ARTE & CULTURA
NOVEMBRO 2020 | No.3
EDIÇÃO HISTÓRICA
Um ano para ser esquecido (?)
2020
Em 2021, a Talu Cultural e o IBI Instituto Brasil Israel, lançarão no Brasil e em Israel, o mais novo livro do premiadíssimo correspondente internacional para o Oriente Médio, Henrique Cymerman
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Editorial Não, 2020 não tem sido muito bom para ninguém. Nem é preciso dizer a razão para esta negatividade. Todos já estamos cansados de saber: a pandemia, o isolamento, o medo da infecção, o cansaço no uso de máscara, os maus pensamentos, distanciamento social, as insônias, a irritação com a família, com amigos, vizinhos... Pandemia está quase um sinônimo de pandemônio. Pois é. Situação complicada, complexa, confusa. Quando chega a vacina? Vai ser suficiente? Qual será seu grau de aceitação no organismo? Vai ter efeitos colaterais? Enfim, quando chega? As páginas que seguem esta introdução não são lá muito otimistas. Mas são realistas. Ao ler a lista da Retrospectiva, nos preparamos para os demais textos. Não vamos nos afastar da realidade. Se podemos fazer alguma coisa que nos traga uma medida real deste sufoco, é ler reportagens como estas que aqui estão: “Mulheres e negros são mais afetados pela COVID”. Precisamos saber a razão deste ataque tão direto! Está na reportagem. Sabendo da realidade que afeta a tantas pessoas (milhares), ficamos mais atentos ao perigo de relaxar nos cuidados pessoais. Nossa realidade circundante exige que fiquemos em modo alerta, sem pânico, mas com atenção ao perigo. No texto “Diário da Pandemia”, de Paulo Valadares, o autor nos convida a seguir um roteiro de fevereiro a agosto de 2020. Nada auspicioso... Duas análises incisivas também fazem parte desta edição: o exame sobre nosso mundo social e político e a influência da pandemia na classe média. São situações inevitáveis diante da brusquidão com que os cenários social, político e financeiro se transformaram. Ainda não conseguimos, parece, nos ‘conformar’ com o que está aí. E, para culminar tanta desgraça, os incêndios contínuos na região do Pantanal, causando a morte de milhares de animais, o fim da flora, o ressecamento do terreno, antes úmido e fértil, agora torrado e estéril. Incêndios criminosos, iniciados por fazendeiros que querem a terra para outros usos? Pode ser. O que se sabe é que, como está num dos módulos da reportagem, “a realidade se impõe”. Já estamos perdendo a floresta amazônica (acreditem, se continuar assim, será o fim dela), vamos perder o Pantanal – uma das maravilhas naturais na América do Sul. E, diante destes quadros tão inóspitos quanto importantes para nosso conhecimento do que nos circunda e nos afeta, só podemos emitir o desejo de que tudo melhore: nosso entendimento e proteção da Natureza e nossa compreensão do que se pode fazer para evitar que a epidemia se alastre mais ainda. Por último, mas não de menor importância: que nosso julgamento seja preciso e objetivo diante de lideranças ausentes. O que mais se pode pedir? Que venham tempos melhores! A Editora
Staff Diretor Editorial Elias Salgado Diretora e Editora Executiva Regina Igel Diretor de Arte Design Eddy Zlotnitzki Diretor de Projetos Fabio Silva Projeto gráfico e Arte Diagramação Eddy Zlotnitzki Revisão Regina Igel Colunistas Henrique Cymerman Regina Igel Fernando Lattman-Weltman Nelson Nisenbaum Arieh Wagner Itamar Assiere Colaboram neste número Paulo Valadares Alessandra Conde Os artigos publicados, são de inteira responsabilidade, de seus autores
Sagaz Arte & Cultura é uma publicação da Talu Cultural
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CAPA/ DOSSIÊ
2020 - Um ano para não esquecer
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TODAS AS CULTURAS
Uma vítima resiliente: Estados Gerais da Cultura
La Judía de Toledo: artigo As memórias literárias da família Lorber Rolnik: resenha
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MÚSICA
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ARTES PLÁSTICAS
Clássica: Encontros entre o clássico e o popular Popular: Sobre os heróis anônimos (ou quase) da música popular
O Naif: pureza e espontaneidade em forma de pintura
CATÁLOGO EDITORIAL
2020
Apresentamos ao público leitor e livreiro, o Catálogo Editorial da Talu Cultural para o ano de 2020. Nele encontrarão as publicações de nossos 5 selos editoriais: Talu Cultural Postagens Sagazes Amazônia Judaica Universo Sefarad E a nossa nova”menina dos olhos”, o selo CriosLivros por Demanda
6 CAPA/No Mundo-Dossiê/2020: Uma retrospectiva prévia/Redação Retrospectiva prévia de 2020 Janeiro 1 Ameaça de Guerra EUA x Irã 1 Avião Ucraniano é abatido por engano 1 Incêndios na Austrália 1 Primeiras mortes por corona vírus na China. Em questão de
semanas, são 200 vítimas fatais e 10 mil infectados 1 Inundação na Indonésia deixa 60 mortos 1 Terremoto na Turquia mata 38 1 Terremoto no Caribe 1 No Brasil, as chuvas em Minas Gerais matam 45 pessoas na região de Belo Horizonte
Fevereiro 1 Corona vírus chega ao Brasil
Março 1 Bolsas caem vertiginosamente. Brasil aciona circuit break 1 OMS declara pandemia do novo corona vírus
Abril 1 Brasil entra em quarentena. Número de mortos chega a 1.000.
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Maio 1 10 mil mortos pelo novo corona vírus no Brasil 1 Protestos contra o racismo tomam conta do mundo após morte de
George Floyd
Junho 1 Terremoto no México deixa 6 mortos 1 Nuvem de gafanhotos na Argentina avança rumo ao Brasil 1 Ciclone bomba causa estragos e mata pelo menos 10 no Sul do
Brasil
Julho 1 O presidente Jair Bolsonaro testa positivo para o corona vírus 1 Vacina contra Covid-19, de Oxford, apresenta resultados promissores
Agosto 1 Explosão no Líbano deixa centenas de feridos e 10 mortos 1 Vacina contra Covid-19 da Rússia é registrada
Setembro 1 Em 2020, de janeiro a setembro, os focos de incêndios na Amazônia
e no Pantanal eram de mais de 15.000
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CAPA/No Mundo-Brasil/Dossiê/Todos os gêneros/Maiorias
Mulheres e negros são os mais afetados pela covid-19 no Brasil, aponta IBGE Fonte: Deutsche Welle
A cada dez pessoas que relatam mais de um sintoma da doença, sete são pretas ou pardas – parcela da população fortemente dependente da informalidade. Em relação a homens, mulheres têm saúde e trabalho mais prejudicados
De acordo com o IBGE, 39% dos trabalhadores pretos e pardos estão em regime de informalidade, ante 29,9% dos brancos No Brasil, os prejuízos financeiros e de saúde causados pela covid-19 pesam muito mais sobre mulheres, negros e pobres. É o que apontam dados sobre mercado de trabalho e sintomas gripais aferidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no mês de junho.
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O órgão do governo federal mostrou, em sua Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Covid-19, que o número de desempregados foi acrescido de 1,68 milhão de pessoas em junho, o que representou alta de 16,6% na comparação com maio. Com isso, chegou a 11,8 milhões de brasileiros o total de desocupados no país, que só leva em consideração quem procurou trabalho – missão dificultada pelo isolamento social. E a conjuntura é particularmente cruel para determinados grupos sociais. Mesmo que indique um recuo do contágio viral, o inquérito epidemiológico do IBGE revelou um abismo racial no alcance da doença. Entre aqueles que disseram ter tido mais de um sintoma de síndrome respiratória, 68,3% são pretos ou pardos, diante apenas 30,3% de brancos. Entre os sintomas conjugados levados em consideração estão febre, dificuldade em respirar, tosse e perda de olfato ou paladar. Na avaliação do professor da Universidade de São Paulo (USP), Ruy Braga, especializado em Sociologia do Trabalho, o contraste tem raízes históricas, que impactam a inserção dos negros no mercado, e está ligado à qualidade de moradia dessa população. “É resultado de uma interseção entre pobreza, maior frequência na informalidade e precariedade nas condições de vida que atinge mais diretamente os negros e pobres no Brasil. Isso converge para as condições de saúde dessas pessoas”, afirma Braga. O sociólogo lembra que o adoecimento é muito mais frequente entre os negros, e a relação entre pandemia e comorbidades agrava o quadro. A situação é ainda mais delicada pela maior presença dessa população na chamada gig economy (economia dos bicos) e suas funções típicas, como as de entregadores e motoristas de aplicativo, que ainda se difundiram no contexto da crise sanitária. «São setores expostos à circulação, pessoas mais vulneráveis e que não podem ficar em casa, não têm acesso à proteção do home office, necessitam ir às ruas para ganhar seu pão. Há uma associação muito clara entre desigualdade racial, o aumento da vulnerabilidade desses grupos à pandemia e a esmagadora maioria de negros e pardos no trabalho
informal”, analisa o especialista. De acordo com a pesquisa do IBGE, 39% dos trabalhadores pretos e pardos estão em regime de informalidade, ante 29,9% dos brancos. Autônomos e informais foram justamente os que mais perderam renda na crise. “São trabalhadores atingidos duplamente”, afirma o economista Sandro Sacchet, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). “Mesmo aqueles que não tiveram a renda afetada, como os entregadores, acabam tendo que se expor e apresentam incidência de sintomas maior do que a média. A pandemia tornou a precariedade das relações informais mais visível”, diz.
Mulheres e o “cuidado perigoso” Os dados referentes à manifestação de sintomas associados à Covid-19 também revelam efeitos discrepantes na comparação entre gêneros. Em junho, 57,8% dos que disseram ter contraído mais de um deles eram mulheres, contra 42,2% de homens. Desde o início do ciclo da doença no Brasil, a antropóloga e professora da USP Denise Pimenta vem alertando para esse cenário. Estudos internacionais
e realizados no país mostram que, via de regra, mulheres são mais afetadas em epidemias, endemias e pandemias. O fenômeno encontra explicação no conceito de “cuidado perigoso”, identificado por Pimenta em sua tese de doutorado, uma etnografia do impacto da epidemia de ebola (2015) na população feminina de Serra Leoa. No país da África Ocidental, quase sempre
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sem salário –, foi bem superior a de homens: 18,3% delas estavam paradas, ante 11,1% da população ocupada masculina. Segundo o IBGE, quase a metade (48,4%) dos 11,8 milhões de trabalhadores nessa situação exclusivamente devido à pandemia ficaram sem receber salário nenhum.
eram as mulheres que assumiam os cuidados de familiares, amigos e vizinhos infectados, se expondo mais ao vírus do que os homens. Por vezes, quando outra mulher adoecia, uma amiga a substituía nas funções de cuidado, numa exposição interminável. No Brasil, além da reprodução em alguma escala deste fenômeno, incidem outras variantes, como a presença majoritária delas no front profissional da saúde ou em atividades de alta exposição, como limpeza. “Há uma sobrecarga no cuidado exercido pelas mulheres. Além da atenção à família, ainda tem a gestão da casa e o envolvimento com iniciativas comunitárias. A mulher está de cara a cara com o vírus, é quem limpa o mundo, tanto em casa como em hospitais. Elas são maioria na área da saúde”, comenta a antropóloga. Na análise do mercado de trabalho, mais desigualdade. Em junho, a parcela de mulheres afastadas de sua atividade – e possivelmente
Para o diretor-adjunto de Pesquisas do IBGE, Cimar Azeredo, a prevalência maior de afastamentos entre mulheres se explica, entre outros fatores, por sua elevada participação em setores como o de empregadas domésticas, dos que mais sofreram com os afastamentos: 22,9% do setor estava parado no mês passado. Ao mesmo tempo, chama atenção a «vantagem» apresentada pelas mulheres no quesito trabalho remoto. Em junho, 17,5% puderam gozar dessa vantagem, enquanto só 9,4% dos homens trabalhavam de casa. «Em média, as mulheres têm maior escolarização, fator importante para a realização de trabalhos mais intelectuais, que convivem com o home office”, lembra o economista Daniel Duque, da Fundação Getúlio Vargas. Embora se trate de um indicador positivo, Pimenta sublinha que a realidade do trabalho remoto tornou ainda mais penosa a conciliação entre tarefas familiares e profissionais pelas mulheres. “Não é mais jornada dupla, ela está em um trabalho contínuo. Tem que cuidar da casa, das crianças, dos idosos, das entregas, tudo ao mesmo tempo. Essa gestão de múltiplas obrigações deixa as mulheres mais estressadas do que os homens, mais produtivos do que as mulheres em trabalho remoto”, aponta a professora da USP.
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CAPA/No Mundo-Brasil/Dossiê/Todos os gêneros/Minorias
Crise causada pela Covid deve reduzir número de brasileiros na classe média Principal alavanca do PIB do lado da demanda, parte da população está abatida e não deve voltar aos velhos hábitos de consumo, preocupada com o fantasma do desemprego. O poder de compra das famílias diminuirá no pós-pandemia. Rosana Hessel - Correio Braziliense
Classe média deve reduzir gastos com viagens e restaurantes, por exemplo, adiando a recuperação da pandemia - (Foto: Iano Andrade/ CB/D.A Press) A pandemia de Covid-19 está deixando um rastro de destruição na economia global sem precedentes e, no Brasil, não é diferente, avisam especialistas. Uma certeza entre eles é que a recuperação da economia não será rápida e o empobrecimento da população, de forma geral, será inevitável. Com isso, os hábitos de consumo vão mudar, principalmente os da classe média, maior alavanca do Produto Interno Bruto (PIB). Ela mal se recuperou do baque da recessão de 2015
a 2016 e corre o risco de encolher ao longo dessa nova recessão, devido à forte expectativa de aumento do desemprego daqui para frente. Analistas fazem o alerta para que o governo, que está perdido no meio da polêmica sobre o teto de gastos, fique atento a esse problema. Ele pode ser uma das travas do crescimento da economia no pós-pandemia. O auxílio emergencial de R$600, que tem beneficiado mais de 60 milhões de vulneráveis, e a liberação dos saques do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) ajudaram a atenuar o impacto da crise na economia e algumas previsões estão sendo revistas. Estimativas da economista Silvia Matos, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV), mostram que, se não fossem essas medidas, a projeção de queda do PIB seria de 7,5% em vez dos atuais 5,5%. A diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva, tem alertado que o processo de retomada da economia será parcial e desigual e que todos os países sairão da crise mais pobres. O Fundo prevê queda de 4,9% no PIB global, a maior desde a Grande Depressão, e retração de 9,1% no PIB brasileiro deste ano, uma das previsões mais pessimistas. Mas, até mesmo as otimistas, como
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a do governo, de recuo de 4,7%, são as piores da história, segundo analistas. Na avaliação do economista Affonso Celso Pastore, expresidente do Banco Central, com a inevitável perda da capacidade de renda nessa crise, a classe média não deve voltar aos velhos hábitos no pós-pandemia e isso precisa ser contabilizado nas projeções do governo e do mercado. Ele reconhece que o auxílio emergencial de R$600 ajuda aos mais pobres, contudo, não será capaz de impulsionar a recuperação do consumo de forma robusta. “Esse é um ponto da história. O segundo é que a pandemia produz uma mudança nos padrões de consumo, principalmente da classe média, e que os economistas não estão prevendo nas projeções. Os serviços não vão ter o mesmo poder de impulsionar a retomada, porque a demanda dos consumidores da classe média não será a mesma”, explica. Pastore reforça que a desigualdade elevada do Brasil também será um dos maiores entraves para a retomada de um crescimento acima de 3% em 2021 previsto pelo governo. Segundo ele, ainda não é possível estimar o verdadeiro impacto da crise da Covid-19 na economia, porque não existe experiência histórica dessa crise. “As incertezas são enormes sobre a retomada e as pessoas fazem projeção como se não existisse a pandemia”, critica. A classe média, que é a maior fatia da população, em torno de 54%, está mudando os hábitos de consumo, principalmente, do setor de serviços — que representa 73,9% do valor adicionado de riqueza gerada na economia do país. “A classe média é bastante heterogênea na questão de consumo e atravessa transformações. E não é apenas uma questão de redução da renda mas, também, sobre o sentido real do consumo na vida das pessoas. Ela está fazendo uma reflexão nesse período em que está ficando em casa”, analisa Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva. Pesquisa da entidade constata que a maioria acredita que terá redução de renda na pandemia e pretende mudar os hábitos de consumo ou já está mudando e, consequentemente, gastando menos com viagens e restaurantes e fazendo um
novo arranjo no orçamento familiar. Especialistas avisam que a queda no consumo de serviços será inevitável, mesmo com pesquisas recentes indicando o começo de retomada. “Até a descoberta da vacina, as pessoas vão viajar menos e reduzir a frequência em restaurantes, teatros, cinemas. E, quem trabalha nesses estabelecimentos, normalmente pessoas das classes D e E, também devem sofrer impacto no emprego”, diz Meirelles. Ele destaca que a economia vai demorar para voltar a crescer e lembra que novas relações de consumo estão em construção. “Atualmente,18 milhões de brasileiros já recebem renda por meio de algum serviço de aplicativo e não são apenas entregadores”, afirma.
Renda menor Pelas estimativas de Pastore, o país sairá dessa crise com uma renda per capita menor do que antes da recessão de 2015 e 2016, porque o país ainda não tinha saído da primeira crise. “Supondo que o PIB caia 4,5%, com as projeções mais otimistas, e, como a população cresce 0,8%, o PIB per capita vai cair 5,3%. Logo, estaremos 10%, 11% abaixo do PIB per capita de 2014”, compara. “O Brasil tem um quadro feio para frente, não tenho dúvida”, alerta. Ele acrescenta que PIB não tem capacidade de crescer mais do que algo entre 1,5% e 2% no pós-pandemia, porque não seguiu o exemplo dos países que fizeram bloqueios mais duros, como Austrália, Coreia do Sul e Japão. Fabio Bentes, economista da Confederação Nacional do Comércio (CNC), também não tem dúvidas de que o empobrecimento do Brasil será inevitável nessa crise. Ele estima que o PIB per capita deverá cair, pelo menos, 6,6% neste ano, no mesmo patamar da década perdida de 1980. “Vai ser o pior resultado da série histórica desde 1981”, compara. Ele reconhece que esse cenário ainda é otimista porque não considera uma segunda onda de contágio da Covid-19.
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CAPA/No Mundo-Brasil/Dossiê/Todos os gêneros/Não humanos
Descaso no Pantanal e Amazônia ameaça negócios do Brasil enquanto Governo se isenta de responsabilidade Fonte: El País - Brasil
Carta assinada por oito países alerta para dificuldade crescente em manter negócios com o país e empresas de agronegócios se unem a ONGs para cobrar ações contra desmatamento amazônico Enquanto o Pantanal queima e a Amazônia Quatro fazendas teriam registra índices de degradação cada vez iniciado o incêndio no Pantanal maiores, o Brasil sofre a ameaça de ficar para (Misto Brasília) escanteio na economia. Além dos alertas já emitidos por fundos de investimentos e bancos brasileiros e da ameaça de que o acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul não se conclua, nesta terça (15) o vice-presidente Hamilton Mourão recebeu uma carta assinada pelos embaixadores de oito países europeus - Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Holanda, Noruega, Dinamarca e Bélgica. O recado da carta é claro: enquanto a questão do desmatamento e da preservação são foco dos governos e das empresas do continente, o “Brasil está tornando cada vez mais difícil para empresas e investidores atender a seus critérios ambientais, sociais e de governança”. A pressão internacional se soma a uma inédita reação de mais de 200 organizações, entre ONGs, empresas de agronegócio e do setor financeiro, que enviaram um recado ao Governo nesta terça cobrando medidas para reduzir o desmatamento na Amazônia. “Não somente pelo avanço das perdas socioambientais envolvidas, mas também pela ameaça que a destruição florestal na região Uma onça ferida nos impõe às questões econômicas nacionais. Há uma clara e incêndios do Pantanal crescente preocupação de diversos setores da sociedade repousa na beira de um nacional e internacional com o avanço do desmatamento”, diz riacho no Parque Nacional o texto, assinado pela chamada Coalizão Brasil Clima, Bosques e Encontro das Águas, no Agricultura. O grupo colocou lado a lado ONGs como a WWF, as Mato Grosso, que já teve indústrias JBS, Marfrig, além de Basf e Bayer. Entre as propostas mais de 60% de sua área destruída pelo fogo. do grupo, estão mais transparência nas ações e fiscalização nas MAURO PIMENTEL / AFP florestas.
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CAPA/No Mundo-Brasil/Palpite Feliz/Fernando Lattman-Weltman
2020
Um ano para ser esquecido? Seria ótimo, se fosse realmente possível. Mas pandemia e noves fora, caberia, em primeiro lugar, a pergunta: só 2020? Eu por mim de bom grado esqueceria muito mais: pelo menos os últimos nove ou dez anos poderiam ser perfeitamente anulados. Algo assim como um VAR da política e dos processos sociais. Ou seja, volta tudo atrás e nada do que aconteceu no plano geral da nossa experiência coletiva e institucional no período valeu ou estaria valendo e produzindo efeitos e desdobramentos até agora, ou depois (é claro que isso não se aplicaria à minha vida pessoal e a muita coisa boa que me ocorreu nesse mesmo período, nem a determinados fatos e eventos específicos da vida artística e cultural, assim como alguns resultados futebolísticos – mas só alguns – ficariam a salvo da borracha). Assim, nada de tele-shows inquisitoriais do STF ao arrepio do Estado de Direito, nada de jornadas de junho de 2013 – com seu cortejo infanto-juvenil de insatisfações
difusas e mal-ajambradas, regadas a altas doses de fascinação narcísica com a própria auto-ilusão de potência reformista ou revolucionária –, nada de crise econômica estimulada por interesses predatórios, nada de eleições irresponsavelmente radicalizadas e contestadas sem base em 2014, nada de impeachment fajuto de uma mulher de reputação ilibada – para dar vez a um governo de profissionais da mais pura estirpe dos velhos e tradicionais traficantes da privatização do público –, nada de perseguição judicialesca e alijamento arbitrário de Lula do pleito de 2018, nem muito menos eleições hackeadas à mancheia por bots, fake news e uma miríade de palanques e adesismos de última hora, dignos de uma fita de horror zumbi, qualidade z. E, claro, nada do presente status quo (mais propriamente status morbidus et degeneratus...). Infelizmente, porém – para mim e para todos que cultivam o mesmo bom gosto e modéstia – isso não é obviamente possível. Pelo menos enquanto não souber como
15 desconstruir e reconstruir a história e a memória coletiva com a mesma cara de pau e sem-cerimônia que hoje proliferam por aí. Não. Nem adianta tentar. 2020 definitivamente não poderá jamais ser esquecido. Não só porque essa está sendo a primeira grande pandemia pós-globalização. E porque mesmo que não tão relativamente fatal quanto outras que a precederam, é a que provavelmente deu origem e impulso às mais velozes pandemias marginais de desinformação e incapacitação de agências públicas necessárias ao combate eficaz e ordenado ao vírus em ação. Certamente que em outros casos similares a ação de certos governos também pode ter sido tão ou mais desastrosa ou inexistente do que agora. Mas com os meios de que hoje dispomos para tal esforço é simplesmente inaceitável não só o número de baixas clínicas, mas também, em certos contextos, a lentidão, ineficiência, irresponsabilidade e/ou pura negligência com que se lidou, e se lida, com os efeitos colaterais econômicos e sociais da crise sanitária. Por tudo isso 2020 não poderá jamais ser esquecido, inclusive porque, pelo andar da carruagem, não vai acabar tão cedo. Periga ser mais um ano sem fim. E já que falamos em anos que não terminam, é claro que o Brasil se encaixa perfeitamente nesse retrato. Mas há mais dois aspectos de certos comportamentos e reações à pandemia que chegam a lembrar alguns aspectos da própria Peste Negra, do século XIV: a mistura de fatalismo irresponsável com a pura e simples instrumentalização criminosa da fragilidade e vulnerabilidade alheias. De um lado, o modo como se reproduziu e se reproduz uma espécie de atitude lotérica diante dos riscos de contágio e prescrições de segurança. Que alguém resolva ignorar todas as medidas de cuidado sugeridas por todas as vozes de maior credibilidade científica – ou pelo menos as mais prudentes e razoáveis, diante da incerteza geral – e se arrisque por conta própria, sem comprometer a outros, tudo bem. Vá lá que seja, em nome de ideais de autonomia individual, excitação esportiva ou outras razões psicológicas imperativas. Mas que isso se faça sem a menor consideração pela saúde e vida alheias já me parece sintoma de outra espécie de patologia. E do tipo social. Aliás, diante das pérolas com que somos
cotidianamente brindados pelos novos pseudo-liberais, “estadofóbicos”, ou libertários de estilo mafioso, que hoje se reproduzem tanto quanto o coronavírus, tão orgulhosos de sua suposta independência – orgulho proporcional somente à sua própria arrogância e ignorância –, não pode mesmo nos espantar ver tanta gente apostando e fazendo bravata com a própria saúde, mas acima de tudo se lixando para com a dos outros. E não por acaso, 2020 também certamente ficará registrado como o ano em que as tendências genocidas do ancestral utilitarismo escravocrata brasileiro ressurgiram das profundezas com toda a força e desembaraço, na forma lapidar do adágio, “que importa que alguns milhares morram, desde que salvemos a economia (ou pelo menos o meu negócio)?”. Certamente que a crise econômica (préexistente), agravada pela pandemia, não é brinquedo. Mas é impressionante como parece nem passar pela cabeça de tantas sumidades empresariais ou administrativas nenhuma idéia um pouco mais heterodoxa, criativa e publicamente sustentável de combate à crise que não colocar em risco trabalhadores e consumidores, mesmo que eventualmente com resultados materiais pífios. A rigor, parece ser a convicção dos próprios privilégios relativos – reais ou supostos – e a necessidade imperiosa de justificá-los, afirmá-los e preservá-los de qualquer maneira, doa a quem doer, e sem margem a contestações – seja de que natureza for: moral, racional, autointeressada etc. – o que, sem dúvida conecta um e outro fenômeno. Tanto a soberba diante do contágio, quanto o desprezo solene pelo público e sua saúde. E é isso que inequivocamente chamamos de ambiente ou caldo de cultura propício ao fascismo ou coisas parecidas. De fato, não se pode, nem se deve esquecer.
NOSSO COLUNISTA SAGAZ FERNANDO LATTMAN-WELTMAN Doutor em Ciência Política pela SBI/IUPERJ. Professor e pesquisador do Dpto. de Ciência Política do Instituto de Ciências Sociais da UERJ e do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais PPCIS/UERJ.
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CAPA/No Mundo-Brasil/Diário da Epidemia/Paulo Valadares
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s a n i p m a C m e
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“Leopardos invadem o templo e bebem até a última gota o que está nos vasos sacrificiais; isso é repetido indefinidamente; finalmente, ela pode ser calculada com antecedência e torna-se parte da cerimônia” (Franz Kafka, Parables and paradoxes, 93). Para a memória do nosso primo o Dr. António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783), que combateu Pestes. A Peste já contaminava a Europa, vinda de Wuhan (武漢), quando o governo brasileiro Bolsonaro, Moro e Mandetta, através da Lei nº 13.979, iniciou a legislação sobre o episódio: “Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”. A Chevra Kadisha paulistana seguiu as regras: “(...) os cemitérios israelitas estão fechados para visitação, exceto sepultamentos. Está suspensa a distribuição de kipá, portanto os homens devem trazer o próprio solidéu ou cobrir a cabeça com chapéu ou boné ao acompanhar um enterro, cujo limite de acesso recomendado pelas autoridades de saúde é de 10 (dez) pessoas (...)”
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06
Nos últimos tempos tenho estado doméstico. Fui nesta semana fazer uma palestra no Museu da Imigração e do Holocausto em S. Paulo. A viagem, a paisagem, o encontro com gente que não via há bastante tempo e outros que conheci, me revigoraram. Gostei demais. Agradeço a todos. Neste dia morreu a primeira vítima da Peste, um homem de 62 anos em S. Paulo.
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Sou primogênito. Éramos servidos primeiro nos almoços e jantares da parentela. “Quer que lhe faça o prato?” - perguntava a Mãe ou as tias. Os sacrifícios eram sempre em nosso benefício. Era uma forma de esquecermos que na ordem natural para esvaziar o mundo, somos nós o
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terceiro na família a ser chorado. Primeiro vai o Pai, depois a Mãe e depois nós, puxando a fila da outra geração. Sobrevivemos a tantos perigos, a décima praga do Egito, o mal de sete dias, a moleira aberta, a catapora, etc. “Tenho a impressão de ter em casa a faca / Com que foi degolado o Precursor”, escreveu Fernando Pessoa sobre nós. Aqui, de “quarentena”, aguardo o Pessach (Páscoa) para abril, enquanto ouço, no apartamento ao lado, o chefe da família (bem mocinho) lamentar que ficou desempregado e o seu Pai fugir para fumar no corredor. O velho está com Alzheimer. O avô materno Rubem Israel era de Évora, Portugal. A avó nascera em Borba, Amazonas. Trajetórias típicas deste grupo. DANIEL AZULAY (19472020) é um magrebino (judeu originário do norte africano) de quatro costados: Azulay, (...), Israel e Benoliel (e Barchilon). Casado com uma Larrat. Irmão de Jom Tob, o Jomico, diretor do “O Judeu”, filme sobre a ação da Inquisição na vida do carioca Antônio José da Silva. Daniel foi desenhista e apresentador de TV (a Turma do Lambe-Lambe). Quando fui apresentado a ele, numa sinagoga de Copacabana, espantou-me a sua timidez e a gentileza. Pousou o lápis pela Covid-19.
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Estava na fila como os outros, mendigando um visto ao cônsul português Sousa Mendes, para fugir dos nazistas. D. Maria Antónia, princesa austríaca, mas que falava português e carregava o trio de anjos no nome, que identifica os descendentes de D. João VI, seu avô paterno. A vida não fora fácil, casara-se com o rico Duque de Parma e entre
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1885 a 1905, tivera doze filhos – o marido trouxera mais doze do primeiro casamento. Conseguiu o visto e refugiou-se no Canadá, onde viveu pobremente, à base de salada de espinafre e folhas de dente-deleão nos primeiros tempos. Temperadas, é claro. D. MARIA TERESA de BORBÓN-PARMA (1933-2020), a neta, conhecida como a “Princesa Vermelha” por ser militante socialista, com dois doutorados, foi professora universitária e a primeira de uma casa real a cair sob a Covid-19. Hoje fui ao banco; afinal, como dizia a esposa de Rui Barbosa, “o Conselheiro come”, tirar uns caraminguás para comprar suprimentos. São seis quadras na rua José Paulino – tudo fechado, lojas de roupas de noivas, bar, padaria, estacionamento; só está aberto o quartel de bombeiros e um “restaurante” para homeless, onde nove deserdados comem feijão, arroz e uma carne escura em pratos de isopor no meio da rua. Provavelmente sem saber o que se passa. Descubro que há uma espécie de mercado negro nos serviços: uma manicure trabalha, após marcar hora por telefone, quando então levanta furtivamente a porta do seu estabelecimento e atende a cliente. No banco, uma imensa fila do lado de fora, entra um cliente por vez silêncio e gentileza marcam o espaço. Feita a operação, volto ao meu bunker para resistir mais um mês
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Não me faz falta o sol quente lá fora, nem as ruas sequestradas pelo medo; mas, sim, a falta de contato físico com os meus amigos. Olhar nos seus olhos e tocar nas suas mãos. São gente que um dia fez um gesto de carinho para comigo, desde a recenseadora que beijou este sapo-menino lá no início da vida ou o barbeiro italiano que disse ao nosso Pai, “este menino será presidente da república” (não era o meu objetivo); ele dizia isto para todos os Pais. Nem todos estão na foto de Edson Joaquim num destes momentos de alegria – não consigo citar os nomes de tantos; mas sintam-se abraçados por mim, onde quer que estejam. Como disse a Renata, “vai passar”.
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Brisa, o gato do terceiro andar, nos acordou nesta madrugada com miados de desespero. É a terceira semana de confinamento fazendo efeito em si. Ele se encheu, mas já se acalmou. Sente falta de seu colega de apartamento, o Bad Boy, garotinho de dois anos, que está com a outra avó. Tirando estes aspectos isolados, tudo vai bem. Os jovens do prédio foram embora, suponho, para a casa dos Pais. Ficamos nós, os velhos e J., troublemaker em tempo integral que, volta e meia, usa a furadeira em seu apartamento, exclusivamente para chamar atenção, e depois se cansa do truque. Afinal, um prédio que se chama San Diego (presumo que Maradona), não pode prescindir dele.
ABR
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1974 é o ano que escolho para retornar ao passado num calendário interno e não o da folhinha. Quando ouço certas canções, que foram tocadas no rádio e vejo algumas fotografias de jogadores de futebol, lembro dele. Será que Ele foi tão espetacular assim? Coloquei os acontecimentos do ano no papel, vi que foi o ano que perdemos nossa casa, mas foi também o ano do sonho. Quando desarmei o ponta esquerda e vi a avenida na minha frente; percebi que poderia chegar onde quisesse, até numa aldeia da Rota da Seda. A vida não foi bem assim, mas não posso reclamar, tive a oportunidade de fracassar em tantas coisas até poder me aquietar. Assim como me lembro do campinho, daqui a décadas, um destes garotos (as) impacientes que estão confinados nas salas dos Pais ou dos avós, lembrarão o Ano da Peste como o melhor de suas vidas: pois se conviveram, viram pela primeira vez uma série de TV, terão saudades de um prato. Com certeza será o ano de sonho de muita gente.
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Criamos gado há quase trezentos anos: e também tínhamos nossa horta, pomar e um lugarzito para plantar outras lavouras. Nossa Mãe tingia e costurava nossas roupas. Tirando o
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trigo e os sapatos, éramos autossuficientes. Poderíamos resistir a um cerco por longo tempo. Com o passar dos anos o ferro de marcar, de nosso avô Tomé de António Ribeiro, perdeu o sentido de propriedade. Depois o pomar, a horta e a lavoura sumiram furtivamente. Hoje, abrigado na torre de uma cidade imensa, vendemos apenas gestos. Compramos tudo e somos dependentes de uma rede universal. John Donne (1572-1631) tem razão: “Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria (...)”. Fabrice Del Dongo, 17 anos, filho de um marquês italiano, tenta reunirse ao exército napoleônico e passa por um campo onde soldados extenuados lutam, mas não presta muita atenção ao evento. Só depois percebe que esteve na batalha de Waterloo (18/06/1815) quando Napoleão foi derrotado, mudando o curso da História. É um personagem de Stendhal, “A cartuxa de Parma” (recomendo a leitura). Quando li o romance, esta cena ficou na minha cabeça, como exemplo de não se identificar a importância de um evento e deixá-lo passar desapercebido. Estamos num destes momentos, vamos nos documentar para o futuro; registrar o cotidiano em diários (FB e em papel), fotografá-lo, deixar memórias disto. Ontem mesmo, uma família amiga celebrou o Pessach (Páscoa judaica), através de programas de celulares, com seus membros espalhados pelo mundo. Já imaginou o alcance disto?
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Este é o Christopher Olsen em 1956, no filme O homem que sabia demais, de Hitchcock. Ele dança com Doris Day – sua mãe no filme, a canção: O que será, será: “(...)”O que eu vou ser?” / Serei bonito? Eu vou ser rico? / Eu digo-lhes ternamente / “Que será, será / Seja lá o que for, será / o futuro não é só nosso / o que será, será (...)”. Ele tinha dez anos quando fez o filme e foi para
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outros caminhos profissionais. Foi o ano em que nasci. Somos hoje dois tiozinhos – é assim que chamam aos que estão no grupo de risco – ainda curiosos pelo dia de amanhã. Tá certo, o que será, será! O que tem lá para trás das montanhas do futuro? O homem é previsível – Mestre Cascudo dizia que os homens que voltaram da lua foram saudados como em Babilônia. Nestes dias da Peste, como em outras anteriores, religiosos a veem como castigo divino e se reúnem para se arrependerem dos pecados. Ontem (12/04), domingo de Páscoa (cristã), o signore Bocelli cantou dentro e na frente da Catedral de Milão, durante meia hora, músicas das diversas vertentes da tradição cristã (católicos e protestantes). Cantou fora da igreja, “Amazing Grace” (1779), composta pelo ex-negreiro John Newton, que converteu-se a ser um homem melhor, quando deixado na costa africana como escravo. Posteriormente tornouse clérigo anglicano. A canção propagou-se na América entre os batistas e metodistas. Belo espetáculo, que supera a ficção.
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Almoçávamos, o jornalista L. D. e eu no “Gato que ri” no Arouche, de D. Amélia (que seria assassinada dias ou meses depois). O assunto era um encontro de cristãos-novos que ele pensava em fazer. De repente, ele discretamente apontou um sujeito macerado: “ele pegou AIDS”. Era o começo dos anos 80s. Quando tive ciência como se transmitia, a tal “cadeia epidemiológica”, valorizei o drama que me fizera cair a ficha, “A ronda” do médico Arthur Schnitzler (1862-1931), onde descreve uma destas cadeias de transmissão: a prostituta encontra o soldado; o soldado encontra a balconista; a balconista, o cavaleiro; o cavaleiro, a esposa de outro marido; este, uma jovem; ela, um poeta; o poeta, a atriz; a atriz, o conde; o conde, a prostituta inicial. Cada um destes encontros termina em reticências (eufemismo do ato sexual). É um bom livro (ou filme) para este inverno.
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A enfermeira “israeliana” Ester Solomovici (1950-2020) cuidou da mãe, a viúva Netti Solomovici, née Zevit. (1932-2020), até o dia 23 de abril, quando ela foi para o Jardim; depois foi a sua vez, dia 25 de abril, em silêncio, como sempre viveram, desde que chegaram à Rua dos Italianos, no Bom Retiro em 1954. Ela voltara a trabalhar no Hospital Savóia desde que cassaram a sua aposentadoria. Como soube? Olhando listas de vítimas da Covid-19, confrontando com FBs de profissionais da saúde paulistanos, etc. Sepultadas no Cemitério Israelita do Embu – quadra B, 25, 104 e 106, respectivamente.
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Ouvir o riso dos miseráveis da terra por ser um “burro sem rabo”, queimava mais que o sol nas ruas do Rio, para o portuga recém-chegado. A humilhação do imigrante era descontada na cerveja e na música ritmada do final de semana no subúrbio. Quem dirigia a Associação de Resistência dos Cocheiros e Carroceiros podia ser o rei deles; caso do António de Oliveira Aguiar, de Póvoa do Varzim, que se casou com a Noêmia – séculos antes ela poderia ter sido “Naomi”, filha do barbeiro português António Rodrigues da Fonseca, e tiveram a Helena. ALDIR BLANC (19462020), filho de Helena, ouviu histórias dos avós, dos tios, dos vizinhos e as transformou em poesia. Foi assim com as dúvidas inoculadas pela Inquisição nos que se fizeram descrentes. É a canção “Agnus Sei”. Ele foi pela Covid-19 neste dia.
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Quebrei a “quarentena” para ir ao banco – buscar o milho para o fubá mensal. Depois de trinta e poucos dias sem colocar o nariz para fora do apartamento, saí de máscara. Tive um alumbramento-bonsai logo ao sair do prédio, ao ver o vermelho vivo de um carro popular que passou velozmente, furando a claridade do dia. O quarteirão continua parecido, lojas fechadas e os homeless na fila para pegar o almoço. Enquanto descia a rua Zé Paulino, pensei: Edson
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Joaquim e Marli me convidaram para um Te Deum gastronômico-musical assim que passar a Peste. Minha irmã Sara comemora o primeiro dos três aniversários anuais. Fiquei mais de quarenta minutos na fila. Soube que o Fernando, aquele ruivo que é preto, também é gay, dizia sua ex-namorada. Quatro pessoas vendiam máscaras a cinco reais. No banco, falei quanto queria, o caixa concordou: o cliente G638 saiu satisfeito. Notícia que você prefere que seja mentira, mas não é: O engenheiro e historiador MARCELO MEIRA AMARAL BOGACIOVAS (1952 - 2020) não irá mais aos arquivos pesquisar Genealogia. Sou Amigo dele há décadas e admirador, aluno, há mais tempo ainda. Quantas vezes não peguei ensaios genealógicos dele e “desmontei” para ver se aprendia fazer uma peça sofisticada daquelas. Ele conhecia minuciosamente todos os seus ancestrais quatrocentões, por examinar criticamente documento a documento, visitar os locais (uma vez fomos a um sítio perto de Itu só para confirmar suas intuições e que deu origem ao artigo A capela de N. S. da Conceição de Itupucu). De uma honestidade intelectual singular enquanto não tivesse a prova documental, não colocava nada no papel. Viajamos juntos algumas vezes para congressos e pesquisas. Dessas viagens guardo as melhores recordações como quando saímos pela madrugada carioca para procurarmos banana (ele era viciado na fruta). Pura diversão para o seu senso de humour. Era uma pessoa gregária e amorosa gostava de ter os amigos perto de si. Quando me afastei de S. Paulo, ele fazia questão de telefonar-me regularmente para saber como íamos pelejando com a vida. Com toda franqueza, não queria escrever isto, preferia que ele escrevesse a minha.
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O que vocês estavam fazendo antes da Peste? A última coisa que me lembro antes da reclusão foi uma palestra no Memorial da Imigração Judaica e do Holocausto, antiga sinagoga Kehilat Israel – Bom Retiro, em S. Paulo (04/03), onde toquei meu sambinha de uma nota só: descendentes de judeus que vieram para o Brasil no séc. XX (apresentação do livro que volta e meia falo por aqui). Lá reencontrei amigos que não via há tempos, o primo Joabe, a família e uma plateia generosa. Hoje são os números dela em Campinas: 1015 infectados, 44 óbitos e taxa de ocupação nos hospitais, 75,2%. De um terceiro andar na avenida Aquidabã estamos de olho na pomba de Noé esperando-a voar brevemente como se fosse a terceira vez...
MAI
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Amava a vida e prestava atenção nela. Muitas vezes, sentávamos e conversávamos horas sobre histórias das famílias judias paulistanas décadas passadas; pois, como eu a arreliava – ela era aristocrata da comunidade. Muito amorosa, sempre que visitava o AHJB (Arquivo Histórico Judaico Brasileiro) nos trazia uma torta feita por ela. Risonha, era a LÉA VINOCUR FREITAG (1940-2020), cantora lírica, jornalista, escritora, professora universitária, nos visitando. A sua árvore genealógica começava no vendedor Moishe do Pires (referência a rua Gervásio Pires, Recife), que se casou com Elisa, irmã de Olga (esposa do Isaac Tabacow, S. Paulo). São os Pais de Ester Sonia Rosenberg, que ao ficar órfã foi criada pelos tios paulistanos. A Ester casou-se com o Dr. Paschoal Vinocur, baiano Pais da Léa (nome em homenagem à avó materna, Elisa). Pois a Léa parou as conversas.
MAI
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O português é uma língua misteriosa, que pode nos driblar a qualquer momento, causar tédio ou medo, dependendo da boca que o diga. Na primeira vez que ouvi a palavra “anecúmena”, numa distante aula de Geografia, não levei muito a sério – gente que sobreviveu a quarentena no deserto bíblico, a fome do “Bolachão”, bebeu água sem filtrar e está em pé ainda, tem dificuldades para entender certas situações. Nosso Pai que tinha uma didática particular para nos educar no ceticismo familiar, sonhava cenários distópicos futuros: “(...) o lugar era povoado por gente sadia, até que uma tarde, os leprosos que o circundavam, resolveram contaminá-lo e saíram para abraçar os moradores (...)”. Com a Peste tenho pensado durante as madrugadas, será que a Terra não está tornando-se “anecúmena”? Já são 75 mortos na nossa vizinhança campineira (...).
JUN
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Fui ontem ao banco, dia de raspar o porquinho. É tão bom receber o primeiro bom dia de um estranho logo ao sair de casa. Infelizmente a máscara não me deixou interagir com o cãozinho branco – como será que os bichinhos estão atravessando a quarentena? O Brisa, o gato que é meu vizinho, às vezes tem um surto e mia intermitentemente no corredor até ser acarinhado pelas moradoras do andar. A rua Zé-Paulino continua a mesma, quase tudo fechado, inclusive o QG dos Bombeiros, os homeless estendidos na calçada à espera do almoço. No banco dos Sousas-Aranha (gente que plantou muito café aqui na cidade) entro na fila ao lado da casa bancária, tempos depois ela caminha até chegar ao seu interior. O vigilante, muito gentil, quer saber se subo escada: Filho respondo fanhosamente - o problema é descer, subir é a meta...
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Não deixe nada no prato, dizia nossa Mãe. Não era só o terrorismo gastronômico educativo próprio das Mães. Hoje percebo que a
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recomendação serve para outras atividades da vida. Se ali significava a dose diária do Biotônico Fontoura (ou a Emulsão de Scott) a ser consumida, diminuir a pressa em comer e prestar atenção nas cores, aromas e sabores do prato. Sinto falta até hoje da flor de abóbora empanada – never more. Não se esqueça que um dia voltarás ao pó – a distância entre o nascimento e a morte do Homem é pequena. Explore ao seu redor, siga o conselho dado no Jardim, “utiliza-te de todas as árvores”. Muitas coisas que são possíveis hoje, não serão amanhã, a vida é isto. Aceite até o tombo na estrada (tenho uma história boa sobre isto, que espero contar outro dia). Duramos menos que uma árvore ou uma tartaruga. Aproveite o momento. Numa população, que majoritariamente consumia gordura suína em pacotes; nós, que usávamos óleo de algodão ou amendoim em latas. Portanto, tínhamos centenas de latas vazias no quintal de Zillo, Revel, Sol Levante, etc.; que eu utilizava como brinquedo, empilhando-as em formas de pirâmide em xadrez. Com o serviço pronto eu acertava o pé do meio da construção que se derruía e eu voltava à reconstrução; mas já não era a mesma coisa, mesmo tendo a mesma forma. Ontem (08/06), Campinas, por autorização governamental, começou a reabrir o comércio antes do fim oficial da Peste (103 mortos por enquanto). As ruas se encheram de mascarados; mas nada será mais como antes: o modo de se relacionar, de trabalhar, de vender e comprar, a ser construído, etc. Pareço ouvir o Newton Campos (FPB), ao lado do corner no ringue, quando boxeava alguém da casa e um visitante e o árbitro intervinham contra nós: começou a sacanagem (...) .
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Se ele tivesse patenteado o seu “invento”, a morte entre os humanos, teria ficado muito rico. Depois que Caim deu a porretada no cachaço do irmão por motivos que não cabem listar, vieram bilhões de mortes individuais, fomes, pandemias,
Vernichtungslager (campos de extermínio), o Coronel Tibbets (Hiroshima), etc. Ele abriu caminho para alguém deixar de ser por bem ou por mal. Porém nenhum mísero moleque, creio eu, recebeu o seu nome; as telas do evento são poucas – e, mesmo assim, ele continuou na memória ocidental, por nos levar a Ela. Céus foram criados para combater o medo dela e, mais concretamente, lápides, como a dizer: continuo, apesar de si. Nosso Pai, Miúdo de Tomé (19231996) trabalhou até os seus penúltimos dias, sem gozar férias e nem parou durante as chuvas ou nos dias em que a folhinha estava em vermelho. O gado precisava do sal, verificar se algum animalzinho nascera durante a noite e ordenhar para garantir nossa sobrevivência. Durante a sua vida, duas guerras mundiais dizimaram a juventude esperançosa. Sobreviveu ao ataque de lobos, escorpiões e cobras, cornadas de bois, ao tifo, às crises econômicas, garantindo a segurança da prole. Mas ele não passou por isto, nem seu pai que nasceu em 1896, nem seu avô e até onde a memória alcance, o confinamento pela Peste para garantir a vida. Não ter que sair de casa, quando os dias tornaram-se grandes domingos, mas sem receber visitantes.
JUN
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“Somos poucos”, diz a reza do Kippur. Aqui em Campinas, também. Mesmo assim, pelas circunstâncias da vida, às vezes alguém não responde à chamada. Desta vez foi D. Rachel (1924-2020), filha de Nathan Gurfinkel (Naftali b. Yitzhak HaLevy), gente vinda de Yampol. Ao que tudo indica na documentação, ela descendia pelo lado materno dos Perlov – dinastia rabínica lituana desde o séc. XVIII. Ela foi casada com o cardiologista Mojsze Liberman, homem ativo na comunidade e pais do Dr. Alberto. O Dr. Moisés foi professor na PUCCAMP, vice-presidente do Guarani e estava na diretoria que construiu o atual prédio da sinagoga. Hoje é nome de posto de saúde e viaduto na cidade. Ela seguiu viagem.
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Não é mais um número na estatística. É José Ribeiro Valadares (19522020), nosso primo por Pai e Mãe – somos ambos primogênitos, algo importante na geração de nossos pais. Nossa Mãe foi uma de suas parteiras. Muito do caminho que segui devo a uma conversa que tive com ele numa noite distante, nos anos 70s. Visitando tia Dorcas em S. Paulo – ele é filho dos tios João & Neide - encontrei-o pela primeira vez. Como eram raros estes encontros familiares, aproveitei para inquiri-lo, ainda sem método, sobre nossa parentela. Encostado no muro, ele respondeu: “Se quer saber quem somos, descubra por que estamos aqui, por que deixamos a terra”. Nem ele, nem eu, sabíamos das implicações da resposta. Ele deixou-nos de dar o bom-dia no FB.
JUL
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Nunca fui preso – detido algumas vezes, mas solto logo adiante. Nestes dias da Peste, imaginei como seria a convivência comigo dentro de um xilindró. Fui educado a “fazer sala”, entreter o convidado como prova de civilidade. Às vezes exagero no que penso ser cortesia e falo sem parar, como no velório de nossa Mãe, quando contei histórias, piadas, fiz previsões do tempo, astrológicas, indiquei endereços, etc. Tudo para que aquela dor passasse rapidamente. Técnica “aprendida” com o goleiro Manga que chutava qualquer bola para frente com a expectativa de que os noventa minutos seriam mais céleres. Será que os colegas de cela entenderiam este lado falador, que convive com o casmurro, quando posso ficar dois dias sem sentir nenhuma necessidade de dizer nada, mesmo que seja para discutir um plano de fuga.
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Não falava com a Sema há anos – falei com ela ontem (29/07); mas, não a esquecera, pois tenho uma gravura de Marcelo Grassmann e um gatinho de ferro (criação do marido, Dr. Nicola): presentes dela, ambos na sala. Cada vez que os vejo, lembro-me imediatamente de si e do tempo que editamos o Boletim Informativo do AHJB. Uma das convivências mais prazerosas que vivi. As reuniões eram esperadas por mim com ansiedade. Conversávamos sobre tudo e o avesso de tudo, e nos intervalinhos, a pauta da revista. A Sema viajara por locais incomuns (Samarcanda, por exemplo), participara da direção do MAM/SP e coordenava um concurso da WIZO que cobria as escolas estaduais apresentando-lhes positivamente Israel. Foi quando conheci o Dr. Nicola Petragnani (1929-2015), professor do IQ-USP, gentilhomme e artista. Ele transformava em escultura qualquer objeto de metal que perdera a utilidade. A Sema contou-me que chegou aos 91 anos neste julho. Aos 120 anos com a elegância e o bom humor de sempre, são nossos votos!
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2020 100.000 vítimas; destas, 804 em Campinas.
COLABORADOR SAGAZ PAULO VALADARES Paulo Valadares é mestre em História pela USP, escritor, especialista em genealogia judaica. É coautor do Dicionário Sefaradi de Sobrenomes. Ed. Sêfer. 2ª. Edição
24 TODAS AS CULTURAS/José Ribamar Bessa Freire “Que importa o chapéu de palha, o traje, o rude perfil. Ele é um homem que trabalha, ele é o filho do Brasil”. (“Infância Brasileira”, livro didático da década de 50)
Wilsão, os índios e os Estados Gerais da Cultura
25 Mãe? Ninguém sabe quem era. Pai, muito menos. Ele era filho do Brasil como tantos outros cantados em quadrinha de autor cujo nome não lembro mais. De pais desconhecidos, Wilson Pinheiro de Souza nasceu por volta de 1933, sabe-se lá em que dia e mês, no Careiro (AM), distante de Manaus umas quantas horas de barco, onde aprendeu a nadar nas águas do rio Castanho. De lá foi parar no Acre, na fronteira com a Bolívia. Trabalhou em seringal e foi eleito presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasileia, quando o conheci em abril de 1979, numa reunião com os índios Apurinã no Teatro de Arena do SESC, em Rio Branco. Ele seria mencionado na abertura da minha fala no 5º Encontro dos Estados Gerais da Cultura (EGC), programado para domingo (6) sob a batuta do cineasta Silvio Tendler, organizador do movimento que pretende recriar o destroçado Ministério da Cultura. Desde julho, aos domingos, uma centena de pessoas se reúne para discutir o Brasil e suas políticas culturais. No meu dia, quando eu ia começar a falar, uma horda de bárbaros invadiu com palavrões a sala do zoom aos gritos de “mito, mito”, exibindo imagens do capitão armado. - “Estamos incomodando, fomos reconhecidos pelo adversário, passaram recibo” – celebrou Silvio Tendler, um guerreiro da paz. A Escola Superior da Paz foi criada pelo movimento EGC com objetivos diferentes aos da Escola Superior de Guerra e, segundo a jornalista Tânia Fusco, já conta até com um reitor, o historiador Célio Turino, que como secretário da Cidadania Cultural do Ministério da Cultura (2004-2010) criou o Programa Cultura Viva, responsável por mais de 2.500 Pontos de Cultura em mais de mil municípios brasileiros. A Escola da Paz defende a Doutrina de Segurança Emocional para exigir trégua nas comunidades das periferias brasileiras, contando para isso com as amadíssimas Forças Amadas.
O território indígena Por sugestão das Forças Amadas, o 5º Encontro dos EGC foi, então, transferido para a plataforma da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), onde fiz um resumo da palestra sobre “O lugar dos povos indígenas na política cultural do Brasil”, devendo desenvolver o tema de forma ampla no início de outubro. Não é possível fazer uma discussão séria sobre políticas culturais, deixando os índios de fora. Mas qual é o lugar do Wilsão nessa história se ele não é indígena? Um episódio vivido por Wilsão com os Apurinã, do qual eu participei, serviu para introduzir o tema da demarcação dos territórios indígenas e relacioná-los com a cultura. A terra indígena não é só um espaço físico, um bem material, vista pelo agronegócio e as mineradoras apenas como valor de mercado. Ela é muito mais do que isso, é um bem cultural, como ficou evidente no diálogo entre índios e trabalhadores rurais, ocorrido no dia 19 de abril de 1979, um ano e três meses antes do assassinato do Wilsão. Foi assim. Nos anos 1970, o grileiro paranaense João Sorbile, apelidado de “Cabeça Branca”, aproveitou a longa temporada de caça dos índios Apurinã
26 e com a conivência do Cartório de Boca do Acre (AM) loteou a terra indígena, vendendo os lotes para colonos vindos do Paraná. Quando os índios retornaram da caçada encontraram lá outros “donos”, que exibiam recibos do pagamento feito ao grileiro. Armou-se um conflito feio entre índios e posseiros. Para lutar contra o grileiro em vez de brigar entre si, índios e posseiros se reuniram no Teatro de Arena do SESC, em Rio Branco, com a participação de lideranças de várias entidades, entre as quais Wilson Pinheiro de Souza, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasileia e Chico Mendes, ex-secretário do sindicato que se elegera vereador em Xapuri. Daí nasceu o Comitê Índios x Posseiros, berço do movimento “Aliança dos Povos da Floresta”.
Lugar de memória
não entendia porque os índios não se sindicalizavam. Numa intervenção pública perguntamos a ele: - Você aceitaria trocar a terra onde está, em Brasileia, por uma terra fértil do mesmo tamanho aqui perto do mercado consumidor? Wilsão respondeu: - Quem não aceitaria? A distância de lá para cá é de mais 200 km por uma estrada intransitável cheia de lama e buracos. A mesma pergunta foi dirigida a Manuel Apurinã ali presente. Ele disse que não trocaria nem por um terreno dez vezes maior. É que para ele a terra era um lugar de memória, um espaço sagrado, onde estavam enterrados os seus mortos, com numerosas referências às narrativas míticas. Sem ela, a cultura Apurinã se esfacelava. Manuel cantou, então, para uma plateia silenciosa e reverente, uma canção em língua Apurinã. Embora desconhecesse a língua, Wilsão entendeu tudo, percebeu que estava diante de outra cultura, com sua forma específica de ver e lidar com a terra. Manuel disse algo assim como “não é a terra que nos pertence, somos nós que pertencemos à terra. Por isso não podemos sair de lá”. Na versão Guarani, sem tekoá (aldeia) não há tekó (cultura). É no território que eles cultivam o nhanderekó (o “nosso jeito de viver”), que dá conta das relações internas pautadas pela ética do parentesco e pelo ideal de boa convivência.
Forças Amadas Na ocasião, foi encenada a peça “A Grilagem do Cabeça” dirigida por Vera Froes do Grupo Testa, descrevendo toda a trama sórdida. Depois do espetáculo Wilsão manifestou durante a reunião que
Portanto, quando o governo Bolsonaro impede a demarcação das terras indígenas, tal medida, que contraria a Constituição, golpeia culturas milenares e destrói línguas, saberes tradicionais, arte, música, literatura oral. A Funai bolsonarista editou uma
27 levou centenas de posseiros a tomar dezenas de rifles dos pistoleiros contratados por grileiros, entregando as armas ao Exército. Wilsão foi assassinado, aos 47 anos, com um tiro pelas costas, mas parece que continua incomodando. E nós com ele. Três vivas aos Estados Gerais da Cultura, à Escola Superior da Paz e às Forças Amadas. Obs: Créditos: fotos de Milton Guran, Nietta Monte, entre outros.
Te entrega, Corisco! - Eu não me entrego não. Não me entrego a tenente, não me entrego a capitão...
NOSSO COLUNISTA SAGAZ JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE instrução normativa que permite o registro de propriedades privadas sobrepostas a terras indígenas em processo de homologação, oficializando assim a grilagem. A juíza federal do Pará acaba de suspender tal excrecência, Durante quase cinco séculos os índios perderam mais de 87% de seus territórios e com eles suas culturas, que são vitais não apenas para os povos originários, mas para o Brasil e para a humanidade. Por isso, a Constituição de 1988 repactuou: o que os povos ameríndios perderam, perdido está, mas o Estado garante daqui em diante o usufruto das terras que permaneceram ocupadas. A atual política de um governo que nega aos índios, em plena pandemia, o acesso à água potável, mostra que esse pacto está sendo violado. A garantia da terra aos povos indígenas, como assegura a Constituição, não é apenas uma medida no campo da economia, mas faz parte da própria política cultural. É isso que, entre outras questões, os invasores da reunião não queriam que fosse dito e discutido. Wilsão era um homem da paz. Liderou o movimento Mutirão contra a jagunçada, que
Doutor em Letras, é professor da Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO e coordenador do Programa de Estudos dos Povos Indígenas da UERJ.
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TODAS AS ARTES/Literatura/Elias Salgado
“La Judía de Toledo”: Uma mulher, múltiplos personagens* Através do personagem ficcional e histórico(?) de Raquel, é possível refletir sobre o imaginário coletivo espanhol relativo à imagem dos judeus em Espanha
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Seguindo a trilha apontada por Lion Feuchtwanger, autor do livro La judia de Toledo, nossa análise será baseada, principalmente, em estudo de algumas peças teatrais espanholas escritas e encenadas no período que vai do século XVI ao XIX. As grandes questões aqui levantadas são: * Por que o personagem da Judia de Toledo (que no século XIII é chamada de “La Fermosa” pelas crônicas reais e, a partir do século XVI, será conhecida como Raquel), atravessa tantos séculos e dezenas de autores escrevem peças sobre tal figura? * “La Fermosa” foi uma lenda ou um ser histórico? * No romance de Feuchtwangter, há “um jogo” narrativo no qual o autor nos apresenta os personagens principais (Afonso VIII, Yehudá Ibn Ezra, Raquel e a nobreza cristã) baseando-se (numa referência) nos/aos personagens do Livro de Esther – Ahashverus, Mardoqueu, Esther e Aman. O livro La Judía de Toledo é um clássico romance de cavalaria, gênero que, acredito, melhor nos permite vivenciar alguns aspectos fundamentais do universo medieval. Escrito pelo autor judeu alemão Lion Feuchtwanger, foi editado pela primeira vez em 1954, em alemão, com o título Dien Judin Von Toledo. A primeira edição em espanhol é de 1992 (Edaf, Madrid). Usamos para leitura e elaboração do presente trabalho, a 16ª edição da publicação espanhola. Os personagens centrais da trama são: a judia Raquel (“La Fermosa!); seu pai, o rico comerciante judeu Don Yehudá Ibn Ezra e o Rei de Espanha, Afonso VIII. A narrativa se dá no século XI.
Um pouco de história do período: No ano de 711 da Era Comum, os muçulmanos almorávidas, vindos do Norte da África, cruzaram o estreito de Gibraltar e invadiram a Espanha, vencendo os visigodos cristãos. Uma parte destes fugiu e se refugiou no norte do país. Os mouros trouxeram com eles uma cultura altamente sofisticada. Córdoba, a capital do Califado, tornou-se a cidade mais importante do mundo muçulmano ocidental à época. Fundaram 3 mil escolas, uma universidade e inúmeras
bibliotecas. Aos judeus que ali viviam e que antes sofriam restrições dos cristãos, foi concedida igualdade de cidadania. Quatro séculos depois, os visigodos avançam rumo ao sul na tentativa de expulsar os muçulmanos, dando início ao que a História chama de Reconquista, período que se estenderá do século XI ao XV. No século XII, os amoadas, oriundos do Marrocos e comandados pelo Califa Yussuf, derrotam os almorávidas e estabelecem, como capital do Califado, a cidade de Sevilha. Os judeus são obrigados a se converter ou abandonar o califado. Muitos se foram para Portugal e para Castela e Aragão, onde a princípio são bem aceitos, dada sua importância na reconstrução dos reinos destroçados pela guerra. Outros permaneceram e se converteram por vontade própria, para manter seu patrimônio. Estes ficaram conhecidos como os mesumad. Este é o caso de Ibrahim de Sevilha (Yehudá Ibn Ezra), o pai de Raquel, personagem que dá nome ao livro.
O livro e sua trama: Um grande romance. Trabalho de enorme documentação e grande cuidado na elaboração. Narra as paixões humanas de um rei, de um homem. As contradições de um amor passional, as convicções religiosas e a política. Muçulmanos, judeus e cristãos coexistem em Toledo no período anterior e posterior ao desastre da batalha de Alarcos, em 1195. O livro de Lion Feuchtwanger, é uma apaixonada
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história de amor e violência e que, através de séculos vem ocupando a imaginação dos espanhóis. Ele narra a paixão que o rei Afonso VIII de Castela, sentiu pela judia Raquel, fato que registram as crônicas de seu bisneto, o rei Afonso X, o Sábio. O romance entre Raquel e Afonso será causa de grandes intrigas da nobreza e do clero cristão castelhano, que não concordavam com ele, por ela ser judia. Raquel e Afonso tiveram um filho, Emanuel, que o rei fazia questão de converter. E temendo alguma consequência trágica com o bebê, Yehuda, o avô, tirou-o de Toledo, mandando-o para um lugar que ninguém sabia, nem mesmo Raquel, para que estivesse a salvo. O destino da história é bastante trágico: Raquel e seu pai, Yehuda Ibn Ezra, são assassinados pelos nobres, que aproveitaram a ausência de Afonso, quando este estava na batalha de Alarcos, em 1195, contra os muçulmanos, na qual foi derrotado.
Raquel: uma lenda ou um ser histórico? Os historiadores e estudiosos que se debruçaram sobre o tema da paixão de Afonso VIII pela judia
Raquel estão divididos em dois grupos: O daqueles que a veem como uma lenda criada para justificar a derrota do rei na batalha de Alarcos, em 1195. Estes apontam, como primeiro testemunho da dramática história, um trecho que aparece em Los castigos e documentos para bien vivir, de Sancho IV, o Bravo (1284-1295), no qual adverte seu filho de que deve evitar os “pecados de fornicio”, para que não lhe ocorra o que aconteceu ao rei Afonso VIII. O segundo grupo acredita ser Raquel um personagem histórico e não uma lenda, baseando-se no único rastro histórico deste apaixonante conto de amor, que está nas Crónicas Reales de Afonso X, o Sábio, bisneto de Afonso VIII, que reinou um século depois que ocorreram os fatos. Ele conta que seu bisavò: “pagóse mucho de una judía que auie nombre Fermosa, e olvidó la muger, e ençerróse con ella gran tiempo en guisa que non se podié partir d’lla por ninguna manera, nin se pagaua tanto de cosa ninguna: e estouo ençerrado con ella poco menos de siete años… Entonçe ouieron su acuerdo los omes buenos d’l reino cómo pusiesen algún recado en aquel fecho tan malo e tan desaguisado… e con este acuerdo fuéronse para allá: e entraron al rey diziendo que queríen fabrar con él: e mientras los unos fabraron con el rey, entraron los otros donde estaua aquella judía en muy nobres estrados, e d’golláronla”.
Raquel e o judeu no teatro espanhol do século xvi ao xx O judeu está presente no teatro espanhol no período que vai do século XII ao XIX. O personagem Raquel, em particular, é tema de dezenas de textos teatrais, entre os séculos XVI e XIX, os quais ainda são encenados até os dias atuais. Já os textos nos quais Leon Feuchtwanger se baseou para escrever seu romance, têm como autores: -Drama, Las paces de los reyes y la judia de Toledo Félix Lope de Vega y Carpio – século XVII – 1617 - Raquel - Vicente Antonio Garcia de la Huerta – Sec. XVIII - 1778 - Die Jüdien von Toledo - Franz Seraphicis Grillparzer – Sec. XIX - 1851
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História ou lenda, o tema tem sido abordado pela ótica antissemita do Século de Ouro, a xenófoba do século XVIII contra os ilustrados Bourbons e também pela mediavelística do pós-romantismo alemão, com poemas, obras teatrais e novelas como Las Paces de los Reyes y Judía de Toledo, de Lope de Vega (1617). Em meados do século XX, Lion Feuchtwanger, como já dito, talvez eleve o tema a uma obra mestre com sua documentadíssima Spanische ballade ou Die Jüdin von Toledo (1955), na qual tece o relato a partir do ponto de vista judaico. Quanto à resposta ao intrigante fato de o personagem Raquel ter atravessado tantos séculos, uma das hipóteses mais aceitas pelos estudiosos do período seria que a atmosfera antissemita gerada pela proteção que Olivares dispensava aos judeus (Auto de Fé de 4 de julho de 1632) e a execração contra os judeus em 20 de julho de 1233, etc.) pode ter levado tais autores a escrever sobre Raquel com uma visão tão negativa.
A Raquel de Lion Feuchtwanger A Raquel de Lion Feuchtwamger não é outra se não a Esther bíblica. E não somos nós quem afirmamos isto. O autor do romance La judia de Toledo, escreveu no seu Epílogo, em 1955, como sentiu, por décadas, atração pela rainha Esther (Hadassa), elevada à
posição de rainha pelo rei persa Ahashveros. Como esposa do rei, ela salvou seu povo, os judeus, do extermínio. Ele considera o ”Livro de Esther” um dos mais populares e cheios de efeitos, da Bíblia Hebraica. E que o livro o comoveu profundamente e a muitos, nos mais de 2 mil anos transcorridos desde sua escrita. E finaliza o Epílogo, afirmando: “ Eu disse a mim mesmo: aquele que conte de novo a história dessas pessoas, não só estará escrevendo História, se não, que esclarecerá e dará sentido a alguns problemas de nosso tempo.”
COLABORADOR SAGAZ ELIAS SALGADO Historiador, escritor e editor. Pós graduado em História pela Universidade Hebraica de Jerusalém (HUJI). Fundador e Diretor do Portal e do Arquivo Histórico Amazônia Judaica – www.amazoniajudaica.com.br
SPOILER SAGAZ: Baseado no livro La judía de Toledo, Elias Salgado lançará em 2021, seu primeiro romance.
32 TODAS AS ARTES/Literatura-Artigo/Alessandra Conde
As memórias literárias da família Lorber Rolnik Em 1953, a família Lorber Rolnik chega ao Brasil, estabelecendo-se em São Paulo. O pai David Lorber, judeu nascido em Chelm, na Polônia, em 1920, procurou dar o sustento à sua mulher Malka e aos filhos Blima e Szyja, e mais tarde ao pequeno José, nascido no Brasil
Mas não foram essas, unicamente, as batalhas que David e Malka Lorber precisaram vencer. Fugidos do nazismo e do comunismo stalinista, os Lorber divulgaram a sua história em dois livros de memórias: Os abismos, escrito por Malka Lorber Rolnik, que foi publicado postumamente por sua
família, em 1990 e As catorze vidas de David: o menino que tinha nome de rei, escrito por Blima e Szyja Lorber. Neste, a história trágica de David tem início com os momentos que antecederam a Marcha da Morte, em 1939: “Foi no fatídico primeiro de dezembro de 1939 que os nazistas, a pretexto de mandarem os homens judeus para o trabalho, na verdade, realizaram a Marcha da
33 Morte de Chelm” (LORBER; LORBER, 2012, p. 73). Homens de 12 a 60 anos foram recrutados para o “trabalho”. Eles deveriam reunir-se na praça e levar os seus pertences, segundo as ordens nazistas. Em contrapartida, as casas de Chelm foram revistadas por soldados à procura dos judeus que pudessem ter se escondido. O relato de David é chocante: “Desses mais de dois mil homens judeus que saímos na marcha de Chelm, não sei se no fim sobreviveram 200! Eu mesmo não sei como sobrevivi” (LORBER; LORBER, 2012, p. 77). Os judeus foram obrigados a correr na lama, sob a mira de fuzis, recebendo golpes violentos, aterrorizados por tiros constantes. Durante as noites, ocorria de serem postos em uma cocheira, outras vezes foram forçados a se deitar no barro até o dia amanhecer. Comida não havia. Alguns soldados jogavam o pão ao ar e quando alguns judeus pegavam o alimento eram fuzilados para o divertimento dos nazistas. As Marchas da Morte foram intensificadas, entre 1944 e 1945, no final da guerra. Os que sobreviveram a essas Marchas foram levados para os campos de concentração. Escapando do que seria uma morte certa, David refugiou-se em terras soviéticas, sem imaginar que lá encontraria grande terror. Indesejados e odiados pelos nazistas e comunistas, os judeus tornaram-se brinquedos humanos, jogados de um lado para o outro, atração risível para russos e alemães antissemitas. Em As catorze vidas de David: o menino que tinha nome de rei, David descreve: “Os alemães empurravam os judeus, forçando-os a atravessar a ponte, e os russos, do outro lado, não os deixaram entrar, ordenando que se deitassem no chão dela. Os judeus tinham medo que os russos fossem atirar neles. No entanto, foram mandados para o lado alemão” (LORBER; LORBER, 2012, p. 79). Nota-se em As catorze vidas de David, uma preocupação em evidenciar as atrocidades que soviéticos
fizeram contra os judeus. Segundo David, “as barbaridades que Stalin fazia... Hitler só pode ter aprendido com Stalin...” (LORBER; LORBER, 2012, p. 127). Em Os abismos, Malka denuncia a sua preocupação em não deixar o assunto esquecido. Suas experiências, as histórias dos conhecidos, parentes, vizinhos, amigos, padecentes das mesmas agruras e infortúnios que assolaram os judeus na Europa durante a Segunda Guerra Mundial são-nos reveladas com emoção e clareza. As lacunas estão lá, são as marcas da memória, os sobressaltos causados pelo terror. Os contos são construídos para conduzir o leitor a pensar, a imaginar as angústias e as tristezas daqueles personagens de uma trágica história real e nefasta, a ficar com raiva do horror, dos assassinos de um povo. Um personagem surge, um personagem se vai e nem sempre se sabe do seu fim. Apenas aquele momento, o descrito na narrativa, ficou na memória da menina Malka e que ganhou importância para ser posto no papel e na História. No capítulo “O herói”, vemos o desabrochar de um menino em homem, um guerreiro que se constrói em meio às dores, à guerra, à fome e à pobreza. Após lutar contra os alemães em defesa de sua cidade natal, na Polônia, o “herói” tem uma triste e desesperante notícia, logo após as ovações pela vitória contra os nazistas: “ – Seus pais – contou alguém mais tarde – foram levados pelos próprios poloneses para fora de casa e, como cães, brutalmente assassinados” (ROLNIK, 1990, p. 124). No final deste capítulo, Volodia, o herói, desaparece na solidão e “começou a caminhar rumo ao mundo desconhecido”, mas antes, numa atitude de revolta e asco “cuspiu na terra que agora era maldita, pois fora molhada com o sangue dos seus” (ROLNIK, 1990, p. 124). Malka quer contar o que viu, o que viveu, o que soube. Ela preocupa-se com o futuro. Não quer que o passado nazista retorne. Ela é uma
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testemunha e tem a consciência de produzir literatura de testemunho: “Na literatura publicada após a Segunda Guerra Mundial muito já se escreveu sobre aquele terrível holocausto. No entanto, há pessoas que querem esquecer, ou melhor, já estão esquecendo o fato acontecido, enquanto outras chegam a contestar a realidade do que se passou. Nosso maior dever é lembrálas disso. Não se pode, e nem se deve esquecer o que sucedeu, principalmente àqueles da minha geração que sofreram a dor de todo o tormento. Por mais que se escreva a respeito deste doloroso tema, ainda restará muito para ser contado. Os suplícios comuns a um povo não podem ser imaginados. Aliás, cada indivíduo traz dentro de seu coração ferido uma dor profunda, que ordena, às vezes, a sua propagação”. (ROLNIK, 1990, p. 15). De igual modo, Primo Levi (1988, p. 8) em É isto um homem? fala sobre a necessidade de contar aos outros, de torna-los “participantes” de uma experiência torpe e monstruosa, além de ser, para o escritor/testemunha, uma “liberação interior”. Neste processo de “liberação interior”, Malka escreveu, além do seu livro de memórias, um livro de poesias em ídiche. Não pode vertê-lo para o português como o fez com Os abismos, obra que inicialmente foi escrita em ídiche. Após o falecimento de Malka, a família publicou Mundo Jovem (2000), traduzido para o português por Jacob Lebensztayn. Em Mundo Jovem, Malka volta-se para o mundo das crianças, da inocência. O amor maternal, a cultura judaica e suas festas são temas das poesias, mas na memória ainda havia os rastros do terror, o que ela procura denunciar resolutamente em “O menino do gueto”: Mas logo chegam novos decretos diabólicos, Ações criminosas também contra as crianças.
“Não e não! Por vontade própria, ele não quer morrer!” Silencio! Já levam embora também as crianças. Também ao menino do gueto vêm buscar. (ROLNIK, 2000, p. 75). A imagem que a poeta Malka cria de um menino que “por vontade própria [...] não quer morrer” (ROLNIK, 2000, p. 75), é um grito de resistência, de não aceitação às barbáries do opressor. Mas este é tirânico e poderoso e o menino sucumbe. Primo Levi (2004, p. 9) em Os afogados e os sobreviventes, reproduz o discurso de um nazista, conforme o testemunho de Simon Wiesenthal: “Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês nós ganhamos; não restará ninguém para dar testemunho, mas mesmo que alguém escape, o mundo não lhe dará crédito”. Teria o nazista razão? Os sobreviventes do Holocausto temem o esquecimento do genocídio sofrido por mãos nazistas e comunistas. As memórias literárias da família Lorber Rolnik procuram dar conta disso: repercutir o dolo, o assassinato, mas, mais que isso, são memórias de vida, de luta e de vitória. Não se pode ler as memórias de David e Malka sem se sentir invadido pela dor e pela revolta. Após a morte de Malka, David, ajudado pela filha Blima Lorber, ganhou novo fôlego e dedicou-se a educar sobre o Holocausto e seus horrores. Ele compreendeu que é preciso repercussão sobre essas atrocidades. É preciso ensinar o jovem, a criança o que homens maus fizeram a um a povo, não importa por quais ideologias agiram. O mal foi feito e deve ser divulgado, combatido e repelido. Por fim, sentencia: “O mundo não pode e não deve esquecer, para que nunca mais se repita uma tragédia como aquela. Não existem palavras para descrever e escrever tudo o que aconteceu, o que os judeus passaram. Não há tinta suficiente no mundo para escrever sobre tudo isso” (LORBER,
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2012, p. 272). Como professora, eu vejo a necessidade de promover estudos, em todas as esferas públicas, sobre o Holocausto e seus horrores. Paralelo a isso, há os negacionistas e redes sociais que alojam e veiculam matérias antissemitas. Quando li as memórias da família Lorber Rolnik não pude ficar indiferente. Como negar a dor, o desespero e a morte de alguém, de um povo? Por muitos anos evitei aprofundar-me na literatura de testemunho, iniciada ainda na adolescência com O diário de Anne Frank, por saber que o processo de leitura seria doloroso, angustiante. Mas venci-me para construir-me como pessoa melhor, para educar melhor, para não dar razão à nefasta profecia de um nazista: “o mundo não lhe dará crédito” (LEVI, 2004, p. 9). Referências LEVI, Primo. É isto um homem?. Trad. Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Trad. Luiz Henriques. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004. LORBER, Blima; LORBER, Szyja. As catorze vidas de David: o menino que tinha nome de rei. São Paulo: Editora Sêfer, 2012.
ROLNIK, Malka Lorber. Mundo jovem. Trad. Jacob Lebensztayn. São Paulo: Editora Sêfer, 2000. ROLNIK, Malka Lorber. Os abismos. Curitiba: Montana, 1990.
COLABORADORA SAGAZ ALESSANDRA CONDE PhD em Letras e Linguística. Profa. Adjunta da UFPA, Bragança. É coordenadora do NESA – Núcleo de Estudos Sefarditas da Amazônia. Co-organizadora da coletânea, “Ecos Sefarditas, judeus na Amazônia”. Ed. Talu Cultural, 2020
INDICAÇÕES SAGAZES/ LITERATURA * “A Bela do Senhor”, Albert Cohen, por Carla Figueiredo * “2666’, Roberto Bolaño, por Celeste Erbiste * “A Festa do Bode’, Mario Vargas Llosa, por Helena Pacífico * ‘Reparação’, Ian McEwan, por Valéria Assunção * “Os Anos”, Annie Ernaux, Solange Correia
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CRIOS – Livros Por Encomenda é um selo da Talu Cultural.
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TODAS AS ARTES/Música Clássica/Nelson Nisenbaum
Encontros entre o Clássico e o Popular Entre as maiores dificuldades de caracterização está a definição de música “clássica”, em contraposição ao conceito de música “popular”. Em um senso geral mais aceito, a música clássica é aquela que é executada em uma sala de concertos por músicos e seus instrumentos consagrados pelos seus timbres desenvolvidos e aceitos ao longo de séculos, mais tipicamente por aqueles utilizados pelas orquestras sinfônicas nas suas mais variadas formações. A rigor, “clássico” deveria aplicar-se ao gênero clássico histórico ou pré-romântico, que teve seu paralelo na literatura, arquitetura e arte iconográfica. Mas, pela sua duração enquanto referências de beleza, pureza estilística, vemos hoje no mesmo “pacote clássico” gente como Monteverdi, Mozart, Bach, Beethoven, Brahms, Mahler, Strawinsky, Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, entre tantos outros. Por outro lado, Beatles, The Who, Pink Floyd já figuram como clássicos do rock, ladeados por outros clássicos de tantos outros gêneros populares. Em diversos momentos e lugares, as composições dos antigos clássicos foram transcritas para versões populares, cantadas e tocadas em linguagens
típicas populares, sem os formalismos e os timbres característicos das suas obras clássicas, mas sim com instrumentações e arranjos adaptados à linguagem do tempo e lugar atuais. Também por outro lado, algumas obras do repertório popular foram atraídas para o mundo orquestral sinfônico, o que resultou em obras de grande repercussão e sucesso. Entre as obras de grande sucesso e destaque, a ópera rock “Tommy”, do conjunto inglês “The Who”, ganhou em 1972 sua versão sinfônica com a Orquestra Sinfônica de Londres e um respeitável time de vocalistas, tendo na execução a participação dos membros originais do grupo. A gravação recebeu o Grammy Award para a categoria Álbum, em 1974. Tommy é uma narrativa do século XX com suas diversas referências da perversidade humana temporalizadas. Ainda criança, assiste o assassinato praticado por seu pai, tido como morto na I Guerra Mundial, retornando ao seu lar e encontrando sua esposa envolvida com outro homem. O choque produzido pela cena presenciada plenamente pela criança produz um quadro de cegueira, surdez e mutismo (algo próximo de um quadro grave de autismo) que
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leva seus pais ao desespero, já que os médicos não conseguiam saber o que se passava com ele e trazer uma cura. O jovem é exposto então a abusos cometidos por familiares (Uncle Ernie e Cousin Kevin) e submetido a rituais com uma cigana. Mais tarde, o jovem casualmente conhece uma máquina de Pinball (antigo flipper) e desenvolve uma extraordinária capacidade de jogo, o que o torna um ícone mundial, surpreendendo os encantados admiradores que não entendem como um cego, surdo e mudo poderia simplesmente destruir todos os campeões mundiais do ramo. Passa a ser então tido um verdadeiro mito, o que por sua vez é novamente alvo da perversão de seu tio, que funda uma seita onde cada devoto recebe uma máquina de pinball para procurar um significado para a vida. Como um verdadeiro templo, Tommy desperta paixões e fé, e então a narrativa é recheada ainda mais de perversidades com a personagem Sally Simpson, que foge de sua vida milionária para encontrar o grande ídolo e vê sua aventura terminar em tragédia, não obstante as advertências de seus pais. Após tantas desventuras e vendo a queda de seu “império”, Tommy termina sua epopeia só e novamente introspectivo, encontrando sua salvação em si mesmo e na fé na Divindade. A história de Tommy é uma tragédia “clássica”, adaptada à dura realidade do século XX, em uma muito bem realizada adaptação do formato ópera, também à realidade musical deste período. Se algo de ruim pode acontecer a um ser humano causado por terceiros, muito provavelmente estará contemplado nesta narrativa, uma verdadeira anti-ode ao mundo atual, residindo aí, talvez, o grande apelo que a narrativa exerce sobre nossas almas. A ópera foi gravada em pelo menos 3 versões, sendo a primeira, em “rock puro” pelo próprio The Who, gravada em 1968. A segunda, esta que aqui descrevo, e a terceira, a trilha sonora do filme Tommy, de Ken Russel, em 1975. Todas receberam numerosas reedições em todas as tecnologias, do vinil às diferentes gerações da música digital. Outra ópera de magnitude do The Who é “Quadrophenia”, lançada em versão rock pura em 1973, sendo, na opinião deste autor, a maior obra do
gênero que, em 2015, ganhou sua versão sinfônica lançada em CD, que invariavelmente leva às lágrimas qualquer um que tenha conhecido o original há mais de 40 anos ou mais recentemente. A edição sinfônica de 1972 de Tommy é de extraordinária beleza e riqueza de arranjos e conta com a participação de Ringo Starr (Beatles), Rod Stewart, Maggie Bell, Steve Winwood, Merry Clayton, Richie Havens, Sandy Denny, Richard Harris e coro de câmara. Trata-se de obra de imensa riqueza musical e valioso testemunho de uma época. Se o leitor ainda não conhece esta obra e versão, recomendo fortemente que torne-a parte de seu repertório pessoal. É a música em uma de suas magníficas expressões.
NOSSO COLUNISTA SAGAZ: NELSON NISENBAUM Médico, músico amador, escritor e membro do Coral A Tempo de São Paulo
INDICAÇÕES SAGAZES/MÚSICA CLÁSSICA * Concierto de Aranjuez, Joaquín Rodrigo. Indicado por: Claudia Caro * Bachianas Brasileiras no.5, Villa Lobos. Indicado Alzira Fonseca * Sinfonia no.1, August Mahler. Indicado por Daniel Sarmento
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TODAS AS ARTES/Música Popular/Itamar Assiere
Sobre os heróis anônimos (ou quase) da música popular Neste meu primeiro artigo para a Sagaz Arte & Cultura, confesso que estava inseguro sobre o que escrever. Queria muito falar sobre a educação musical relacionada à música popular, visto que esta ainda não é a tônica do ensino de música no Brasil. O problema é que não sou do meio acadêmico, embora tenha passado pelo curso técnico de piano clássico na UFRJ nos anos 80. E sei que, de lá pra cá, a música popular vem conquistando espaços importantíssimos nas faculdades de música do país. Portanto, o risco de ser injusto seria grande. Eis que assisto um documentário sobre aquele que é um revolucionário no ensino de música popular no Brasil. Um húngaro. Meu mestre e amigo Ian Guest, que completou 80 anos neste 2020. Ele que foi professor de música dos meus ídolos, e meu também, teve sua história registrada no filme O Imperfeccionista, dirigido por Marcello Nicolato, agora disponível no YouTube. Ano passado, encontrei Ian na Rua do Catete, depois de tantos anos sem vê-lo. Ele estava animadíssimo, fazendo sessões do filme em DVD para amigos selecionados e, infelizmente, não pude assistir na época, só recentemente. Mas matei as saudades de um grande papo. E o filme fala exatamente da questão que eu queria trazer. A visão do Ian sobre o que é a música brasileira e o que é a visão acadêmica de música no Brasil. Sobre isso ele pode falar com propriedade, pois foi ele quem trouxe a composição popular brasileira para o ensino de música. Isso depois de ter feito faculdade de música na UFRJ e na norte-americana Berklee School of Music, referência mundial no ensino do jazz.
As reflexões do Ian eu deixo para vocês conferirem no filme. Mas dou um spoiler. Um dos convidados é Turíbio Santos, mestre do violão. Pois houve uma coincidência de reflexões. No filme, ele fala sobre o fato de que a faculdade de música é a única em que o aluno já entra sabendo o que fazer, muitas vezes desde criança. Ao contrário das outras faculdades, o sujeito só entra se já for músico. E eu vinha pensando muito sobre isso ultimamente. Afinal, fazer música desde criança é o meu caso e o da esmagadora maioria dos músicos, no mundo inteiro. Naquele fim dos anos 80, o CIGAM – Curso Ian Guest de Aperfeiçoamento Musical - no centro do Rio, virou uma febre entre os músicos da cidade. O cachê, que já ganhava nos bailes da vida, foi pra lá. E foi a melhor escolha que pude fazer. Harmonia popular, improvisação, arranjo. Cursos técnicos, que forneciam as ferramentas da música popular para a música popular. Mas sem atalhos tipo “aprenda a ser Tom Jobim em 10 sessões”: não faltava material pra estudar, muito menos grandes professores. E o grande agregador de tudo e todos era o próprio Ian. Muito mais que um professor, Ian é um mentor. Aquele que dá um norte, que faz você ir além das regras e das combinações que dão certo. Acima de tudo, que faz você ser você mesmo – o que deveria ser o óbvio, mas não é. Nós, músicos, sonhamos com o dia em que a educação musical nas escolas seja uma realidade como é, por exemplo, em países politicamente opostos como Estados Unidos e Cuba. O problema é que esquecemos que esses países fizeram algo fundamental: levar para as escolas a música popular.
A música criada pelos seus cidadãos. E aqui no Brasil, a julgar pelas conversas que escuto, creio que a tendência seja querer ressuscitar uma educação musical europeizada, e não da Europa de hoje, mas a de 100 anos atrás ou mais. Se quisermos ter uma educação musical de verdade nas nossas escolas, temos que falar dos nossos heróis consagrados, como Pixinguinha, Noel, Jobim, Radamés, claro. Mas temos que falar da arte dos nossos heróis anônimos, dos nossos heróis da “cozinha”. Uma das coisas boas da quarentena foi a live que o Charles Gavin fez com meu querido Kiko Freitas, um dos maiores bateristas do Brasil e do mundo. A live rendeu três sessões seguidas! E foi inevitável falarem de outro mestre, nosso amigo Armando Marçal,
referência mundial na percussão. A dinastia Marçal será obrigatória em qualquer curso de educação musical que se preze: o avô Armando, compositor de “Agora é Cinza”; o pai, o lendário Mestre Marçal, presente em 9 entre 10 gravações de samba nos anos 70 e 80. E o próprio Armando: além das estrelas da MPB, só com o guitarrista Pat Metheny foram oito anos seguidos. E hoje ele é um dos diretores da bateria da Portela. Na live do Gavin com o Kiko, surgiu o assunto “escola de samba”, daí o Marçal, daí a Portela, daí quem seriam as referências dentro de cada escola. As escolas sempre têm seus baluartes, aqueles que dão um norte, dão a liga, dão o som da bateria. Marçal cita um percussionista chamado Charuto, que é uma lenda na bateria da Portela. O cara que não deixava a
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Kiko Freitas Foto: Roberto Cifarelli
Essa foto foi publicada na Revista de Domingo do JB em dezembro de 1992. Em destaque, nosso Colunista Sagaz, o músico, Itamar Assiere. Foto: Cristiana Isidoro
bateria desandar. Imagina esses caras em cada escola. Verdadeiras lendas internas que têm que vir à tona. No caso dos músicos acompanhadores, ao qual orgulhosamente pertenço há mais de 30 anos, cite-se outro mestre da “cozinha”, não por acaso um amigo de Marçal pai e Marçal filho: o saudoso Wilson das Neves. Foram aproximadamente 50 anos na bateria, acompanhando estrelas da MPB e internacionais, como Sarah Vaughan. E só ficamos sabendo quem era Wilson das Neves depois que ele se lançou como cantor e compositor, virando parceiro do Paulo César Pinheiro, do Chico Buarque (de quem era baterista) e do Aldir Blanc. E Aldir é outro que não pode faltar no ensino de música. Por sinal, temos material de sobra pra levar às escolas, o casamento perfeito entre música e literatura que o Brasil proporcionou. João Bosco e Aldir Blanc, Tom e Vinicius, Chico Buarque, Paulo César Pinheiro e seus tantos parceiros. Aí me permito uma reminiscência. Tive a sorte de ter um grande professor de Português
Da esquerda para a direita: Ian Guest e Itamar Assiere
no meu ensino médio, o Renato, um fã incondicional de Chico Buarque. Não lembro o sobrenome do Renato e nunca mais soube dele. Só sei que, pra ele, o Chico era tão importante quanto Machado de Assis e Drummond. E isso era uma iniciativa dele, não da escola. Se quiser, o Brasil pode ser revolucionário na educação musical. Ou ser tradicionalista, como tantas coisas estão sendo tradicionalistas no país neste momento. Precisamos saber se queremos que crianças e adolescentes pensem “oba, hora da música!” ou “lá vem a chatice da aula de educação musical, que que eu tô fazendo aqui”… Há boas experiências nesse sentido, como a ONG Rio de Música, coordenada por grandes músicos amigos como o baixista Bruno Aguilar e o pianista Léo de Freitas, com alunos da comunidade do Jacarezinho. Bruno e Léo são de uma geração posterior à minha, que já teve acesso ao ensino da música popular solidificado. Imaginem o poder de um projeto desses Brasil afora.
41 Léo de Freitas (primeiro à esquerda) e Bruno Aguilar (terceiro à esquerda)
Armando Marçal Foto: Roberto Cifarelli
Bruno, Léo e alunos da Rio de Música
Outro grande projeto de educação musical do Rio de Janeiro está fazendo 20 anos: a Escola Portátil de Música, idealizada e comandada por Luciana Rabello, com sede na Casa do Choro. Escola que conta com professores como Mauricio Carrilho, Paulo Aragão e Jayme Vignoli, além da própria Luciana, todos mestres da música brasileira. Caminhos para ter uma educação musical implantada pelo país afora nós já temos. Resta saber quando isso vai acontecer no Brasil dos sonhos, sem patrulhas ideológicas, religiosas, elitistas ou popularescas. Mas essa é outra história.
NOSSO COLUNISTA SAGAZ ITAMAR ASSIERE Pianista e arranjador carioca com mais de 30 anos de carreira, acompanhando estrelas da MPB como Bibi Ferreira e Nana, Dori e Danilo Caymmi. Foi aluno de Ian Guest, Nelson Faria e Luiz Eça. Foto: André Pinnola
INDICAÇÕES SAGAZES/MÚSICA POPULAR * Caetano Veloso – Transa: (1972) Indicado por Eliane Abensur * Milton Nascimento e Lô Borges – Clube da Esquina (1972): Indicado por Marcos Gazuini * Secos e Molhados – Secos e Molhados (1973): Indicado por Clara Belmiro Soares * Novos Baianos – Acabou Chorare (1972) Nelson Telles
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TODAS AS ARTES/Artes plรกsticas-Naif/Arieh Wagner
Pureza e espontaneidade
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Não seria o Naif esta expressão artística, despretensiosa, pura, oriunda do estado da simplicidade e destituída das coisas do meramente opulento, para vingar uma expressão próxima ao princípio de tudo, como um retorno ao estado mais natural possível e primordial das coisas e da vida; e com um tom de pouco convencional?
em forma de pintura
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“Carnaval Nos Arcos Da Lapa”, Heitor Dos Prazeres
“Abaporu”, Djanira
Os naïfs, em geral, são autodidatas e sua pintura não é ligada a nenhuma escola ou tendência. Essa é a força desses artistas que podem pintar sem regras, nem constrangimentos. Podem ousar tudo. São os “poetas anarquistas do pincel”.
Definição O termo Arte Naïf aparece no vocabulário artístico, em geral, como sinônimo de arte ingênua, original e/ou instintiva, produzida por autodidatas que não têm formação culta no campo das artes. Nesse sentido, a expressão se confunde frequentemente com Arte Popular, Arte Primitiva e Art Brüt, por tentar descrever modos expressivos autênticos, originários da subjetividade e da imaginação criadora de pessoas estranhas à tradição e ao sistema artístico. A pintura Naïf se caracteriza pela ausência das técnicas usuais de representação (uso científico da perspectiva, formas convencionais de composição e de utilização das cores) e pela visão ingênua do mundo. As cores brilhantes e alegres - fora dos padrões usuais -, a simplificação dos elementos decorativos, o gosto pela descrição minuciosa, a visão idealizada da natureza e a presença de elementos do universo onírico são alguns dos traços considerados típicos dessa modalidade artística.
O Naif no Brasil O Brasil junto com a França, a ex-Iugoslávia, o Haiti e a Itália, é um dos “cinco grandes ” da Arte Aaïf no mundo. Um grande número de obras de pintores naïfs brasileiros faz parte do acervo dos principais museus de Arte Naïf existentes no mundo. A pintura Naif brasileira é muito rica e cheia de imprevistos. Devido à diversidade de temas relativos à fauna, à flora, ao sincretismo religioso e às suas várias etnias, o Brasil ocupa lugar de destaque no contexto mundial de Arte Naïf. Aqui no Brasil existem vários mestres reconhecidos internacionalmente, como Antônio Porteiro, Djanira,
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Heitor dos Prazeres, Gérson, José Antônio da Silva, Iracema Arditi, Maria Auxiliadora, Waldemiro de Deus, Chico da Silva e Outros.
O Naif e a iconografia judaica religiosa A iconografia sacra judaica (ketubot e outros documentos religiosos, livros, meguilot e etc,) não pode ser classificada como Naif, uma vez que este é sempre pintura e a iconografia sacra é uma ilustração ou gravura. Porém, entendemos que em vários aspectos, principalmente, os ligados à essência das duas manifestações artísticas, há uma grande correlação: o autodidatismo, a livre expressão dentro do tema proposto – o elemento da religiosidade, no caso da iconografia judaica; a origem popular dos artistas/escribas, a autenticidade, a simplicidade e a pureza dos elementos; apenas para enumerar alguns, dentre outros diversos. Alguns manuscritos hebraicos foram produzidos em oficinas cristãs, enquanto outros foram feitos por artistas judeus para seu próprio uso. Um sidur ashkenazi se destaca como um exemplo de um artista-escriba judeu, influenciado pela cultura visual de seu tempo, que desenhou modelos, motivos e técnicas especializadas na Alemanha do século XV para ilustrar seu livro de oração. Os manuscritos hebreus compartilhavam iconografia com outros manuscritos da mesma área geocultural. Os manuscritos hebraicos italianos recordam, portanto, o cenário da Itália central e retratam as mesmas plantas e animais que aparecem em manuscritos latinos produzidos em oficinas locais, como o famoso atelier de Taddeo Crivelli em Ferrara. O unicórnio mitológico era um ícone compartilhado cujo significado simbólico dependia do gênero ou contexto. Na iconografia cristã, o unicórnio, descansando com os pés no colo da Virgem, simboliza a encarnação de Cristo; Enquanto na tradição judaica representa a redenção final de Israel. (Fonte: Oxford University)
O Naif israeli de temática judaica Israel é sem sombra de dúvidas, um dos mais destacados centros de produção da Arte Naif em todo o mundo, na atualidade.
Ketubá elaborada por Eliezer Elmaleh (Lázaro Salgado), no amazonas no início do século XX)
A temática de seus artistas, igual a maioria dos artistas de outros países expoentes do gênero, varia na mesma proporção da qualidade dos mesmos, ou seja, é rica e diversa. Destacamos, a seguir, apenas alguns expoentes, daquele país:
Shalom Moskovitz, pintor nativo, nascido em 1896. Relojoeiro, geralmente conhecido como ‘’Shalom Mizfat‘’ (de Safed) ou ‘’Hazeigermacher‘’ (relojoeiro, em iídiche). Começou a pintar com 55 anos sob a influência de Yossl Bergner. Histórias pintadas da Bíblia, pinturas planas que relembram desenhos de crianças, pinturas antigas e manuscritos ilustrados. Morreu em 1980.
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Gabriel Cohen, nascido em Paris, França, em 1933, o artista freqüentemente usa temas repetitivos em seu estilo, mas inteligentes, misturando-os para criar um mundo fantástico. Cohen mudou-se para Israel em 1949 e trabalha em Jerusalém desde então. Um mural de sua pintura “Around the World in 92 Days” - uma fantasmagoria de lugares famosos do mundo - atrai interesse para o Centro Gerard Bechar, perto do centro da cidade; A pintura original faz parte da coleção do Museu de Israel. Ele é um pintor Naif muito popular e ele foi exibido em todo Israel e no mundo. E mais: Michal Meron, Limor Porat, Heinz Seelig, Yeshayahu Sheinfelde Raphael Perez, Chanan Mazl e Zor Sever, entre outras dezenas de artistas do gênero.
Judeus e o Naif no Brasil É talvez fácil de explicar o fato de que tenha
sido criado no Brasil, um dos poucos e mais conceituados museus, exclusivamente dedicados ao Naif, do mundo. Isso se explica, pelo visto anteriormente, de ser o Brasil, um dos maiores celeiros desta arte em todo o planeta. Curioso e também motivo de orgulho, e porque não? É fato de ter sido uma iniciativa de uma mulher de origem judaica. Trata-se da filha de imigrantes judeus alemães, Jacqueline Finkelstein, e o museu, o MIAN – Museu Internacional de Arte Naif, situado no bairro do Cosme Velho, no Rio de Janeiro. Triste é ter que constatar, que devido a total falta de apoio dos órgãos de cultura do país, Jacqueline se viu forçada a fechar o museu, em 2016. Toda a classe artística Naif, brasileira e mundial, torce muito para que a presente crise econômica vire coisa do passado ou mesmo que alguém ou
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algum organismo ou empresa, passe a olhar com outros olhas e apoie a iniciativa, antes que Jacqueline Finkelstein, não consiga mais resistir e desista de vez de seu tão importante projeto. Quanto aos artistas do gênero, de origem judaica aqui em nosso país, daremos destaque a Paulina Eizirik z”l de Porto Alegre e Arieh Wagner, um representante do judaísmo sefaradi marroquino amazônico. Arieh é um dos maiores estudiosos do judaísmo amazônico, com doutorado pela USP sobre o tema. Amigo querido, colaborador de primeira hora da Amazônia Judaica e agora membro de seu Conselho
Editorial, o artista vem ganhando projeção nacional, com seu primoroso trabalho, feito a partir de São Paulo. Destaca-se entre vários outros, o gigantesco painel por ele criado para o Museu Judaico de São Paulo. No que tange ao tema específico dos judeus na Amazônia, Arieh Wagner é autor do quadro “Eretz Amazônia, judeus da Amazônia”, único em seu tema no gênero no país e quiçá em todo o mundo. O referido quadro foi doado ao MIAN e faz parte de seu acervo permanente.
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BREVE HISTÓRICO A história da pintura naïf liga-se ao Salon des Independents [Salão dos Independentes], de 1886, em Paris, com exibição de trabalhos de Henri Rousseau (1844-1910), conhecido como “Le Douanier”, que se torna o mais célebre dos pintores naïfs. Com trajetória que passa por um período no Exército e um posto na Alfândega de Paris (1871-1893), de onde vem o apelido “Le Douanier” (funcionário da alfândega), Rousseau dedica-se à pintura como hobby.
HENRI ROUSSEAU, The sleeping Gypsy, 1897, MoMA)
Pintor, à primeira vista, “ingênuo” e “inculto”, pela falta de formação especializada, dos temas pueris e inocentes, é responsável por obras que mostram minuciosamente, de modo inédito, uma realidade ao mesmo tempo natural e fantasiosa, como em A Encantadora de Serpentes, 1907. Seu trabalho obtém reconhecimento imediato dos artistas de vanguarda do período - como Odilon Redon (1840 -1916), Paul Gauguin (1848-1903), Robert Delaunay (1885-1941), Guillaume Apollinaire (18801918), Pablo Picasso (1881-1973), entre outros -, que vêem nele a expressão de um mundo exótico, símbolo do retorno às origens e das manifestações da vida psíquica livre e pura. Em 1928, o colecionador e teórico alemão Wilhelm Uhde (1874 - 1947) - um dos descobridores do artista - organiza a primeira exposição de arte naïf em
Paris, reunindo obras de Rousseau, Luis Vivin (18611936), Séraphine de Senlis (1864- 1942), André Bauchant (1837-1938) e Camille Bombois (1883-1910). Mais tarde, o Museu de Arte Moderna de Paris dedica uma de suas salas exclusivamente à produção naïf. No século XX, a arte naïf é reconhecida como uma modalidade artística específica e se desenvolve no mundo todo, sobretudo nos Estados Unidos, na ex-Iugoslávia e no Haiti. Em solo norteamericano, as inúmeras cenas da vida rural pintadas por Anna Mary Robertson (1860 -1961) - conhecida como Vovó Moses - adquirem notoriedade quando a artista, autodidata, descoberta por um colecionador, completa 80 anos. Oriunda da tradição de retratistas amadores, a arte naïf norteamericana encontra expressão nas obras de J. Frost (1852-1929), H. Poppin (1888 -1947) e J. Kane (18601934). Na Inglaterra, o nome de Alfred Wallis (1855-1942) associase a navios à vela e paisagens. Descoberto em 1928 pelos artistas ingleses Ben Nicholson (1894-1982) e Christopher Wood (1901-1930), Wallis pinta com base na memória e na imaginação, em geral com tinta de navio sobre pedaços irregulares de papelão e madeira. Na exIugoslávia, a arte naïf faz escola, na qual se destaca, por exemplo, Ivan Generalic (1914 -1992).
NOSSO COLUNISTA SAGAZ ARIEH WAGNER Artista autodidata, dedicado à Arte Naif
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