 103. 44 Pedras de Veneza., op. cit., p. 154.


51

“Não desças os degraus do sonho para não despertar os monstros. Não subas aos sótãos - onde os deuses, por trás das suas máscaras, ocultam o próprio enigma. não desças, não subas, fica. O mistério está é na tua vida! E é um sonho louco este nosso mundo”. 45

A decida à morte sempre assombrou os contos, que descreviam como era a morada subterrânea. Assim narra POE (2003):

“No ponto mais afastado da cripta havia uma outra cripta menos espaçosa. As paredes tinham sido forradas com despojos humanos, empilhados até à abóbada, à maneira das grandes catacumbas de Paris. Três das paredes desta cripta interior estavam ainda ornamentadas desta maneira. Na quarta parede, os ossos tinham sido derrubados e jaziam promiscuamente no solo, formando num ponto um montículo de certo vulto. Nessa parede assim exposta pela remoção dos ossos, percebia-se um recesso ainda mais recôndito, com um metro e vinte centímetros de fundo, noventa centímetros de largo e um metro e oitenta a dois metros e dez de alto. Parecia não ter sido construído com qualquer fim específico, constituindo apenas o intervalo entre dois dos colossais suportes do teto das catacumbas, e era limitado, ao fundo, por uma das paredes circundantes em granito sólido”.46

Nos referimos às catacumbas como paradigma da habitação, que encontrou na literatura diversas descrições, percorrendo caminhos subterrâneos, encontramos uma terra oculta e profundamente lendária, representada por diversos artistas e poetas que expressam o assombro que sentimos diante da morte. Nos cemitérios subterrâneos escavados em complexas galerias, encontramos em Roma o mausoléu de Santa Constanza (fig. 25), que em sua composição visual adere as formas escultóricas assumindo caráter histórico e contemplativo. Em suas figurações simbólicas expressa o significado metafórico da eternidade da alma. 45

QUINTANA, Mário. Baú de espantos. Os Degraus. Rio de Janeiro - Editora Globo. 1986. p.33. POE, Edgar Allan. O pipo de amontillado. www.supervirtual.com.br/acervo, consultado em 23 de março de 2006. 46


52

25 – Detalhe do Mausoléu Santa Constanza, vista interna, c 350. ARGAN. G. C. Historia da Arte Italiana. Da antiguidade a duccio. Cosac & Naify, 2003, p.242.

De fato, a terra adere a uma afirmação que substancializa a participação dos outros elementos, aderindo outras qualidades, unindo imagens e substâncias.


53

FOGO

Compreendemos o fogo como uma imaginação material que se associa aos devaneios mitológicos, as paixões e ao desejo de habitar. Esteticamente o fogo expressa sua cólera na origem primitiva da humanidade. A luz emanada do fogo reunia os homens em volta do seu calor aconchegante, induzindo a apreciação e a meditação na imagem desse elemento, assim o fogo foi elemento primordial na vida doméstica. Segundo os relatos de Vitrúvio, com o fogo surgiram as primeiras reuniões e a ocorrência da vida em comum, passou a ser cada vez mais freqüente. Iluminando os salões das cavernas, a luz do fogo desenhava a primeira morada. Consagrado por muitos como elemento sagrado, constituiu os altares como uma divindade poderosa, aquecedor e divino, dava aspecto sagrado à moradia, alternando o significado da casa em templo. A gravura de Fra Giocondo (fig. 26), manifesta o arquétipo primitivo do fogo que idealiza a sua descoberta como um grande acontecimento. O que havia sido um acidente acabou se tornando uma das maiores descobertas da humanidade. Segundo (VITRUVIO apud RYKWERT, 2003): “Num certo momento, sucedeu que as árvores espessas e compactas, golpeadas pela tempestade e pelo vento, friccionaram os seus ramos, uns contra os outros, e se incendiaram: os homens, testemunhas do ocorrido, ficaram aterrorizados e fugiram. Ao baixarem, as chamas eles se aproximaram e, percebendo o conforto de seus corpos aquecidos pelo calor do fogo, lançaram mais madeira, e enquanto o mantinham vivo chamaram a outros homens, apontando-o com sinais que indicavam o quão útil ele poderia ser”. 47

47

RYKWERT, op cit., p. 120.


54

26 – A descoberta do fogo, segundo Fra Giocondo. RYKWERT, Joseph. A casa de adão no paraíso. Editora Perspectiva. São Paulo. 2003. p. 123.


55

Além de sua função confortante, o fogo toma aspecto mitológico, onde pode ser divino e signo de sabedoria universal. Na tragédia “Prometeu acorrentado”, narra a cena mitológica segundo ÈSQUILO (c. 525 AC-456 AC): “Ó divino éter! ó sopro alado dos ventos! Regatos e rios. ondas inumeráveis, que agitais a superfície dos mares! Ó Terra, mãe de todos os viventes, e tu, ó Sol, cujos olhares aquecem a natureza! Eu vos invoco!... Vede que sofrimento recebe um deus dos outros deuses! Vede a que suplício ficarei sujeito durante milhares de anos! E que hediondas cadeias o novo senhor dos imortais mandou forjar para mim! Oh! eis-me a gemer pelos males presentes, e pelos males futuros! Quando virá o termo de meu suplício? Mas... que digo eu? O futuro não tem segredos para mim; nenhuma desgraça imprevista me pode acontecer. A sorte que me coube em partilha, é preciso que eu a suporte com resignação. Não sei eu, por acaso, que é inútil lutar contra a força da fatalidade? Não me posso calar, nem protestar contra a sorte que me esmaga! Ai de mim! Os benefícios que fiz aos mortais atraíram-me este rigor. Apoderei-me do fogo, em sua fonte primitiva; ocultei-o no cabo de uma férula, e ele tornou-se para os homens a fonte de todas as artes e um recurso fecundo... Eis o crime para cuja expiação fui acorrentado a este penedo, onde estou exposto a todas as injúrias! Oh! Ai de mim! Que rumor será este? Que estranho perfume vem para mim? Será de origem divina ou mortal? Ou de uma e de outra ao mesmo tempo? Quem quer que seja, virá apenas contemplar meu sofrimento, ou que outro motivo o traz? Vede, eis aqui, coberto de correntes, um deus desgraçado, incurso na cólera de Júpiter, odioso a todas as divindades que freqüentam seu palácio, tudo isso porque amei os mortais... Mas... que ouço agora? Será um rumor de aves que se aproximam? O ar se agita a um bater de asas... Seja o que for, tudo me apavora!”. 48

O fogo mitológico foi incansavelmente representado nas artes, Pieter Paul RUBENS expressou em sua pintura (fig. 27), a dor de Prometeu, que tendo enfurecido Zeus por ter roubado o fogo divino, havia sido acorrentado ao penhasco, onde uma águia devorava diariamente seu fígado, que se refazia a cada dia. O dinamismo de Prometeu em roubar o fogo celeste associado à dor de seu exílio no penhasco demonstra o humor colérico dentro da dimensão mitológica. Sob todos os pontos de vista, a luz em suas diversificadas nuances serve tanto para produzir prazer como dor.

48

ÉSQUILO. Prometeu Acorrentado. (c. 525 AC-456 AC). Tradução J. B. de Mello e Souza. Versão para eBook: www.ebooksbrasil.com. Consulta em 26 de março de 2006.


56

27 – RUBENS, Pieter Paul - Prometheus Bound - (1612) Philadelphia Museum of Art. Ă“leo sobre tela. (243cm x 209cm) - www.artonline.it/artista.asp. Consulta em 26 de março de 2006.

Desde os tempos antigos o fogo em sua forma universal, agregava lendas, estabelecendo uma identidade coletiva entre diversos grupos, sem qualquer contato cultural entre si. O rito e o mito se associam na imagem do fogo, arraigando a casa de significados.


57

De caráter essencial na vida do homem, a luz do fogo pode se associar à virtude, estabelecendo contato com o espírito divino, que traz as excelsas centelhas celestiais. Num sentido filosófico, o fogo é um elemento transmutável de ilusão, força motivadora de seguir adiante. A imagem do fogo é a força das lendas de nossa cultura. A sensibilidade estética ultrapassa o campo das formas visuais, busca a harmonia do homem com o universo. Jorge M. C. MIGUEL (2002), enfatiza o caráter do fogo como alma da casa: “O fogo – representado por Héstia, a deusa grega do lar – associa-se à casa para representar a criação de um lar, que através de sua chama transpassa a imagem da fertilidade e metáfora da vida. O fogo representa a alma da casa, sendo um símbolo da fertilidade feminina e da vida, chama sagrada e benéfica. É no fogo que está o âmago da visão orgânica de Wright como nos lembra Luis Fernandez Galiano, onde a utilização do fogo passa a ser mais simbólica que funcional. Nas Prairie Houses podemos notar o papel protagonista que nelas desempenham as lareiras, foco em torno do qual se desenvolve o espaço arquitetônico e a vida de seus moradores e as chaminés que apelam a uma tradição primitiva que faz do fogo a alma e o símbolo do lar.”49

O calor do fogo que aquece as lareiras nos envolve como uma caricia suave, poderia ser associado ao tato. A lareira abordada como “instrumento de solidão”, junto ao homem pensativo, conectado a emoções primitivas, hipnotiza e encanta. A permanência secreta deste elemento aquece e fala com a voz nítida da chama. O ato de sentar próximo à lareira para contemplar o fogo, transporta a imaginação para um fogo primordial, suave que compartilha sua potência afetiva. Há muito já se observou as formas humanas nas lareiras, como um ventre suspenso que carrega em seu interior propriedades aquecedoras, a chama da vida. O fogo mesmo que distante, existe como imagem mental. Edgar MORIN (1975), aborda essa segunda existência:

49

MIGUEL, Jorge Marão Carnielo. Casa e lar. A essência da arquitetura. 2002. Texto especial 156. www.vitruvius.com.br. Consulta em 26 de março de 2006.


58

“Esse objeto adquire uma imagem mental, até mesmo fora de sua presença. Assim a linguagem já abriu a porta à magia: desde o momento em que qualquer coisa traz imediatamente ao espírito a palavra que a identifica, essa palavra produz imediatamente a imagem mental da coisa que ela evoca e confere-lhe a presença, ainda que ausente.” 50

Universalmente a mesma chama brilha em todas as partes do mundo ao mesmo tempo. Elemento íntimo, a alma da lareira, por sua luz, o fogo é divino. Invade as trevas da noite, propaga-se incandescente no espírito. O fogo como fenômeno estético que purifica e transforma está associado a uma consciência do tempo que mantêm sua identidade no imaginário, rompendo a percepção do real. “Um certo fogo quer viver, ele desperta; guiando-se ao longo da mão condutora, atinge o suporte e invade, depois fecha, faísca saltadora, o círculo que devia traçar: retorna ao olho e mais além”. 51 Em constante mudança, o fogo como protagonista tem a lareira como cenário, onde o tempo se consome em suas chamas. Na obra de Wright (fig. 28), a lareira emoldura o fogo como adorno que emerge a existência do duplo, pela sombra que acompanha cada chama. A lareira é um elemento substancialmente central na arquitetura de Wright, onde o fogo existe como o coração da pedra, a vida que arde na sala. Na abordagem dos quatro elementos, o fogo, sem dúvida, se incorporou como espírito vital nos projetos de Wright. O fogo imaginado como coração, substancialmente anima a casa com qualidades íntimas na existência das coisas. Para Bachelard que fez um estudo completo sobre os fogos imaginários, expunha que: “são chamas multicoloridas, chamas moventes, chamas volantes. Um fogo íntimo as anima, preparando as metáforas”. 52 O fogo associado ao prazer e ao êxtase procura alguma ligação entre o espaço existencial, com o mitológico, o que Walter Benjamin chamou de “esvaziado de realidade”.

50

MORIN, Edgar. O enigma do homem. Tradução de Fernando de Castro Ferro. Rio de Janeiro, Zahar, 1975. p. 107. 51 MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. Cosac & Naify. São Paulo. 2002. p. 44. 52 BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. Tradução Paulo Neves. São Paulo, Martins Fontes: 1999. p.65.


59

28 WRIGHT, Frank Lloyd The Masterworks. Bruce Brooks Pfeiffer, David Larkin editor. NY. 2004.

O fogo em sua fúria delimita os excessos da imaginação de potência criadora. É preciso um “fogo mais íntimo” para impregnar a substância do tempo. O fogo conquista o interior com bravura, revelando a imaginação profunda da matéria.


60

A luz se ergue sublimemente até as alturas, onde somos arrebatados pelo entusiasmo. A paixão que emerge do fogo transborda a alma de poesias, expande os sentimentos em seu calor: Na sedução dramática de uma experimentação simbólica dos elementos, o fogo se ergue sublimemente até as alturas, onde somos arrebatados pelo entusiasmo. Numa atmosfera de volúpia mergulhamos na sensualidade da chama de que aquece a alma e o corpo. Se tentássemos encontrar uma definição subjetiva do fogo veríamos, talvez, que se trata de tarefa muito difícil, da mesma maneira como se tentássemos definir a sensação de calor ou o sentimento de paixão. No poema “The tyger” de William Blake, o poder do fogo é expresso nos olhos de um tigre que flameja na escuridão como a chama de um fogo imortal e simétrico: Tygre! Tygre! Brilho, brasa que a furna noturna abrasa. que olho ou mão armaria tua feroz symmetrya? Em que céu se foi forjar o fogo do teu olhar? Em que asas veio a chamma? Que mão colheu esta flamma? Que força fez retorcer em nervos todo o teu ser? E o som do teu coração de aço, que cor, que ação? Teu cérebro, quem o malha? Que martelo? Que fornalha o moldou? Que mão, que garra seu terror mortal amarra? Quando as lanças das estrelas cortaram os céus, ao vê-las. quem as fez sorriu talvez?


61

Quem fez a ovelha te fez? Tygre! Tygre! Brilho, brasa que a furna noturna abrasa, que olho ou mão armaria tua feroz symmetrya? 53

A imagem primordial do verdadeiro fogo puro como substância dos sonhos que realizam a intimidade. A chama aspira a santidade divina, o fogo que consumia e transformava agora ilumina, o que Bachelard chamou de “fogo puro”: “Parece situar no seu limite, na ponta da chama, onde a cor dá uma vibração quase invisível. Então, o fogo se desmaterializa, se desrealiza; torna-se espírito”. 54 A luz do fogo produz sombras animadas, recai nos objetos projetando sombras, devaneios fluídos. O fogo é um tempo à parte, uma outra dimensão. Primitivamente o fogo anima o ambiente aquecendo com uma vitalidade dinâmica. Símbolo extremamente vivo, devaneio das formas quiméricas ou irreais, desdobra-se nas produções próprias do espírito, tão potencialmente estético quanto mágico. De caráter ambíguo, o fogo causa profundas mudanças na matéria, metamorfoseando as formas, cores, aromas e sabores. Num sentido filosófico é um elemento transmutável de ilusão, força motivadora de seguir adiante. A estética do fogo está em sincronia com o calor, produzido pelo universo que engloba todos os seres físicos. No sonho, o devaneio diante do fogo encontra o grande mistério, num nível superior, a natureza difusa desse elemento é cheia de verdades oníricas. O calor como forma estética se desfaz do tempo no quadro de Salvador Dali (fig. 29). A paisagem se derrete no calor profundo, tudo se relaxa, expande e desmancha. A luz nesta pintura recebe o caráter expressivo do calor traduzido através de propriedades oníricas dos objetos. 53

CAMPOS, Augusto de. "O Tygre” poema de William Blake. Viva Vaia (Poesia 1949-1979) Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1979. 54 BACHELARD, A psicanálise do fogo, op. cit., p. .


62

29 DALI, Salvador - The Persistence of Memory, 1931 - Museum of Modern Art, New York. www.moma.org/collection, consulta em 26 de março de 2006.

Segundo LUCRECIO (1973): “A natureza constitui como um fogo sutil entre todos os fogos, feitos de elementos diminutivos e móveis a que coisa alguma pode opor-se. [...] porque o calor que chega evidentemente relaxa tudo a sua volta, [...]. Ora, parece que o calor do sol, apesar da força de seu coruscante fogo, e mesmo com ajuda do tempo, não conseguiria tais efeitos”. 55

O fogo exterioriza seu signo de calor, guardamos nos sonhos o calor materno e profundo, sensação íntima de aquecimento condensada no espaço. Na magia imitativa do sol, no espírito luminoso. Esta percepção manifestada em nossas expectativas de que, mediante sua adequada aplicação, se possa alcançar mais clareza e exatidão por meio dos raciocínios filosóficos. 55

CARO, Tito Lucrécio. Coleção os pensadores in Da natureza. Tradução de Agostinho da Silva. São Paulo. Abril Cultural. 1 ed. 1973. p.112.


63

30 MONET, Crepúsculo em Veneza, 1908. Museé www.marmottan.com/francais/claude_monet/ consulta em 30 de março de 2006.

Marmotan,

Paris.

Monet conhecia todas as nuances da luz do sol, na pintura “Crepúsculo de Veneza” (fig. 30), representou o aspecto poente e quente do fogo. A experiência visual parece ser uma lembrança, uma imaginação poética que se realiza na luz. A luz do sol traz a unidade de todas as coisas nos alimentando de visões e percepções. Modela volumes e projeta sombras nas quais se criam espaços interiores alternados de acordo com a incidência do calor psíquico gerado.


64

De maneira mutante a luz concebe vida aos objetos, que são ainda mais vívidos na imaginação. A luz é capaz de criar sombras imaginárias em todas as situações de espaço e de tempo. Sem a luz dos olhos, não poderíamos observar nem forma, nem cor, nem espaço ou movimento. Mais do que uma causa física a luz é uma das experiências humanas mais poderosas. GOMBRICH (1982) salienta que: “Como a luz vem do alto, a vida da terra não está mais no centro do mundo, mas no seu fundo escuro. Os olhos são feitos para entender que a harmonia humana nada mais é que um vale de sombras, dependendo humildemente da verdadeira existência das alturas”.56

O fogo conhece os segredos da luz do sol, como uma poesia arquitetônica, que foi traduzida em palavras por Jorge Luis BORGES (1984) no poema Calle desconocida:

“[...] Sólo después reflexioné que aquella calle de la tarde era ajena, que toda casa es un candelabro donde las vidas de los hombres arden como velas aisladas, que todo inmediato paso nuestro camina sobre Gólgotas."57

Por intermédio da luz recriamos o imaginário na nossa mente. A luz descoberta um mundo em que acontecem misteriosas formas e símbolos podem ser usados para significar e sugerir outras coisas além deles mesmos. No simbolismo da luz se encontra sua expressão oposta, na percepção de sua ausência, nas sombras da memória. Buscando a exata tonalidade da luz guardada num tempo distante. 56

GOMBRICH, Ernest. Arte e ilusão. Tradução Raul de Sá Barbosa. São Paulo: Martins Fontes, 1980. p. 81. BORGES, Jorge Luís. Obras Completas. I tomo. Buenos Aires. Emecé/ círculo de lectores. 1984. p.22. “[...] Só depois refleti que aquela rua da tarde era alheia, que toda casa é um candelabro onde as vidas dos homens ardem como velas isoladas, que tudo imediato passo nosso caminha sobre Gólgotas”. 57


65

A luz percebida como ponto de centralidade entre os astros revela o que ainda não conhecemos. Da luz surge o mundo das sombras, claro e escuro como um conflito entre o bem e o mal, baseados na metáfora do dia e da noite. A luz como representação simbólica do divino. Segundo GOMBRICH (1982): “Como a luz vem do alto, a vida da terra não está mais no centro do mundo, mas no seu fundo escuro. Os olhos são feitos para entender que a harmonia humana nada mais é que um vale de sombras, dependendo humildemente da verdadeira existência das alturas”.58

À noite a luz cria no espaço impressões visuais quando experimentamos tais imagens sinestésicas de maneira quase que incomunicável. Buscar inspiração nas esferas impalpáveis em que o mundo da mente, do sonho, poderá ser explorado por experiências que resultem em convenções aceitas pelo mundo do olho desperto.

31

HERZOG

&

DE

MEURON:

olympischen

www.ethlife.ethz.ch/articles/news/schweizerarch.html. Consulta em 26 de março de 2006. 58

GOMBRICH, op. cit, p 21.

Sommerspiele.


66

Dentro da estética de Bachelard a obra de Herzog e de Meuron (fig. 31), enxerga as estrelas e as captura em sua imagem, como um grande olho humano. Segundo BACHELARD (1996): “É um olho aberto para a noite. Parece que em tais imagens as estrelas do céu vêm habitar a terra”. 59 Na arquitetura encontramos o cinema (fig. 32), como um centro de ilusões, na arquitetura das luzes é perceptível um fogo espacial, que exibe um filme monumental, ofuscando as estrelas e tornando a noite um grande acontecimento. Um espetáculo a céu aberto que brilha como uma imensa lareira. A imagem do fogo nos arrasta para o mundo da luz, enriquecida de uma substância infinita que penetra nosso íntimo. Uma representação da mobilidade universal.

32 - Coop Himmelb au Busan Cinema Center Busan, South Korea - www.arcspace.com/architects/ coop_himelblau/busan/busan.html, consulta em 27 de março de 2006.

59

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Martins Fontes, São Paulo. 1996. p 21.


67

A imagem ígnea participa dos domínios materiais, na descontinuidade de suas chamas desvenda a multiplicidade de seus significados. O fogo vive uma aventura espacial dentro da arquitetura, percorre domínios sombrios, iluminando o que os olhos desejam ver. O fogo em lado grandioso se liberta da realidade, permite o aspecto fantástico agregada a uma visão particular. Nutre múltiplas fontes de imaginação, negligencia o existente para que se renasça em uma nova chama. Seu campo de abrangência engloba o real e o imaginário em uma continuidade de acontecimentos. As interações físicas e psíquicas desse elemento pretendem iluminar tudo, em qualquer lugar que encontre seu eco, espalhando o maravilhoso fervilhar de suas chamas por todas as partes. Impulsionando a imaginação, que se manifesta livremente o sonho permite descobrir os encantamentos do fogo. Mesmo a mais vertiginosa imagem do inferno traduz em inúmeros aspectos virtuais. Portanto, penetrar na natureza do fogo é como voltar ao estado primitivo, mergulhar na grande beleza poética de todas as culturas que narram e apreciam o fogo. Ultrapassar o medo do insólito e vencer a chama, sentir o calor universal que transborda nas ressonâncias do instinto. O fogo pertence ao reino instantâneo que proporciona o poder visionário da luz, encarregado de representar as formas e desobstruindo o espaço. Os símbolos ígneos se projetam no tempo, que vivem latentes no interior da terra, exprimindo o universo vulcânico onde a natureza arde em chamas. Simula a sinuosidade figurativa nos desejos edificantes. O fogo é uma experiência alucinatória e subjetiva que vai além da realidade visível. Transcender a imagem ígnea é conhecer as próprias raízes primitivas que iluminam toda a existência espacial.


68

AR

A estética do ar está ligada à imaginação criadora que pretende formar a imagem percebida. A imagem mental tem qualidade aérea e num aspecto Surrealista origina e reabilita o sonho, em suas brumas cria cenários de ambientes imaginários.(DUPLESSIS, 1963 apud ARAGON): “Há outras relações que o espírito pode aprender, e que são tão primárias quanto ao acaso, a ilusão, o fantástico e o sonho. Estas diferentes espécies reúnem-se e conciliam-se num gênero que é a supra-realidade”. 60 O devaneio aéreo transporta as imagens celestes para a terra, busca as formas ideais que existem numa outra dimensão, chamada pelos antigos cabalistas de Or en Sof, o mundo infinito, que fora citado por tantas vezes dentro filosofia judaica. Uma dimensão onde estão guardadas todas as belezas, as mais belas formas arquitetônicas, literárias e musicais. Segundo BERG (1998): “Or ein sof – A luz do infinito, de onde brotam todas as emanações futuras. A luz primordial onde as almas estavam em perfeita harmonia com o Criador. Um equilíbrio perfeito entre o infinito aspecto de dar do Criador e o infinito aspecto de receber de suas criaturas – as almas dos homens. Aquilo do qual nada pode ser compreendido, mas que mesmo assim deve ser postulado”.

61

A imaginação visual é um dom universal da mente que experimenta a configuração das imagens de sua experiência. Para HUME (1999), o corpo pode estar confinado em um determinado local, mas seu pensamento pode nos transportar até às regiões mais distantes do Universo: “Em resumo, todos os materiais do pensamento derivam de nossas sensações externas ou internas; mas a mistura e composição deles dependem do espírito e da vontade. Ou melhor, para expressar-me em linguagem filosófica: todas as nossas idéias ou percepções mais fracas são cópias de nossas impressões ou percepções mais vivas. [...] Até mesmo em nossos mais desordenados e errantes devaneios, como também em nossos sonhos, notaremos se refletimos, que a 60

DUPLESSIS, Yves. O surrealismo.tradução de Pierre Santos. 2 ed. Difusão Europeia do livro. São Paulo.1963. p.34. 61 BERG, Rav. Phillip. O poder do um. Centro de Cabala. São Paulo. 1998. p. 310.


69

imaginação não vagou inteiramente a esmo, porém havia sempre uma conexão entre as diferentes idéias que se sucediam. Se se transcrevesse a conversa mais solta e mais livre, notar-se-ia imediatamente alguma coisa que a ligou em todas as suas transições”. 62

A imaginação como leitora do ambiente é estimulada por uma contínua manifestação de sensações. Numa visão madura, todas as coisas parecem se assemelhar umas com as outras. Nossa imaginação viaja pelos ares em busca da forma ideal, da moradia perfeita, nas viagens de Zaratustra esse desejo foi romantizado. Assim narra NIETZSCHE (1983): “Um bom vento, somente quem sabe para onde viaja sabe também que vento é bom e qual é o vento de sua viagem. O que me restou ainda, um coração cansado e insolente; uma vontade instável; asas esvoaçantes; uma espinha dorsal quebrada. Essa procura pelo meu lar, ó Zaratustra, bem o sabes, foi minha tortura particular, ela me devorava”.63

Nessa incessante busca, encontramos abrigos em movimento, que deslocam suas formas e colorem dinamicamente o imaginário. Nesse estado fluídico captamos nossos próprios desejos, conjugamos sonhos edificantes. Segundo BACHELARD (2002): “[...], a viagem aos mundos longínquos da imaginação só conduz bem um psiquismo dinâmico se assumir o aspecto de viagem ao país infinito. No reino da imaginação, a toda imanência se junta a uma transcendência. É própria da lei de expressão poética ultrapassar o pensamento”. 64

Como uma miragem infinita projetada dentro da irrealidade, que se impõe psiquicamente estimulando o reino das imagens à penetrar a matéria. Bachelard vivencia o infinito aéreo, compreendendo todas suas dimensões. Para BACHELARD (2002): “Quando tivermos praticado a psicologia do ar infinito. Compreendemos melhor que no ar infinito se apagam as dimensões e que tocamos assim nessa matéria não-dimensinal que nos dá impressão de uma sublimação íntima absoluta”. 65 62

HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 14. NIETZSHE, Fridrich. Coleção Os Pensadores. Assim falou Zaratustra. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. Abril Cultural. 3 ed. São Paulo. 1983. p. 227. 64 BACHELARD, A água é os sonhos, op. cit., p.7. 65 BACHELARD, A água é os sonhos, op. cit., p.10. 63


70

A dinâmica do ar busca o lúdico, o intangível nas formas materiais, que pretende transcender o espaço. Só a imaginação pode enxergar o movimento edificante das nuvens. Segundo SCHOPENHAUER (2001): “Quando as nuvens se atraem, as figuras que formam não são essenciais, são lhe indiferentes. Todavia, que elas sejam condensadas como vapor elástico, impulsionadas, estendidas, rompidas pelo movimento do vento, eis aí sua natureza, a essência das forças que nela se objetivam, eis aí sua idéia”. 66

A mutabilidade do mundo aéreo desperta nossa capacidade de ver as projeções das nuvens. BACHELARD (2003), encontrou as formas imaginárias que se formam nas nuvens: “Mas é com as nuvens que a tarefa se torna a um tempo grandiosa e fácil. Nesse amontoado globuloso, tudo rola ao nosso gosto, montanhas deslizam, avalanches desmoronam e depois se acomodam, os monstros inflam e depois se devoram um ao outro, todo o universo se regula segundo a vontade do sonhador”.67

No mundo da imaginação a construção das imagens é constituída dos movimentos das nuvens, ativando uma capacidade do espírito de cumprir as vontades visualmente criadoras. A maleabilidade das nuvens provoca as forças oníricas do vento que compõem formas inspiradoras como uma grande cena aérea. O devaneio das nuvens segue uma continuidade dinâmica e deformada que vivencia o tempo alado das metamorfoses voantes. John Ruskin num estudo sobre nuvens (fig. 33), vivenciou a paisagem da mobilidade aérea em todas as suas metáforas, e devaneou sobre a profundidade do céu azul encoberto de nuvens.

66 67

SHOPENHAUER, A metafísica do belo, op. cit., p. 52. BACHELARD, O ar e os sonhos, op. cit., p.190.


71

33 -"Estudo nuvens", John Ruskin. Fonte: Ruskin´s Library, University of www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp314.asp, consulta em 27 de março de 2006.

Lancaster,

2004.

O sopro divino que invisivelmente conecta todas as coisas carrega o movimento sereno das folhas, acalmando a mente. Símbolo da vida imaginativa expande-se produzindo ventanias, moldando nuvens, penetrando os ambientes em um ritmo purificante, representa a liberdade do mundo das idéias. Com o poder de transportar todas as consciências, carrega pensamentos, imagens, sons de lugares distantes para dentro de nosso abrigo. Na investigação de HUME (1999), a casa pode se elevar dentro da imaginação material: “Que uma casa ou um navio se eleve no ar é um Visível milagre. Que se levante uma pena é um milagre igualmente real, se bem que não tão notável para nós quando não há vento, embora se necessite tão pouca força para sua realização”.68

68

HUME, op. cit., p 22.


72

34 - HERZOG & DE MEURON – Außenansichten- Bibliotheksansicht. Alemanha (2005). www.ub.tucottbus.de/ikmz/galerie/bau_0151.htm, consulta em 27 de março de 2006.

Podemos imaginar a elevação da arquitetura no ar na obra de Herzog e De Meuron (fig. 34), onde a forma dinâmica e fugaz das paisagens externas aéreas são devaneadas nos matizes celestes refletidos nos panos de vidro do edifício, que participa da realidade aérea, na leveza e transparência dos vidros que refletem o céu, denominando um espaço aéreo tão cheio de imagens quanto a terra. Edifício mutante que capta as imagens celestes para sua própria imagem. Em sua verticalidade, a arquitetura busca os domínios celestes, assim como o ser humano almeja sua divindade. Segundo BACHELARD (1999): “A verticalidade é uma dimensão humana tão sensível que por vezes permite dilatar uma imagem e dar-lhe, nos dois sentidos, para cima e para baixo, uma extensão considerável. Todo sonhador que ama a verticalidade fumará seu cigarro com outros sonhos se meditar sobre o duplo movimento desta imagem [...]”. 69 69

BACHELARD. Psicanálise do fogo, op. cit., p. .35.


73

Na duplicidade das coisas, o universo terreno é uma sombra do universo celeste. Como diziam os cabalístas: “Assim está em baixo, como assim está encima”. O vento carrega as lembranças de volta, o imperfeito futuro que propaga promessas antigas, a dor dormente que não deixa de existir vem acompanhada de felicidade e tristeza. Devaneado por tantos poetas, o vento foi intensamente vivido na angustia de Florbela ESPANCA: O vento passa a rir, torna a passar, Em gargalhadas ásperas de demente; E esta minh'alma trágica e doente Não sabe se há-de rir, se há-de chorar! Vento de voz tristonha, voz plangente, Vento que ris de mim, sempre a troçar, Vento que ris do mundo e do amar, A tua voz tortura toda a gente!... Vale-te mais chorar, meu pobre amigo! Desabafa essa dor a sós comigo, E não rias assim!... Ó vento, chora! Que eu bem conheço, amigo, esse fadário Do nosso peito ser como um Calvário, E a gente andar a rir p'la vida fora!...70

O vento ocasiona o que Bachelard chama de “mobilidade das imagens”, baseadas na derivação da imagem, contudo a obra de Frank Gehry (fig. 35) é determinada pelo próprio movimento. Essa arquitetura possibilita uma paisagem viva, alimentada pelo lirismo espacial do vento. Experimentamos as imagens soltas no ar como uma metáfora aérea, que em seu agrupamento nos convida a participar do movimento.

70

ESPANCA, Florbela. Sonetos. Publicações Europa América. Lisboa.1970. p.43.


74

35 GEHRY, Frank. Der Neue Zollhof Düsseldorf, www.arcspace.com/architects/gehry/zolhoff, consulta em 27 de março de 2006.

Germany

-

1999.

O vento carrega o ar de belezas reais e imaginárias, e absorvemos a realidade que existe em cada utopia proporcionadas pela percepção. O trajeto imaginativo deriva de uma metamorfose de imagens, que se forma dentro do “psiquismo imaginante”. O movimento é o condutor das imagens aéreas, que existem num estado atemporal. A mobilidade das formas descrevem seus próprios movimentos, determinando as imagens dispersas experimentando a verticalidade. A vida aérea dos edifícios contém a sensibilidade da altura, vivencia o sonho da árvore aérea com suas raízes presas à terra e sua copa ao vento. Essas imagens podem se evaporar ou solidificar no mundo material a partir dos princípios edificantes. O mobilismo induz nosso próprio ser a querer conhecer as alturas. A vaporização do ar permeia o cenário de Monet, a imagem aérea cria devaneios sobre o signo do castelo aéreo, existente em mundos imaginários que gravitam em torno das lendas. Segundo SCHOPENHAUER (2001): “o que se encontra longínquo no tempo e no espaço, sempre é envolto por um encanto maravilhoso, devido a uma auto-ilusão”. 71

71

SCHOPENHAUER, op. cit., p.96.


75

36 MONET, Claude. La cathĂŠdrale de Rouen. A fachada e a torre de Saint-Romain na Aurora, 1884.. Heinrich, Christoph. Claude Monet. Benedikt Taschen.Germany. 1995. p.25.


76

Monet em sua pintura demonstrava construções povoadas de paixões adormecidas num aspecto sublime. Como uma miragem, La cathédrale de Rouen (fig. 36) surge como uma compreensão espiritual dos peregrinos fatigados. A visão fascinante do catedral guarda tesouros alados na essência aérea. A realização clara da edificação inconcebível materializa o impossível. Um templo esplendoroso que existe nas brumas. Numa atmosfera sonhadora, as construções são impregnadas de romances, buscam a emoção do ser em sua própria arquitetura. Envolvidos de mistérios guardam segredos íntimos em suas pedras aladas, insolitamente expressam todas as possibilidades de devaneio se aproximando com o fantástico. A construção imaginária é eterna e atravessa gerações intacto em sua força onírica, traduz a paixão pela eternidade, exalta-se no espírito aéreo. Certos lugares favorecem a imaginação aérea, ao entrarmos em uma construção real, imediatamente somos conduzidos por sua história secular para o espírito atemporal da própria construção, onde a imaginação manifesta intensamente em um estado de sonho profundo. O encantamento das construções vem de sua capacidade de nos persuadir de um espírito oculto, algo que guardamos dentro de nós mesmos. A mansão aérea, dentro de sua eternidade, guarda riquezas espirituais, pode ser encontrado na existência de muitas lendas como a da bela e mortal Psiquê que havia adormecido e sido conduzida pelos ventos até um castelo encantado: “Enquanto chorava e tremia, uma doce brisa insinuou-se pelo silêncio e veio acariciá-la, um suave sopro de Zéfiro, o mais doce e suave dos ventos. Ela sentiu levantá-la do chão. Flutuando pelos ares, foi descendo da montanha rochosa até pousar, finalmente em uma relva que tinha a maciez de um leito e do qual brotavam flores do mais delicioso perfume. Tudo ali era tão belo e tão calmo que todas as suas preocupações desapareceram, ela adormeceu. Acordou ao lado de um rio maravilhoso em cuja margem se erguia uma gloriosa mansão, tão bela que parecia construída para abrigar um Deus. Os pilares eram de ouro, as paredes de prata, e os assoalhos reluziam com incrustações de pedras. Não se ouvia um único som; o lugar parecia deserto, r Psiquê aproximou-se, com reverência e temor, daquela visão de tamanho esplendor. Quando hesitou na porta de entrada, ouviu vozes que a ela dirigiam, não via ninguém, mas as palavras lhe chegavam com perfeita nitidez. A casa era para ela diziam-lhe”. 72

72

HAMILTON, Edith. Mitologia, Tradução de Jéferson Luis Camargo. Martins Fontes, São Paulo.1997 p.129.


77

O mito Psiquê adormecida levada pelos ventos, encantada pelos sonhos foi interpretado na pintura (fig. 37) e na poesia “Eros e psique” de Fernando PESSOA (1976): “Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria Um Infante, que viria De além do muro da estrada Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que à Princesa vem. A Princesa Adormecida, Se espera, dormindo espera, Sonha em morte a sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera. Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado, Ele dela é ignorado, Ela para ele é ninguém. Mas cada um cumpre o Destino — Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada. E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro, E vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora, E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia, Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia”. 73 73

PESSOA, Fernando. Obra poética. Org.Introd. e notas Maria Aliete Galhoz, RJ. Editora Nova Aguilar, 1976. Vol. Único. p. 22.


78

37 BOUGUEREAU, William -Le Ravissement de Psyche – óleo sobre tela (209 x 120 cm), 1985. Coleção privada. www.artrenewal.org/museum/b/Bouguereau_William. Consulta em 27 de março de 2006.


79

No filme “Der Himmel über Berlin” (fig. 38), de Wim Wenders, o tempo alado sobrevoava o céu de Berlin, coberto de nuvens translúcidas. Vozes vagavam silenciosamente na fragilidade aérea. A descida angelical aos territórios humanos descreve um anjo que abandona a vida celestial para viver um grande amor com uma malabarista, que assim como ele também conhece o elemento aéreo.

38 – Imagens do filme Der himmel uber Berlin de Wim Wenders 1987. www.wimwenders.com/movies/movies_spec/wingsofdesire/wingsofdesire.htm consulta em 27 de março de 2006.


80

BACHELARD (2002), abordou a natureza voadora de certas substância, que libertam as imagens, desprendendo dos elementos a substância onírica: “A substancia pura é um ser voador: é preciso ajudá-lo a abrir suas asas. Em todas circunstâncias da técnica de purificação pode-se acrescentar imagens de libertação nas quais o aéreo se separa do terrestre, e vice versa”.74

Na poética alada, Richard Meyer (fig. 39) trouxe a imagem alada dos céus para sua arquitetura na terra. A igreja de Roma tem o movimento dos anjos. A leveza do movimento moderno incorporou o elemento aéreo em sua estética. Ser e estar espacialmente em todos os ambientes unifica a casa numa visão espiritual e política, onde ansiamos esse rompimento de fronteiras, existindo em tudo a um só plano.

39 – MEIER, Richard. Jubilee Church Roma, features/Feature123.htm, consulta em 27 de março de 2006.

74

BACHELARD, O ar e os sonhos. Op. cit., p. 273.

Itaia.

1996-2000

-

www.archnewsnow.com/


81

Na obra de Le Corbusier (fig. 40), a casa é aérea, participa da realidade celeste. As paisagens do céu vêm habitar a terra. O sonho de vôo requer altitude e por isso a arquitetura moderna tem asas e convive com o espaço aéreo em paz com a luz. A arquitetura leve e livre, segundo (Leonardo Da VINCI apud BACHELARD 2003): “A leveza nasce do peso, e reciprocamente, pagando imediatamente o favor de sua criação, ambos aumentam em força na proporção que aumentam em vida, e têm tanto mais vida quanto mais movimento têm. Eles também se destroem mutuamente no mesmo instante, na comum vendeta de sua morte. Pois assim é feita a prova, a leveza só é criada se estiver em conjunção com o peso, e o peso só se produz se se prolongar na leveza”.75

40 LE CORBUSIER, Villa Savoye – www.ca-schleppy-chaux-de-fonds.ch - consulta em 27 de março de 2006.

75

BACHELARD. O ar e os sonhos, op. cit., p. 22.


82

A arquitetura moderna associada às linhas retas poderia ser lida por Bachelard, que apesar de não tê-la citado em sua obra, parece ter pressentido sua existência aérea: Para BACHRLARD (2002): “Toda linha graciosa revela assim uma espécie de hipnotismo linear: conduz o nosso sonho dando-lhe a continuidade de uma linha”. 76 A volúpia da linha reta esta impressa na obra de Richard Meyer (fig. 41), que vive o sonho geométrico e envolvente. O branco das nuvens acumulado pelo vento persegue o sonho de vôo. A seqüência das formas aderidas à uma volumetria espacial cuidadosamente distribuída deixando sua imagem marcada no sonho acordado. A plenitude do desejo de habitar tem seus princípios no reino da imaginação aérea.

41 MEIER. Richard. Burda Collection Museum Baden-Baden, Alemanha 2004. www.baden-baden.de, consulta em 27 de março de 2006.

76

BACHELARD, O ar e os sonhos, op. cit., p.21.


83

As linhas das esquadrias se confundem com a verticalidade das árvores, se integra na paisagem, a arquitetura sente o vento como um ser vivente. A casa aérea parece repousar nos braços maternos da terra e sonhar com o vento soprando sob sua estrutura. O bosque participa do sonho da casa, engrandecendo o mundo de imagens poetizadas. A casa é alimentada pelo vento que faz vibrar seus vidros. (CAZAMIAN apud BACHELARD, 2003): “Vibra por inteiro às mil ondas sensíveis que lhe envia a natureza, que produz talvez, nas cordas do universo, essa brisa ideal que seria ao mesmo tempo a alma de cada ser e o Deus do todo”. 77

Na substância leve a riqueza do desenho minímalista (fig. 42) se adere ao sonho de unidade, vivido pela imaginação a melodia das folhas acariciadas pelo vento e conduzida para dentro da casa, traduzindo a contemplação envolvente de ocupar toda a paisagem num só estante.

42 Diseño de casas – H. Kliczkowski, Barcelona. 2005. p.200.

77

BACHELARD O ar e os sonhos p. 45.


84

Na transparência do ar sonhamos o vidro os sonhos aéreos desejam formar um novo mundo, valorizando a lembrança dos sonhos, a imagem onírica deseja ser real, transcende a experiência do sono. O vidro atravessa os espaços infinitos entre o real e o imaginário, evoca todos os sentimentos de criação dissolvendo os limites. Compreendemos a possibilidade de adaptar a forma onírica a uma realidade material. Essa temática é traduzida por BACHELARD (2002): “Uma energia imaginada passa do potencial ao ativo. Quer constituir imagens na forma e na matéria, preencher as formas, animar as matérias”. 78 O vidro pode ser uma substancia que guarda os sonhos de uma vida onírica, um ser com memória, que guarda as imagens, que vive as imagens em si mesmo. O vidro remonta a realidade em seus reflexos, cenas integrantes de um drama envidraçado. Repleto de significância o vidro reflete o céu azul em sua vastidão aérea, em sua luz infinita carrega toda a poesia cósmica. O céu transcende a imaginação poética, brinca com as formas e sensações. A poesia compõe o universo imaginário unindo elementos fragmentados de uma explosão de palavras, onde tudo esta interligado espacialmente. Espaço onde tudo tem significado e sentido. A imaginação material é um reflexo das estrelas e buscam o mesmo sentido da poesia. As impressões aéreas envolvem o universo de significados, numa abstração do mundo dos sonhos buscamos a valorização da imagem que se realiza no mundo real. A realidade idealiza as belezas dos sonhos, encontramos em SCHOPENHAUER (2001), os fragmentos das visões de sonho: “Pense numa ampla e larga região, não abarcada por inteiro pelo olhar, o horizonte a perder de vista, solidão plena e silencio profundo de toda a natureza, céu azul completamente sem nuvens, árvores e plantas na atmosfera imóvel, nenhum homem, nenhum animal, nenhuma corrente de água, a quietude mais profunda; então, no contemplador que aí se encontra, tem de originar-se em uma certa angustia ou sentimento sublime”. 79

78 79

BACHELARD, O ar e os sonhos. op. cit., p. 81. SCHOPENHAUER, op. cit., p.106.


85

43 CAMPOS, Augusto de. Pó do cosmos (1985) - www2.uol.com.br/augustodecampos, consulta em 22 de março de 2006.

Encontramos na poesia concreta de Augusto de Campos a idéia de combinação, que segundo o professor Luís Antônio Jorge evoca “som e sentido”. Diversas combinações entre palavras sugerem diversas interpretações que se expandem em seus significados. A poesia “Pó de cosmos” (fig. 43) compõe o universo que busca representação em um mundo idealmente perfeito, de maneira que a realidade transcende a imagem cósmica dentro da estrutura da criação.


86

CONCLUSÃO

Após experimentarmos todas essas imagens sintetizadas na substância dos elementos, concluímos que a imaginação transcende a matéria, vivendo intensamente em sua significância. Concluímos que os elementos se completam apesar de sua natureza diversa, a matéria se afirma na poética das formas concretas e se idealiza na metáfora formas abstratas, apesar de aparentemente separados pela diversidade das formas, constituem uma só realidade. De certa maneira podemos caracterizar as diversas substâncias narradas aqui como simbologias universais, pertencentes ao campo imaginário, onde constituem realidades paralelas que constantemente se comunicam entre si. Os aspectos abordados em sua expressão artística remodelam a realidade, passam a existir oníricamente na idealização das coisas. Misturando o mito ao espaço simbólico de representação. Experimentamos o encontro com nossa paisagem onírica, os prazeres existentes no mundo paralelo, vivenciamos a mitologia em toda sua dramaticidade até nos darmos conta de que fazemos parte de todo o cenário cósmico, de toda angustia vivida, da pintura de todos os tempos. Domamos a realidade, abstraímos as ilusões da matéria, para encontramos o verdadeiro projeto, que se faz dia a dia, forma-se a si mesmo a cada instante, detalhando a imagem perfeita de tudo o que gostaríamos de ser. O ser perfeito, a imagem mais bela, a consciência plena de que as substâncias constituem algo bem maior do que podemos enxergar, que nem o onírismo mais profundo poderia imaginar, mas, que apesar disso, buscamos incessantemente essa beleza todos os dias.


87

Todas as formas de representação desde as divindades mais importantes, assim como os quatro humores filosóficos, em sua substância e a forma cabem dentro da analogia da essência e da matéria, na imaginação material que criou o espaço desde as primeiras cabanas dando ínicio ao processo de apropriação do espaço e do mundo. Vimos o aspecto sensorial no campo da ação poética nas artes, de certa forma na estrutura natural das paisagens. Em reforço à lembrança, aos sonhos que buscaram uma simbologia espiritual, que compôs a poesia nas combinações da arquitetura e estruturou a magia do cinema. É através dessas formas que expressamos as aparências no campo dos signos, as imagens dos elementos foram registradas em nossa percepção, onde a imagem reforça os mitos de todas as culturas. Por intermédio da imaginação material recriamos o nosso próprio imaginário. Dentro simbolismo construímos o mundo da imaginação, ativando uma capacidade do espírito de cumprir as vontades visualmente criadoras. Assim, Encontramos o princípio do desejo de habitar, que participa do sonho da casa, engrandecendo o mundo de imagens habitáveis. As nossas impressões imaginadas são devolvidas ao universo, envolvidas de significados, numa abstração do mundo dos sonhos buscamos a valorização da imagem que se realiza.


88

BIBLIOGRAFIA:

BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos. Martins Fontes. Tradução de Antonio de Pádua Danesi, São Paulo. 2 ed. 2001. KIRK, G.S. e RAVEN, J.E. Os Filósofos Pré-Socráticos, tradução de Calouste Gulbenkian Lisboa, 1982. CHAUI, Marilena. O olhar in Janela da alma, espelho do mundo, Companhia Das Letras, São Paulo,10 ed. 2003. BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos, tradução de Antonio de Pádua Danesi. Martins Fontes. São Paulo. 3 ed., 2002. BACHELARD, Gaston, Le droit de rever. PUF, Paris, 1970. GOMBRICH. Ernest Hans. A história da arte. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 1 ed. 1978. ARGAN, G. C. História da arte italiana – De Giotto a Leonardo - Cosac & Naify, São Paulo, 2003. RYKWERT, Joseph. A casa de adão no paraíso. Editora Perspectiva. São Paulo. 2003. BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios do Repouso, tradução Paulo Neves, Martins fontes, 1 ed, São Paulo, 2003. PAZ, Octavio. El Laberinto de la soledad, Fondo de Cultura Econômica, México, 1998. MALLARMÉ, Stéphane. Selected poems, bilíngüal edition. 2002. SCHOPENHAUER, Arthur. A metafísica do belo. Tradução de Jair Barbosa. Unesp. São Paulo, 1 ed., 2003. VALÉRY, Paul. Cemitério Marinho. Edição Bilíngüe. Tradução de Edmundo Vasconcelos. Massao Ohno – Roswitha Kempf Editores. São Paulo, 1982. VIRGÍLIO, Públio, A Eneida, tradução de Nicolau Firmino, Livraria Simões, Lisboa, 1955. ZERBEST, Rainer. Antoni Gaudí. Tacshen. Barcelona, 1985. LEBRUN, Gerard. O olhar in Sombra e Luz em Platão. Companhia das Letras. São Paulo. 2003. VERNE, Julio. Viagem ao centro da terra. L&PM Editores S.A.,1a. Edição, São Paulo, 2002. BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios da vontade. Tradução Maria Ermantina Galvão, 2 ed, Martins Fontes, São Paulo: 2001. SHELLEY, Percy Bysshe, The complete poetical works of Percy Bysshe Shelley, 1999www.Bartleby.com/139, (consultado em 22 de março de 2006) YOJAI, Rav Shimon bar. Zohar, The book of splendor. Kabbalah Centre. Jerusalém. 1985. 26 volumes. (Edição dos manuscritos escritos no século X por Shimon Bar Yojai). SCHOLEM, Gershom. A cabala e seu simbolismo. A idéia do Golem. Perspectiva. São Paulo. 2004. JORGE, Luís Antônio. Espaço Seco. Imaginário e poéticas da arquitetura moderna na América. Tese de doutorado. USP. 1999.


89

NIETZSHE, Fridrich. Os pensadores. Aurora. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. Abril Cultural. 3 ed. São Paulo. 1983. LANGER, Susanne K. Sentimento e forma. Tradução de Ana Golberger Coelho e J. Guinsburg. Editora Perspectiva. São Paulo. 1980. QUINTANA, Mário. Baú de espantos. Os Degraus. Rio de Janeiro - Editora Globo. 1986. POE, Edgar Allan. O pipo de amontillado. www.supervirtual.com.br/acervo, consultado em 23 de março de 2006. ÉSQUILO. Prometeu Acorrentado. (c. 525 AC-456 AC). Tradução J. B. de Mello e Souza. Versão para eBook: www.ebooksbrasil.com, Consulta em 26 de março de 2006. MIGUEL, Jorge Marão Carnielo. Casa e lar. A essência da arquitetura. 2002. Texto especial 156. www.vitruvius.com.br. Consulta em 26 de março de 2006. MORIN, Edgar. O enigma do homem. Tradução de Fernando de Castro Ferro. Rio de Janeiro, Zahar, 1975. MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. Cosac & Naify. São Paulo. 2002. BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. Tradução Paulo Neves. São Paulo, Martins Fontes: 1999. CAMPOS, Augusto de. "O Tygre” poema de William Blake. Viva Vaia (Poesia 1949-1979). Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1979. CARO, Tito Lucrécio. Coleção os pensadores in Da natureza. Tradução de Agostinho da Silva. São Paulo. Abril Cultural. 1 ed. 1973. GOMBRICH, Ernest. Arte e ilusão. Tradução Raul de Sá Barbosa. São Paulo: Martins Fontes, 1980. BORGES, Jorge Luís. Obras Completas. I tomo. Buenos Aires. Emecé/ círculo de lectores. 1984. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Martins Fontes, São Paulo. 1996. DUPLESSIS, Yves. O surrealismo.tradução de Pierre Santos. 2 ed. Difusão Europeia do livro. São Paulo. 1963. BERG, Rav. Phillip. O poder do um. Centro de Cabala. São Paulo. 1998. HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. São Paulo: Martins Fontes, 1999. NIETZSHE, Fridrich. Coleção Os Pensadores. Assim falou Zaratustra. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. Abril Cultural. 3 ed. São Paulo. 1983. ESPANCA, Florbela. Sonetos. Publicações Europa América. Lisboa. 1970. HAMILTON, Edith. Mitologia, Tradução de Jéferson Luis Camargo. Martins Fontes, São Paulo. 1997. PESSOA, Fernando. Obra poética. Introd. e notas: Maria Aliete Galhoz, Editora Nova Aguilar, R.J. 1976.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.