Os Guarani-Kaiowá: Direitos indígenas no Brasil

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‘SABEMOS DOS NOSSOS DIREITOS E VAMOS BATALHAR POR ELES’ DIREITOS INDÍGENAS NO BRASIL – OS GUARANI-KAIOWÁ


“Sofremos demais com tanta violência em e contra nossas comunidades [...] Não fazemos pedidos, exigimos direitos: demarcação de nossas terras com urgência para que nosso povo volte a viver em paz, com felicidade e dignidade.” Carta aberta dos Guarani-Kaiowá ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, agosto de 2010

Anistia Internacional - Novembro de 2010

Para os Guarani-Kaiowá do Brasil, assim como para todos os povos indígenas, as terras tradicionais têm uma importância vital para sua identidade e seu modo de vida. Aproximadamente 30 mil GuaraniKaiowá vivem no estado de Mato Grosso do Sul, no centro-oeste brasileiro. Há mais de um século, suas comunidades vêm sendo expulsas de suas terras pela expansão da agricultura de larga escala – um processo que continua até hoje. Para as comunidades afetadas, as consequências podem ser devastadoras.

encontram são deploráveis. Além de tudo, elas vêm enfrentando ameaças e intimidações de seguranças armados contratados por fazendeiros locais.

Trinta e cinco famílias Guarani-Kaiowá da comunidade de Laranjeira Ñanderu, entre as quais cerca de 85 crianças, estão vivendo em tendas improvisadas à beira da movimentada rodovia BR-163, no Mato Grosso do Sul. As condições em que se

Agora, a comunidade está vivendo em barracas de lona preta, num lugar em que as temperaturas ultrapassam os 30o C. A área sofre constantes alagamentos e fica repleta de insetos e de sanguessugas. Segundo o líder comunitário José Almeida,

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Em setembro de 2009, as famílias foram expulsas de suas terras tradicionais. A Polícia Federal, que supervisionou a expulsão, informou ao proprietário que a comunidade retornaria ao local para recolher os objetos que tiveram que deixar para trás. Porém, o proprietário incendiou as casas e todos os pertences dos moradores.


© Egon Heck/arquivo CIMI

A comunidade Laranjeira Nhanderu foi expulsa de suas terras ancestrais em setembro de 2009. Após a expulsão, o proprietário da terra ateou fogo às casas e aos pertences das famílias. Agora, elas vivem em condições precárias à beira de uma rodovia.

mesmo governo tem atitudes bastante contraditórias. Por um lado, oferece certa proteção aos seus direitos; por outro, impulsiona projetos de exploração econômica de grande escala na região, sem o consentimento livre, prévio e informado das comunidades indígenas afetadas.

durante a noite, os fazendeiros locais costumam circular com seus carros em alta velocidade pela rodovia, direcionando os faróis contra as barracas para intimidar a comunidade.

O fato de as autoridades brasileiras não assegurarem o direito à terra dos povos indígenas do Mato Grosso do Sul só faz aumentar as dificuldades econômicas e o deslocamento social das comunidades Guarani-Kaiowá. Os atrasos exagerados nos procedimentos legais para devolver as terras às comunidades, assim como o fracasso generalizado em punir indivíduos que atacam e que matam os índios, criam as condições para que a violência perdure.

Os obstáculos que os povos indígenas ainda têm de enfrentar no Brasil para que seus direitos sejam reconhecidos e cumpridos são enormes. Embora o governo federal tenha feito algumas promessas de grande importância para os povos indígenas, esse

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POVOS INDÍGENAS DO BRASIL No Brasil, vivem hoje mais de 700 mil índios, inclusive a maioria das tribos do planeta que ainda não foram contatadas. Existem, no país, mais de 200 grupos indígenas, que falam mais de 180 línguas diferentes. As terras tradicionais têm uma importância crucial para sua identidade e para seu bemestar social, cultural e econômico – algo que o governo brasileiro reconheceu ao cunhar a expressão "índio é terra”.

Capa: Índios da comunidade Guarani-Kaiowá de Passo Piraju, 2009. © Amnesty International

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BOLIVIA

Coxim

Corumbá

MATO GROSSO DO SUL Campo Grande

Dourados Ponta Porã Juti Coronel Sapucaia

© Amnesty International

PARAGUAY

Amambaí

© Amnesty International

Paranhos

BRASIL

Mato Grosso do Sul. É na região sul do estado (área riscada) que diferentes grupos GuaraniKaiowá reivindiçam porções de terra: pequenas ilhas de território indígena cercadas por fazendas.

O DESENROLAR DE UMA TRAGÉDIA NO MATO GROSSO DO SUL A luta dos Guarani-Kaiowá pela terra se defronta com a expansão da chamada fronteira agrícola do Mato Grosso do Sul.

cultivos comerciais – principalmente a soja, mas também a cana-de-açúcar, o milho, o trigo e o feijão – foram, gradualmente, cobrindo toda aquela área.

Cerca de 50 mil índios, pertencentes a diversos grupos étnicos, habitam o estado. O maior desses grupos é o Guarani-Kaiowá. Suas terras tradicionais localizam-se na parte sul do estado, uma região de planícies vastas e férteis. Recentemente, essa área se transformou na nova fronteira para a expansão da indústria da cana-de-açúcar. Trata-se do mais novo desdobramento de uma longa história de incursões agroindustriais nos territórios indígenas. No final do século XIX, foi a cultura da ervamate que ocupou grandes áreas de terra. A partir da década de 1950, a pecuária e os

No começo do século XX, os povos indígenas do Mato Grosso do Sul foram confinados à vida nas reservas. Mesmo assim, muitas aldeias mantiveram sua existência nas terras tradicionais, fora dos assentamentos oficiais. Essa situação, porém, foi alterada com os projetos de colonização do governo do estado, que incentivaram colonos de outras regiões do Brasil a mudarem-se para a área, e também com o crescimento da atividade pecuária. As aldeias que restaram passaram a sofrer uma pressão intensa; seus habitantes acabaram sendo repelidos daquela terra e empurrados para as

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reservas. Atualmente, essas reservas encontram-se extremamente superpovoadas. Arruinadas pela pobreza e fragmentadas por divisões étnicas, as comunidades indígenas subsistem, sobretudo, das cestas básicas fornecidas pelo governo. Segundo o promotor federal Marco Antônio Delfino de Almeida, "esta condição demográfica é comparável a um verdadeiro confinamento humano. Em espaços tão diminutos é impossível a reprodução da vida social, econômica e cultural." Em um relatório sobre o Brasil, publicado em 2009, o relator especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos e liberdades fundamentais dos povos indígenas escreveu que o Mato Grosso do Sul "apresenta as mais altas taxas de mortalidade infantil


© Amnesty International

Esquerda: Ladio Ava Taperendy’i ao lado do memorial de seu pai, Marcos Verón, que foi espancado até a morte, em 2003, a mando de fazendeiros, depois que ele liderou a ocupação de uma terra tradicional de sua comunidade. Acima: Marcos Verón em Porto Seguro para o 500º aniversário da chegada dos portugueses ao Brasil, abril de 2000.

indígena devido às condições precárias de saúde, de acesso à água e à comida, as quais estão relacionadas à falta de terras." A desnutrição infantil, os altos índices de suicídio, a violência e o alcoolismo ameaçam solapar a própria identidade dessas culturas complexas. Foi por se verem diante de uma situação tão assustadora que algumas comunidades decidiram embarcar numa perigosa jornada: para fora das reservas, rumo a suas terras ancestrais.

VIOLÊNCIA E INTIMIDAÇÃO

Na década de 1990, frente a um cenário de deterioração das reservas, os GuaraniKaiowá adotaram uma estratégia conhecida como retomada (a reocupação pacífica de

pequenas porções de terra em seus territórios tradicionais) a fim de tentarem acelerar o processo de devolução de suas terras. Essas ações foram respondidas com ameaças, com violência e com expulsões por parte de grupos armados contratados por proprietários de terras. Várias lideranças indígenas foram assassinadas. O fracasso das autoridades em levar os responsáveis pelas mortes à Justiça tem fomentado um clima de violência. No dia 11 de janeiro de 2003, Marcos Verón, um cacique Guarani-Kaiowá de 72 anos, liderava um pequeno grupo que tentava reocupar pacificamente uma reduzida área do território indígena Takuara, no município de Juti, Mato Grosso do Sul. Os Takuara haviam sido expulsos de seu território em 1953, e aquela era sua

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terceira tentativa, desde 1999, de reocupar suas terras tradicionais. Apesar das garantias iniciais da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e da polícia, de que não haveria uma expulsão forçada e de que um acordo pacífico seria negociado com o proprietário das terras, os eventos logo se tornaram violentos. No dia 12 de janeiro de 2003, um grupo que, segundo informações recebidas pela Anistia Internacional, era composto por funcionários das fazendas locais e por pistoleiros de aluguel, reuniu-se nas proximidades da área ocupada e atirou contra um caminhão que levava membros da comunidade. Reginaldo Verón, de 14 anos, sobrinho de Marcos Verón, foi atingido na perna. Na manhã seguinte, um grupo de aproximadamente 30 homens

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© Egon Heck/arquivo CIMI

atacou o acampamento. O filho de Marcos Verón, Ladio Ava Taperendy’i, severamente espancado e ameaçado de morte durante o ataque, descreve o que aconteceu:

coronhada na cabeça e no rosto. Até não se mexer mais [...]” Documento assinado por 71 índios Guarani-Kaiowá, entregue à Anistia Internacional em maio de 2005

“Todos soltavam rojões, atiravam de revólver e soltavam bombas, com umas armas na direção das nossas barracas. Só se ouvia crianças e mulheres chorando de desespero [...] Enquanto isso, pegaram o cacique Marcos Verón na outra barraca e começaram a espancar e dar chutes nele até [ele] cair no chão. Depois de caído no chão, ainda cada um deles dava chutes no cacique. Depois [que o] cacique estava agonizando no chão pela boca, eu gritava para eles deixarem de bater nele por que ele é velho e aposentado [...] Enquanto isso, vi o meu pai recebendo a última

Quando terminaram, os agressores deixaram Marcos Verón e seu filho caídos à beira da estrada. O cacique, então, foi levado a um hospital, onde morreu em consequência das lesões. A resposta rápida do Ministério Público Federal em Dourados, assim como a investigação sobre o ataque, permitiram que diversos indivíduos fossem presos imediatamente, e que mandados de prisão fossem expedidos para outros suspeitos. Eles foram acusados de uma série de crimes, entre os quais homicídio, tentativa de homicídio, sequestro e tortura. O processo, contudo, tem sido

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extremamente lento. Em abril de 2010, o caso, finalmente, chegou a um tribunal; porém, o processo foi suspenso porque a corte resolveu negar o auxílio de um tradutor para as testemunhas. Muitas delas eram índios com dificuldades para se expressarem em português. A decisão, portanto, comprometeu seu direito à justiça. O caso de Marcos Verón ilustra bem o quanto os Guarani-Kaiowá estão excluídos da Justiça. Apesar de toda a atenção internacional que sua morte recebeu, passados sete anos, ninguém foi levado à Justiça. Depois de o cacique ter sido morto, o uso da violência contra os povos indígenas prosseguiu com a força de sempre. Inúmeros ataques e assassinatos foram


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Acima: Placa sinalizando que terras Jatayvary foram identificadas próximo a Dourados. Esquerda: Barraco incinerado da comunidade Guarani-Kaiowá Apyka´y. Em setembro de 2009, dez homens armados atacaram seu acampamento à beira de uma estrada. Centro: Líder indígena Guarani-Kaiowá na reserva de Dourados, maio de 2008.

atribuídos a seguranças privados, contratados por proprietários de terras da região para atuar como milícias armadas irregulares, aterrorizando as comunidades indígenas. Diversos casos foram atribuídos à Gaspem Segurança, uma empresa contratada pelos fazendeiros que, atualmente, está sendo investigada pelo Ministério Público Federal devido à grande quantidade de denúncias apresentadas contra seus funcionários. Quatro relatores especiais da ONU – sobre povos indígenas, sobre o direito à alimentação, sobre a violência contra a mulher e sobre moradia adequada – também manifestaram às autoridades brasileiras suas preocupações com essas denúncias. Seguranças contratados pela empresa foram indiciados pela morte do líder

indígena Dorvalino Rocha, em dezembro de 2005, e foram acusados, por promotores públicos federais, de terem matado a líder espiritual Xurete Lopes, em janeiro de 2007. A empresa nega as acusações. As denúncias contra a Gaspem Segurança prosseguem. A comunidade GuaraniKaiowá de Apyka´y, onde vivem aproximadamente 15 famílias, próximo a Dourados, no Mato Grosso do Sul, tentou reocupar suas terras tradicionais por diversas vezes, desde que, em 1990, foi forçada pelos fazendeiros a abandoná-las. Assim como a comunidade Laranjeira Ñanderu, esses Guarani-Kaiowá estão vivendo à beira de uma rodovia que cruza suas terras tradicionais, desde abril de 2009, quando o proprietário lhes confrontou com uma ordem de despejo.

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À uma hora da tarde do dia 18 de setembro de 2009, cerca de 10 indivíduos armados atacaram a comunidade. Um homem de 62 anos levou um tiro na perna e uma mulher foi espancada. Os agressores incendiaram um barraco e ameaçaram com mais mortes caso a comunidade não abandonasse o acampamento. Promotores federais investigam a possibilidade de que o ataque tenha sido executado por guardas a serviço da Gaspem Segurança. Por todo o estado, reproduz-se esse mesmo padrão de ameaças e de discriminação. Em 29 de outubro de 2009, um grupo de aproximadamente 25 integrantes da comunidade Guarani-Kaiowá Y’poí reocupou suas terras tradicionais próximas ao município de Paranhos. No dia seguinte, foram surpreendidos pela chegada de

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© Comunidade Guarani Kaiowá/arquivo CIMI

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Os primos Genivaldo (esq.) e Rolindo Vera eram professores de alfabetização dos GuaraniKaiowá Y’poí. Em 2009, após uma violenta expulsão, Genivaldo Vera foi sequestrado por pistoleiros. Depois disso, seu corpo foi encontrado num riacho próximo. Rolindo Vera conseguiu escapar. Seu paradeiro continua desconhecido.

dezenas de homens armados e tiveram que fugir para uma mata nas proximidades. Membros da comunidade relataram terem visto o professor de alfabetização, Genivaldo Vera, ser levado pelos pistoleiros, enquanto seu primo, Rolindo Vera, também professor, conseguia escapar mata adentro. No dia 7 de novembro, o corpo de Genivaldo Vera foi encontrado em um riacho nas redondezas. As fotografias disponibilizadas pela polícia mostram que sua cabeça havia sido raspada e que seu corpo apresentava inúmeras lesões. O paradeiro de Rolindo Vera continua desconhecido. A comunidade teme que ele tenha sido sequestrado e levado para o Paraguai.

por homens armados contratados por fazendeiros locais. A comunidade foi ameaçada e foram disparados tiros para o alto. Além disso, os índios foram proibidos de sair do acampamento. Durante esse período, eles ficaram sem acesso à água, à comida, à educação e a cuidados de saúde. A Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) interrompeu a prestação de serviços à comunidade, alegando não ter condições de garantir a segurança de seus funcionários.

Em agosto de 2010, os Guarani-Kaiowá de Y’poí, mais uma vez, reocuparam suas terras. Em setembro, eles foram cercados

A comunidade Guarani-Kaiowá Ita’y Ka’aguyrusu enfrenta uma situação semelhante. No dia 4 de setembro de 2010, membros da comunidade reocuparam suas terras tradicionais. Desde então, já foram atacados quatro vezes pelos fazendeiros locais. Segundo o relato de

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Indígenas da comunidade Guarani-Kaiowá de Passo Piraju, 2009.

Efigênia, uma professora indígena da comunidade, durante o último ataque, em 21 de setembro, vários homens da localidade chegaram ao acampamento carregando pedaços de pau e ameaçando bater nas mulheres e nas crianças. Além disso, para assustar os índios, soltavam foguetes e rojões. Em ocasiões anteriores, os fazendeiros atiraram contra os membros da comunidade e tentaram atropelá-los. A comunidade Guarani-Kaiowá Kurusú Ambá, do município de Coronel Sapucaia, reocupou suas terras em novembro de 2009. Atualmente, esses índios estão vivendo em condições extremamente


precárias, sem alimentos adequados e com acesso à saúde severamente limitado. Em setembro de 2010, um menino indígena de três anos de idade morreu, aparentemente, de desnutrição. Após sua morte, a FUNASA, que não havia enviado seus funcionários à comunidade por questões de segurança, emitiu um comunicado à imprensa afirmando que o conflito estava tão exacerbado que até mesmo a polícia federal e a militar tinham dificuldade para chegar ao local. A comunidade tem sido constantemente ameaçada por pistoleiros que se acredita estarem ligados a proprietários de terras locais.

PROMESSAS E ATRASOS

O direito dos índios às “terras tradicionalmente ocupadas” por eles está

consagrado na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 231. Isso foi e continua sendo uma das maiores vitórias já conquistadas na luta pelos direitos dos índios a sua terra e a sua identidade. De acordo com a Constituição, o governo federal é responsável por proteger as terras indígenas tradicionais e por devolvê-las aos índios. Esse complexo procedimento de transferência é administrado pela FUNAI e se constitui de cinco etapas: identificação; delimitação de fronteiras; demarcação oficial; homologação (ratificação) pelo Presidente; e registro. Conforme determina a Constituição, todas essas terras deveriam ter sido demarcadas até 1993. Desde 1988, aconteceram algumas importantes transferências de terras para

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os índios, sobretudo no norte do país, onde foram demarcadas algumas grandes reservas, como Raposa / Serra do Sol, o Parque do Xingu e os territórios Yanomami. Entretanto, mesmo nessas situações, as transferências se deram num contexto de violenta oposição dos proprietários de terras locais. Além disso, as reservas são constantemente ameaçadas por projetos de exploração econômica, entre os quais uma série de hidrelétricas planejadas para serem construídas na região amazônica, sobre as quais os povos indígenas afetados não foram consultados previamente, de modo livre e informado. Ademais, o processo de transferência de terras é extremamente lento. Para que uma reivindicação seja resolvida, podem se passar anos, senão décadas. Há diversos

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fatores que contribuem para esse atraso: entre eles, a histórica falta de recursos para a FUNAI e a oposição dos proprietários de terras locais e dos governos estaduais. O processo tem sido ainda mais retardado por uma barreira de recursos jurídicos erguida pelos fazendeiros em nível estadual e federal, e pela resistência de alguns juízes às reivindicações dos povos indígenas. Em uma tentativa de acelerar o processo, em novembro de 2007, o Ministério Público Federal no Mato Grosso do Sul firmou um acordo extrajudicial denominado TAC (Termo de Ajustamento de Conduta). Com o TAC, a FUNAI se comprometia a identificar e delimitar 36 porções distintas de terras Guarani-Kaiowá até abril de 2010. A tentativa deparou-se com a oposição do governo do estado do Mato Grosso do Sul

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e com o lobby dos fazendeiros, os quais conseguiram frustrar o processo por meio de uma série de recursos judiciais. Promotores federais criticaram a FUNAI pela falta de progresso nessa área, afirmando que tal situação “constitui grave e inconcebível violação a direitos fundamentais garantidos expressamente no texto da Carta Política de 1988”. Agora que o prazo se esgotou sem que as identificações fossem concluídas, os promotores federais passaram a multar a FUNAI pelo atraso. O dinheiro arrecadado será revertido para indenizar os povos indígenas afetados.

OS DESAFIOS DA INDÚSTRIA DO AGRONEGÓCIO Enquanto o processo de demarcação permanece paralisado, uma nova onda de

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empreendimentos agroindustriais está tomando o Mato Grosso do Sul. Plantações de cana-de-açúcar, que pertencem a usinas poderosas ou que são arrendadas por elas, estão se expandido sobre terras que foram identificadas como indígenas, mas que ainda aguardam a conclusão das etapas finais de reconhecimento. Em 1999, por exemplo, 8.000 hectares de terras foram identificados como território tradicional da comunidade Jatayvary, próximo a Dourados. Desde então, o processo de demarcação vem sendo obstruído nos tribunais. Atualmente, a aldeia ocupa uma área de apenas 180 hectares, e está cercada, por todos os lados, por lavouras de cana-de-açúcar. Arlindo, um líder indígena, disse à Anistia Internacional que ele não consegue


© Amnesty International

entender porque o processo de demarcação está paralisado enquanto que o plantio e a colheita da cana seguem em frente. As plantações de cana avançam até o limite da aldeia. Arlindo descreve como os funcionários das fazendas tentam intimidar os moradores direcionando potentes holofotes contra a comunidade durante a noite. Ele conta que a comunidade não consegue mais pescar no rio da região porque suas águas estão poluídas, e que as plantações dos moradores ficam infestadas com insetos por causa do uso de pesticidas nas lavouras de cana. Ele relata que as comunidades nunca foram consultadas pelo governo ou por representantes das indústrias. Suas queixas são constantemente ignoradas.

Os danos provocados às terras tradicionais dos índios do Mato Grosso do Sul pelos empreendimentos agroindustriais são motivo de grande preocupação. A redução da produtividade futura da terra compromete a capacidade de os índios sustentarem seu modo de vida quando conseguirem retornar a essa terra. A necessidade de preservar a integridade e a viabilidade da terra é uma questão crucial para os povos indígenas. Tanto os Estados quanto as empresas têm a obrigação de não realizarem atividades destrutivas nas terras indígenas tradicionais antes de devolvê-las.

Arlindo, um índio da comunidade GuaraniKaiowá Jatayvary, olha para as lavouras de cana que se estendem desde os limites de seu vilarejo até as terras tradicionais de sua comunidade. Assim como acontece com outros grupos Guarani-Kaiowá, as reivindicações de terras dos Jatayvary permanecem obstruídas nos tribunais.

indígenas tradicionais que estivessem em processo de identificação, demarcação ou homologação. Pelo acordo, as usinas não mais utilizariam cana-de-açúcar produzida em terras Jatayvary. O Ministério Público em Dourados afirmou à Anistia Internacional que, embora esse pareça ser apenas um pequeno passo, trata-se, na verdade, de um avanço bastante significativo, pois estabelece um precedente para outros acordos similares, não apenas com a indústria da cana, mas também com criadores de gado e com produtores de soja.

Em abril de 2010, o Ministério Público Federal em Dourados firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com uma usina local para cancelar os contratos com fornecedores de cana localizados em terras

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FORÇADOS A CORTAR CANA Sem poder ter acesso a suas terras tradicionais, não resta aos Guarani-Kaiowá outra alternativa senão trabalhar no aglomerado de fazendas que cobre o Mato Grosso do Sul. Atualmente, mais da metade dos jovens Guarani-Kaiowá se vê obrigada a percorrer distâncias longínquas dentro do estado para trabalhar como cortadores de cana nas plantações, geralmente em condições severas e exploradoras.

© Egon Heck/arquivo CIMI

José (nome fictício) é um jovem indígena que mora na aldeia Ñande Ru Marangatu. Ele trabalhou como cortador de cana e relatou à Anistia Internacional as situações que vivenciou. Apesar de as terras tradicionais de sua comunidade terem sido oficialmente homologadas pelo Presidente Lula em março de 2005, a devolução da terra à comunidade tem sido retardada por recursos impetrados pelos proprietários da terra. Quando este documento foi redigido, o processo permanecia estagnado nos tribunais. Impedido de trabalhar nas fazendas locais devido às hostilidades que as reivindicações da comunidade despertam na vizinhança, José teve que percorrer centenas de quilômetros em busca de trabalho. Ele descreveu a situação caótica que teve de enfrentar quando chegou às lavouras de canade-açúcar do município de Sidrolândia, depois de uma viagem de ônibus de seis horas:

“Você chega lá, você está no meio do inferno [...] Não temos sabão, nada, que seja pra tomar banho, pra gente dormir, porque, sabe, lá tudo a gente paga, todas as coisas, sabão, lençol, todas as coisas. Eles te alugam o quarto, e esse daí sai do dinheiro da carteira [deduzido do pagamento], porque dizem que pagam 450 – 900 em dois meses – mas você não vê, tudo que você beber, comer, vai tudo nisso aí [...] Tinha pessoas que queriam se enforcar. Quando saímos, tinha trabalhadores que não tinham sido pagos fazia meses, que estavam chorando no meio das lavouras de cana”. Assim como José, centenas de outros cortadores de cana indígenas passam pela Devido à discriminação, muitos índios veem-se forçados a aceitar trabalhos pesados e mal pagos, geralmente como cortadores de cana.

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mesma experiência. Em dois casos emblemáticos, mais de mil trabalhadores indígenas foram resgatados durante visitas de inspeção realizadas por promotores federais do trabalho que estiveram no estado em 2007. Na Destilaria CentroOeste Iguatemi (Dcoil) e na Usina Debrasa, em Brasilândia, os promotores encontraram cortadores de cana indígenas vivendo em alojamentos imundos e superlotados, recebendo comida estragada e sendo transportados para as lavouras de cana em ônibus sem freios. Os trabalhadores contaram aos promotores do trabalho que, nas lavouras, não havia água potável, abrigos ou cuidados médicos. Eles disseram que geralmente eram pagos com atraso e que os empregadores costumavam não depositar os encargos previdenciários dos quais dependem seus benefícios futuros, tais como a aposentadoria. Depois disso, ambas as empresas foram colocadas na “lista suja”: uma relação oficial em que são expostos os nomes das empresas cujos trabalhadores são descobertos trabalhando em condições definidas pela legislação brasileira como análogas à escravidão. Para muitos trabalhadores indígenas, o elo mais crucial ocorre com os chamados cabeçantes, também conhecidos como capitães, que são os índios encarregados de organizar os grupos de trabalhadores indígenas. A maioria dos índios tem um conhecimento muito limitado dos seus direitos legais e não pertence a sindicatos. Ao caírem nas mãos dos cabeçantes, muitos deles, como José, acabam sendo explorados. A FUNAI é responsável por supervisionar as condições de trabalho e por reportar abusos contra os trabalhadores indígenas. Entretanto, a administradora regional da FUNAI em Dourados, Margarida Nicoletti, disse à Anistia Internacional que, embora a FUNAI devesse estar monitorando as condições de trabalho e dando orientações às usinas sobre o emprego de trabalhadores indígenas, não existem recursos para realizar esse trabalho. Na medida em que a mecanização toma conta do estado e que o processo de demarcação de terras continua paralisado, a luta dos Guarani-Kaiowá por seus direitos torna-se mais urgente do que nunca. As autoridades precisam atuar em consonância para impedir que os direitos dos Guarani-Kaiowá sejam ainda mais deteriorados. Assegurar os direitos a suas terras tradicionais é um passo vital no sentido de habilitar os povos indígenas a reconstruírem suas sociedades e suas economias, bem como de proteger seu modo de vida e sua herança cultural.

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© Maíra Heinen/arquivo CIMI

NORMAS INTERNACIONAIS

De acordo com as normas internacionais, os povos indígenas desfrutam de certos direitos específicos. Os dois principais instrumentos internacionais de direitos humanos que tratam dos direitos dos povos indígenas são a Convenção Nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Juntas, a Convenção e a Declaração proporcionam um arcabouço normativo robusto que afirma o direito dos povos indígenas a suas terra tradicionais, assim como seu direito à consulta livre, prévia e informada com relação aos acontecimentos que possam afetar suas terras. A Convenção requer que os governos adotem uma estratégia coordenada para

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lidar com as questões trabalhistas dos índios, supervisionando de maneira eficaz seu recrutamento e suas condições de trabalho, e assegurando que estejam protegidos contra práticas discriminatórias. Isso pressupõe o compromisso de respeitar a importância especial que as terras tradicionais têm para os índios e de reconhecer seus direitos de propriedade e de posse. A Convenção afirma ainda que os povos indígenas não devem ser removidos das terras que ocupam. A Convenção expressa o direito dos povos indígenas de participarem dos processos decisórios que os afetam; de decidirem suas próprias prioridades em termos de desenvolvimento; e de exercerem controle sobre seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural.

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Protesto realizado em Brasília, em maio de 2009, durante o Acampamento Terra Livre – um evento anual em que os povos indígenas de todo o Brasil se unem para lutar por seus direitos.

O Brasil estava entre os primeiros participantes do grupo de trabalho da ONU que redigiu a minuta da Declaração e que votou a seu favor na Assembléia Geral. Ao votar, o país saudou a Declaração e observou que os povos indígenas do Brasil “eram cruciais ao desenvolvimento da sociedade em todos os níveis, inclusive ao desenvolvimento da vida espiritual e cultural de todos”


© Amnesty International

CONCLUSÃO “A maioria dos indígenas do O crescimento econômico sustentado que o Brasil não está se beneficiando Brasil vem apresentando na última década transformou o país numa das principais do impressionante progresso economias mundiais. No entanto, as riquezas econômico do país e está sendo geradas por esse crescimento não chegaram à maioria dos povos indígenas. Segundo o submetida ao atraso provocado Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, mais de 30 por cento dos indígenas brasileiros pela discriminação e pela vivem em situação de pobreza extrema – mais indiferença, sendo expulsa de que o dobro da percentagem verificada entre a população geral. E em nenhum outro lugar suas terras e empurrada para essa disparidade é tão evidente quanto no o trabalho forçado.” Mato Grosso do Sul. Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Navi Pillay, em novembro de 2009, após uma visita oficial ao Brasil

No momento em que o perfil do Brasil ganha relevo no plano internacional, o governo federal deve tratar com seriedade os compromissos que assumiu com os direitos humanos. Sobretudo, o país deve resolver todas as

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Em 2006, a comunidade Guarani-Kaiowá de Passo Piraju retomou uma pequena porção de suas terras ancestrais. Entretanto, a comunidade continua cercada por plantações de cana-deaçucar, enfrentando ameaças dos pistoleiros.

reivindicações por terras ainda pendentes e assegurar que o consentimento livre, prévio e informado dos índios seja um objetivo a ser buscado e conquistado com relação a todas as decisões que afetem suas terras tradicionais.

“Já acabou nossa paciência. Passou de todos os limites e prazos. Queremos nossa terra, nossa liberdade.” Líder indígena da comunidade de Passo Piraju, setembro de 2010

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“ ” CARTA ABERTA DOS GUARANI-KAIOWÁ AO PRESIDENTE LULA, AGOSTO DE 2010

“Várias vezes ouvimos o senhor falar e nos prometer pessoalmente que iria resolver o problema da demarcação de nossas terras Kaiowá Guarani. Não entendemos porque isso até hoje não aconteceu [...] Agora, senhor presidente Lula, o senhor vem aqui na região do nosso território Kaiowá Guarani, em Dourados, sem ter, em quase 8 anos de governo, praticamente nada feito pelas nossas terras [...] Senhor Presidente, por favor, não prometa nada, mande apenas demarcar nossas terras. O resto sabemos dos nossos direitos e vamos batalhar por eles. Já esperamos demais e toda nossa enorme paciência acabou. Só esperamos não precisar ir pelo mundo afora, na ONU e nos tribunais internacionais denunciar um governo em que tanto esperamos [...] Não deixe nosso povo Kaiowá Guarani sofrendo tanto. Nosso povo continua sendo morto que nem animal e muitos de nossos jovens se suicidam pela falta de esperança e de terra. Sofremos demais com tanta violência em e contra nossas comunidades. Isso só vai começar a mudar com a demarcação de nossas terras, juntamente com um plano de recuperação ambiental e produção de alimentos. Não fazemos pedidos, exigimos direitos. Demarcação de nossas terras com urgência para que nosso povo volte a viver em paz, com felicidade e dignidade.”

TOME UMA ATITUDE AGORA!

 Apóiem os esforços dos promotores

Peça a eles que:

 Cumpram com suas obrigações, assumidas

Escreva para:

federais para regularizar os empreendimentos

econômicos em terras que estejam em processo

Ministro da Justiça

de identificação e demarcação, a fim de garantir

Exmo. Ministro Sr. José Eduardo Cardozo

que essas terras estejam em condições de prover

Esplanada dos Ministérios,

aos Guarani-Kaiowá o mínimo de seu padrão

Bloco “T”

adequado de vida, assim como a realização de

70064-900 Brasília/DF, Brasil

seus direitos econômicos, sociais e culturais.

Fax: +55 61 2025 7803

na Declaração sobre os Direitos dos Povos

Saudação: Excelentíssimo Senhor Ministro

Indígenas, na Convenção Nº 169 da OIT e na

 Desenvolvam, junto com os povos indígenas,

Constituição brasileira, de resolver todas as

um processo que garanta que eles sejam

Secretária de Direitos Humanos

reivindicações ainda pendentes de terras

consultados de modo livre, prévio e informado a

Exma. Secretária Sra. Maria do Rosário Nunes

indígenas no Brasil de modo justo e imediato.

respeito de toda obra de infraestrutura que possa

Setor Comercial Sul,

ter algum impacto sobre suas terras tradicionais.

Edifício Parque da Cidade Corporate

 Investiguem profundamente todos os atos

Quadra 9, Lote C, Torre A , 10º andar

de violência e de intimidação contra as

 Assegurem que a FUNAI, trabalhando

70308-200 - Brasília/DF, Brasil

comunidades Guarani-Kaiowá; proporcionem às

juntamente com os promotores do trabalho,

Fax: + 55 61 2025 9414

comunidades ameaçadas proteção imediata e

supervisione o processo por meio do qual são

Saudação: Excelentíssima Senhora Secretária

acesso irrestrito a serviços básicos, como os de

contratados os trabalhadores indígenas e

saúde; e identifiquem, investiguem e levem à

acompanhe todas as denúncias recebidas sobre

Justiça os responsáveis por cometer abusos

condições de trabalho degradantes, sobre

contra as comunidades.

pagamentos irregulares e sobre práticas de recrutamento discriminatórias.

A Anistia Internacional é um movimento global de 2,8 milhões de apoiadores, membros e ativistas, em mais de 150 países e territórios, que realiza campanhas para acabar com graves abusos dos direitos humanos.

Nossa visão é a de um mundo em que cada pessoa possa desfrutar de todos os direitos consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e em outras normas internacionais de direitos humanos. A Anistia Internacional é independente de qualquer governo, ideologia política, interesse econômico ou religião. Nosso trabalho é essencialmente financiado por contribuições dos nossos membros e por donativos do público.

Índice: AMR 19/001/2011 PORTUGUESE: Fevereiro 2011 (Versão atualizada do documento AMR 19/014/2010)

Amnesty International International Secretariat Peter Benenson House 1 Easton Street London WC1X 0DW United Kingdom

www.amnesty.org


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