Guia Teorias do Patrimônio | Centro Universitário Senac

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GUIA TEORIAS DO PATRIMÔNIO 2018.01


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INTRODUÇÃO

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EUGÈNE EMMANUEL VIOLLET-LE-DUC

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JOHN RUSKIN

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CAMILO BOITO

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CESARE BRANDI

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GUSTAVO GIOVANNONI

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REFERÊNCIAS

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Centro Universitário Senac Alunas: Angela Knijnik, Mariane Góes, Paula Prado, Raquel Ferreira


GINA

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Restauração

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A lâmpada da memória

1 Os restauradores 4 Teoria da restauração 7 Textos escolhidos 0 Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo Disciplina: Projeto Interativo V - Patrimônio Professor: Ralf Flores


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INTRODUÇÃO

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A Artes&Ofícios, coleção da Ateliê Editorial elaborou obras s dedicados para preservação do patrimônio histórico e assuntos af continuidade do trabalho da organizadora, Beatriz Kühl. Centr chave de autores fundamentais para a disciplina da preservaçã


sobre restauração, história da arte e seu universo, e teve seu 5 volumes fins. As obras sinalizam o predomínio do assunto restauro e a ada na tradução de obras significativas, inclui conceitos e palavrasão, perfazendo um roteiro de referência para formação e debate.


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EUGÈNE EMMANUEL VIOLLET-LE-DUC Paris 1814 – 1879

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O conteúdo desenvolvido no livro Restauração é como um memorial para Viollet-le-Duc, que foi, além de pensador e arquiteto importante na época, o mais notório representante de uma das vertentes sobre o restauro, do século XIX na França, voltada a complementos em estilo. Apresentando os conceitos e princípios sob a ótica do Viollet-le-Duc, com base em sua obra “L’Architecture”, no texto “Restauro”. Violletle-Duc possuía um forte interesse pela arte medieval e, através dos seus trabalhos, textos e ensinamentos, conseguiu formar profissionais para os serviços voltados à preservação.


Abadia de Vezelay, em Vezelay (1104)

Nascido em Paris e de origem burguesa, Eugéne Emmanuel Viollet-le-Duc tornou-se um grande e importante pensador, teórico da história da arquitetura européia, sendo um dos primeiros a teorizar sobre a preservação do patrimônio histórico, além de ser arquiteto, desenhista e escritor gerando polêmicas ao longo de sua carreira. Ele desenvolveu seu trabalho na área de restauro de catedrais e castelos medievais. Em 1840 foi indicado pelo Ministro do Interior para restaurar a igreja de Vezelay. Em 1845 ganhou o concurso para a restauração da Catedral de Notre Dame de Paris. Em 1846 é nomeado chefe de serviço dos monumentos históricos e arquiteto da igreja de Saint Denis. Em 1858 inicia o restauro do Castelo de Pierrefonds.


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Viollet-Le-Duc

Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc trabalhou em um momento da história em que a prática de restauração se firmava como ciência, onde as mudanças provocaram a ruptura entre o passado e o presente, fazendo crescer o sentimento de proteção das edificações e ambientes históricos. Quanto mais útil o elemento estrutural, mais aparente ele deve estar. Um exemplo pode ser o Teto Catedral de Notre-Dame. Na arquitetura existem duas formas necessárias de ser verdadeiro, em relação ao programa e em relação aos procedimentos. Ele criticava o Historicismo Eclético por empregar a forma sem analisar a causa e a função.

Teto da Catedral de Notre-Dame.


Viollet-le-Duc estabeleceu alguns conceitos: “RESTAURO - Restaurar um edifício não é conservá-lo, repará-lo ou refazê-lo, é restituí-lo a um estado de inteireza que pode jamais ter existido em um dado momento.” Em relação ao passado Viollet-le-Duc diz que o que distingue a sua época é exatamente o estudo menos parcial do passado, provocando o renascimento político, social, filosófico, artístico e literário. ESTILO é a manifestação de um ideal fundado sobre um princípio, sendo fundamental para a correta apreensão das suas proposições restaurativas. Para ele o estilo é um dado estrutural. Para Viollet-le-Duc, Vitet foi o primeiro a se preocupar com o restauro criterioso dos monumentos antigos. O primeiro núcleo de artistas com o intuito de penetrar no conhecimento íntimo das artes esquecidas formou-se em torno dos teóricos Vitet e P. Merimée.

O restauro da Igreja de SaintDenis foi baseada nos estudos de Vitet. Era necessário ter conhecimento das escolas, seus princípios e meios práticos, assim como dos tipos de cada período de arte e dos estilos de cada época. Cada edifício ou cada parte deste deve ser restaurado no estilo que lhe é próprio não só como aparência, mas inclusive como estrutura. No caso de se refazer partes de monumentos dos quais não restam vestígios, por necessidades construtivas ou para completar uma obra mutilada, o arquiteto encarregado deve se imbuir do estilo próprio do monumento cujo restauro lhe foi confiado. Ele afirmava categoricamente o perigo tanto de se reproduzir exatamente o original como de substituí-lo por formas posteriores, e deixa claro que nada deve ser encarado como um dogma, mas como algo relativo e específico de cada obra.


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Viollet-Le-Duc

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Le-Duc não conseguia atuar com imparcialidade e sem dogmatismo, propondo soluções que não respeitavam o edifício, suas marcas, sua história e suas peculiaridades, mas que satisfaziam apenas a pureza de estilo que ele próprio determinava. Na arquitetura medieval cada parte da obra cumpre uma função e exerce uma ação. É para o conhecimento exato do valor de uma e outra que o arquiteto deve voltar-se antes de empreender o que quer que seja. A quetão do restauro sofreu um grande preconceito sendo considerado uma fantasia, uma moda, provocando um estado de desconforto moral na maioria das pessoas que na verdade tinham medo de sair da zona de conforto, acreditando que a descoberta do novo era uma perda da tradição. Houve polêmica tambem entre classicos e góticos, onde Le-Duc afirmava que: “A construção gótica, não é de fato como a construção antiga, monobloco, absoluta nos seus meios ; ela é dúctil, livre e questionadora como o espírito moderno”. Segundo ele, em uma restauração não se pode substituir as partes retiradas senão por outras, executadas com materiais melhores, mais duráveis e perfeitos. É necessário que em seguida à operação efetuada, o edifício restaurado, passe ao futuro com uma duração maior do que a que ele teve até então. O melhor meio de conservar um edifício é encontrar-lhe uma destinação e satisfazer plenamente todas as necessidades que esta destinação impõe. No texto é destacado tambem a restauração como a melhor forma de conservar o edifício e o uso da fotografia nos estudos ciêntíficos. Le-Duc não se contentava em fazer uma reconstituição apenas, ele busca a pureza do estilo, faz reconstituição daquilo que teria sido feito, uma reformulação do projeto.


Restauro do Castelo de Pierrefonds (1858). Há duas grandes correntes doutrinárias sobre a restauração do patrimônio histórico, segundo Choay: Anti-intervencionista (na Inglaterra): simbolizada, principalmente, por Ruskin e Morris e a segunda por Viollet-Le-Duc. A primeira defende um anti-intervencionismo radical, onde “não se tinha o direito de tocar nos monumentos antigos, que pertenciam, em parte, àqueles que os edificaram e, também, às gerações futuras”. Para os anti-intervencionistas, a “restauração é impossível e absurda”, pois equivaleria a “ressuscitar um morto”, além de romper com a autenticidade da obra. Todavia, esses doutrinadores não excluem a possibilidade da manutenção, desde que imperceptível. Intervencionista (típica dos países europeus): os intervencionistas consideram que restaurar um edifício significa “restituí-lo a um estado completo, que pode nunca ter existido”. Sendo assim, se um edifício não continha todos os elementos necessários a compor um estilo, estes deveriam ser acrescentados no processo de restauração. Percebe-se uma atualidade em muitas das suas formulações e sua aplicabilidade nas intervenções de restauro atuais: a restauração tanto da função portante do edifício como de sua aparência, o estudo do projeto original como fonte de conhecimento para resolução de problemas estruturais, a importância dos levantamentos detalhados da condição existente, a reutilização do edifício para sua sobrevivência e principalmente, a atuação baseada em circunstâncias e especificidades de cada projeto. Em toda a modernidade do conceito e da prática da restauração em sua época, podemos destacar a visão racionalista e positivista em várias partes de sua fala, principalmente quando aborda o futuro das edificações restauradas.


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JOHN RUSKIN Londres 1819 – 1900

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Foi um escritor, critico de arte, sociólogo, poeta e desenhista. Seus pensamentos foram muito influentes na era Vitoriana (Inglaterra - 1837 a 1901). Através de seus livros reflete a respeito da importância da preservação das obras e construções do passado, sendo um dos precursores dos ideais que permeiam o conceito de patrimônio histórico atual.

Auto-retrato John Ruskin 1861


Vista de Amalfi John Ruskin 1844

O pensamento de Ruskin dá ênfase à sensibilidade subjetiva tão comum ao ideal Romântico (séc XVII –XIX), em oposição à ideologia puramente racional do Classicismo. Viveu em uma época de significativas mudanças sociais que tiveram como principal catalisador o emergente desenvolvimento Industrial e seu rápido desenvolvimento que substituía o sistema de produção das manufaturas. Sua forte ligação com a cultura tradicional foi então intensificada através de sua luta contra os efeitos nocivos da desenfreada industrialização, que acreditava ser uma nova forma de escravidão.

“Podemos saber mais da Grécia e de sua cultura pelos seus destroços do que pela poesia e pela história.”

Ruskin considerava a arquitetura um dos principais legados de qualquer organização social, pois apresenta um importante significado histórico ao relatar a evolução nacional de certo povo. No ano de 1853, em seu livro The Stones of Venice (As Pedras de Veneza), decorre sobre a importância do total e absoluto respeito à matéria original das edificações, e descreve sua aderência ao “ruinísmo” como um defensor das construções do passado.


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John Ruskin

9 Para Ruskin, a habitação do ser humano não podia ser algo temporário, construído para durar apenas o decorrer de uma vida. Acreditava que a Arquitetura Doméstica (que dá origem à todas as outras) assim como os edifícios públicos e equipamentos culturais são a maior herança cultural do humano; deveria ser tratada como patrimônio e pensada desde sua construção para ser passada de geração em geração, independentemente de sua excepcionalidade como obra arquitetônica. A residência narra uma história e deve ser a considerada a expressão forte, duradoura e potencialmente eterna da identidade do ser humano; por esse motivo, em um ideal ruskiano, haveriam diversas


casas distintas umas das outras, pois diferentes estudos e reflexões alcançam diferentes conclusões. Para ele não bastava somente a compreensão do que o homem de épocas passadas havia pensado e sentido, mas também do que ele havia observado, planejado e produzido. É crucial para o ser humano reconhecer em sua vida cotidiana marcos referenciais de identidade e memória compartilhada, seja em espaços urbanos ou monumentos históricos. Os edifícios públicos devem “expressar de modo simbólico ou literal, tudo quanto é digno de ser conhecido sobre os sentimentos e realizações de uma nação” (A lâmpada da Memória), sempre mostrando um propósito histórico em sua construção.

Palácio Ducal, em Veneza (1340) - conta uma história através das obras em seu interior.


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John Ruskin

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Apesar disso, Ruskin não acreditava na restauração de um edifício que já não apresenta mais utilidade social, e sim na plena eliminação do que não pode ser salvo – uma perspectiva romântica a respeito do processo de conservação. Negava vividamente imitações, cópias e acréscimos em obras arquitetônicas, pois isso eliminaria sua autenticidade. Raramente permitia pequenos atos de intervenção em edifícios que poderiam vir a sofrer uma queda precoce, como reforços estruturais em elementos de madeira e metal e reparos pontuais de fixação ou colagem de esculturas em risco de ruir. Ruskin servirá de inspiração para o movimento vanguardista do Art Nouveau (antecedente do Modernismo), que busca a volta da arte decorativa e a utilização do ornamento na arquitetura.


O teórico também sugere a manutenção periódica dos prédios históricos como forma de evitar os danos causados por intervenções de maior amplitude preservando a ação do tempo e o testemunho histórico. John Ruskin acreditava que a degradação fazia parte da história da edificação enquanto entendendia os processos de restauração como um tipo de agressão às mesmas. Como podemos observar em seus livros dedicados à apologia da passividade e da nãointervenção em arquiteturas patrimoniais, sua ideologia conecta seus pensamentos românticos e melancolicos com o estudo da arquitetura e de suas formas de conservação.

“A restauração é a destruição do edifício, é como tentar ressuscitar os mortos. É melhor manter uma ruína do que restaurá-la.”

Rochas em movimento John Ruskin 1855


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CAMILO BOITO

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Camilo Boito

Roma 1836 – 1914

Iniciou sua formação como arquiteto em 1849 na academia de Belas Artes em Veneza. Além da formação em arquitetura, Camilo Boito foi restaurador, crítico, historiador, professor, teórico, literato e um analista dos mais notáveis do seu tempo. Teve papel de grande relevância na transformação da história da arte e da nova arquitetura Italiana. Suas contribuições na área da arquitetura e da restauração, classificaram sua obra como detentora de uma posição moderada entre Ruskin e Viollet-le-Duc.

Porta Ticinese, em Milão (1861)

Inicialmente adotou o estilo neoclássico como tendência arquitetônica, característica corrente na Academia, mas logo se empenhou no estudo da arquitetura italiana da Idade Média após conhecer o mestre Pietro Selvático (1803-1880), cujos argumentos apontavam o Gótico como a expressão artística do povo italiano. Boito estava inserido em um contexto sociocultural que buscava a unificação das províncias italianas e que reconhecia simbolicamente a arquitetura medieval como identidade do caráter nacional.


Durante esse mesmo período, Ruskin frequentava a cidade de Veneza e mantinha um relacionamento profissional com Selvático, assim como, a Academia Veneziana considerava Viollet-le-Duc um personagem de grande importância no estudo e difusão dos conhecimentos sobre a arquitetura medieval. Foi apenas uma questão de tempo para que as influências desses três homens interferissem nas construções teóricas de Boito. Depois de sua formação, colaborou como professor e em 1856 iniciou suas viagens a Roma e Florença a fim de se aprofundar em seus conhecimentos sobre arte medieval e publicava textos sobre suas descobertas. Durante o período de sua formação, foi criada na região de Veneza uma legislação específica para a proteção dos monumentos italianos.

“Para bem restaurar é necessário amar e entender o monumento...” Ora, que séculos souberam amar e entender as belezas do passado? E nós, hoje, em que medida sabemos amá-las e entendê-las?”

Se estabeleceu em Milão em 1860, onde assumiu um posto de professor de arquitetura na escola de Belas Artes de Brera, mais tarde se tornou diretor da Academia e atuou de forma relevante no Politécnico. Ele reconhece Viollet-le-Duc e Ruskin, grandes estudiosos da arquitetura medieval, os quais desenvolveram um renovado interesse pela Idade Média na tentativa de unificar o país. Boito escreveu textos de grande valia sobre arquitetura medieval italiana, onde busca nas lições de arquitetura do passado, subsídios para a criação contemporânea, através de análises de seus princípios de composição para alcançar a verdade em relação a formas, materiais e função, lançando fundamentos para uma nova arquitetura.


Basílica dos Santos Maria e Donato, em Murano (1858).

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Camilo Boito

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Boito produziu sua obra em um período dominado pelo ecletismo, o que ele mesmo classificou como uma época sem estilo próprio, o que possibilitou o estudo, a análise, o entendimento e a apreciação dos estilos do passado. De acordo com Boito, os últimos cinquenta ou sessenta anos gabam-se por estimar e por conhecer com imparcialidade tudo o que antes aconteceu em arte e em beleza. [...] a pirâmide egípcia, o templo grego, o anfiteatro romano, as catacumbas cristãs, o batistério bizantino, a basílica lombarda, a catedral ogival, os palácios do século XVI, as cártulas do século XVII, as fantasias do século XVIII [...] não tem mistério. [...] (desta forma) nós, do bem-aventurado século XIX, temos um braço tão grande que tudo acolhe para si. [...] (e) isso não poderia ser imaginado em nenhuma outra época” . Em 1858, Boito foi encarregado de restaurar a Basílica dos Santos Maria e Donato em Murano que fora consagrada no ano de 999, a qual passou por sucessivas transformações. Para aperfeiçoar seus trabalhos, Boito fazia análises aprofundadas das obras, procurando entender aspectos formais e técnicos-construtivos, baseados em documentos e observações e levantamentos métricos do edifício que ia trabalhar. Fazia desenhos e fotografava, examinando cada ponto e detalhes construtivos ornamentais a fim de preservar cada item da obra.


Em uma conferência em 1884 chamada Os Restauradores, apresentada na exposição de Turim, Boito apresentou seus escritos e estudos sobre as obras que tiveram grande importância e ele sintetizou experiências e conceitos associados à restauração que ele acumulou com o tempo, reformulando e estabelecendo alicerces importantes na teoria contemporânea. A partir da segunda metade do século XVIII, através de estudos realizados por restauradores e críticos como Camilo Boito, as noções de restauro tiveram um amadurecimento constante que se consolidou no estabelecimento das teorias de restauração, onde se desenvolveu respeito pelo material original, reversibilidade, documentação, metodologia científica, aspectos conservativos e de mínima intervenção a fim de manter o original entre passado e presente. Após esse período, as restaurações foram deixando de ser apenas por questões pragmáticas e objetivos adaptativos à época, foram assumindo cada vez mais conotação cultural baseada em análises sistemáticas, alicerçadas no conhecimento histórico e em análises formais.

A partir de 1880 seus esforços para conceituações gerais sobre restauração e estabelecimento de uma política de tutela respeitosa em relação às obras, resultaram em diretrizes que teve atuação primordial no Congresso de Arquitetos e Engenheiros realizado em Roma (1883) os quais foram adotados pelo Ministério da Educação. Boito julgava o período em que vivia peculiar afirmando que aquele era o momento de se falar em restauração pois era uma sociedade que não tinha estilo próprio nas artes, não entendia as artes e não tinha capacidade de entender, analisar e apreciar obras de vários períodos.


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Camilo Boito

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Sobre as esculturas, Boito, chama a atenção para os perigos de modificação das obras escultóricas. Desde o Renascimento as esculturas eram deixadas incompletas ou sofriam intervenções que acreditavam ser original. Boito achava isso perigoso pois conduzia ao erro e a não originalidade. No que se refere a pintura, Camilo Boito compara as intervenções às técnicas de cirurgião, alegando que as vezes as restaurações devem ser necessárias de forma que dê nova vida à obra. Admite que no caso da pintura, poderia sofrer intervenções mais profundas. Na arquitetura, a postura de Boito é mais crítica em relação às propostas de Viollet-le-Duc e Ruskin pois acha as duas propostas extremas. Critica a proposta de Ruskin considerando impiedosa quanto deixar o edifício a própria sorte até cair em ruínas e a proposta de Viollet-le-Duc, aponta os perigos de querer alcançar um estado completo que pode nunca ter existido.

David Michelangelo 1504


Arco de Tito, em Roma (82).

A produção de Camilo Boito, suas pesquisas, suas reflexões críticas, seu aprendizado ao longo de suas experiências, levaram-no a formular textos de grande interesse e consistência sobre a história da arte, a crítica arquitetônica e a restauração. Camilo Boito vivia em constante busca de novos caminhos para a arte de seu tempo, tanto nos textos, quanto nos projetos, em meio a um momento cultural complexo e paradoxal, uma procura com resultados diferentes, mas com numerosas contribuições relevantes em vários campos. Podemos dizer que Boito procurou a verdade dos fatos baseado na convicção de que cada edificação constitui um objeto único e distinto, ou seja, cada caso é um caso, composto por particularidades diferentes, e, portanto, deve ser tratado de maneira específica.


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CESARE BRANDI Siena 1906 – 1988

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A Teoria da restauração foi publicada em Roma, em 1963, pelas Edizioni di Storia e Letteratura, reunindo textos editados anteriormente e temas que Cesare Brandi abordara no texto. Já de início devem ser esclarecidos alguns equívocos em relação à Teoria, recorrentes em nosso meio e contraditórios entre si. Antes de mais nada, não se trata de uma simples coletânea de textos que conformam um manual prático de restauração. Trata-se de uma consistente concepção e formulação do restauro, a oferecer uma unidade de método e de conceitos para guiar a atividade prática de restauro.

“Em geral entende-se por restauração qualquer intervenção voltada a dar novamente eficiência a um produto da atividade humana”.


Cesare Brandi apresenta em seu texto o conceito de restauro como o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas à sua transmissão para o futuro, isto é, condiciona o ato de restauração à compreensão e experimentação da obra de arte enquanto tal, o que resulta na prevalência do estético sobre o histórico, na medida em que é exatamente a condição de artística o que diferencia a obra de arte de outros produtos da ação humana. Tal colocação refuta as teorias precedentes que preconizavam a manutenção dos monumentos apenas como documentos históricos, relegando a um segundo plano sua imagem figurativa, embora não exclua a importância do valor histórico, intrínseco a todo monumento. Arco de Augusto em Roma


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Cesare Brandi

De seu conceito de restauro, Cesare Brandi extrai dois pontos bastante relevantes: “Restaura-se somente a matéria da obra de arte” (p. 31), que se refere aos limites da intervenção restauradora, levando em conta que a obra de arte, em sua acepção, é um ato mental que se manifesta em imagem através da matéria e é sobre esta matéria que se degrada que se intervém e não sobre esse processo mental, no qual é impossível agir. Daí decorrem as críticas às restaurações baseadas em suposições sobre o “estado original” da obra, condenadas a serem meras recriações fantasiosas, que deturpam a fruição da verdadeira obra de arte. “A restauração deve visar ao restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, desde que isso seja possível sem cometer um falso artístico ou um falso histórico, e sem cancelar nenhum traço da passagem da obra de arte no tempo” (p. 33). Ainda que se busque com a restauração a unidade potencial da obra não se deve com isso sacrificar a veracidade do monumento, seja através de uma falsificação artística, seja de uma falsificação histórica.

Templo de Castor e Pólux, em Roma (1760)


Assim, é o estado de conservação da obra de arte no momento da restauração que irá condicionar e limitar a ação restauradora, a qual deverá, sob o ponto de vista da instância histórica, “limitar-se a desenvolver as sugestões implícitas nos próprios fragmentos ou encontráveis em testemunhos autênticos do estado originário” (p. 47). E em relação à instância estética, os limites da ação do restaurador estão postos em função da matéria original da obra e de sua definição mesmo como obra de arte, pois “a unidade figurativa da obra de arte se dá concomitantemente com a intuição da imagem como obra de arte” (p. 46). O que deve guiar a intervenção é, portanto, um juízo crítico de valor, idéia presente já no pensamento do historiador da arte vienense Alois Riegl (Le culte moderne des monuments. Son essence et sa genèse. Paris, Seuil, 1984) e que aparece também na Carta de Veneza (1964), complementada pela seguinte ressalva: “O julgamento do valor dos elementos em causa e a decisão quanto ao que pode ser eliminado não podem depender somente do autor do projeto”. “O Templo de Castor e Pólux no Fórum, o Templo da Sibila em Tívoli são os dois casos típicos de monumentos que adquiriram faces indissolúveis, na sua mutilação, daquilo que é o ambiente paisagístico a eles conexo. É por isso um erro crer que toda coluna despedaçada possa ser reerguida e recomposta de modo legítimo quando, ao contrário, o ambiente onde isso deveria acontecer já atingiu, historicamente e esteticamente, uma acomodação que não deve ser destruída nem para a história nem para a arte”. (pag.33)


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Cesare Brandi

16 Daí a afirmação da restauração como processo coletivo, que não pode depender do gosto ou do arbítrio de um único indivíduo, antes deve ser sustentado por profundos conhecimentos, seja do ponto de vista da técnica a ser empregada, seja do ponto de vista humanístico, relacionado com o domínio da história, estética e filosofia, sem os quais não se pode assegurar a legitimidade das escolhas efetuadas nos procedimentos de restauro.

Cesare Brandi define ainda como princípios para intervenção restauradora mais dois aspectos fundamentais: “a integração deverá ser sempre e facilmente reconhecível; mas sem que por isto se venha a infringir a própria unidade que se visa a reconstruir” (p. 47); “que qualquer intervenção de restauro não torne impossível mas, antes, facilite as eventuais intervenções futuras” (p. 48). Com esses pontos, mantém-se, como já havia sido posto a extensão dos procedimentos de restauro para o ambiente ou entorno da obra como forma de garantir sua adequada conservação física e também sua leitura como obra de arte.

O rigor de princípios é a marca da reflexão de Cesare Brandi em sua Teoria, na qual fica patente que a restauração é um ato crítico-cultural do presente e, portanto, condicionado pelos valores do presente; valores esses que não podem menosprezar ou se eximir à responsabilidade que o ato de restauro traz em si, tanto para sua própria geração quanto para as seguintes.


Templo de Sibila, em Tivoli (1801)


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GUSTAVO GIOVANNONI Roma 1873 – 1947

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Foi um arquiteto e engenheiro italiano. Formado em Engenharia Civil pela Universidade de Roma no ano de 1895, participou posteriormente de uma pós-graduação em História da Arte Medieval e Moderna, com Adolfo Venturi, na Faculdade de Artes de Roma. Sua área de atuação envolveu História Crítica da Arquitetura, Engenharia, Arquitetura e Urbanismo e também a área acadêmica. Durante seus quarenta anos de carreira, ganhou destaque no cenário italiano, movendo-se entre os temas da restauração arquitetônica e urbana. Seu legado vai desde a criação de um Instituto Nacional de Restauração, bem como uma escola de pós-graduação, uma revista nacional, uma associação e um centro de pesquisa nacional.

1898 – publicou seus primeiros artigos na revista “Art”, dedicada ao estudo dos monumentos romanos1895 - Formouse em Engenharia na Faculdade de aplicação de Roma 1903 – se juntou, como membro permanente, a Associação de arquitetura artístico amador de Roma e em 1910 tornou-se presidente 1929 – iniciou uma colaboração com a Enciclopédia Italiana 1931 – Conferência de Atenas; Redigiu a Carta Italiana do Restauro 1945 – faleceu em Roma


Esse personagem, interessante sobretudo pela contribuição dada no campo legislativo, é considerado um agente de peso na conformação da cultura arquitetônica, urbanística e conservacionista de seu país, a partir de reflexões teóricas, atuação didática, práticas projetuais e consultivas, ancoradas em importantes inserções institucionais. Seu trabalho como arquiteto não foi muito expressivo, porém sua contribuição para a teoria de restauração através dos seus escritos e pesquisas científicas, tornaram-no um dos mais importantes arquitetos de restauração.

Iglejas dos Anjos Guardiões, Roma (restaurada em 1920)


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Gustavo Giovannoni

18 Seus escritos abordam temas como História da Arquitetura Medieval, Arquiterura do Renascimento e as técnicas de restauração. Para Giovannoni, era preciso lidar com aspectos construtivos, lançando luz sobre problemas arquitetônicos e espaciais que permitissem uma maior aproximação dos temas da história da arquitetura e outras disciplinas artísticas. Era preciso pensar sobre a relação entre o novo e o velho, ou seja, entre a historicidade e a contemporaneidade dos edifícios, para, assim, propor adaptações funcionais para o novo e o velho. Está entre a corrente de teóricos que são a favor da manutenção do estado atual do monumento e a restauração estilística que suporta a restauração de um estado original hipotético. Giovannoni promove as obras de consolidação e manutenção realizáveis através da utilização de técnicas modernas, sem nunca perder de vista o respeito por todas as partes. Para o Restauro Crítico, elaborou junto a Camilo Boito uma teoria intermediária, e, nela, propuseram dar maior importância às obras de manutenção e de consolidação. Não havia preocupação apenas com a unidade arquitetônica, mas também com a salvaguarda do monumento de qualquer obra ou período que tivesse caráter de arte. O objetivo era mostrar que os monumentos não valem apenas para estudo da arquitetura, mas também servem como documento da história dos povos, e, por isso, devem ser respeitados e preservados. Essas obras deveriam ser preferencialmente consolidadas a reparadas, e preferencialmente reparadas a restauradas; evitando adição de novos elementos e renovações que descaracterizem o monumento. Cervejaria Peroni, em Roma


Em 1912 surge a Teoria do Restauro Científico, que consiste em consolidar, recompor e valorizar os traços restantes de um monumento. A teoria defende antepor a conservação em relação à restauração, não a excluindo, mas aceitando-a com limitações e como forma de consolidação. A Restauração Científica sustentava-se em evidências documentais, evitava tanto o fatalismo passivo de Ruskin, como o intervencionismo de Le Duc; caracterizavase por métodos e conhecimentos próprios das ciências humanas, sendo também denominada de arqueológica, histórica e filológica. Nesse período as várias teorias sobre a conservação de patrimônio provocavam muitas discussões, gerando muitas divergências e críticas. Para tentar minimizar essas discussões, muitos profissionais e instituições se debruçaram na tentativa de normalização de procedimentos básicos, que geraram as chamadas Cartas Patrimoniais, documentos normativos que resultam do acordo entre especialistas e conservadores profissionais. O monumento deveria ser restaurado apenas quando fosse imprescindível, sendo as intervenções condicionadas às características físicas, natureza, história e características formais, e projetuais.


GUIA TEORIAS DO PATRIMÔNIO Gustavo Giovannoni

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Conceitos Fundamentais A colaboração entre Estados para a preservação de monumentos; Contra a restauração estilística e por um emprego consistente; O interesse predominante da comunidade sobre o interesse privado; Uso de técnicas modernas de consolidação (concreto armado), mas tudo oculto; Conservação in situ das obras; Poteção do ambiente próximo de monumentos e inserção de instalações de proteção; Criação de inventários e arquivos; Cooperação científica internacional; Escola de proteção do testemunho de cada civilização. As elaborações teóricas de Gustavo Giovannoni tiveram seu reconhecimento e consagração após a publicação da Carta de Restauro de 1932, emitida pelo Conselho Superior de Antiguidades e Belas Artes, cuja intenção era uniformizar a metodologia das diferentes superintendências italianas e oferecer um guia aos arquitetos que exerciam a profissão. Referente ao processo de restauro: favorecer acima de tudo as obras de manutenção, reparação, restauração, consolidação e, por último, apenas se extremamente necessário, o acréscimo de técnicas modernas; Nesse procedimento, interferir o mínimo necessário para a estabilidade, considerando essencial a autenticidade não só estética, mas das estruturas; Nas depreciações, respeitar todas as obras que tenham valor de arte, embora de períodos variados, embora lesionada a unidade estilística originária; considerar é afirmar a vida artística que se desenvolveu apenas sobre o monumento e não a primeira fase; Nos acréscimos, designar claramente as datas, diferenciando a restauração das partes mais antigas; Adotar acréscimos de caráter simples, propondo-se uma integração de massa ao invés de um enfeite decorativo; Atentar-se para o ambiente em que o monumento está localizado, embora não seja o original, mas continuar as razões de massa e cor, e os mesmos critérios que para as condições intrínsecas. Por fim, a ele seriam atribuídas importantes hereditariedades, como no campo da história da arquitetura, a partir da chamada escola romana; ou nas reflexões sobre o tema do ambiente, continuadas de forma crítica nas ponderações, por exemplo, de um Roberto Pane; ou na longa duração da influência de suas ideias sobre planejamento urbano. Também são anotadas, por outro lado, algumas limitações, logo superadas, como a da abordagem filológica no restauro.


Igreja de San Domenico, em Orvieto (restauração de 1934)


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REFERÊNCIAS

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GUIA TEORIAS DO PATRIMÔNIO

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tro do novo e do antigo: a filologia em arquitetura, de Giovannoni


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