Memorias De uma Prostituta
Anne Smith
Memorias de uma Prostituta Coleção Anedota
Primeira edição espanhola, agosto de 2011 Segunda edição espanhola, março de 2012 Primeira edição italiana, setembro de 2012 Primeira edição brasileira, outubro de 2012
© Anne Smith, 2011, 2012 © De esta edição, Anne Smith Edición y Diseño, 2012 Anne Smith www .memoriasdeunaprostituta.com
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PRÓLOGO
Ler Memorias de uma prostituta é como sentar-se frente à autora e escutár-la falar das vicissitudes de Anastásia, tal e como se ouvisse a uma amiga fazendo uma narração das anedotas de sua vida. . Com semelhante soltura se expressa sobre situações que a alguns daria prurido vocalizar, pintando as misérias de uma profissão que estamos acostumados a estigmatizar em dois extremos: o infernal e o glamoroso. Dando-nos ela uma visão em escala de cinza, de pontos intermédios intermediários e, talvez , matizes até pendulares, sobre uma experiência real, usando para isso um discurso simples, frontal, cuidadoso, que jamais cairá na malícia que algum leitor espera nem na autocompaixão que esperariam outros. Usando a voz de Anastásia, Anne assenta juízos próprios, inevitáveis na exposição de uma história real que deixa impressões não coração. Sem embargo, apesar dos juízos que faz, Anastásia se mostra cheia de compaixão ao mundo que habitou durante tantos anos. Desde fora, um pode fazer muitas perguntas para si mesmo. Nosso instinto julgador pode fazer planejamentos sobre as decisões que toma a protagonista. Mas ela mesma se encarrega de dar explicações que, podem ou não bastar a seus expectadores mas nos deixa claro que foram decisões pesadas a consciência? das consequências que trariam. Anne intercala um jogo narrativo suas ideias sobre o processo de cura do karma. O Caminho de Santiago é o que reflete seu verdadeiro trânsito, um caminho feito com interrupções e em companhia de crédulos e incrédulos, de seres queridos e seres que se aprendem a querer; uma senda que reflete em sua descrição quase como um fiel espelho o traço do seu crescimento, suas dores, sua solidão suas alegrias, com uma chegada a porto em gozo que pressagia que sua historia terá um final de paz e que, em tanto, não é mais que outro peregrino. O caminho de Santiago, si bem é outro feito fidedigno dentro do livro, é a plena metáfora do seu crescimento, da sua busca e sua cura. O livro é em geral uma demanda. Um pedido, não de socorro. Se não mais bem um clamor de observação sobre uma realidade que a uma parte de nós nos resulta transparente, e a outra repulsiva. Um grito que diz que somos algo mais do que aquilo que fazemos para ganharmos o pão e que põe em evidência a ignorância, a desídia, o abandono a que estão submetidas as mulheres que exercem a prostituição. E, ao mesmo tempo, é um sussurro de compaixão e esperança, um murmuro de serenidade que prevê que sempre se pode triunfar sobre as adversidades.
Através da leitura, acompanharemos a Anastásia, cruzando suas dores, suas emoções, suas feridas, suas investigações sobre a desproteção e seus temores. Sentiremos-nos como ela: submetida, abatida, saudosa, desgastada. Mas também nos sentiremos lúcidos, recuperados, renascidos esperançados y e, até quiçá, confundidos em nossos prévios conceitos sobre este ofício e seus avatares. Será então tempo de replantar-se os juízos, de sentir compaixão e pré-dispor um mundo que Anastásia e do qual Anne tenha sido testemunha. Muitos gostariam de um final distinto, quiçá estupidamente feliz. Destes que deixam a consciência tranquila. Mas, ao contrário, o livro acaba com a ideia ambígua de que poderia não ser assim, ou talvez sim , mas não deixa claro. O que faz com que voltemos às mensagens das mortes, da violência e adições as drogas, sobre os finais das companheiras de Anastásia, mencionadas no decorrer do livro e, portanto, nos deixa com a consciência intranquila. Memórias de uma prostituta é a historia de uma mulher e suas circunstâncias. Nenhuma vida é fácil. Todas as vidas exigem luta e cura, todas. Nem a de Anastásia, nem a minha, nem a suas serão a exceção a esta regra que Anne Smith nos mostra com tanta crueza. Isabel Ali
AGRADECIMENTOS
O caminho que percorri foi interminável, triste e perigoso. Conheci pessoas de todas as classes e com diferentes perfis psicológicos. Cada um com seus medos, seus traumas e suas taras psicológicas... Muitos já não sabiam que suas próprias almas se haviam perdido no horizonte da noite. Aprendi a não julgar ninguém, pois nem todos tem a mesma capacidade de raciocinar e de ver as mesmas coisas como nós vemos. Existem pessoas que têm o dom da força e da auto-superação e existem pessoas que são totalmente frágeis... Orgulho-me de mim mesma por haver cruzado estas terras difíceis e estranhas da prostituição e haver saído delas sem deixar-me corromper pelas drogas, pela luxúria ou pela inveja. Minha alma permaneceu intacta, meus princípios e valores não mudaram; ao contrário, se fortaleceram mais. É mais importante saber sair que entrar neste pequeno e mesquinho mundo que é o da prostituição. Agradeço a todos aqueles que cruzaram o meu caminho. Se me aportaram experiências boas ou más —não importa— pois me fizeram mais forte, e cada vez que caí me levantei, uma e outra vez... A todos os que me estenderam a mão; pode ser que já não se lembrem de mim, mas eu sim, lembrome de todos e os levo em meu coração. Aos meus filhos, que me mantiveram no bom caminho; “eles não sabem a verdade, mas para fazer o bem não é necessário saber”. A minha mãe que, depois de tudo, se converteu no meu braço direito. Nunca é tarde para voltar e recomeçar; o mais bonito que existe em um ser humano é a capacidade de pensar, analisar, perdoar e recomeçar; eu chamo a isto de ressurreição. Aprendi e conheci o sentido da palavra ressurreição, neste caminho morri e ressuscitei mais de um milhão de vezes. Um especial agradecimento à escritora Isabel Pisano, que me inspirou e me incentivou a publicar este livro, tenho-a no meu coração.
Muitas vezes me julgava ser indigna de falar com Deus por exercer a prostituição, sentia vergonha de dirigir-me a Ele, mil vezes pedi perdão, mil vezes agradeci a sua proteção, mais de mil vezes me ajoelhei diante dele e abaixei minha cabeça. Dedico este livro a todas as Madalenas que estão pelo mundo e a única coisa que peço a Deus, é que as proteja, as bendiga e que olhe por seus filhos, porque é o mais precioso que elas têm em suas vidas e é por quem dão o seu sangue. Anne Smith
EQUILÍBRIO
Sou luz, sou escuridão. Sou vida e morte... Sou o sopro de esperança... Sou a mãe, a irmã, sou a filha… Sou a navalha que corta, sou aquela que da a vida… Sou a bruxa, a pagã... Sou a santa... Sou aquela que ama… Sou a dona de toda ternura... Sou a senhora de toda a sedução... Sou a deusa da beleza… Sou aquela que te abraça... Sou aquela que te saca de juízo... Sou aquela que te da o céu... Sou a prostituta... Sou o profano e o sagrado... Sou os milhares de Marias, sou os milhares de Madalenas... Sou aquela que seca tuas lágrimas... Sou compreensão... Sou a doçura e o equilíbrio do mundo… Sou um porto seguro... Sou a força da natureza... Sou uma mulher...
19 de setembro de 2000
Quando era criança desejava ser a Mulher Maravilha para salvar as pessoas, depois desejei ser uma boa advogada para poder fazer justiça, desejei poder seguir dançando, quis estudar teatro e sonhei com Hollywood, desejei ser a noiva do Super-homem. Sonhei com uma vida tranquila e normal, uma infância feliz e uma adolescência mágica, um marido e filhos... Sonhei ser uma mãe maravilhosa... Sonhos normais, de meninas normais. Esses sonhos eram tão reais, tinham sentimentos, odores, cores, sons e sensações tão fortes que parecia impossível que meus desejos não se realizassem... Mas, na vida, ocorrem coisas que não estão em nosso poder, controlar é impossível, são fatores externos e, não sei como chamar: se de casualidade ou destino. Temos muitos caminhos para escolher no longo percurso da vida, mas sempre chega um ponto em que só existe uma eleição, e o que é voltar atrás é impossível porque já não tem nada mais alí, e seguir em frente, ir ao encontro do desconhecido já não nos causa mais medo, já não nos assusta, é quando já não temos nada que perder... Era um dia chuvoso, cinza e frio, mas eu não sabia o que era mais frio: se o tempo ou minha alma que se perdia na incerteza de um futuro escuro e desconhecido. Não pensava, apenas agia. Era tudo tão confuso e tão claro ao mesmo tempo, um vazio, uma sensação de existir e não existir. Um respirar profundo sem olhar para trás. Era assim como me sentia... Naquela manhã despertei, comi o que havia sobrado do dia anterior, deixei as chaves com Lia — a garota com quem eu dividia a quitinete. Tinha que sair correndo, ir ao banco para pagar as taxas e levar-las à policia para a confecção do passaporte. O banco abria às 10:00 e às 11:30 comeria com meus filhos para despedir-me deles, o passaporte estaria pronto às 13:00 e o avião saía às 14:30. O aeroporto ficava longe, na outra ponta da cidade. Já tinha a mala pronta, pois não tinha muito que arrumar. Não tinha muito que levar. O que eu mais tinha para levar eram minhas lembranças, mas as lembranças não ocupam espaço. Fiz tudo o que devia e fui em direção ao centro comercial para encontrar-me com meus filhos. Yuri tinha sete anos e Johann, apenas cinco. Esta é a parte mais difícil, a despedida, eu não sabia bem o que estava acontecendo e imagino que eles menos ainda. Também é a parte mais dolorosa de evocar e de descrever, jamais me esquecerei desse dia.
Não podia dizer para eles quando voltaria: não sabia nem para onde estava indo e muito menos quando iria voltar! Era um tiro no escuro, um ato de /desespero... Estava completamente sozinha naquele momento da minha vida, ... mas não imaginava que essa solidão me acompanharia todavia por muitos anos... Comprei um balão para cada um, me lembro que a cor do cordão que atava o balão ao braço de Johann era lilás, era muito comprido; o cortei e o amarrei em seu pequeno pulso, o pedaço do cordão que sobrou amarrei na minha bolsa e até hoje tenho comigo. Passeamos um pouco pelo centro comercial e nos sentamos para comer, comprei um lanche para cada um, umas batatas fritas e um refrigerante... —Tudo bem? —Sim, mamãe. — E tu, Johann, meu amor? —Eu também, mamãe. —E o lanche está gostoso? —Sim, muito. O Johann gosta das batatas fritas, mamãe! —Sim, se nota que ele come com gosto. —E tu, mamãe, não comes nada? —Não, não tenho fome —Yuri me estendeu a mão com algumas batatas e me ofereceu... —Mamãe, pega, experimenta; as batatas estão boas. —Não, obrigado, Yuri. Come você, meu amor, que necessita para crescer forte, bonito e inteligente. A verdade é que fome eu tinha, o que eu não tinha era dinheiro nem para comprar um lanche que custava cinco reais, nem para o ônibus para ir em casa pegar a mala e ir para o aeroporto. . Eu não tinha escolha, eu havia perdido tudo e o mais importante também: meus filhos já viviam com o pai fazia uns cinco meses. —Eu gostaria de dizer algo muito importante. —Sim, mamãe, é sobre a viagem, não? —Sim, é a respeito da viagem. Quero explicar porque tenho que ir tão longe e quero deixar bem claro para vocês que não estou os abandonando, que jamais o faria e jamais farei, porque os amo muito, porque sois a razão da minha existência, da minha vida, sem vocês não sou nada. Que nada tem sentido sem vocês, nada...
As coisas aqui estão muito difíceis para mim, não tenho uma casa para dar à vocês, não tenho nada que oferecer. Somente o meu amor, mas isto não é suficiente para dois meninos que estão crescendo. Vocês precisam comer, beber, estudar, vestir, assistência médica… e eu aqui não consegui nada e não vejo que as coisas melhorem. É por isso que vou para Espanha para trabalhar e tentar dar a vocês tudo o que necessitam. Sei que é longe e que não sei quando vou poder vir, mas lhes digo que assim que eu possa eu venho, e lhes prometo que vou ligar todas as semanas... Eu os amo mais que tudo... —Nós também te amamos, mamãe, muito... —Muito quanto? —Mais que todas as estrelas juntas do universo... —Eu também... Mas quero pedir uma coisa. —Sim, mamãe fala... —Por favor, cuidem um do outro, se amem e se respeitem sempre... Porque eu estarei longe e não poderei cuidar de vocês como eu gostaria e como uma mãe deve cuidar de seus filhos. Quero que escutem e respeitem a seu pai, seus avós e seus tios, que não esqueçam tudo o que lês ensinei; amar e respeitar as pessoas. Que sempre ganhamos quando somos bons; por mais que pareça que os maus ganhem, o bem sempre prevalece; não tenham vergonha de demonstrar seus sentimentos, não tenham vergonha de abraçar e de dizer “te amo”. Não tenham vergonha de dizer “não sei”, a humildade é uma das coisas mais bonitas que existe. Sejam valentes de admitir que cometeram um erro e de tentar outra vez, não tenham vergonha de pedir perdão ou de pedir desculpas. Estudem, aprendam, porque o que sabemos, o que está dentro das nossas cabeças, ninguém nos pode tirar... —Eu gosto de estudar—disse Yuri. Olhei para eles com toda ternura, com uma expressão de orgulho e contentamento, e continuei: —Fiquem atentos porque nem todas as pessoas são como nós nem pensam como nós, também existe gente má no mundo; infelizmente é assim. Rezem todas as noites antes de dormir, Deus sempre os escutará e os protegerá, rezem para seus anjos da guarda e agradeçam, porque eles são como as mães: estão sempre cuidando dos seus filhos. Eu quero que vocês sejam nobres, justos e corretos... Jamais esqueçam de agradecer por cada dia, seja bom o ruim, porque sempre se aprende algo. Escutem sempre seus corações: o coração jamais se equivoca... Estarei longe, mas quero que saibam que a distancia separa dois corpos, mas não separa duas almas; por isso saibam que minha alma e meu coração sempre estarão aqui com vocês.
A maioria das pessoas subestima a inteligência das crianças e creem que elas não são capazes de compreender as coisas, mas se enganam. As crianças são tão sensíveis e tão capazes como nós e muitas vezes quanto nós. Sempre tive diálogos maduros com eles, dando-lhes exemplos adaptados a seus níveis de compreensão , sempre amei e respeitei meus filhos, sempre fui contra a educação impositiva, controladora e intimidadora... Eu aprendi muito com eles e minha maior preocupação era o dano que minha ausência poderia provocar em suas vidas, tinha medo de falhar como mãe... —Nós também estaremos contigo, mamãe, e sempre te amaremos... —Eu sei... —E não te preocupes, mamãe, eu cuidarei do Johann e ele de mim, eu não vou esquecer de tudo o que nos ensinou. —Já é tarde, papai já chegou e temos que ir; os fins de semana que passavam comigo passarão agora com tio Ricardo. Está bem assim? —Sim, mamãe, boa ideia.
Yuri sempre foi mais falador, muito maduro para sua idade. Johann era mais calado: tinha o carácter do meu avô, falava pouco, mas quando falava... Era inteligente, direto e rígido. Recordo seus olhares que me diziam que seus corações sabiam o que estava passando e o duro que seria para nós esta separação, eu tinha um nó na garganta. Depois de dez anos, ao escrever esta história ainda sinto o mesmo nó afogandome... Não queria que meus filhos perdessem o contato e o calor humano da minha família, isto para mim era muito importante, porque a família do meu ex-marido é alemã e eles são frios, /calculistas. Não queria que meus filhos fossem educados por gente assim. Que parecem viver em outro planeta bem distante da humildade, do calor humano, da solidariedade, do amor e da simplicidade brasileia que só compreende quem já esteve lá ou quem já conviveu com eles . Eram boas pessoas, responsáveis, trabalhadoras e estudiosas, mas lês faltavam o principal: calor humano e sensibilidade. Entramos no carro, pedi ao meu ex-marido que me levasse até a casa da minha mãe porque já estava atrasada . —Obrigado, Hans, por me trazer e por cuidar dos meninos, assim que eu possa eu ligo para eles. —Está bem, boa viagem. —Obrigado; e, vocês, não esqueçam de escutar o papai, de obedecer, de escovar os dentes e de rezar todas as noites antes de dormir. Os amo.
Abracei os dois e lhes disse que os amava, como sempre fazia, mas aquele momento era distinto. Enquanto lhes abraçava parecia estar em outra dimensão, era como se naquele momento não existisse nada mais, somente nós, e os três... Nos convertemos em um. Fiquei olhando o carro até que desapareceu, as lágrimas corriam por meu rosto involuntariamente. Agora era tudo ou nada. Peguei o celular e liguei para Val, eu havia deixado umas coisas com ela para lavar, pois onde estava vivendo não havia aonde lavar nem cozinhar: a verdade é que não havia nada, dormia no chão sobre um colchão velho, que era a única comodidade existente nas duas peças em que vivia, não havia nem luz. Lia, a outra garota, havia levado as chaves por se acaso chegara a casa antes que eu, mas não chegou, eu não podia entrar para mudar de roupa. —Val, onde estás? —Em casa, é que as tuas roupas não se secaram bem. —Mas já não posso esperar, devo pegar as minhas coisas, passar para pegar o passaporte e ir para o aeroporto. —Não sei se chegarei a tempo. —Vou ter que quebrar a janela para pegar a mala; deixarei o telefone dentro, me faz o favor de entregar as chaves e o celular para minha mãe. —Sim, eu faço, tranquila, mas quem vai te levar ao aeroporto? —Walmor o marido da Silvia, não tenho a quem mais chamar e não tenho dinheiro para o taxi. —Sim, mas liga para ele já! —Sim, vou ligar agora... Fica com Deus. —Se cuida muito e não te esqueças de dar notícias.
Silvia era a dona da boate aonde eu atuava como stripper e onde vivi um tempo porque não tinha para onde ir. Eram muito bons comigo; quando não tive um lugar onde viver, me deixaram dormir e comer ali. Eu atuava todas as noites exceto nos domingos, que fechava a boate, ali foi onde me reencontrei com Val e conheci a Lia, e também a Sabrina. À Lia chamávamos “mãe natureza” porque ela gostava muito de animais. Um dia apareceu com um gato que estava doente e, outra vez, com um hámster hamster... Silvia era muito boa, deixava Lia ficar com os bichinhos ali; aquilo parecia mais uma casa de caridade. Val havia sido minha aluna, dei aulas de educação física em 1994. Penso que muitas das garotas acabam na prostituição por não terem aonde ir: a maioria não tem família e, as que possuem é como se não a tivessem.
Não sei... É que muitas vezes penso que existem umas comunidades naturais que não se pode chamar de família ?, é uma lástima que seja assim. As que não sabem dançar como eu, não têm outra alternativa. Eu deixei duas universidades por não ter dinheiro para pagar. Isso é muito triste, e a maioria dessas mulheres que trabalham na noite mal sabiam ler e escrever... É que tendo estudos já é difícil, imagina sem eles o duro que é.
Em um país com duzentos milhões de habitantes onde vinte e nove por cento da população é analfabeta, onde os políticos recebem salários mais altos que os recebidos pelos parlamentares da União europeia e de dezesseis países pesquisados, incluindo os do G8 (EUA, Japão, Reino Unido, França, Alemanha, Itália, Canadá e Rússia), isto, de verdade, é uma vergonha. Um país que tem tantos recursos naturais vive uma desigualdade social bestial, onde o salário base dos trabalhadores é um dos mais baixos do mundo. —Olá, Silvia, sou eu: Anastásia. —Sim, me diga como estás? Preparada? —Sim, mas necessito ajuda. Teu marido pode me fazer o favor de me levar ao aeroporto? É que não tenho como ir e ainda devo parar na polícia para pegar o passaporte. —A que horas sai o teu vôo ? — Às 14:30 horas. — Estás atrasada, já são 13:10 e o aeroporto fica longe. —Sim, eu sei... —Se prepara que ele sai agora para te buscar. —Obrigado, muito obrigado. —Não tem de que, se cuida muito e faz uma boa viagem. Se precisares de algo sabes que estaremos aqui, que Deus te acompanhe. —Obrigado, muito obrigado de verdade, que Deus te bendiga. Rompi a janela, entrei e troquei de roupa, peguei a mala: minha amiga não havia chegado a tempo. Só Deus sabia quando ia voltar a ver meus filhos, minha família e as minhas amigas. Paramos na policia, peguei o passaporte, fomos para o aeroporto, cheguei en cima da hora. Me despedi de Walmor e lhe agradeci o favor. Ali conheci a garota que ia viajar comigo, se chamava Karina e estava com Sonia, que era a que captava as garotas e logo mandava para Espanha.
—Olá, Sonia? Sou Anastásia. —Sim, sou eu, pensava que não vinha mais, já estava preocupada. —É que as coisas se complicaram um pouco, acabo de pegar o passaporte. —Bem, aqui estão os dólares para poder passar. Esta é Karina, ela vai viajar contigo. —Olá, como vai? Eu sou Anastásia. —Encantada. Apenas um pouco nervosa pelo avião, nunca subi em um antes, me dá um pouco de medo. —Karina tem os números para chamar quando chegarem a Barcelona. Não fiquem muito tempo no aeroporto; quando chegarem lá , estará um homem esperando vocês, liguem para o número que eu dei: se o primeiro não der certo, liguem para o outro, o de Sabrina, se a polícia perguntar algo, digam que vão visitar uma amiga que acaba de ter um bebê. Passem separadas na polícia, cada uma em um guichê diferente, para que não desconfiem de nada. —De acordo. E aonde vamos a ir? —Perguntou Karina. —Não sei, pois eles têm muitos clubes. —É porque eu quero ir onde está Sabrina. E tu, Anastásia? —Eu também. —Sonia, como esta Sabrina? —Está bem, ela está ganhando dinheiro, está contente. —Agora andem, porque o voo vai sair dentro de pouco tempo. Não se esqueçam: vocês terão que fazer duas conexões: primeiro em São Paulo e depois em Paris. —Em Paris? —Sim, porque é mais fácil passar por lá , a polícia francesa não controla muito. —Adeus, Sonia. —Adeus, se cuidem muito e muita sorte. —Obrigado. Karina e eu embarcamos no avião, ocupamos nossos assentos; ela estava muito nervosa e eu estava anestesiada... A polícia francesa tinha fama de ser mais branda com os que passavam por lá unicamente para uma conexão com destino a outros países. Este era o truque, sendo que os portugueses, ingleses e alemães eram mais severos. Ainda não havia tido tempo para pensar em tudo aquilo que estava ocorrendo, não sabia nem o nome da cidade para onde ia, nem sequer se era verdade que Sabrina estava bem.
Ela havia partido fazia mais ou menos uns quatro meses para Espanha, eu a conhecia desde uns poucos meses antes, dois quiçá. Antes de ir, falou comigo e me disse que se eu quisesse um lugar bom para trabalhar me recomendaria para uma amiga sua e me deu o número de Sonia. E nunca mais tive notícias dela. Um dia liguei para esta mulher, Sonia, para saber notícias de Sabrina e comentou que ela estava bem e que estava ganhando muito dinheiro, então me perguntou quem eu era e lhe respondi que era sua amiga, me perguntou se era eu quem havia dito a Sabrina que queria ir para Espanha e disse que sim. Perguntou-me quando eu gostaria de ir e lhe disse que o quanto antes possível, me pediu meu nome completo, disse que ligaria em uma semana e assim eu fiz. Mas quando liguei para averiguar para quando iria comprar a passagem aérea, já estava comprada e era para dois dias depois. Eu pensava que tardaria um pouco mais, um mês mais ou menos, eu não imaginava que tudo ia sair assim, ao voo , tão depressa. Não tive tempo nem para pensar... Me joguei de cabeça, não tinha nada a perder naquele momento... —Olá, Sonia, sou Anastásia, como estás? —Bem, já liguei e falei com eles. Já tenho a passagem aérea nas mãos, é para dentro de dois dias... —Mas como assim? Ainda não fiz o passaporte! Não tenho nem dinheiro para fazer! —Não tens como conseguir? —Não sei, creio que não... Você poderia mudar a data da passagem para segunda-feira ? —Penso que sim. —Assim terei tempo para falar com minha família e para fazer o passaporte. —Me liga amanhã para confirmar a data nova. —Está bem, amanhã eu te ligo, obrigado. Eu não ganhava muito dançando; os dias em que não havia gente não se dançava e consequentemente, não me pagavam. E a única coisa que me atrevia a fazer, aparte de dançar, era tomar um drink com um cliente. Fiz amizade com um senhor muito gentil, por casualidade. Ele trabalhava na secretaria de Educação do estado e era ex-marido da diretora de uma escola na qual minha mãe havia dado aula. Minha mãe foi afastada do trabalho por ser considerada inapta psicologicamente e a aposentaram, era uma grande educadora e orientadora educacional. Preocupava-se muito com seus alunos. Tive muitos irmãos que não eram de sangue: eram os alunos que minha mãe trazia para casa porque seus pais eram demasiado pobres e não podiam lhes cuidar; nós não éramos ricos mas, com o pouco que podíamos, ajudávamos aos demais. Minha mãe sempre disse que “ninguém é tão pobre que não tenha nada para dar”.
Tive que contar porque fui parar ali: ele conhecia a minha família, sabia que eu tinha estudos. Combinamos que ele viria naquela semana para irmos jantar juntos; Havia lhe comentado sobre a possibilidade da viagem e me disse que me ajudaria com o passaporte, pois era caro. E quanto a minha família, não pensava falar com eles porque sabia que tampouco tinham dinheiro para ajudar-me… Já não tinha ninguém, solo rezar e esperar que Sergio voltasse . Ele me ligou e me avisou que naquela noite não poderia vir e que chegaria de viagem justo no dia anterior a minha partida . Aqueles dias foram muito estranhos, tentei passar a maior parte do tempo com meus filhos, mas era difícil sendo que aonde eu vivia não havia luz, fogão nem geladeira, era impossível estar ali com duas crianças pequenas. Tive que pedir a uma tia que me deixasse ficar na sua casa com eles durante o fim de semana. Andava a pé para economizar. Minha mãe não queria me ver depois de saber que eu fazia striptease. Meus irmãos estavam jogados cada um para um lado. Meu irmão foi viver com a sua namorada. Minha irmã, na casa da sua avó, com a filha que tinha apenas quatro anos. Não tinha para onde ir porque meu pai não era meu pai biológico e, apesar de me criar desde que eu tinha dois anos, no fundo nunca me aceitou como se fosse da família; é que os laços de sangue contam muito mais que os anos de convivência e, em momentos como este, não importa se os ajudei e se são minha única família. Me sentia só, me sentia uma estranha dentro da minha própria família. —Anastásia. —Sim, mamãe. —Ontem te vi caminhando pela rua, no centro. —Sim? Por onde? —Quando você ia para a aula de informática. —Sim, depois do trabalho. —Caminhavas pela rua como si não tiveras ninguém no mundo. —É assim que eu me sinto, aqui em casa e a aonde quer que eu vá. Minha mãe sabia do que eu estava falava, mas ela nunca fez algo para mudar essa situação ou para ajudar-me a sair daquela prisão em que eu estava metida. Jamais me senti parte da família, sempre me senti só e suportei muitas coisas sem contar com alguém em quem apoiar-me ou que me pudera escutar. E é por isso que até hoje me resulta difícil falar dos meus sentimentos ou pedir ajuda, me acostumei a estar sozinha e a fazer tudo por mim mesma. Tive poucas amigas e nunca falei para elas dos meus problemas. Antes de entrar na prostituição, se podia contar nos dedos de uma mão os homens com os quais fui pra cama.
A família se havia partido com a separação dos meus pais, estávamos todos destroçados psicologicamente e também economicamente, porque meu pai havia deixado a minha mãe com dívidas terríveis. Foi duro para nós, mais duro que é qualquer outra separação normal, pela forma desastrosa em que se separou da minha mãe: ele a trocou pela ex-namorada do meu irmão, do seu próprio filho. Não sei o que pode haver passado na cabeça e no coração do meu irmão, mas imagino seu sofrimento e seu desgosto, porque minha mãe, minha irmã e eu estávamos destroçadas; ele seguramente estaria mil vezes pior. Eram vinte e cinco anos de matrimonio... Tudo se partiu... a família, os corações, os bens, tudo... A casa em que crescemos já não nos pertencia, mas nossas lembranças sim; isto ninguém nos poderia tirar. Reabrimos a floricultura da minha mãe para tentarmos sair dos problemas econômicos, mas as coisas não foram bem: como as flores são um produto perecível de curta vida, é fácil ter perdas. A única coisa que conseguimos foi adquirir mais dívidas. Trabalhei de empregada doméstica, de cozinheira em um restaurante, de instrutora de musculação em uma academia e dava aulas de dança. Fiz de tudo e não logrei encontrar vaga como professora, todas as portas se fecharam e a única saída que me restava era dançar como stripper... Isso foi a minha passagem para a Espanha... Assim vim parar dentro daquele avião. —Karina, como estás? —Mal, Anastásia, meu estômago está dando voltas. —Fiques tranquila, vai passar... —Vou pedir um vinho, assim me acalmo um pouco... —Acalmar… não sei não, mas embriagar sim. —Com uma ou duas destas garrafinhas de vinho, não acredito... —Eu sim acredito, pois não sei se você sabe, consumir duas garrafinhas aqui no avião equivalem a quatro, por isso deves estar atenta... —É verdade? —Sim, é. —Isso eu não sabia. —Pois agora já sabe; creio que estamos quase chegando a São Paulo. —Sim, é verdade, faz uns quarenta e cinco minutos que estamos voando. —Este foi rápido, mas penso que o outro nos parecerá uma eternidade... Aterrissamos em São Paulo para fazer a conexão, estávamos nervosas por ter que passar pela polícia; Karina me atormentava com a preocupação de perder as malas. Fizemos o checking, passamos pela polícia federal do Brasil sem maiores problemas, graças a Deus embarcamos e nos sentamos.
Procurávamos não falar muito no avião, porque havia muitos compatriotas; quando falávamos dos temas relacionados com os clubes, falávamos em um tom muito baixo... —Karina, alguma vez você falou com Sabrina? —Sim, duas vezes. Ela me disse que ela e Natalia, aquela loira que foi com ela, estavam bem. —Ah, sim, eu me lembro de ter visto Natalia. —Ela me disse que estão em um clube perto da praia e que é muito bonito. Anastásia, você vai para dançar, não? —Sim, eu gosto de dançar, em Blumenau já não tem nada o que fazer... —Te entendo perfeitamente... ... desespero —Sim, desespero; deixar a nossos filhos é a última coisa que se possa fazer... —Eu tenho um menino e uma menina, mas meu filho já não é meu filho. —Como? —Minha irmã cria ele desde muito pequeno, ele a chama de “mãe”... —Sinto muito Karina... De verdade... —Não te preocupes, já estou acostumada... Eu não sabia o que acontecia com Karina, mas senti na sua voz que o pequeno não lhe importava muito, e isto era muito triste. Eu não poderia ter um filho comigo e o outro com quem quer que fora, me doeria muito, não dormiria em paz, meus filhos são o mais importante para mim e o mais bonito da minha vida, dois filhos maravilhosos de caráter doce, educados, amáveis e bons de coração. Apesar de suas idades, já tinham noção de justiça dentro dos seus mundos, dentro dos seus níveis de compreensão que eram muito grandes. Temos o mau costume de subestimar a capacidade das crianças quando se trata da faculdade de raciocínio, analisar e tirar conclusões. Sempre me preocupei em dar-lhes uma boa educação, mas não com intenção de escutar das pessoas: —ai, olha, que lindos! São tão educados! Não: os eduquei por amor a eles, para que aprendessem a conviver em sociedade, para que não sofressem as consequências de uma má educação que déramos seu pai e eu. Ao menos, em termos de educação, Hans e eu tínhamos a mesma visão, graças a Deus! Caso contrário, poderíamos deixar os meninos loucos e não queríamos isso. Primeiro eles e depois nossas diferenças. Sempre respeitei crianças, sempre apreciei escutá-las ... são incríveis, um universo muito particular, especial, pedras preciosas a lapidar com todo amor, respeito e carinho... educar é sinônimo de amar...
—Anastásia, você gosta de crianças? —Sim, muito, trabalhei muitos anos com eles e aprendi muito sobre eles e com eles. —Você é professora? —Sim, de Educação Especial, comecei aos dezesseis anos, fiz um concurso e passei. Meus pais tiveram que assinar uma autorização para que eu pudesse trabalhar. —Por quê? —Era com crianças com problemas psicológicos, crianças de periferia, delinquentes infantis e juvenis. —Mas isso é muito duro... —Sim, é duro e difícil. Acabei fazendo terapias, tomando antidepressivos e ansiolíticos. —Nossa, eu não trabalharia jamais com isso. Para acabar assim? —Tem que ter dom, e amor... Se não, não vale de nada nem para ti nem para as crianças. —Estou preocupada... —Que? —Estou preocupada com as minhas malas, se as perdem? —Não creio. Se bem que em uma das viagens do meu pai perderam uma e justo aquela que tinha os presentes. —Vês? Não te falei...? —Fiques tranquila, chegaremos bem e as malas estarão ali esperando-nos.
Jantamos, falamos sobre algumas coisas e dormimos. Eu não tinha expectativas de nada, era como se estivera suspensa no tempo; uma sensação que revivo neste momento, mas, assim, é difícil descrever; para quem não tinha nada a perder era normal se sentir assim... Era a única porta naquele momento, a única esperança de uma vida melhor para poder conseguir progredir e estar junto aos meus filhos outra vez e ter algo que lhes oferecer. No passado, minha família e eu tivemos problemas econômicos, mas nunca imaginei chegar ao ponto de não ter absolutamente nada. A única coisa que tinha era roupas velhas e a minha fé, que não me deixava entregar o jogo: nem meus filhos eu tinha ... isso era muito triste, um verdadeiro pesadelo, não ter nem para comer. Hoje vejo que o que eu fiz foi um ato desesperado, não sabia nem o nome da cidade aonde ia, não conhecia a ninguém como para dizer “tenho uma amiga ali me esperando”, não sabia nada, era como entrar em um quarto escuro sem conhecer. Finalmente, chegamos a Paris, anunciaram que faltavam apenas alguns minutos para aterrissar...
— Anastásia, você sentiu a turbulência? —Não, não senti nada... —Por Deus, você dormiu como uma pedra... —Estava muito cansada, fazia dias que quase não dormia. E que vou fazer? Se o avião cai, cai e ponto. —Tens razão, mas eu quase morro de medo... quase me dá um infarto... —Já passou. Agora temos apenas uma conexão; por isso procure estar tranquila... ha, ha, ha. —Você ri, eu te juro que só volto para o Brasil daqui a cinco anos. —Estás brincando? E teus filhos? —Não, não estou brincando... Eles não vão morrer por não me ver durante cinco anos. —Por favor, Karina, eu sim que morro por estar longe dos meus. Até agora não acredito que os deixei lá. Mas te juro que na primeira oportunidade que eu tenha vou vê-los . Tomamos o café da manhã, aterrissamos em Paris com atraso de uma hora, mais ou menos. Perdemos o avião de conexão com Barcelona. O aeroporto Charles de Gaulle é enorme; não sabia nem uma palavra em francês e Karina tampouco, mas, quando chegamos, havia um funcionário que falava português e levava um pin com a bandeira do Brasil. Fiquei impressionada com a boa organização da Air France. Voltaram a programar nosso voo para às oito da noite. Passamos praticamente todo o dia no aeroporto, andando e olhando as lojas. Tudo era muito bonito. Estávamos cansadas da viagem. Finalmente, pegamos o vôo para Barcelona. Quanto mais passava o tempo e conforme ia se aproximando a hora de chegada, eu ficava mais nervosa. Por fim, o avião aterrissou em Barcelona e tocamos terra. Fomos pegar as malas. —Ah! Olha Anastásia, minha mala! Obrigado meu Deus. —Sim, mas eu não vejo a minha. Tu que estavas tão preocupada! Tua mala está aí e parece que a minha se perdeu. —O que você vai fazer agora? —Bom, falar com o pessoal responsável.
Falei com eles com um pouco de dificuldade, mas eles me compreenderam. Dei-lhes o número de telefone de Sabrina para que me localizassem. Fiz a descrição da mala e a queixa oficial. Fiquei só com a roupa que levava no corpo e sem dinheiro; bom… dinheiro sim tinha: um real no bolso que era o mesmo que nada. Sentia-me triste porque ali estava a única foto que havia trazido dos meus
filhos e da minha sobrinha, era a única lembrança: uma foto que eu havia feito em sépia e que era preciosa, dos três juntos, sem camisa, com uma réflex da marca Zenit; vendi uma geladeira para comprar e fazer meu primeiro curso de fotografia. Tinha uma lente muito boa. Quando tínhamos a floricultura na cidade de Blumenau, fazíamos a decoração das igrejas para os casamentos e eu fotografava a cerimonia e a festa; não era conhecida como fotógrafa, mas sacava um dinheirinho razoável e fazia um bom trabalho. Sem embargo era difícil competir com os profissionais que tinham fama, com os que estudaram e tinham melhor equipamento. Tive que parar quando estragou a minha câmara e não tive dinheiro para substituir: estava na praia fotografando Johann sentado na beira do mar, veio uma onda e jogou ele, fui em sua ajuda e a câmara molhou; levei para um técnico mas não havia nada que fazer. Karina e eu nos dirigimos para a saída. —Karina, não vejo ninguém aqui que tenha cara de estar esperando a gente. —Eu tampouco. —A policía começa a nos observar, é melhor agir com naturalidade... —Mas como? Com que naturalidade? Não sabemos nem para onde ir...! —E como é o homem que te disse Sabrina? Ela descreveu como é ele? —Sim, magro, velho com cabelo grisalho e alto... —Boa descrição Karina. Aqui até aquele policial tem a mesma descrição que te deu ela... Vamos ligar. —Sim, olha, tem um telefone público ali. —Mas como funciona isso? Parece-me que com moedas ou fichas, eu que sei. —Não sei como funciona isso, Anastásia, pergunta para alguém... —Espera, pergunto para aquele senhor que está na outra cabine, já volto. Era uma confusão. Tivemos que trocar uns dólares por pesetas, para logo trocar por moedas, e poder ligar. Pois não usavam fichas e sim a mesma moeda... Ao final, conseguimos. —Este é o número do tal Juan que tinha que vir buscar a gente. Tenta você, Anastásia, porque eu sou muito torpe. —Está bem, eu tento... Ninguém responde. —Tenta uma vez mais. —Ok Nada. Me dá o outro número, o de Sabrina... —Sim, toma, é este... —Olá. —Olá, sou eu Sabrina: Anastásia, a garota que veio com Karina. Você se lembra de mim?
—Sim, me Lembro... Mas eu não sabia que você vinha com ela! —Nós viemos juntas. Estamos no aeroporto e não tem ninguém aqui nos esperando... No número desse tal Juan, não responde ninguém… —Ai! Espera um pouco que vou falar com Wlad, o encarregado... —Espera! Sabrina como se chama a cidade que você está? —Benicassin, é uma praia muito bonita. —Mas está perto de onde? —Penso que de Portugal. —Portugal? Bom, deixa para lá, vai falar com ele, a polícia já está nos olhando... —Está bem, não desligue o telefone. —Está bem, esperamos... Aguardamos um pouco e a ligação caiu. Liguei outra vez: —Sabrina, falou com ele? —Sim, sim, é que esqueceram que vocês chegavam hoje. Wlad está tentando resolver, disse para me ligarem dentro de dez minutos. —De acordo, te ligo, até logo. Karina, temos que ligar dentro de dez minutos. Estou preocupada, os guardas nos observam. Este homem que não veio nos pegar... Sozinhas aqui sem conhecer ninguém e sem dinheiro... —Temos os dólares... —Sim, mas temos que devolver... —Eu não vou devolver nada. —Estás louca! Com esta gente não se pode jogar... — Eu não tenho medo deles. —Eu sim e, ademais, posso imaginar quanto nos vão cobrar pela passagem... mais do que o normal. —Sim, você tem razão. —Bom, vamos ligar, e ver o que passa. —Olá, Sabrina, o que ele disse ? —Disse que vão ter que dormir em Barcelona, na casa de uma garota russa. Peguem um táxi, você tem algo para anotar o endereço? —Sim, espera... Karina, me dá uma caneta e um papel... —Aqui, toma. —Vai me diz, Sabrina.
—Rua da Primavera nº 37, 3º, 1. —3º, 1? —Significa: terceiro andar, porta um. —E como se chama a garota? —Olga. Ela estará esperando embaixo. Agora, peguem um táxi e saiam logo do aeroporto. —Ok, vamos agora mesmo. Mas diz ao encarregado que queremos ficar aí contigo. Que não nos mande a outro lugar . —Falarei com ele, se cuidem... —Beijos, até amanhã. —Até amanhã, estou feliz porque vocês chegaram. —Nós também. Amanhã conversaremos melhor, beijos. Pegamos o táxi e fomos ao encontro de Olga. Barcelona parecia cinematográfica, com suas luzes amarelas e cálidas, os edifícios antigos. Não tardamos muito em chegar, Olga estava nos esperando em frente do edifício. Era alta, magra, loira de cabelo curto e olhos azuis, tinha um sorriso amável. Pagamos o táxi e descemos. —Olá, sou Anastásia, encantada. E esta é Karina. —Eu sou Olga, encantada. Nos fez um gesto para que entráramos, pegamos o elevador; o apartamento era agradável, não muito grande, mas tinha dois quartos, sala de jantar, cozinha e banheiro. —Olga, onde deixamos as malas? Ela nos levou até para o quarto... —Você não fala espanhol? —perguntei. —Não. —Nem nós ... Inglês? —Não. —Apenas russo? —Sim. —Karina de Deus, ela não fala nada e nós tampouco! —Bom, nos entenderemos através de mímica. —Sim, é o que nos resta... Imaginem. Duas brasileiras que não falavam espanhol com uma russa que não falava mais que seu idioma. Depois, fiquei sabendo que fazia apenas dois meses que Olga havia chegado à Espanha, mas ela não se adaptou ao trabalho. Tiveram que tirá-la do clube, se converteu em namorada de Juan. Vivia naquele apartamen-
to, era muito meiga, educada e gentil, se via que ela não servia para ser uma prostituta, era frágil... Sofreria muito nesse trabalho. Preparou-nos tudo, a cama, a comida, e inclusive quando nos despertamos ela nos esperava com o café da manhã e um sorriso maravilhoso. Nossa comunicação era boa, não é necessário falar o mesmo idioma para ser gentil, amável e ajudar ao próximo, ela tentou me dizer que o meu nome era russo e eu compreendi; ela não entendia como uma brasileira poderia ter um nome russo, estava admirada e feliz. —Anastásia... —Que? —Saímos um pouco? —Sim, tentamos ligar para Sabrina para saber quando eles vêm nos buscar. —Mas você presta atenção, porque eu me perco até dentro de um quarto. —Que exagerada você é… —É verdade... —Fiques tranquila, tampouco vamos longe, vamos aqui perto, necessito ir a uma farmácia para comprar produtos de higiene pessoal. Ao menos isso, já que estou sem roupas, sem nada... —Sim, é verdade... Como vai fazer? —Não sei, quando chegar lá , vou falar com alguém para que me ajude... —Anastásia, aqui tudo é velho! —Não é velho, é antigo. —Não vejo diferença alguma... Olha, ali tem um telefone! —Bom, vou ligar, e ver o que nos dizem... —Olá, Sabrina, como vai? —, Cansada... E vocês? —Bem, apesar de tudo. . Eu fiquei sem malas, agora vamos comprar algumas coisas que necessitamos. —Mas não gastem muito, está bem? —Sim, eu sei... A que horas disseram que vinham nos buscar? —Me disseram que ás 14:00 horas. —Estaremos prontas. —Bom, pela tarde nos vemos. Estou ansiosa para ver vocês. Tenho muitas coisas que contar. —Nós também. Um beijo, se cuida. —Outro e vocês também. Encontramos uma farmácia e comprei xampu e uma escova de dentes. Fomos a uma perfumaria e Karina ficou louca com a variedade de perfumes que ali havia. Logo entramos em uma confeitaria, porque Karina
queria comer algo e ficou boquiaberta ao ver que somente vendiam coisas doces, como croissants, bombas… No Brasil, nas confeitarias, encontramos produtos doces e salgados. Ela comeu algo e comprou um perfume bastante caro, mesmo lhe advertindo que era algo desnecessário e que estávamos usando os dólares que logo teríamos que repor, mas ela me respondeu que não ia repor o dinheiro, nem muito menos devolver o que sobraria. Notei que era um pouco irresponsável e mais tarde acabei comprovando. Muitas vezes bastam poucas horas com uma pessoa para poder conhecer como ela é. Voltamos ao apartamento, já que não tínhamos nada para fazer, apenas esperar. Olga nos preparou uma comida russa, não lembro como se chamava o prato, mas sim que estava muito gostosa. Eram duas da tarde e ninguém havia vindo nos buscar. Eram seis da tarde quando chamaram ao celular de Olga para dizer que vinham à noite, depois das nove; eu estava impaciente e preocupada. Não tinha roupa, não sabia aonde ia parar... Já não sabia nem se realmente ia ser stripper. O fantasma da dúvida começava a rondar pelas esquinas da minha mente. Sem dinheiro e sem saber o montante da dívida que havia contraído, era tarde demais para arrepender-me . Por fim, chegou o senhor Juan. —Olá, que tal? —Bem! —Bom, eu sou Juan. —Eu Anastásia, e esta é Karina. —Bom, peguem as coisas e nos vamos. —Aonde vamos? —Para Benicassin, está em Castellón de la Plana. —Fica muito longe daqui? —Não, umas três horas de carro. Despedimos-nos de Olga, jamais voltamos a vê-la e saber notícias dela. Pegamos as coisas, entramos no carro e partimos em direção a Benicassin. —E vocês, não falam espanhol? —Não, mas eu quero aprender. Posso entender quando você fala devagar. Você me entende? —Sim, já estou acostumado ao sotaque brasileiro, não te preocupes. —Obrigado. —Muito bem! E você, Karina? —Eu não. Não sou obrigada a aprender um idioma que eu não gosto; só vim aqui para ganhar meu dinheiro. —Mas é muito importante saber para comunicar-se com os clientes, para que eles te entendam melhor.
—Pois eles que se esforcem para compreenderem a mim; porque eu somente estou de passagem por aqui. —Karina, você quis vir aqui e tem a obrigação de aprender. Ninguém te tirou de casa e te trouxe aqui —disse. —Não, Anastásia, não estou de acordo contigo. —Mas você não pode impor a tua cultura. Isso é uma besteira, é insensato! O que você tem que fazer é aproveitar e aprender o que possa com eles. —Karina, eu estou de acordo com Anastásia, aparte de que vocês são brasileiras e o português se assemelha muito ao espanhol, eu as compreendo perfeitamente e vocês estão compreendendo a mim. —Juan, crês que demoraremos muito em aprender? —Não, Anastásia, creio que não. Com um pouco de vontade, aprenderão rápido. A viagem demorou umas três horas mais ou menos, mas para mim pareceu uma eternidade. Juan era uma espécie de encarregado geral que levava as garotas de um clube ao outro e resolvia os problemas. Finalmente, chegamos e nos deixou diretamente no clube onde estava Sabrina. Chamava-se Lambada, de fato ali havia apenas oito brasileiras e três colombianas. O clube tinha uma entrada discreta, estava justo debaixo de um edifício residencial, e havia um porteiro de terno na entrada. —Olá, estas são as novas garotas — disse Juan ao porteiro. Entramos no clube. Era bonito, decorado com bom gosto. As garotas estavam muito bem arrumadas, com vestidos longos e elegantes, não era o típico bordel, o que todos nós temos em mente, com mulheres vulgares e de mau gosto. Procurei Sabrina com o olhar e não a encontrei. Ao nosso encontro vieram um homem e uma mulher. —Olá, eu sou Lilian, a encarregada, e este é Wlad, o encarregado. Vocês como se chamam? —Karina. —Anastásia, encantada. —Bom, venham comigo e lhes explicarei, mais ou menos, como funcionam as coisas. Acompanhamos a Lilian e ela nos convidou para sentar em uns puffs que estavam no cenário e a beber algo. Ela era brasileira, havia estado casada com o proprietário do clube, que se chamava Paco, tinha dois filhos com ele: um menino e uma menina. Não era uma mulher muito alta; era bonita, magra, de cabelo negro e liso, tinha uns olhos muito expressivos, e era muito amável e simpática. Havia também um garçom, que se chamava Javier; que também era agradável e parecia respeitar as garotas. —Lilian, eu gostaria de saber quanto temos que pagar pela passagem. —Fique tranquila, Anastásia, não sei te dizer quanto, pois foi Wlad quem comprou as passagem aéreas. Tenho que perguntar para ele. —Não é por nada... É que a primeira coisa que eu quero fazer é pagar a passagem e começar a mandar din-
heiro para casa. —Esperem um momento que vou perguntar, já volto. —Karina, que te parece? —Não sei, Anastásia. Sabrina me disse que aqui se ganha muito dinheiro. —Sim, mas vejo pouca gente. —É verdade. —Garotas, já falei com o Wlad, ele me disse que tem que falar primeiro com o proprietário. —Lilian, onde está Sabrina? —Não os inquieteis, está ocupada com um cliente, logo estará aqui. Estão cansadas da viagem? —Sim, muito. —Vocês têm filhos? —Sim, eu tenho dois meninos. —E eu uma menina. —Vão sentir muita falta deles. —Sim, é verdade. —Bom, Lilian, como pagaremos a passagem? —Estás muito ansiosa, Anastásia! Não os preocupeis, podeis ir pagando pouco a pouco. Como aqui se cobra ao final da noite, as garotas normalmente vão deixando o dinheiro. Nós vamos marcando, elas pegam o que necessitam para os gastos diários e deixam uma parte para ir pagando a passagem. —Ah! Bem, melhor assim. E demora muito terminar de pagar? —Não, se paga rápido. Tem garotas que pagam em duas semanas. —Que bom. E quanto pagam pelas atuações? —São vinte mil pesetas, aqui quase não se dança. —Então, vou demorar muito em pagar a passagem. —Mas, Anastásia, tu podes entrar com os clientes e assim pagarás mais rápido. —É que eu nunca fiz isso! Nunca trabalhei como prostituta. —Mas se queres sair disso, tens que aprender. Aquilo me ecoou nos olvidos como uma bomba que me destruiu por dentro. Naquele momento, minha alma se fundiu e minha mente silenciou, mas já estava ali. Não via claro o meu futuro. Não podia pensar em nada, somente sentia um vazio que me consumia, esse vazio me acompanhou durante muitos anos. —Karina, e tu já trabalhastes? —Eu sim, faz tempo que venho trabalhando. Não tenho problemas.
—Lês digo: o passe de trinta minutos vale dez mil pesetas, seis mil são para a casa e quatro mil para vocês. Quarenta e cinco minutos são quatorze mil, oito mil para a garota. Uma hora é vinte mil, quatorze mil para a garota. E a suíte é vinte seis mil, dezoito mil para a garota. Os drinks o normal, cinco mil; o champanhe pequeno vale doze mil e a garrafa de champanhe vale vinte cinco mil; de todas as copas, é cinquenta por cento para a casa, tem drinks sem álcool para as garotas que não bebem. —Eu quero com álcool, se não, não suportarei trabalhar... —Bom, Karina, para você que gosta de beber, te digo que a casa dá dois drinks de álcool para cada garota e se ela quer mais tem que tirar dos clientes. O suco, o refrigerante e a agua são livres, podem beber a vontade. —É muita coisa para aprender... —Não te preocupes, Anastásia, aprenderás rápido, logo te habituaras. —Espero que sim. —¬¬Mas jamais me acostumei… ¬ —Bom, aí vem Sabrina. Deixo vocês, assim estão mais a vontade para falar. Ou querem ir ao apartamento para dormir? —Não, Lilian, quero ficar aqui e observar. Iremos quando as outras se forem. —Como queiram, Anastásia. —Que te parece, Karina? —Por mim, ficamos. —Pois então ficamos. —Olá, Sabrina, como estás bonita! —Que nada! Engordei um pouco. —Não! Anastásia tem razão, estás bonita de verdade. —Obrigado, Karina. E como foi a viagem? — Estressante e, para ajudar, fiquei sem as minhas malas: não tenho nada de roupa para usar. —Não te angusties, nós te daremos o que necessites até que possas comprar algo e encontrem tua mala. —Pois muito obrigado, de verdade. —Sabrina, você vai ter que nos ensinar, porque eu não sei nada e Karina tampouco. —Não os preocupeis, porque é fácil aprender o espanhol, é só perguntar se eles querem subir ou se te pagam um drink. —Subir? —Sim, aqui se diz subir ou “follar”. Nós aqui não tocamos o dinheiro até que se acabe a noite. Eles pagam para o encarregado, que te dá um papel com o tempo marcado e esse papel entregamos para a Mami que controla o tempo.
—Mami? —Sim, é a garota que se ocupa de limpar os quartos e controlar o tempo. Quando este se acaba, ela bate na porta e se o cliente quer ficar mais tempo, tem que pagar mais. —E como são os homens aqui? —Ai, Karina, tem um pouco de tudo. Gente educada e mal educada; eles são frios, são europeus, e em higiene pessoal deixam um pouco a desejar... —Que estás me dizendo? —Sim, Anastásia, é verdade... Já verás o que eu te digo; tem uns que não têm o hábito ou não sabem lavar o próprio pênis. —Por favor! —E a boca e o sovaco… nem te conto... —É verdade que se trabalha bem? —Se ganha igual ao que se ganha no Brasil, mas aqui tem muito trabalho e, ao final, ganhas mais pela quantidade de passes, porque o câmbio das pesetas é um por um. —Como? —Dez mil pesetas são cem reais. Aqui a comida é caríssima. Carne, frutas, verduras… tudo é caro! O aluguel, a luz, a água... Se deve economizar muito. —Em quanto tempo você pagou a passagem, Sabrina? —Em duas semanas, mas o trabalho estava muito bem, está um pouco fraco agora, mas vai melhorar. —E quanto pagaste? —Quinhentas mil pesetas. —Sim? —Sim, é verdade... —Então se trabalha bem aqui. —Claro e eles tem outros clubes aonde também se trabalha muito bem. —Sim, mas queremos trabalhar aqui contigo. —Eu vou dizer para o Wlad. Não os preocupeis. —E aonde vamos dormir? —Vocês vão dormir conosco no apartamento, vou falar com Wlad. —Obrigado, assim é melhor. — No apartamento vivemos em três, mas Marcia vai embora dentro de poucos dias; Karina dormirá comigo e tu, Anastásia, com Luana; ela uma boa garota, ela é de Curitiba, você vai gostar dela.
—Ok, não tem problema. Quero ver quem de vocês pode me emprestar algo para dormir. —Não te preocupes. E amanhã falaremos com Wlad sobre a mala para que te ajude a recuperar. —Obrigado. —Agora vou, porque chegou um cliente meu, depois nos falamos. —Está bem, boa sorte. —Obrigado. Sabrina se afastou de nós, foi em direção ao cliente e o cumprimentou; ele não demorou muito em oferecer uma bebida. Havia umas garotas que nos olhavam com cara feia, nos mediam dos pés a cabeça. Fiquei observando como trabalhavam as garotas: os homens chegavam, logo uma delas se aproximava e falavam qualquer coisa, se ele não queria estar com ela, a garota saia e logo vinha outra, e assim até que ao homem lhe agradasse uma delas. O ambiente era agradável, tranquilo, parecia um bar normal, mas com o passar dos dias fui assimilando melhor o que me rodeava e vi coisas absurdas e indignantes. A noite finalmente chegou ao fim. Àquele dia fecharam as quatro, pois não havia muito movimento. Segundo Sabrina, fechavam às cinco ou às seis da manhã, e incluso algumas vezes fechavam às oito. O encarregado levava todas para casa no final da noite e no outro dia as pegava para transladar de novo ao clube. —Anastásia e Karina, vocês hoje vão dormir aqui, e amanhã veremos aonde irão morar. —Não, Wlad. Elas podem dormir conosco perfeitamente. —Está bem, Sabrina. Se elas querem dormir com vocês, tudo bem. —Tem outra coisa, Wlad... —Fala, Sabrina... —Elas querem trabalhar aqui, não querem ir a outro clube... —Mas isso tenho que falar primeiro com Paco. —Sim, explica para Paco, ele compreenderá. —Não te preocupes. Agora vou levar vocês para casa. —Luana, vem aqui. —Estas são Karina e Anastásia, minhas amigas. —Encantada! Elas vão para o apartamento conosco ? —Sim, Anastásia vai dormir contigo Luana. Está bem? —Não tem nenhum problema, sejam bem-vindas. —Obrigado! Luana era toda sorriso, alegre, espontânea, muito simpática, irradiava uma bonita energia, era simples e amável. Wlad nos meteu às cinco em seu carro baixinho e vermelho, o típico carro de cafetão.
O apartamento estava no primeiro andar, tinha três quartos, uma sala grande, um banheiro e uma pequena cozinha. Sabrina me contou que elas iam mudar para outro mais perto do clube e nos propôs irmos viver as quatro juntas: ela, Karina, Luana e eu. Sabrina me deixou uma camiseta sua para dormir, nos arrumamos e fomos deitar. Foi difícil dormir, pois estava ali, mas era como se não estivesse, era difícil de acreditar. Quando despertei eram dez da manhã, fui para a sala. Havia umas gavetas aonde Sabrina me disse que eu encontraria uns mapas, peguei-os e olhei; um era um planisfério e o outro era da Espanha. Localizei Benicassim e, logo me dei conta de que não ficava ao lado de Portugal como me disse Sabrina, se não que do lado oposto! Era banhada pelo mediterrâneo. Não foi difícil notar que minha amiga não sabia nem onde estava, fazia cinco meses que ela vivia em Benicassim e sua vida já se havia convertido em um círculo vicioso de trabalho, sexo, drogas e álcool: esse era o seu mundo e o de tantas outras garotas. Com o tempo, fui me dando conta de muitas coisas mais tristes ainda... Vesti-me, bebi um copo de leite e saí para fazer um reconhecimento de campo. Estavam todas dormindo ainda, eu estava nervosa por estar ali, sem ter nada para fazer, sem saber o que fazer. A praia era preciosa, fiquei encantada com a cor da água , era de um tom azul puxando ao turquesa. Encontrei uma oficina de turismo e peguei uns folhetos informativos da praia, me sentei na areia e comecei a ler sua história. Ali dizia que, antes da reconquista, o Castelo de Montornés constituiu um dos mais importantes feudos árabes nesses territórios. Carece-se de notícias sobre sua destruição e as causas que a motivaram. Não obstante, sabe-se que o castelo foi habitado até finais do século XV. Como se deduz por seu nome, pertenceria à tribo dos Beni Qásim (“filhos de Qásim”), que ocupavam o Castelo de Montornés antes da conquista cristã, primeiro por El Cid Campeador e depois pelo rei Jaime I de Aragón. Quando terminei de ler me dei conta de que estar na Espanha era como tocar a história com as mãos... Eu conhecia El Cid e Jaime I de Aragón através dos livros; mas desde Brasil isso parecia muito longe e intocável, mas ali naquele momento nunca estive tão perto... Eles haviam estado ali! Haviam passado por ali! Isso era o mais importante! Apaixonei-me pela Espanha naquele exato momento. Quando voltei para casa, as garotas já estavam despertas, não sabia falar o castelhano, mas podia ler e compreender muito bem. —Onde estavas, Anastásia? —Tranquila, Sabrina, despertei-me cedo e fui caminhar e dar uma olhada na praia, que por sinal é muito bonita. —Por Deus! Mas que ânimo tens! —Sim, encontrei uma oficina de turismo e ali me deram um mapa de Benicassim, que, a propósito, não está ao lado de Portugal.
—O que você está dizendo? Que passei cinco meses de minha vida acreditando que estava ao lado de Portugal e não estou? —Sim. —Que vergonha! —Estamos na chamada Costa de Azahar, que está banhada pelo mar Mediterrâneo. —E tu? Não faz nem vinte quatro horas que chegou e já sabe tudo isso! —É que eu tenho que saber, onde estou; necessito me localizar no mapa. Se me acontece algo, ao menos sei dizer onde estou. —Tens toda a razão... Já tomou café? —Tomei um copo de leite. —Mas isso não é tomar café da manhã, vem aqui e come uns biscoitos. —Obrigado. Quando eu trabalhar comprarei algo para comer. —Nós, normalmente, fazemos juntas as compras daquilo que todas comemos e se tem alguma coisa em especial que você goste, isso se compra separado. —Me parece muito bem. Podemos seguir fazendo o mesmo. —E cada dia, uma de nós cozinha e limpa a casa. A mim me parece justo dividir as tarefas e os gastos entre todas. —Sabrina, e como é o novo apartamento? —Me parece que tem dois quartos, eu fico com Karina em um e você no outro com Luana. Está bem assim? —Bem, ela me parece boa pessoa. —Sim, ela é. Passamos a tarde toda falando sobre o trabalho, o tempo passou voando e quando vimos ja havia chegado a hora de se arrumar para ir trabalhar, Sabrina me deu uma blusa sua e Karina um calça, já que era mais “cheinha”. —Karina, não abra o chuveiro. Tens que esquentar água na cozinha para tomar banho. —Que estás me dizendo, Luana? —Sim, é que acabou o gás e Wlad ainda não nos trouxe outro. —Vê, Anastásia? Não acredito que saí do Brasil para tomar banho de caneca... Juro-te que não acredito... —Estamos no primeiro mundo, não te esqueças. —Sim, mas... Aqui não conhecem o chuveiro elétrico? —Creio que não... Ha,ha,ha...
Karina estava indignada por ter que tomar banho em um balde, nós ríamos da situação, pois saímos do Brasil para melhorar de vida e, ao chegar aqui nos encontramos numas situações similares às que passávamos em nosso país. Com uma diferença, no entanto, no Brasil era por necessidade e aqui era por descuido ou por ilógica. Pouco a pouco fui vendo que nós não valíamos nada para ninguém, éramos somente uma mercadoria. Jantamos, terminamos de nos arrumar, às dez horas veio Wlad para nos pegar. Chegamos ao clube, havia poucas pessoas e já estavam acompanhadas de outras garotas. Sentia-me um pouco deslocada, em verdade bem deslocada, não sabia o que fazer. Fiquei observando os homens, a aparência de alguns não era nada boa: feios, gordos, um pouco embriagados e com aspecto de sujos; o panorama era desesperador. Mas já estava ali e não podia voltar atrás, tinha que respirar fundo, fechar os olhos e ir em frente. Duas semanas mais tarde, mudamos de apartamento. O contrato foi feito no meu nome porque eu ainda estava legal no país e porque caí bem à proprietária. Ela havia sido dona de um clube e sabia o trabalho que fazíamos, era muito difícil alugar um apartamento na Espanha e mais ainda trabalhando como prostituta. Quando saíamos na rua, as pessoas nos olhavam com olhares estranhos: mulher estrangeira igual à puta, era assim. Saíamos para fazer qualquer coisa, comprar, tomar um café... Lançavam-nos olhares de condenação e repúdio! Não estava acostumada a ser tratada assim e aquilo me fazia muito mal, chegavam até a dar-nos as costas e negar-nos a fala. Sentia-me como uma leprosa. As garotas e eu éramos muito discretas no vestir, sempre muito simples, jeans, uma camiseta e nada de pintura; sempre nos dirigíamos às pessoas muito educadamente, com um sorriso na cara… O comportamento das pessoas me chocava... —Anastásia, vem... —Sim, Lilian, diga... —Que tal mudarmos a cor de seu cabelo? —Por quê? Não está bem assim? Eu gosto desse tom avermelhado que tenho. —Mas penso que ficarás muito bem loira, uma mudança de look te cairá bem. —E, por que não? —Conheço uma cabelereira muito boa, depois te dou o cartão de visitas. —Obrigado. —Agora vem, que vou te apresentar a um homem. Ele paga um drink e paga meia hora. —Quem é? É aquele? —Sim... Sei que não é nada animador, mas estás aqui para ganhar dinheiro, não te esqueças disso... —Sim, eu sei... Respirei e fui em direção ao homem, ele não parecia muito simpático. E como nunca me equivoco em min-
has apreciações a simples vista, de simpático não tinha nada... —Olá, como estás? —Por que queres saber como estou? —Me desculpe, mas não falo bem espanhol. —E que caralho vens fazer aqui se não falas espanhol? —Só tentava ser educada e cordial... —Pois agora não quero nada, só quero beber um drink... —Desculpa, não queria molestar... Saí decepcionada, triste e sem compreender. Por que aquele homem me tratava tão mal? A única coisa que fiz foi cumprimentá-lo! Nunca havia visto uma pessoa tão mal educada e jamais nenhuma pessoa me havia tratado dessa maneira. Mas o que eu não sabia era que ainda teria que suportar outras situações como esta, inclusive piores. Não queria acreditar que iria ser sempre assim. Não imaginava que, naquele momento estava entrando em um campo de batalha de onde sairia com a alma forjada a ferro e fogo, e que tudo aquilo, com o passar do tempo, ia destruir-me, que me transformaria em uma pessoa triste e distante, tinha medo de ficar igual às outras garotas. —Que aconteceu, Anastásia? —Esse homem, com quem você me mandou falar, me tratou muito mal... —É bom você ir acostumando, os europeus têm outra educação. —Para mim isso não é educação, e sim falta dela... —Tranquila, nem todos são assim, encontrarás gente boa também... —Isso espero... Fiquei ali sentada, preocupada, porque tinha que pagar um milhão de pesetas da passagem aérea, equivalente hoje a seis mil euros. Um absurdo. Eles pagavam pelas passagens não mais de duzentas mil pesetas. Prometi mandar dinheiro para casa para pagar as contas e os gastos dos meninos. Sempre fui uma pessoa de palavra e jamais prometi algo que não pudera cumprir. —Anastásia, vem aqui que tem um moço que quer entrar contigo. —Quem é, Sabrina? —É aquele, está um pouco bêbado, mas te pagará uma bebida e subirá quarenta e cinco minutos... —Está bem... —Eu subirei com o amigo dele. Vem, vamos. —Olá, esta é minha amiga Anastásia, ela não fala espanhol, mas é muito agradável e simpática.
—Olá, Anastásia, sou Javier... —Olá... —Tua amiga me disse que acabas de chegar... —Sim, é verdade, por favor, te peço que me fales devagar, se não fica difícil de te entender... —Está bem, não te preocupes. Pede um drink e subimos. —Obrigado. Pedi o drink. Ele estava muito bêbado, quase não podia caminhar, tinha as pupilas dilatadas. Ademais, estava drogado, mas como eu não estava acostumada a isso, não me dei conta, mas não demorei muito em conhecer e reconhecer aos drogados e em dar-me conta de que aquilo para muitos era normal e que a grande maioria das garotas que trabalhava nos clubes era alcoólica ou estava enganchada na cocaína e usava toda classe de drogas. Com o passar do tempo se convertiam em umas mortas vivas em autênticos zumbis. Dormiam, se drogavam e trabalhavam quando suas paranoias as deixavam. Em muitos clubes onde se pagava o dinheiro diretamente para a garota, havia algumas que subiam a troco de drogas: cocaína, hachís ou maconha... Era deprimente, decadente… e muito, muito triste. Era meu primeiro cliente, jamais me havia prostituído antes... Era feio, baixo e gordo. Sem contar o mau hálito que tinha e o mau cheiro nos sovacos, mas o desespero era tanto que tudo eu via, sentia e suportava. Entramos no quarto e ele começou a me tocar com suas mãos sujas, tentava me abraçar e beijar. Afastei-me e comecei a me desnudar, me virei, pois me dava vergonha. Ao tirar o vestido, o homem apagou seu cigarro nas minhas costas. Dei a volta, e fiquei olhando pra ele sem saber o que fazer nem o que pensar, simplesmente não acreditava no que acabava de acontecer. As lágrimas corriam pelo meu rosto lentamente, senti minha alma cair por terra. Saí chorando do quarto e corri para onde estava Cristina, a Mami, e contei o que havia acontecido. Ela chamou Wlad e lhe contou o que ocorria. Perguntaram para o homem por que ele havia feito aquilo, e ele, simplesmente disse; que lhe havia dado vontade, que ele havia pago e que podia fazer o que quisera. Sua frieza era assombrosa. Wlad lhe disse poucas e boas: —Serás filho da puta? Cretino, por que não tratas a tua mãe assim? A ti te gostaria, não? Que te queimem os putos ovos com cigarros, filho da grande puta! Wlad lê deu uns murros e o jogou na rua... —Minha menina, está tudo bem, calma. —Como podem as pessoas fazer essas coisas? —Tranquila, que isto passará... Não chores, Anastásia. Cristina tentou me consolar, mas foi inútil. Não sei o que era pior, se a dor que sentia ou a inconformidade
com a situação. Não podia aceitar que as pessoas fossem tão cruéis, estive seis meses no Brasil dentro de um clube e jamais havia visto algo desse estilo. Esta foi minha primeira grande lição: não dar a costas jamais a ninguém dentro de um clube. Fiquei toda a noite sentada, sem me mover, observando como se comportavam as pessoas. Deu-me tristeza e arrependimento de ter vindo para Espanha, a única coisa que desejava naquele momento era abraçar os meus filhos e sair dali. No final da noite fecharam o clube e fomos para casa. Entrei debaixo do chuveiro, me doía a costas, mas a dor que sentia na alma era ainda maior. Apesar de que estava me lavando, parecia que o odor daquele homem não saía de minha pele; chorava e me esfregava com toda a força que podia em um intento desesperado de tirar tudo o que sentia. Minhas lágrimas se misturavam com a água. Sentia asco de mim mesma, raiva de tudo, da vida, de Deus… Perguntava-me por que Ele havia deixado que aquele homem me fizesse aquilo. Por que tinha que estar ali e não em casa com meus filhos? Que havia feito eu para merecer tudo isso? Estava totalmente sozinha, não conhecia ninguém, não falava o idioma deles, estava em terras estranhas, sem ter um lugar onde ir, aonde me esconder, sem eleição, sem opção, sem dinheiro, sem esperança… Até a minha fé já estava se perdendo. Os dias ali eram sempre iguais. Wlad nos pegava todos os dias e ao final da noite nos levava para casa. Controlavam-nos todo o tempo, com quem falávamos, o que falávamos… Tudo se controlava, mas tudo. Nossa rotina era trabalhar e dormir. Éramos como vegetais, já estava ficando louca. Nos domingos ligava para os meus filhos, era o momento mais esperado da semana. Ligar para eles fazia o domingo diferente; ainda que para nós era um dia de trabalho como outro qualquer. Um domingo nos deixaram ir jantar em um restaurante brasileiro que havia no centro, nos encontrávamos bem, pedimos umas caipirinhas, Wlad nos ia buscar depois do jantar, mas teve um imprevisto Lilian não pode vir para o trabalho então ele nos disse para pegar um taxi mas já não haviam taxis, e nós ficamos no restaurante, pois na parte de atrás havia umas mesas de bilhar e Dianas( tiro al alvo), começamos a jogar, ele ligou outra vez e lê dissemos que não haviam taxis e nos disse para esperar ali; mas naquelas alturas já estávamos todas muito alegres com a caipirinha e a música brasileira que nos transportava de volta ao nosso país, até Luana que era a mais seria estava já dando saltos. —Já a desligar os telefones! Assim Wlad não nos molestara, esta noite é nossa. —Mas que te passa Luana? Estás muito alegre. Wlad nos cortará o pescoço a parte da multa que não sabemos de quanto será. —Luana saiu correndo e foi falar com o garçom. —Escuta, se você vir um homem assim de cabelo negro, não muito alto com uma camisa vermelha de seda com uma corrente grossa de ouro parecendo um cigano, perguntando por nós, diga que á fomos embora. O garçom ria muito, disse para nós ficarmos tranquilas que ele não ia dizer que estávamos ali. Bom... Nos di-
vertimos muito! Fomos caminhando para casa, e no outro dia, como se era de esperar, cada uma levou uma multa de 50 mil pesetas…Wlad nos disse que nos comportávamos como crianças, seguramente ele jamais se esquecerá de nós, assim como nós não nos esqueceremos dele.
—Luana, vê os três que estão no balcão? —Sim, Anastásia. Vamos antes que as demais se aproximem. —Vale, vamos, mas fala você. —Não te preocupes. —Olá, eu sou Luana e esta é Anastásia, faz duas semanas que ela chegou do Brasil, ela não fala muito bem espanhol... —Não te preocupes, Luana. Eu sou Pepe, este é Rafa e este é Carlos.
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