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DIAIR PORTES

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Trabalho de Conclusão de Curso para a obtenção do grau de Bacharel em Comunicação, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Positivo, realizado sob orientação da Professora Ana Paula Mira. Projeto Gráfico Antonio Carlos Senkovski e Taiane Oliveira Diagramação Antonio Carlos Senkovski Capa Taiane Oliveira

Curitiba, 2011


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Índice

1. Introdução

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2. O menino da camisa amarela

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3. O vendedor de sonhos

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4. O estojo de maquiagem

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5. O professor

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6. Sem rumo

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7. Incerteza

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8. A situação de quem espera uma família

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9. Como será o amanhã

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Nota da autora

Para preservar a identidade dos adolescentes entrevistados para cumprir às determinações do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), os nomes dos jovens, assim como os de seus familiares e amigos foram substituídos por nomes fictícios. O nome dos demais entrevistados se mantém original. As histórias e relatos contidos neste livro-reportagem foram transcritas a partir de informações dos próprios entrevistados. Algumas situações do histórico dos personagens foram escritas por meio de relatos de responsável do lugar onde moram.

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1. Introdução

Se a palavra adoção estivesse sendo praticada no seu conceito em nosso país, talvez esse livro não fosse escrito. O ato de adotar vai além de escolher uma criança, é escolher um filho. É mais uma pessoa que entra na família, o nascimento de alguém na casa. Não se trata de um brinquedo com características específicas: pequeno, com pouco tempo de vida e de preferência sozinho e de cor clara. Não é uma boneca da Barbie. É um ser humano. A palavra adoção deriva do latim adoptione, que significa escolher, adotar. Quando se fala em adoção no Brasil, a preferência parece ser pelo significado “escolher”. O livro levanta e aborda especialmente a história de adoções não realizadas, que levam a situações de abandono. Configurada pela Roda dos Enjeitados, conhecida no Brasil e Portugal por Roda dos Expostos, a realidade da não adoção relembra fatos do passado e nos remete à história para questionar uma possível dúvida ou indagação do presente. A Roda dos Enjeitados teve sua origem na Idade Média e na Europa. O historiador Marcílio descreve este mecanismo que era a porta 9


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de entrada nos orfanatos espelhados no Velho Continente que logo cruzou os mares: “A roda dos enjeitados foi criada na França em 1188 pelo papa Inocêncio III; funcionava como forma de diminuir o índice de recém-nascidos que eram encontrados mortos às margens do rio Tibre. Instalados nas portas de igrejas e conventos, cilindros de madeira giratórios serviam para que mães deixassem seus filhos em mãos seguras, sem ser identificadas. Ao colocar os bebês no cilindro, elas tocavam uma campainha que avisava freiras e padres de que ali estava uma criança abandonada.” Um dia essa invenção também chegou aqui. Não diferente de hoje, lá as crianças viviam num abrigo e algumas tinham sorte de encontrar interessados em ficar com elas. Eram poucos os que apareciam. Atualmente não existem mais Rodas dos Enjeitados / Expostos no Brasil. Hoje o nome é outro: orfanatos, abrigos, casas de passagem, casas de apoio além das “rodas dos expostos oficiosas”, isto é, o abandono de milhares de crianças nas ruas do país. O último levantamento realizado pela Secretaria de Assistência Social informa que existem no Brasil cerca de 200 mil crianças abandonadas, das quais 195 mil estão em instituições. Embora boa parte dos menores abrigados seja formada por afro-descendentes, 63,6% com idade entre sete e quinze anos, a maior parte dos interessados em adoção procura por crianças de pele clara e recém-nascidas. Os dados mostram a diferença entre a realidade e a idealização. A maior dificuldade é encontrar pessoas interessadas nas crianças que estão para a adoção. A partir do momento que alguém tem o desejo de adotar uma criança, a pessoa interessada tem que se inscrever no Cadastro Nacional de Adoção (CNA). Nesse cadastro a pessoa define qual criança pretende adotar, inserindo informações com as preferências do interessado, se quer menino, menina, até que idade. As crianças não têm cadastro para escolher que modelos de família gostariam de ter. Talvez as exigências dos pequenos não interferissem na hora de escolher um lar se eles tivessem essa oportunidade de escolha. Na medida em que uma criança é adotada, ela tem seu cadastro retirado da lista de espera. Essa seria a melhor maneira para o fim do seu cadastro no CNA. As baixas da inscrição nesse cadastro ocorrem quando é realizada uma adoção, algum cadastrado morre e quando os internos 10


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completam a maioridade. O grande número de baixas se realiza quando a criança, que vira adolescente nas instituições, completa os 18 anos. No CNA as informações de quem pretende adotar são cruzadas com os dados das crianças e adolescentes na fila de espera. O cruzamento dos dados é realizado com base nas informações apresentadas pelo interessado na adoção durante o processo de cadastramento. Quem se cadastra tem acesso a uma lista apresentada pelo sistema com os números de pretendentes para aquele perfil de criança procurado pela pessoa. Caso exista mais de um interessado nas mesmas características de um tipo de criança, nesse caso, um juiz responsável determina os critérios de preferência em relação ao adotante. O mais próximo das características que desejava na criança e quem está cadastrado há mais tempo são os primeiros. Se a pessoa não quer a criança que está próxima ao perfil que ele escolheu, o próximo da lista tem a vez de decidir se quer conhecer a criança ou não e assim continua. Isso é um problema: quanto mais demorada à fila dos interessados, as crianças vão envelhecendo nas instituições e se afastam de vez das preferências na hora de escolher quem adotar. Parece compra virtual essa situação: a pessoa escolhe as características, vai montando o pedido dentro de filtros e quando a produto aparece não gosta ou não se familiarizou. A realidade das instituições que abrigam os menores de idade mostra que há ainda um número alto de jovens esperando um lar. Em muitos casos, a demora em adotar se reflete no perfil exigido de quem fez essa opção, já que a maioria dos interessados deseja crianças brancas, do sexo feminino e idade de até três anos. Os opostos nem sempre se atraem. Essas escolhas são contrárias com a realidade que existe nos abrigo. Quem tem dúvidas que entre um dia em algum e vai que a maioria das crianças é parda ou negra, têm mais de dois anos, muitos tem irmãos. Quanto maiores forem os requisitos manifestados, como a preferência dos adotantes em relação aos adotados, maior será o tempo para que a criança seja encaminhada para um possível encontro. O inverso também é verdadeiro. Quanto menores os requisitos dos adotantes em relação aos adotados, maiores serão as chances de receberem o encaminhamento da criança mais rapidamente. 11


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Entretanto, convém observar que os candidatos a adotantes, ao se inscreverem no CNA, já informam sua preferência em relação ao pretendido a se adotar. Existem indicações sobre o sexo da criança, a cor da pele, cor dos cabelos, cor dos olhos, a idade etc. E assim a primeira criança disponível para a adoção não coincide com as características preferidas pelos adotantes inscritos em primeiro lugar. E vem o segundo, o terceiro, o quarto inscrito... A criança então com cinco anos vai completar seis, sete, oito e um dia dezoito, como tem acontecido. Vai envelhecendo ao esperar uma família que nunca aparece e dessa maneira pouco vai dar as caras. A Roda dos Enjeitados no Brasil existiu até 1950. Nosso país foi o último país do mundo a acabar com elas. No entanto nas palavras do pesquisador Rizzini “a institucionalização da criança que vai parar em abrigos/orfanatos continua até hoje, como uma forma de esconder essas crianças que correm pelas ruas e manter as aparências em um país que é campeão mundial de desigualdade social’’. O abandono de crianças nos orfanatos é uma tragédia de igual proporção. A princípio, a institucionalização foi criada com o objetivo de “proteger a infância”, mas “o que tal medida consegue de fato é somente a segregação/exclusão de “produtos sociais indesejáveis.’’ De fato é um comércio de bonecas onde as de porcelanas não existem. Muitas das crianças e adolescentes são atendidas pelas Casas de Apoio mantidas pelo governo. E existe boa parte dessas instituições mantidas por entidades religiosas ou filantrópicas. O que não muda entre uma e outra é a idade entre os atendidos. Na primeira pesquisa realizada em 1996 pela psicóloga Lidia Weber, que utilizou a totalidade das crianças e adolescentes do estado do Paraná nessa situação, os dados revelaram que a maioria absoluta dos internos, 64%, tinha entre sete e dezessete anos, e o que menos havia nesses orfanatos são crianças órfãs. Somente 5% são órfãs bilaterais e somente 14% das crianças vieram de um lar onde pai e mãe estavam vivendo juntos. O restante dos internos vem de famílias mono parentais, chefiadas por mulheres. Esse abandono nos orfanatos vem da falta de recursos financeiros dos responsáveis pela criança. Alguns personagens desse livro se enquadram nesses números em determinadas situações. 12


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Dentro da mesma pesquisa realizada pela psicóloga, foram entrevistas crianças e adolescentes institucionalizadas que estavam há mais de um ano sem receber visitas de suas famílias. Nesse levantamento foi constatado que 70% deles nunca receberam visitas e outros 30% receberam algumas visitas no início do abrigamento, porém foram acabando nos primeiros meses de vida nos abrigos. A permanência nessas Casas de Apoio seria uma medida de curto prazo. No entanto, como não há outros meios que auxiliem as famílias a ficar próxima das crianças, a prática da institucionalização tem se mostrado um incentivo ao abandono. Na maioria dos casos, a família ou responsável pela criança desaparece, não dá notícias, deixa de se interessar por ela. Essa posição gera um problema em relação à tutela dessas crianças. Na media que não é possível ou viável retornar à família de origem, se as crianças estão abandonadas, então podem ser colocadas para adoção, certo? Errado, não é assim que funciona. Apesar de permanecerem nas instituições e do desejo de terem uma família novamente, segundo pesquisa da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), apenas 10% das crianças nos abrigos podem ser adotadas, pois a maioria continua a ter algum tipo de vínculo familiar, sem a destituição do poder pátrio. Muitas não são consideradas oficialmente abandonadas porque seus responsáveis detêm o poder pátrio, guarda ou tutela. E as novas designações de Roda dos Enjeitados/Expostos no país tendem a crescer. De acordo com o Cadastro Nacional de Adoção do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), em todo o Brasil, 26.694 pessoas estão aptas a adotar. No estado do Paraná são 3.700 pretendentes candidatos a adotantes. Os números mostram também que há mais casais do que crianças disponíveis. Das 4.427 crianças que, em sua maioria, têm como mãe a União, e como família, funcionários de abrigos, 387 aguardam um novo lar no Paraná. Como tem família e sobra criança. Conforme o CNA, 37,94% dos pretendentes e futuros pais aceita somente crianças brancas. Na Região Sul, essa porcentagem se eleva para 49,23% dos interessados, um total de 10.583 pessoas. O número é maior e supera a Região Sudeste, onde está a maioria dos possíveis 13


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Tabela 1: Contraste da Adoção Perfil Candidatos a Adotantes

Perfil Adotados

Total: 26.694

Total: 4427 aptos a adotar.

37,94% preferem as crianças de pele branca.

Mais de 70% das crianças são negras ou pardas.

84% querem adotar apenas uma criança.

76% têm irmãos.

82% não aceitam irmãos. 70% aceitam crianças com até três anos.

Perto de 90% têm mais de cinco anos.

Fonte: Cadastro Nacional de Adoção, maio de 2011.

pais adotivos. Uma parte dos candidatos espera ao colocar na família, de preferência, uma criança que seja recém-nascida. A maioria das crianças e adolescentes, cerca de 90%, tem mais do que cinco anos e não são brancas. E a preferência brasileira de adoção, 56%, é por crianças com até três anos, do sexo feminino e da cor branca, sendo que boa parte dos candidatos não aceita irmãos. São dados recentes que pouco se transformam com o tempo. Segundo o CNA, 4.427 crianças estão disponíveis para adoção. Entre as crianças, 76% possuem irmãos e um terço delas é branca. O número de pessoas à procura de filhos são 26.694 interessados. Seis vezes maior em relação ao número de crianças a espera por uma família. Desses milhares de casais que deseja um filho adotivo, 84% só querem adotar uma criança e 37% só aceitam crianças brancas. E a diferença não para: 82% não aceitam criança que tenha irmão(s), e 78% dos interessados só aceitam crianças de até três anos de idade. Os casais dificilmente são levados a escolher uma criança que não se enquadra na primeira escolha adotiva. E se algum detalhe não é contemplado pela escolha a criança é descartada. Enquanto muitas crianças maiores ou adolescentes permanecem sem família, os candidatos a adotar buscam crianças pequenas. Esse momento é de espera e angústia de ambas as partes. 14


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Lidia Weber explica em uma de suas obras que acontecimentos de adoções tardias, ou de crianças “fora dos padrões” são insuficientes no Brasil. O número é considerado baixo. Quem vai adotar alguém de quinze ou dezoito anos? As situações e as porcentagens dos perfis não se encontram. Ainda que se encontrem, em determinado fator de escolha na hora de adotar, os adotantes se tornam indispensáveis, porque envolveram crianças e adolescentes estigmatizados como inadotáveis. Na medida em que os candidatos a pais desistem de um perfil de criança, procuram por outro. Essas crianças deixam de ser adotadas por não se encaixarem nas exigências que os candidatos procuram e acabam sofrendo ainda mais pelo abandono. Quanto mais tempo passa, mais difícil de encontrar uma família que as aceite como elas são. Parece brincadeira de gangorra onde só existe um vencedor. Quem perde na história é quem não tem força de escolha. A maioria das crianças com mais de três anos espera por uma família que os adote, e os futuros pais esperam bebês ou crianças com idade menor. Crianças se tornam adolescentes que envelhecem na fila de espera por uma família. Quanto mais velho menor a chance se ser adotado. Difícil situação. Nem sempre quem quer adotar pode levar duas crianças para a casa. Por vezes os candidatos querem uma criança, mas ela tem dois, três irmãos e não pode separá-los. Os laços fraternos devem ser preservados. Bem que os candidatos poderiam entender essa parte. Seria mais fácil. O Brasil é um país de diferenças, tamanhos e disparidades. Na adoção por que seria diferente? Nesse caso, por um lado, há uma ampla demanda por adoção de crianças e, por outro, um enorme número de crianças esperando para serem adotadas. Existem muitas e possíveis respostas para essa diferença . A primeira seria pelo fato de a criança ser nova no abrigo e ainda não poder ser adotada, devido aos trâmites de destituição de poder pátrio. A segunda resposta é no sentido de que a criança não se enquadra no perfil exigido pelos adotantes. O país que tem, pela Igreja católica, uma santa padroeira e protetora das crianças, infelizmente, é um país que tem muitas crianças abandonadas e, principalmente, esquecidas por aí nos muitos orfanatos e ruas também. Nª Sª Aparecida rogai por eles que os homens de fé pouco fazem. 15


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Em pesquisa recente pela primeira vez após 20 anos da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Brasil conseguiu traçar o perfil de crianças e adolescentes que trabalham ou dormem nas ruas do País. São 23.973 espalhados pelas 75 cidades brasileiras com mais de 300 mil habitantes. E 63% foram parar lá por causa de brigas domésticas. Os outros 37% é um número no qual também se enquadram os jovens que completam a maioridade nos orfanatos e não tem para onde ir. Ouve-se com muita freqüência dos profissionais que trabalham com adoção, que existe uma grande fila de pessoas querendo adotar crianças porque não existem de fato crianças abandonadas, como afirma o pesquisador Heitor Becker, ou que os brasileiros são preconceituosos porque exigem adotar bebês brancos, segundo o psicólogo Antonio Ramos. Não são apenas crianças aptas para adotar que sofrem essa situação. Além da espera, há uma questão mais complexa. Existem crianças que ainda pertencem a uma família e estão morando em instituições de abrigo, porém não são avaliadas como abandonadas. Mesmo que elas não mantenham ligação com suas famílias, não podem ser adotadas por questões legais que não as consideram “disponíveis” para adoção. A ligação com a família é puramente legal. O psicólogo Antonio Ramos relata que “nas instituições para crianças e adolescentes, existem milhares de crianças, cujos pais não as visitam durante anos a fio, mas que ainda detêm o Pátrio Poder sobre elas e, portanto, tais crianças não são consideradas legalmente abandonadas. Isto caracteriza o drama: que elas não têm mais nenhum contato com a sua família de origem, e geralmente nunca mais tiveram desde que foram institucionalizadas, mas não podem ser legalmente adotadas”. O processo de adoção no Brasil é dificultado pelas restrições impostas por parte dos adotantes, e permeados pela discriminação com a criança que fica fora dos critérios por eles exigidos. Muito se fala em adoção e se tem disseminado bastante uma cultura da adoção, em que o objetivo é harmonizar um lar para a criança que não o tem, sem valorizar ou escolher preferência referentes as condições de saúde, cor, gênero e idade da criança ou adolescente a ser adotado. No processo de adoção, as entidades judiciais procuram ade16


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quar algumas características dos solicitantes em questão. Existe o cuidado com os detalhes por ocasiões de determinados candidatos. A situação se torna ridícula, pois no decorrer da busca das semelhanças entre as duas partes, identifica-se um mercado de crianças com esperança de uma adoção, por alguma família. Que família é essa? A palavra adoção significa escolher, adotar, mas quando se fala em adoção no Brasil, a preferência parece ser pelo significado “escolher”. Boa parte de crianças maiores de três anos não conseguem ser adotadas, pelo menos por casais brasileiros. Quem acaba dando um lar para elas e se interessando são famílias estrangeiras. A psicóloga Márcia Regina Porto Ferreira confirma que “a maioria das crianças disponíveis para a adoção não é bebê de colo, mas sim crianças maiores que em geral acabam sendo adotadas por famílias estrangeiras, menos exigentes em relação à idade e ao tipo físico. Quanto maior a criança vai ficando, mais difícil é sua adoção”. Por isso, existe um número tão grande de crianças acima dos três anos, disponível para adoções. Pela exigência dos pais, de manter a preferência por bebês para poderem ter a sensação de que foram gerados por eles e apresentados como filhos biológicos, muitos acabam negando a oportunidade de um lar àqueles que também estão nas mesmas condições de abandono familiar em um abrigo. Fala-se muito em adoção e pouco se comenta sobre aqueles jovens que não são adotados. O que acontece com eles? Envelhecem na fila de espera pela adoção de uma possível família. Quanto mais velhos ficam, menos candidatos a adotantes se interessam pelo perfil apresentado. A maioria dos brasileiros sabe que este é um país multicultural, formado por diversas etnias e costumes e com realidades sociais distintas. Entretanto, em alguns aspectos, a sociedade não contempla esse fato. No caso da adoção, um perfil é idealizado pelos interessados em adotar um filho. O perfil mais encontrado é rejeitado por não estar no critério escolhido. As características da criança que procuram estão na contramão do que se encontra nos abrigos do país. É a “Roda dos Enjeitados” que não para de girar. 17


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Na maior parte dos casos, a demora para a criança sair da fila da adoção se reflete no perfil exigido de quem escolhe quem quer adotar. “Os que exigem muito esperam mais. Esses são os mais impacientes, pois o Brasil é um país moreno, com típica miscigenação de negros, pardos, índios. Brancos e crianças com fisionomia de ‘Barbie’ são raras, pelo menos na classe social de onde provêm os abandonos”. Palavras sem comentários de Alfred Schwitzer. Talvez por preconceito ou por hábito a maioria ainda deseja crianças brancas, do sexo feminino e idade de até três anos, ao contrário da realidade que se encontra nos abrigos: crianças pardas, maiores de dois anos, muitas vezes com irmãos. Outro fator que envelhece as crianças na fila de adoção é a destituição do poder pátrio, que desacelera o processo de adoção e gera dúvida nos candidatos a adotantes: o medo ou receio de que a família biológica queira a criança novamente, já que o responsável pela criança perde o poder pátrio e pode requerê-lo posteriormente. Ou sabendo do histórico da criança, onde consegue informações sobre a família biológica, fica desconfiado e pode pensar que o filho pode fazer ou viver situações que a família passou ou se envolveu. O que fazer para diminuir a distância entre as crianças e as famílias interessadas em adotar? É preciso mostrar à sociedade a vida de quem precisa de um lar. Os interessados em adotar uma criança precisam conhecer mais a realidade em que ela vive e como é sua rotina, que sonhos têm. Enquanto isso não acontecer, candidatos a pais e a filhos não conseguirão se encontrar e as crianças continuarão a crescer e envelhecer nos abrigos. Na grande visão geral, a adoção é uma ação voluntária de pessoas que têm ou não condições biológicas de terem filhos. O tempo para adotar alguém deveria ser semelhante ao tempo de gestação de uma gravidez, no entanto, o período do tempo de espera para que todo o processo seja legalizado, desde a destituição de poder pátrio até a adoção efetivada, é longo. Há casos que duram quatro anos. E muitas vezes quem está apto a ser adotado nem foi cadastrado no CNA. Estão se adaptando ao sistema, foi a resposta que tive. 18


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As pessoas que adotam uma criança ou um adolescente devem dar as mesmas condições de vida que dariam a um filho biológico, porém, antes de adotar, os pais fazem uma escolha, que tipo de criança preferem, criam uma especulação sobre o caso. Quando tomam conhecimento das crianças existentes para adoção. Pais e filhos não se entendem. O vínculo afetivo, que deve existir desde o primeiro contato com o filho a ser adotado, para que este também crie um vínculo afetivo com seus novos pais, fazendo com que a relação entre ambos seja a mais tranqüila possível, não acontece. Os pais se afastam e os ex-filhos que nunca foram de verdade permanecem na mesma situação. Vários autores definem o que seria adotar. Maria Diniz menciona que “a adoção é o ato jurídico solene pelo qual, observados os requisitos legais, alguém estabelece, independentemente de qualquer relação de parentesco consangüíneo ou afim, um vínculo fictício de filiação, trazendo para sua família, na condição de filho, pessoa que, geralmente, lhe é estranha”. É a minha preferida. Outro autor, Gomes, faz referência a palavra adoção como “um ato jurídico pelo qual se estabelece, independentemente do fato natural de procriação, o vínculo de filiação, tratando-se de ficção legal, que permite a constituição, entre duas pessoas, do laço de parentesco do primeiro grau na linha reta”. Uma definição bem antiga já está indicada no indicado no Digesto. Segundo o dicionário e o “Santo Google” “é a coleção das decisões dos jurisconsultos romanos mais célebres, transformadas em lei por Justiniano, imperador romano do Oriente (cerca de 483 dc – 564 dc) e que é uma das quatro partes do Corpus Juris Civilis. Esse tal de Digesto define: legitimuns actus, naturam immitans, quo liberos nobis quaerimus, que trata de um artifício, como um ato que cria uma filiação fictícia, como uma limitação da relação de filiação e paternidade. No contexto judicial da adoção, existem outras definições, como se o ato fosse sinônimo de doação. É uma doação, tem coisas que não se compram: carinho, afeto, solidariedade e compaixão. No Brasil, a adoção teve seu início nos primórdios do século XX e era realizada de uma maneira extremamente fria, sem uma legalidade ou documentação. A adoção não era regulamentada por lei e era realizada de maneira informal. Os casais que não podiam criar seus filhos por qualquer motivo acabavam doando a criança para um 19


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casal que tivesse maior oportunidade de oferecer uma vida digna à criança. A essa forma de adoção se deu o nome de adoção à brasileira, que é quando o filho de uma pessoa é adotado por outra, como filho natural. Nesse procedimento, as pessoas não passavam pelo processo que hoje enfrentam os interessados em adotar uma criança. Esse modo de adoção já não existe hoje, pois não há a possibilidade de uma criança viver sem ter um documento provando que houve uma adoção pela parte dos pais biológicos voluntariamente. Não tendo essa documentação certa, a qualquer momento os pais naturais podem querer reaver seu filho sem nenhum problema. Com o passar do tempo, a história da adoção se modifica. No Brasil sempre houve adoção. Na época do Império ela foi regulamentada pelo Direito Português. O problema é que nesta legislação não havia sequer a transferência do pátrio poder ao adotante. O pátrio poder é a soma dos direitos e deveres dos pais, em relação aos filhos e seus bens. Só é transferido, salvo os casos, numa situação em que o adotado perdesse o pai natural. A sucessão só era permitida se o Príncipe abrisse uma exceção à Lei. A adoção era apenas um título de filiação. Com a chegada do Código Civil de 1916, que admitiu a adoção e afirmava a finalidade de dar filhos a quem não tinha, deixando em segundo plano os interesses do adotado. Essas coisas de legislação pouco mudam e se renovam. A partir da década de 1950, foram criadas também algumas normas para as pessoas que têm interesse na adoção. Claro que a adoção não é concedida a qualquer pessoa que tenha interesse em adotar. São necessárias algumas medidas e formalidades, requisitos e razoáveis medidas de prevenção e segurança para a habilitação de uma pessoa como pretendente. Mesmo representando serem medidas extremamente simples, não serão obstáculos suficientes para desestimular a adoção ou dificultar a realização da vontade do adotante, de forma geral. Nosso país infelizmente é um lugar que tem muitas crianças abandonadas e, principalmente, esquecidas nas instituições onde vivem muitas crianças. 20


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A situação não é dos melhores para os pequenos. A questão do perfil exigido pelos adotantes no Cadastro Nacional de Adoção mostra que as exigências estão fora dos padrões das crianças brasileiras. Nesse sentido, a tentativa de mudar esse cenário se torna ainda mais distante, já que o sistema não possui crianças nos “moldes” almejados pelos casais brasileiros. Muitas das exigências dos casais brasileiros na escolha do perfil dos filhos que pretendem adotar estão diretamente ligadas à sociedade de consumo. Nas palavras das autoras Maia e Scremin “O problema da sociedade de consumo influencia e afeta toda a sociedade. No caso das crianças que necessitam de adoção, essa questão fica ainda mais delicada. Pois essas crianças estão inseridas em um processo de escolha, em que elas valem mais pelo que podem representar, do que sua essência. Como se fossem produtos à espera de uma encomenda, milhares de crianças são excluídas por não fazerem parte do perfil considerado ideal pela sociedade”. Além dessa questão na hora da escolha, existem os problemas e trâmites judiciais e a demora do processo de destituição do pátrio poder. Os dados da Corregedoria do Tribunal de Justiça do Paraná mostram o fator agravante da situação, pois das 80 mil crianças institucionalizadas em todo país, 80% delas estão fora dessas exigências. As características e os padrões considerados ideais na adoção não correspondem com o número existente de crianças que aguardam no CNA para serem adotadas. A sociedade tem que refletir e perceber que nas instituições não existem crianças ideais, sonhadas. O que se encontra são crianças de verdade, tão reais como as que vivem fora desses abrigos. Eles têm desejos parecidos, mas com uma perspectiva reduzida de torná-los reais. Ninguém sabe se o caminho que pretendem seguir pode dar certo. Entre os 80 mil alguns jovens que ainda vivem em orfanatos e outros que passaram por eles, os personagens a seguir ilustram essa situação. Eles não são diferentes quanto aos sonhos e possibilidades de pessoas que não passam e nem imaginam essa situação. Pessoas que têm estrutura, apoio ou família são donos de fatores que decidem o rumo que seguem. Na falta deles algumas ficam sem rumo.

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2. O menino da camisa amarela

__ To livre, to livre. __ Passa pra mim ligeiro. __ Chuta, chuta. __ Ah, pra fora. Eu tava livre, tocasse pra mim. Na manhã de um sábado a bola rola no interior de um lugar na região de Curitiba. São muitos os jogadores. Crianças com idade de até 16 anos disputam uma espécie de campeonato. A aparência de cada jogador não é tão diferente uma da outra. Quando não negros são pardos, alguns têm irmãos, poucos não. Os gritos durante o jogo, falhas nos passes de bola, e o riso tomam conta do ambiente. __ Seu perna de pau. __ Menino, olha... olha, tem visita se comporta. Os risos dos colegas de Ricardo não o intimidam, pelo contrário, ele se parte de rir. Durante a partida o corpo franzino do menino corre como o vento. Rápido, ele é assim. Na lata ele responde tudo que lhe perguntam. Sobre seu passado ele se cala e nem é preciso perguntar, 23


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basta ver em seus olhos castanhos que situações de antes são lembradas com tristeza. Acaba o intervalo do jogo e a disputa começa no pátio do orfanato. Os meninos voltam à partida e lá vai Ricardo louco pra fazer gol. Quem não quer ser jogador nessa idade, todos querem. Sonho de criança. Terminado o jogo, o time da bermuda perdeu por 3x2 para o time dos que vestem calça. __ Amanhã a gente ganha. A gente sempre ganha. Deu azar hoje. Os risos e a felicidade de quem ganhou a partida vão diminuindo e tudo fica em silêncio. Já é hora do lanche da tarde. Todos educadamente lavam as mãos e sentam à mesa. Mesa grande essa. Todos parecem felizes, até quem perdeu o jogo. Da janela do quarto a luz do sol vai se afastando. Alguns brinquedos se misturam com peças de roupa dentro de um armário. Entre as peças uma camisa amarela chama a atenção do menino. Não porque está em bom estado, mas porque tem desenho, uma imagem que faz o garoto de quinze anos pensar no futuro. É um capacete, daqueles que se usa em obras, que lembra construção. Ele quer ser engenheiro, construir casa, construir uma casa para si com uma família, coisa que nunca teve. __ É a minha preferida. É o que vou ser quando sair daqui. Com onze anos Ricardo entrou numa Casa de Acolhimento. A espera por uma família completa quatro anos. E na sua idade, dificilmente a família vai chegar. Filho único veio morar aqui porque seus pais abriram mão de sua guarda e o deixaram com a avó. E quando ela morreu, ficou sozinho. Um vizinho da casa onde morava até quis ficar com ele. Porém como a adoção é realizada nos trâmites do Cadastro Nacional de Adoção, onde a pessoa interessada em adotar tem que esperar na fila por uma criança que se enquadre em seus critérios de adoção (cor, idade, com irmãos), o vizinho desistiu por causa da burocracia. Sozinho na vida se escondeu de uma conselheira do Conselho Tutelar e fugiu. Isso com nove anos. Dormia numa praça junto com dois senhores bêbados, que o alimentaram por alguns dias durante sua fuga. Mas durou pouco. 24


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Foi encontrado e levado para morar numa Casa de Passagem, o lugar onde se espera a resposta do Estado na questão de resolver a situação, nesse caso encontrar um orfanato para o menino ficar por um tempo até ser adotado. Em outros casos, geralmente, a Casa de Passagem serve de um lugar temporário, até se resolver se a família tem condições de ficar com a criança, se a família quer abrir mão da guarda da criança e aí então a criança é destituída do poder pátrio e colocada para a adoção. Trâmites que em outros Estados do país tem sido mais rápido. No Paraná, as crianças podem permanecer por até dois anos nessas instituições e depois são transferidas para as Casas de Apoio, os orfanatos, onde ficam até, no máximo, os dezoito anos. As portas são fechadas quando não se tem um rumo definido. A rua é o caminho dos adolescentes que completam 18 anos e tem de sair das Casas de Acolhimento. Poucos conseguem trabalho lá fora. Ser engenheiro é o sonho de Ricardo. Tem um grande sonho para seu futuro, nos seus quinze anos de uma vida de lembranças tristes. Ele sonha que se formará em Engenheiro Civil, sonho que foi crescendo dentro de seus pensamentos. Isto porque ele quer, ou melhor, pensa que será possível construir muitas casas, para resolver o problema de muitas famílias e crianças como ele que por não ter oportunidade estão sem ter onde morar, sem ter um lar. Lar que não teve. Esse fato marcou bastante sua vida de criança. Ele queria brincar, ter seu quarto, sua cama e o mais importante ter uma família, esta no calor de uma família. Ter alguém para lhe dar carinho e um colo, este colo e carinho que talvez ele nunca sentisse da sua verdadeira mãe, por ter sido retirado dele, por força do destino. Este sonho de dar para outras crianças, aquilo que ele não teve é fascinante. __ Eu vou arrumar um emprego no mercado daqui perto e aí estudo a noite. Acho que aguento. Como seria o engenheiro Ricardo? Ele se lembraria das dificuldades que passou ate os seus onze anos de idade. Idade que ele foi para este orfanato. Será que ele teria recordações da vida dentro daquele orfanato, depois que ele se formar? 25


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__ Seria rápido e engenhoso como sou no futebol aqui do time. Respondido. Aí surge mais um questionamento. Será que o Estado teria como dar para essa criança suporte, ou melhor, uma base para que ele venha se tornar no futuro um grande engenheiro civil? Ou este sonho ficaria só em seu pequeno mundo com recordações de uma infância não vivida? Resposta: não. Não existe uma política específica para essa situação. Na maioria dos casos quando o jovem sai das Casas de Apoio seu destino é a rua. Se existe alguém da família que possa ajudar fica com ele ou algum voluntário ou ONG encaminha o jovem para o mercado de trabalho ou algum albergue para morar, para evitar ir direto para a rua. São poucas as instituições que conseguem dar alguma formação para jovens nessa situação. Existem Casas de Apoio mantidas pelo Estado e outras por instituições filantrópicas e religiosas. Essas últimas têm sido as que mais se preocupam com essa questão, dar um encaminhamento profissional, para o mundo não ser tão cruel lá fora. As instituições mantidas pelo Estado colaboram com algum curso interno referente a alguma profissão (atendente de caixa, balão), mas há preocupação em inserir o jovem na sociedade após sua permanência nas Casas de Apoio, não é uma questão do Estado, e sim de quem trabalha nas instituições, já que em casos, as possibilidades são conseguidas por pessoas envolvidas com a questão, desde responsáveis por uma instituição como a ajuda de voluntários, ONGS e Igrejas. Ricardo não gosta das lembranças de sua infância que talvez ele queira esquecer. A única coisa boa é sua avó, que mesmo doente ficou com o neto e cuidou dele por pouco tempo. Seus pais saíram para o mundo, e nunca o visitaram quando ficou com a avó. __ Ela fazia bolinho de chuva, é quase igual o que tem aqui. Mas o gosto do dela é diferente. Ela gostava de mim. Quando ela morreu, ele se desesperou e fugiu com medo. A púnica coisa boa que tinha se foi e o futuro o assustava. __ Se ela estivesse viva tudo seria diferente. Teria uma família. Talvez ele traga dentro de si uma vontade, uma força de superar todas as dificuldades, de ir em frente com seu grande sonho. Por outro se imagina o orgulho que ele sentiria se ele tivesse um suporte ou al26


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guma chance para ele entrar numa faculdade e realizar seu sonho. Ele teria muito orgulho de ter ido parar dentro dessa Casa de Apoio, deste lugar onde ele encontrou não só calor humano e encontrou de certa forma uma família, muitos irmãos com histórias semelhantes e idades parecidas, tipo físico parecido. O sonho de Ricardo precisa ser levado a sério, no mundo real, não ficar só no sonho. Um mundo que ele apenas tinha em sua cabeça com lembranças nada agradáveis, mas com um sonho, uma vontade de construir uma nova realidade. As lembranças ruins seriam apenas recordações de um passado que ele não teria porque lembrar. A realidade que se tem é que se não houver um apoio para crianças na mesma situação, dar continuidade aos seus estudos, uma inserção no mercado de trabalho, situações que possam devolvê-las para a sociedade com intuito de adaptá-las ao mundo que os espera, será praticamente impossível deste sonho como tantos serem realizados. Isto porque, temos conhecimento que as instituições que abrigam estas crianças órfãs não têm estrutura suficiente para formar ou dar condições para que estas crianças ao sair dessas instituições, saiam com uma base de conhecimento para seguir seus estudos se formar em alguma profissão. Poucos tentam fazer isso, dar esse apoio. Uma possibilidade é ter dentro destas instituições uma formação técnica ou convenio com escolas técnicas para eles terem uma formação profissionalizante e ser encaminhado para alguma empresa, aí sim tendo condições, começariam uma nova vida dentro de uma sociedade, que os deixaria mais seguro para enfrentar uma vida digna fora da instituição. Sim, a idéia é perfeita, seria bacana, ideal, genial. Mas ninguém teve essa idéia. Poderia ser diferente e não como acontece hoje, quando elas atingem a idade limite de permanência, estejam elas capacitadas ou não elas têm que sair. Para onde vão não se sabe, provavelmente a rua é o único caminho. Por outro lado se elas fossem preparadas para quando estivessem na idade de sair, enfrentar o mundo fora da instituição, a situação lá fora se tornaria um pouco mais justa, na questão de inserção de trabalho. A dificuldade em encontrar um emprego se tornaria menos má. E as 27


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coisas de encaixam mais tarde. Após o emprego, vem um lugar para morar, pois com o salário ganho há chance de ter um canto para ficar. Tudo em volta aos poucos se arrumava. Ter passado por uma situação nada agradável em sua formação de criança para adolescente e para a vida adulta pesa na estrutura emocional. Fico admirada com a determinação, garra e muita vontade desse menino da camisa amarela. A determinação dele é tão forte que uma das paredes do quarto onde dorme com mais algumas crianças é repleta de desenhos de casas. Sinto que por ele estar tão determinado, tão certo e seguro do quer na vida, ele já é um vencedor. Manter a esperança viva vai fazer que um dia ou outro que ele consiga atingir seu grande sonho. É fantástico. Ele mostra uma maturidade mesmo porque a vida não trouxe momentos de alegria ao lado de uma família, e sabe que a cada dia que passa, ou cada ano, como foi até então, fica distante o sonho de encontrar uma família. Como está determinado a mudar seu destino quer tornar um dia um desejo de algo que o deixa feliz. Muitas das idéias ou formulações de como é a vida de quem mora em instituições como orfanatos, internatos, uma das coisas que vem em primeiro é de que a brutalidade é o elemento que regula as relações entre os garotos de um internato. E para conquistar respeito e conseguir se preservar fisicamente, o interno precisa se valer da força. Ou pelo menos, deixar claro que, se necessário, estará disposto a lançar mão da violência. Puro preconceito de quem nunca entrou num lugar assim. Aqui a única violência é o grito alto e estridente dos meninos que correm por uma bola de futebol, faz doer nos ouvidos. Ricardo sabe que será difícil a vida lá fora. Se tivesse o convívio numa família nos dias de hoje, ela já se preocupava com seu futuro. Por não saber como será fora daquele recinto onde mora ate os dias de hoje, o medo paira nos seus olhos amendoados. __ Eu queria muito ser engenheiro. Não sei se vai dar certo. Queria ter uma chance, de ter coisas que nunca tive. Não sei o que me espera lá fora. Quando ele deixar o lugar onde mora, vai enfrentar a violência simbólica a que todo mundo esta sujeito hoje, a diferença das violências sociais, cada uma com seus padrões, estereótipos e certezas, 28


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mundos diferentes. Sabe que se não tiver um apoio para seguir a caminhada fora da Casa de Apoio, com certeza vai parar nas ruas. Será mais um no convívio com amigos que estão na mesma situação que a vida trouxe para eles. Que fazer diante deste novo desafio? __ Daqui a três anos vou embora. Se eu achar um emprego aí acho um lugar pra viver e me viro. Eu vou achar algum lugar. Ele não se deixa abalar por ter tido esse destino. Busca com certa convicção que se estudar ele conseguirá atingir seu sonho de se formar. Nos seu pensamento ele tem uma visão de que poderá construir muitos lares e um para ele. __ Na minha casa vai ter a escada que leva numa sala na parte de cima com dois quartos. Daí na parte de baixo a cozinha, uma sala mais um quarto e banheiro e nos fundos um campinho para jogar bola com meus amigos quando forem me visitar. Ele não consegue ver o mundo sem esse lugar que tanto planeja construir. Pensa que cada criança tenha seu lar, que seja simples ou requintado, mas que tenha um lar para viver. Queria antes um lar com uma família: pai, mãe, irmãos. Pensava nisso até pouco tempo atrás. Hoje não faz questão. A espera pela família que nunca chegou o deixou muito triste e revoltado. Era quieto, pouco se enturmava com os amigos e chegou a ser violento. Numa ocasião deu uma pedrada num menino maior que começou a rir dele depois que caiu um tombo e raspou o joelho. Não gostava de brincar nem estudar. Ninguém gosta de estudar mesmo com onze anos. Conseguiu fugir num certo dia na hora do almoço. Um pouco mais tarde no mesmo dia foi resgatado pelo Conselho Tutelar. Depois de muitas conversas com uma assistente social seu comportamento foi mudando e se adaptando aos poucos. Fez alguns amigos, se tornou participativo e fez mais amigos. Não reclamava mais de estudar e ir à escola. Depois de um tempo se tornou um menino dócil e educado. O sol vai se escondendo pela fresta da janela como se mostrasse que à hora de dormir está chegando. O futuro engenheiro escolhe um par de roupas. Não a camisa amarela __ Essa é para passear. 29


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O sol vai se pondo, as portas vão se fechando ele fica no lugar. Vai ficar por três anos ainda. Até lá os desenhos de casas rabiscados nas paredes do quarto e os cadernos de desenho de Ricardo tem onde ficar. O engenheiro daqui a pouco vai dormir. Não é preciso perguntar se vai ter bons sonhos ou desejar bons sonhos para o garoto. Ele já tem. Daqui um tempo a situação fica séria. O medo do que o espera lá fora pode aumentar. A hora de encarar a realidade na busca de caminhos para realizar seu sonho vai chegar como o vento frio que bate na janela do quarto. Está escurecendo e Ricardo tem que ir dormir daqui a pouco. __ Quando construir uma casa pra mim vou te contratar, digo. Ele se aproxima de mim e me da um abraço que sinto ate agora. __ Boa noite e boa sorte, falo para ele. __ Pra você também. Ele vai se retirando até o perder de vista. O menino gente fina não vai dormir agora. Antes de se deitar é a hora que ele desenha suas casas. Não deixa os colegas de quarto dormirem. Fica com a luz acessa e por vezes, uma das responsáveis pelo orfanato tem que bater na porta do quarto dele para desligar a luz e dormir. Sonhar ele já sonha.

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3. O vendedor de sonhos

__ Vê pra mim um café, um pedaço de bolo e uma coxinha. __ Mais alguma coisa senhor... __ Não só isso mesmo... __ Um momento que já levo. O cheiro de pão fresco e café quente aguçam o paladar. O jovem que atende o cliente na padaria é simpático, atencioso, um doce. Doce como os sonhos que vende. E tem um sorriso iluminado, é cheio de esperanças e sonhador. Quem não sonha... Sonho é uma palavra que significa imaginar um futuro, ter um futuro, uma vida idealizada. Segundo o dicionário uma associação de imagens, freqüentemente desconexas ou confusas, que se formam no espírito da pessoa enquanto dorme. Sonho também é um doce, alimento que Marcos vende na padaria. Um sonhador vendedor de sonhos. Marcos sempre se conheceu como uma criança órfã. Muito antes de se conhecer como gente já o era, pois isso aconteceu quando abandonou o ventre da sua mãe. O pai havia abandonado a mãe as31


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sim que soube que ela estava grávida. A mãe era diarista. Trabalha demais e deixava os filhos com a vizinha. O dinheiro que ganhava não bastava e as contas chegando dez com que se aventurasse para tentar a sorte como garota de programa durante a noite. Depois de um tempo conheceu o mundo das drogas. E parte do dinheiro que recebia era destinada para comprar droga. Por alguns anos o jovem conviveu com a mãe e mais dois irmãos menores que vivem na mesma Casa de Apoio na qual o jovem morou até seus 18 anos. Numa noite de julho de 2005, o Conselho Tutelar bateu na porta da casa da família, um barraco localizado no Bairro CIC em Curitiba. Denúncias motivaram a ida do conselho tutelar na residência. Os relatos de que a mãe deixava as crianças sozinhas em casa enquanto trabalhava eram amenos, perante relatos de quando a mãe chegava a casa alcoolizada, ou até drogada, e espancava os filhos. Com 14 anos ele veio morar até onde era sua casa a poucos anos, junto com os dois irmãos menores. Esperava por uma nova família que não apareceu. Os irmãos ficaram, podem ser adotados ou não, desde que não sejam separados. A infância de quando jogava queimada e futebol com os amigos no CIC é a lembrança de um tempo difícil que gosta mais gosta de lembrar. __ Ronaldinho Gaúcho, Ronaldo, Kaká; queria ser como eles até um tempo atrás. Mas os caminhos da vida lhe deram outro rumo. O sonho de menino, de ser jogador de futebol foi deixado de lado. Agora o jovem quer ser alguém que protege, cuida, passa segurança. Quer ser policial. Terminou o ensino médio e fez um curso de atendente de loja e caixa. Quando saiu do orfanato esperava encontrar um emprego que pague bem, para conseguir comprar um vídeo game para seus irmãos que ficaram na Casa de Apoio. Sempre vai visitá-los e quer ganhar na Mega Sena para comprar uma casa e conseguir a guarda dos irmãos. Sem condições, não pode ficar com eles e quando menciona essa situação, os olhos procuram algo longe e se entristecem. Por pouco uma lágrima não rola na face. 32


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A vida não tem sido fácil e nunca foi. Ao sair da Casa de Apoio, não tinha pra onde ir. Seu destino seria a rua. Tinha medo de dormir em alguma praça e amanhecer morto, de se envolver com droga, ir roubar. Não queria ter um destino igual ao da mãe. Após os filhos serem levados para uma Unidade de Apoio, também chamada de Casa de Passagem, a mãe de Marcos abriu mão da guarda dos filhos posteriormente. E nunca visitou as crianças no orfanato. Ele não sabe se a mãe está viva ou morta. Apenas sabe que preferiu as drogas aos filhos, motivo que causa revolta e faz sua voz engrossar quando fala do assunto. Quando a mãe os deixou na Assistência Social e nunca mais voltou o sentimento no começo era saudade. Os irmãos mais novos sentiam falta, era a única pessoa que tinham. Com o tempo a mágoa se alimentava das lembranças das surras que levava quando a mãe chegava drogada em casa e batia nas crianças. No dia seguinte, como se não se lembrasse de nada abraçava os filhos. E um dia os deixou pra sempre. Os três permaneceram juntos até 2009, quando Marcos teve que sair. Com a ajuda de um voluntário, que sempre visitava a Casa de Apoio, conseguiu seu primeiro emprego: Atendente de Balcão numa padaria lá no CIC mesmo. “É o melhor emprego do mundo”. E até encontrou amigos da infância, que nunca mais viu depois que foi embora do lugar. Reencontrou amigos, fez amizades e um amor, coisa que não esperava de jeito nenhum, já que garotas são chatas e cheias de manha. Num dia desses inventou de se apaixonar. Os clientes sentados numa mesa, ele atendendo, servindo, e quando se vira alguém o chama. Uma moça morena, estatura baixa, olhos penetrantes, cabelo encaracolado e torce pro Coritiba (COXA). O rapaz ficou mudo, branco de susto e vermelho de vergonha. __ Viu moço, eu quero dez pão. O silêncio tomou conta e foi quebrado pelo chamado do dono da padaria. __O piá, a menina aí ta falando contigo, vê pra ela. Voltando do transe, pergunta para a garota mais linda do mundo o que era mesmo que era queria. Atendeu a menina e ela foi embora levando seus dez pães e o coração do rapaz. 33


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Quando a noite surgiu chegou até sonhar com a moça. Imaginando e pensando alto se um dia ela voltaria naquele lugar. Se ela gostou dele, se ela ficaria com ele, essas coisas de gente que ama. __ Ela é linda, uma gatinha, a garota mais linda do mundo. O vendedor de sonhos se apaixona por uma menina que aparece do nada, uma menina que o deixa paralisado. Esse tal amor quando bate a porta pega de surpresa. A noite passa e amanhece. O futuro policial se arruma e louco para chegar ao serviço sai uma hora antes. Andando pela rua estreita apressa o passo e chega adiantado, gritando e acordando o dono da padaria que mora nos fundos do lugar. __ O Sr Joaquim abre aí, é o Marcos. __ Pía, mijou na cama... Está cedo ainda, ele respondeu. Todo feliz vai arrumando as coisas. Chega 8hs, 10hs, 12hs... As horas passam e ela não vem. Seu dia não rendeu, foi ruim. Chateado sem a empolgação de sempre o garoto simpático ficou quieto por uns dias. Em menos de uma semana, num dia que estava chovendo muito e o movimento estava fraco pras vendas, Priscila entra na padaria. É ela. Quando a viu o coração disparou e tentou certa conversa com a moça. Porém a timidez tomou conta do ambiente. Ela pegou o que queria e foi embora, mas estava se esquecendo do guarda chuva. Quando a jovem ficou distante, depois de uma quadra da padaria, um grito à fez parar. __ Moça, moça, esqueceu o guarda chuva. O jovem correu atrás dela e entregou o objeto sem dizer nada. Ela agradeceu e perguntou seu nome. Aí ele descobriu que ela se chamava Priscila. E depois de uma conversa breve cada um seguiu seu caminho. Agora ela vai comprar pão todo dia. E depois de dois meses de compras marcaram o primeiro encontro. O torcedor do Atlético tem sorte. A mesma pessoa que o ajudou a encontrar seu primeiro emprego também arrumou um cantinho pra ele ficar. Ele mora com um casal de aposentados, Maria e Antonio, e que tinha um quartinho nos fundos da casa meio à toa. Como precisavam de alguém pra atender a casa e a Maria que tem que fazer quimioterapia no hospital que fica longe do bairro, queria alguém pra 34


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ficar por lá, atendendo as coisas pra ele. Aí o Marcos foi atender. O quarto é pequeno. Tem banheiro, cama, mesa, cadeira e um guarda roupa. Como faz suas refeições na padaria não tem gasto com comida e assim mesmo tem que tomar sopa que o Sr Antonio faz toda noite. Ele está no céu quando o inferno era o futuro mais certo que poderia encontrar. Graças ao seu Anjo da Guarda, João Antonio, filho do casal, o voluntário que sempre visitava a Casa de Apoio em que Marcos morava, o destino lhe deu várias oportunidades: casa, emprego e até um amor, coisas que a maioria dos jovens na situação dele jamais teria. Agora se entende o porquê dele querer ser policial. Seu Anjo da e interessou pela vida do rapaz e lhe deu tanta oportunidade. Se comparado com o que a maioria dos jovens que tem de sair dos abrigos, o rapaz encontrou tudo o que precisava para sobreviver fora do orfanato: lar, comida e trabalho. Mostrou ao menino apaixonado que, apesar de estar fora do convívio de uma família, ele poderia ser feliz, encontrando pessoas que de certa forma o apóiam e que se tornaram ponto de referência para construir seu destino. A vontade de se tornar um policial revela como uma pessoa contribui na formação de quem a admira. Marcos vai se espelhar nesta figura para fazer o bem. Ajudado pela profissão, que nem sempre passa a imagem de bom moço, talvez o garoto seja mais um policial com comportamento e atitudes que valorizam seu trabalho, diferente da postura que enxergamos em alguns policiais violentos e nada éticos, que jamais teriam condições de levar uma imagem diferente de si para as outras pessoas. Há exceções para tudo. Cuidar, orientar e simplesmente ajudar. Isso que o menino quer. Quer ser um policial diferente, como todos da profissão deveriam ser. Manter a paz, segurança e tranqüilidade para as pessoas que estiverem por perto dele. __ Quero ser como ele. Ele foi um pai pra mim, um anjo na minha vida, que não tinha ninguém e agora me protege, fala com brilho nos olhos. Mas os sonhos não param. 35


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__ Quando for policial vou ter minha casa, meus irmãos vão morar comigo, vou casar. E tem a Mega Sena da virada, e eu vou ganhar. Não duvido. O que deixa o rapaz muito triste é não poder ficar com os irmãos e morar com eles. Tudo que ganha no trabalho tem guardado para um dia alugar um canto pra morar com seus irmãos. O quartinho dos fundos é pequeno, não cabe mais uma pessoa, então tem que pensar daqui para frente onde pode viver mais alguém junto com o rapaz. Um dos irmãos vai completar 18 anos de idade daqui a dois anos e o outro em quatro anos. E eles não têm para onde ir, como a maioria que está nessa situação. O Estado abriga os jovens e adolescentes até os 18 anos e depois não há o que fazer. Tem que sair. Mas não é motivo pra desfazer um sonho. Marcos não se esquece dos irmãos. Sempre que dá uma folga do serviço vai visitá-los. Sempre leva um agrado para eles. E talvez no natal consiga dar outros presentes e brinquedos que prometeu a eles. Agora a grana está curta. O presente pra namorada pesou nas contas do mês. __ Mas ela merece, ela é especial. E ele também. Mais um dia de trabalho está chegando ao fim. Outro cliente chega e se aproxima do balcão. __ Vê meia dúzia de sonho aí pra mim. __ Que recheio o senhor prefere? __ Ah, da do que tiver. De doce de leite se tiver. __ Só um momentinho senhor. O vendedor de sonhos vai se afastando enquanto o cliente espera. As janelas e porta do local são fechadas pelo dono da padaria e na sala quase escura ficam poucos na fila do caixa. Marcos volta com o pacote de sonhos do senhor baixinho e gordo que se retira em seguida. O rapaz termina de atender outro cliente e pega um pano para limpar o balcão enquanto Sr Joaquim faz as contas do dia e vê quanto deu seu lucro. Tudo se fecha agora e está na hora de ir. Antes de chegar na sua casa passa no lar do Sr Antonio e deixa uma sacola com pão. Conversa com o casal de velhos que assistem à novela e pergunta se precisam de alguma coisa. __ Vem tomar a sopa depois. 36


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__ Tá pode deixar, logo venho. Despede-se e vai pro quartinho dos fundos. Abre a porta e senta num dos cantos da cama, tira os sapatos e descansa um pouco. Liga o celular e escuta uma música pra distrair ou pensar em alguém. __ Eu vou casar com ela. Sonhar acordado, todo mundo faz isso. E como se esquecesse começa a falar de novo da Priscila. Reconta quando ela voltou na padaria fazer compra, que ele nem conseguiu dormir naquele direito no dia que a conheceu, que ficou pensando quando a encontraria novamente... O amor o deixou mais esperto. __ O que fazia em dez minutos faço em cinco. Meio com preguiça de levantar pela manhã, até entendo pelo frio, isso dá mesmo em qualquer pessoa, o rapaz muda sua rotina em função de outra pessoa. Está mais rápido no trabalho e mais elétrico. Os watts do namoro lhe fizeram bem. Nesse fim de semana não vai trabalhar. No domingo vai passar o dia com seus irmãos e levar doces e sonhos que sobram na padaria e não são vendidos no dia seguinte. Faz a festa das crianças do orfanato. Tenta levar um doce pra cada e escondido dá um a mais pros irmãos. Também está levando chinelos novos pro irmão mais novo. O que tinha estragou na semana passada e está com remendo pra parar no pé do menino. Sempre que vai visitá-los renova e faz novas promessas de manter a família unida como sempre foi e tem outros sonhos em comum com os irmãos. O primeiro vai ser comprar um canto pros três ficarem juntos e também a namorada se caber. O resto se ajeita. Ele fica no quarto sonhando acordado. E quando amanhece tudo começa de novo. Os sonhos se renovam e o rapaz corre pra mudar seu destino. É um menino de sorte este.

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4. O estojo de maquiagem

__ Posso passar batom em você? __ Abra a boca um pouquinho, mexa teu lábio. __ Posso passar maquiagem? E maquia, e passa batom em todas as coleguinhas do quarto, e arruma o cabelo e a tarde inteira e assim. __ Agora vou fazer um penteado em você. Do que você gosta? Enquanto a menina de treze anos faz uma trança em meu cabelo, uma trança embutida que é bem difícil de fazer, suas amigas ficam dando palpite, o que irrita a cabeleireira. __ Fica quieta menina, você não sabe nada. Ta me desconcentrando, tive que rir. Quando Amanda ganhou seu primeiro estojo de maquiagem, desses que se acha nessas lojas que antes era de 1,99 e agora não são mais, a garota desejou ter um salão de beleza. Brinca de gente grande. Suas clientes companheiras de quarto não pagam nada para ela. As meninas servem de cobaia para a futura cabeleireira e maquiadora treinar. 39


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Como pode um brinquedo desses despertar um sonho adormecido ou que nasceu a partir do contato com esse objeto? Não sei. Um brinquedo que agora dá uma esperança e garante um sentimento de alegria pra menina de cabelos cacheados, pele morena, magrinha e com sorriso tímido. Sorriso que agora se vê. Sorriso este que há meses não existia. Tem quase dois anos que Amanha veio para a Casa de Passagem. Ainda está aqui porque a destituição do pátrio poder, onde a família abre mão da guarda da criança, ainda está ocorrendo na Vara de Infância e Juventude. O processo está demorado porque na primeira vez alguém da família que ficou interessado pela tutela das crianças abriu mão da guarda de Amanda e de seu irmão, que quando chegou aqui tinha oito meses e agora tem mais de dois anos. Passado os trâmites legais, as crianças seriam colocadas para adoção. Entrariam no Cadastro Nacional de Adoção. Porém, outra pessoa da família mostrou interesse pelos irmãos e provavelmente vai mudar o rumo dessa história. Quando soube da situação dos sobrinhos uma tia das crianças pediu a guarda provisória. O processo está correndo. Amanda e o irmão vieram para a Casa de Passagem porque denuncias de uma vizinha levou a policia na casa da menina. O padrasto de Amanda bebia e numa noite tentou estuprá-la enquanto a mãe estava trabalhando. Por sorte a mãe chegou em casa mais cedo do trabalho e impediu o estupro. Mas sua vida foi tirada por isso. O padrasto esfaqueou a mãe da garota até a morte, na frente dos filhos. O Conselho Tutelar trouxe as crianças até a Vara de Infância e Juventude determinarem seu futuro. Na primeira vez, uma prima da mãe de Amanda quis a guarda. Passados alguns dias voltou atrás na decisão e acabou abrindo mão da tutela das crianças. Não se sabe o paradeiro do pai da menina. Antes de Amanda nascer sua mãe tinha perdido o contato com o pai da menina, que não era da cidade. Um caminhoneiro que a mãe conheceu e teve um relacionamento passageiro. Estava tudo certo para encaminharem as crianças para adoção. Como sorte ou capricho do destino, surge outra chance, uma possibilidade positiva. 40


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Uma tia da menina que mora em outro estado soube da morte da irmã e da situação dos filhos dela e veio atrás das crianças. A cada quinze dias Selma vem de Santa Catarina visitar os sobrinhos. Está com muita esperança de levá-los com ela. Quando a família abre mão da guarda de uma criança, algum familiar direto tem chances de ganhar a guarda. Sendo parente direto das crianças, Selma provavelmente vai ficar com os sobrinhos. Esse exemplo é considerado adoção afetiva, onde há o interesse de algum parente ficar responsável pela criança. Diferente das crianças que moram nas Casas de apoio, Amanda vai ter um lar em breve. Se fosse para a adoção talvez não tivesse uma família. Ela não se enquadra nos perfis idealizados pela maioria dos candidatos que desejam adotar uma criança. Ela é negra, tem mais de quatro anos e tem irmão. Quem fosse adotá-la teria que adotar o irmão. Para o irmão menor apareceu uma família interessada na cidade e até visitaram a criança. Mas como ele é irmão de Amanda não poderia ser adotado sozinho, e os dois não poderiam ser separados. A família então perdeu o interesse. Uma psicóloga acompanha a história de Amanda. O irmão era muito pequeno quando a mãe morreu, ele não lembra. Mas a menina ficou traumatizada. Além do quase estupro que sofreu viu a mãe morrer na sua frente. Nos primeiros dias na Casa de Passagem ela não falava com ninguém, só chorava e ficava nervosa abraçada ao irmão. O período de adaptação na casa não foi fácil. Hoje ela está melhor. E com as visitas constantes da tia seu sorriso tímido é visto todo dia. Uma nova fase da vida da menina vai começar. No mês de março é aniversário de Amanda. E no ano passado ela ganhou o seu brinquedo de maquiagem, presente comprado por ações da Assistência Social do município. Primeiro foram as bonecas a serem maquiadas e a brincadeira virou coisa séria. Um dia quando o quarto estava muito silencioso, coisa não comum no dia a dia do abrigo, de mansinho uma mãe social foi sondar o que estava acontecendo. Todos no quarto estavam sentados em volta da menina que maquiava uma das crianças. Com um frasco de esmalte pintava a unha da colega e parte dos dedos também. Não era uma pintura perfeita para primeira vez. Mesmo assim 41


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as crianças gostaram da brincadeira que se tornou freqüente no local. O segredo de Amanda foi revelado. A menina se encantou com o presente e desde então sonha e faz de conta que e cabeleireira e maquiadora. Cuida das outras meninas do quarto. Dos meninos apenas escova os cabelos. Quando crescer quer trabalhar com isso. As amiguinhas cobaias fazem fila para ser arrumadas pela garota. E passam o dia todo se duvidar brincando de salão de beleza. Só não o fazem porque de manhã tem aula. No próximo ano a menina vai para Santa Catarina, caso a tia ganhe a guarda dela e do irmão. Fica imaginando como será sua festa de aniversário. Com uma nova família, com uma nova chance. Aos poucos ela vai se soltando durante a conversa, meio com medo, olhando nos olhos e passando batom numa amiguinha. Essa brincadeira de criança deixa a menina feliz e interessada pela vida. Representa que as lembranças ruins são ocultadas pelo jeito com que ela se comporta agora no lugar. É uma menina. Não deixa de sorrir, mesmo que seu sorriso seja discreto, e de brincar como todos aqui. A vida lhe deu uma nova oportunidade. Caso ela fosse para um orfanato a vida poderia não sorrir para ela de novo, visto as dificuldades que poderia enfrentar após ter que sair do lugar e deixar o irmão no orfanato. Essa preocupação ela não terá. A única coisa que preocupa a menina é os palpites das crianças do quarto que ficam desconcentrando a garota durante seu trabalho. Mas quando são ameaçadas tudo se resolve. __ Parem de me atrapalhar ou nunca mais arrumo vocês. __ Chata, alguém retruca. __ Fica quieta menina, chata é você, e todos riem de novo. São muitos brinquedos espalhados pelo quarto. Todos eles são de todos. A exclusividade é o estojo de maquiagem que pertence a ela, ninguém se atreve a pegar. É o motivo de felicidade conjunta do quarto. Amanda faz os colegas felizes por um momento e se sente bem brincando com seu objeto precioso que lhe deu um sentido, um possível sonho para realizar. Esquecer as lembranças amargas que a vida e as conseqüências da vida lhe causaram não é coisa do dia para a noite. Terminada a brinca42


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deira da maquiagem, ela senta perto do irmão que está no colo de uma responsável pelo lugar e fica acariciando seu rosto e o abraça. Pega seu estojo de maquiagem junto com uma boneca e senta num cantinho da cama. Fica quieta por um tempo e me olha de canto e dá seu ultimo sorriso tímido da tarde. Com um pedaço de pano limpa seu estojo de maquiagem e o guarda numa gaveta perto da cama onde dorme. Junta seus brinquedos numa grande caixa com os demais brinquedos dos colegas de quarto. A tarde vai terminando e é quase hora de ir pro banho. A menina pega uma muda de roupa, um pijama surrado e bem velho que ganhou de algum estranho. A maior parte das roupas e brinquedos são doações de estranhos ou são adquiridos por meio de ação voluntária que reúne objetos, brinquedos e roupas usadas que ou não servem mais ou alguma criança simplesmente deixou de gostar daquela peça. Boneca sem braço ou carrinho sem roda é comum por aqui. Uma das meninas do quarto acaba de sair do banho e pede para Amanda pentear seus cabelos. Ela pega a toalha e termina de secar a criança. Ajuda a colega a se vestir e começa a pentear o cabelo curto e preto da menina, que fica quieta e imóvel, caso contrário leva beliscão se não comportar-se e desconcentrar a amiga brava. É uma mãe menina, cuida e da atenção não só para seu irmão. Ao sair do local, olho pela janela e lá está ela me olhando de longe. Aceno e um pouco tímida a menina responde. Na sua cabeça pensa que conquistou mais uma cliente pro seu salão de beleza. Se todos tivessem uma nova chance muitos sonhos poderiam se tornar realidade. Quem sabe o futuro mantenha o sonho da menina e poderá dar outras oportunidades. Com a chegada da tia na vida da criança, o interesse em ter alguma coisa e seguir um desejo aumentou na menina. É um estojo de possibilidades aberto.

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5. O professor

__ Qual é a capital de São Paulo? __ São Paulo! __ Curitiba! __ Eu já ensinei isso... É São Paulo menino! O professor é daqueles que pega no pé do aluno, dá castigo. A sala de aula não é dessas salas fechadas, sem ventilação ou com paredes e ventilador no teto. Uma sala diferente aberta e no meio do pátio. Não tem quadro nem tantos livros para consultar. No lugar da lousa tem uma amarelinha desenhada no chão. Os alunos não têm a mesma idade do professor. São mais novos e nem tanto preocupados como o rapaz. Professor sem diploma, ainda. Mas treinando pra ser um dia. João Gabriel completou a idade limite de permanência num orfanato em 2011. Provavelmente iria morar em alguma rua ou pedir abrigo nas casas de assistência social da cidade. Lá ao menos dormiria. Mas existe gente boa por aí. O mundo que é ruim. Com a ajuda de uma pessoa vai ter condições de freqüentar uma faculdade no próximo ano. Vai cursar pedagogia. 45


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Ele morou no orfanato que leciona aulas como voluntario. Se não fosse uma instituição religiosa, certamente ele estaria na rua uma hora dessas. Ao sair do orfanato não ficou com medo do mundo aqui fora porque já sabia que teria uma oportunidade de não ser mais um jogado na rua. Agora ele mora num albergue com estudantes de determinada religião. Foi orientado a procurar o lugar por uma freira, que se afeiçoou ao menino pela dedicação na escola e com seus colegas no orfanato. Ele ensina e tira dúvidas das crianças menores e os ajuda nas lições de casa. Tanta dedicação chamou atenção da Irmã Rita, que conseguiu abrigo e uma bolsa de estudos para João Gabriel no próximo ano. __ Eu gosto de ajudar. Não sei se vai dar certo. Só sei que vou estudar pra isso. Esse garoto encontrou um tipo de ajuda que o deixou em paz. Até metade do ano passado o menino chorava escondidos dos outros. Sabia que a rua o esperava e tinha receio desse rumo. Nesse ano, antes de sair do orfanato o desesperou bateu mais forte ainda. Continha suas lágrimas para as crianças menores não perceberem que estava chorando. A fase de angústia durou até pouco tempo. O desespero de ir pra rua, acompanhado pelo medo, tomaram conta do seu pensamento. Seu coração ficou em pedaços e derreteu quando o encontro com a realidade que o aguardava esteve próximo. As coisas lá fora são bem diferentes. Aqui tem comida na mesa, roupa lavada, cama. Em muitos casos o chão das ruas é o colchão da grande maioria que completa maioridade e não tem pra onde ir. __ Medo, tive muito medo. Essa é a palavra que descrevia João Gabriel quando ficou perto de completar dezoito anos. Era um dia de inverno de 2001 na cidade de Curitiba. Após decisão judicial, o menino veio morar no orfanato. Ficou a partir dos oito anos aqui. O garoto viu poucos amigos indo embora para morar com uma família. Alguns foram levados e até devolvidos depois. A maior parte das crianças, quando não fugia esperava até o final, a idade máxima de ficar aqui. Depois do último aniversário no abrigo elas iam embora sozinhas para enfrentar o mundo lá fora. Algumas tinham um parente distante ou alguém que as ajudou, deu um caminho, um 46


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direcionamento na vida. No entanto a maior parte foi pra rua mesmo. Lá é casa tão temida. Parece como a casa da bruxa dos contos infantis. Lugar perigoso e temido. __ Bem no começo quando vim morar aqui eu era pequeno. Lembro-me que falavam que algumas crianças fugiam desse lugar. Agora não é tanto. Aqui não é assim. Em outros lugares alguns adolescentes têm essa idéia e fogem. Não sei se dá certo. Ele já presenciou a chegada de crianças de todas as idades no lugar e com histórias parecidas com a sua. Quando uma moradora do bairro Uberaba ouviu um som parecido com um choro de criança não imaginava encontrar um menino com uma sacola e algumas peças de roupa e uma carta. Em frente da sua casa ele achou o garoto que disse a ela que sua mãe pediu para ele esperar, “a mãe já voltava”. Na carta a que seria mãe do menino escreveu que tinha mais três filhos, e o deixou lá “somente por um tempo, até encontrar um emprego”. Sua mãe nunca mais voltou para buscá-lo. João Gabriel tinha o adjetivo de “institucionalizado” até completar dezoito anos. Ele não sabe responder por que veio morar em um orfanato, já que tinha família. Ele não lembra nem de sua mãe nem de seus irmãos. Nem mesmo de outro parente. Representa que parte da memória foi apagada ou talvez nem tenha do que lembrar, de coisas boas da família ou de antes de vir morar no abrigo. Durante o tempo que viveu em orfanatos já morou em três instituições diferentes e nunca recebeu visita de ninguém. As poucas visitas acontecem quando alguém é enviado pela Vara de Infância e Juventude ou da Assistência Social para ver como as crianças estão. As visitas realizadas por grupos religiosos também fazem a festa da criançada. No dia das crianças e na Páscoa, é quase certo que as visitas aparecem sem falta. Algum ser trás presentes e doces. NO Natal as visitas são em menor número. As pessoas ficam em casa com a família. As crianças do lugar também ficam em casa, mas sem família. Representa que nem o verdadeiro Papai Noel vem visitá-los. Quando lhe perguntavam no Natal qual era o seu maior desejo, o maior presente que ele poderia ganhar, o garoto respondia que que47


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ria uma família. Depois de alguns segundos pensando completava o presente, afirmando que “queria alguém que o chamasse de filho, queria dormir numa cama aconchegante e ser feliz para sempre”. Esse pensamento durou anos. Até pouco tempo o menino pensava que alguém iria levá-lo do orfanato. Alguns visitantes o tratavam com carinho e isso alimenta as esperanças dele e dos colegas. E no fim do dia as esperanças acompanhavam os visitantes e partiam. A ilusão matou a esperança e a idéia de ter um lar foi ficando no passado. Hoje o menino homem tem outras metas. A principal é se formar professor. Ter um futuro. Quando criança João Gabriel se destacava na escola. Era bom aluno, estudava muito e nunca tirou notas baixas. Um professor que deu aula parta o menino chamado Ari foi quem despertou seu interesse pela profissão. __ O jeito que ele ensinava era diferente, prendia minha atenção. Era muito inteligente e sempre quis ser inteligente. A profissão despertou no jovem o sonho de um dia ser um grande professor. O mundo sempre precisou deste profissional. O instrutor e mestre apesar de não ter o reconhecimento pela sua dedicação, conhecimento para aqueles que necessitam de aprendizado, para ter um futuro melhor. É o que o jovem tem realizado no tempo que passa no seu antigo lar. O jovem é daqueles professores bravos que pegam no pé do aluno. Não é bravo, porém, não deixa de aplicar um castigo bom, como ler duas páginas a mais do livro, se algum aluno não faz a tarefa da semana. Sem choro, não tem conversa com ele. O sonho de um jovem: levar conhecimento para as pessoas, o sonho de ser um professor. Isso requer que o rapaz seja alguém que saiba conviver com grupos de pessoas que querem conhecimento, pessoas que buscam a evolução. Na maioria das vezes o professor sempre está na situação de sempre ter uma resposta, uma solução para quem a busca, sanar uma duvida ou o questionamento sobre determinado assunto. Sempre que ensina e orienta os menores do orfanato tenta responder a todas as perguntas. A única que não soube responder foi uma questão de um menino de oito anos que entrou a pouco no lugar. Para não magoar a criança respondeu com dúvida. 48


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__ Tio, eu vou ter uma mãe? __ Sim, vai ter sim. A resposta ele não sabe de fato. Quem sabe um dia o sim seja respondido de verdade. Ser professor é uma profissão que requer conhecimento de tudo. Além da pedagogia um pouco de psicologia, ser um terapeuta do conhecimento. Ensinar não fica apenas nos livros. Certas atitudes e posturas marcam e podem influenciar alguma característica do aluno. Por vezes se busca no mestre a solução de determinado assunto que está totalmente fora do seu campo de conhecimento, algo que não se entende, o porquê da dúvida. Como ele esta na situação de conhecedor, ou melhor, na posição de uma pessoa que passa segurança, sempre esta sendo abordado para tirar duvidas e responder algum questionamento. Sim, essa parte de respostas o rapaz já o faz e quer mais. Dentro da formação que espera existe a possibilidade de construir sua vida e ter estabilidade financeira. Sem herança pra receber, ser professor dá um ganho financeiro e particular, de gosto pelo que faz. O menino gosta do que faz, não tem preguiça. Ensina e tem domínio da palavra. Quem olha para ele pensa que o João Gabriel é professor há algum tempo. É daquelas pessoas que nascem com um dom. E sabe usá-lo. O professor participa e planeja para tentar os resultados positivos no processo de ensino e de aprendizagem dos seus alunos da sala ao ar livre. Lê poemas de Camões e um livro de Monteiro Lobato para as crianças e os questiona depois da leitura. Prende a atenção. O castigo pra quem não sabe a resposta é pular amarelinha e escrever linhas a mais sobre o livro que acabaram de ler ou ler duas páginas novamente. Tarefa essa cobrada na aula seguinte. Como as crianças têm aulas normalmente em escolas da região, a presença do rapaz é um incentivo aos pequenos e chega como reforço escolar. O jovem ajuda a tirar algumas dúvidas de português e geografia, suas disciplinas preferidas, e ensina o que sabe das demais matérias. Ajuda aos alunos desenvolver trabalhos e pesquisas, estimulando a construção do conhecimento dos que o cercam. Coisas de quem tem paciência em ensinar. Coisa de professor mesmo. E se João Gabriel não tivesse a ajuda da Irmã Rita, o que seria dele? Um professor na rua. Talvez encontrasse emprego ou não. Não iria ter 49


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pra onde ir, provavelmente. Ninguém sabe. Será que este jovem teria condições de realizar seu o desejo de ser um professor? Dificilmente. As instituições que abrigam crianças e adolescentes não tem condições de pagar cursos para seus internos. A maior parte dos cursos e palestras que participam são conseqüências de gente de fora. No caso dele a freira católica arrumou um lugar para o rapaz viver e até sua bolsa de estudos. Esse albergue onde mora também sobrevive por meio de doações. A maior parte do dinheiro que é arrecado para as despesas do lugar vem de recursos próprios dos membros de outra religião, a Maçonaria. É engraçado. A igreja católica geralmente não gosta da Maçonaria. E essa situação? Une dois argumentos e temáticas religiosas diferentes em razão de uma pessoa na qual acreditam e podem dar uma oportunidade de rumo na vida. O menino que quase não se lembra do seu passado enxerga agora no futuro motivos que corriam o risco de não existir caso ele fosse pra rua. A oportunidade dá um sentido na vida de alguém que é por si só, sem um apoio, sem estrutura. A freira tornou-se uma mãe para o garoto e nela ele vê seu futuro. Futuro esse que a Irma Rita enxergou primeiro, pois viu que existia alguém que precisava de uma chance. De um caminho que não o levasse a ser mais um na rua.

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6. Sem rumo

É quase noite na Rua Saldanha Marinho. O vai e vem frenético de carros e pessoas não é novidade em parte nenhuma do centro de Curitiba. O comércio vai fechando as portas, o rosto cansado e feliz por terminar o expediente é o mesmo em muitos vendedores e lojistas da capital. Nesse frio o certo era fechar mais cedo. E mesmo no frio, outros comércios têm que abrir, nem que o lucro diminua em comparação com outras datas, devido aos poucos clientes que chegam comprar essa mercadoria viva. E as moças da noite vão surgindo nos cantos da cidade. As histórias de violência, abuso sexual e abandono são situações parecidas por quem vive nessa situação. As pessoas quando as encontram ou tem raiva, as julgam, desprezam ou podem ter ciúmes. Vai saber o que se passa na mente dos outros. __ Ser prostituta nem sempre é por vocação. Sou uma porque não tive escolha. E me acostumei e agora até gosto. A resposta afiada e na ponta da língua de Kellin marca a pessoa. Direta, ela é assim. O nome adotado para a profissão, tem um histórico 51


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que pode explicar como a jovem começou a sobreviver das noites curitibanas. Quando menina Kellin morava numa Casa de Apoio. Um dia, cansada e não acostumada com o lugar resolveu fugir. Kellin passou alguns anos numa Casa de Apoio, quatro anos. O melhor tempo de sua vida. Viveu tempo num abrigo para crianças abandonadas e sem família. Terminou parte dos estudos e resolveu sair do local. A então menina começou fazer programas para ganhar dinheiro. Muito rebelde e pensando que ninguém se importava com ela sempre soube que ninguém a levaria para alguma casa. Sempre achou que nunca teria um lar, uma família. E acertou até o momento. Não fazendo mais questão de ficar no abrigo fugiu. Ela não sabia o que a esperava lá fora. Quando a mãe da garota não quis mais a filha, procurou uma forma de abrir mão da sua guarda, ficou apenas com os filhos homens. A menina se revoltou, pegou o que era seu e foi morar com parentes. Também pobres eles acharam melhor a menina ir morar numa Casa de Apoio. Lá teria chance de ter comida na mesa, roupa limpa e quem sabe um dia uma família poderia se interessar pela menina. Por quatro anos ela ficou. Mas com o tempo sua rebeldia não mudou e um dia se sentindo acuada e com medo, depois de se envolver numa briga interna com crianças menores, resolveu fugir antes de completar a idade de permanência na instituição. Faltava um ano para completar dezoito quando teve a vontade de sair pro mundo. O Conselho Tutelar foi acionado e procurar a menina. Ela se escondeu de todos e ninguém mais então soube seu paradeiro. A jovem nunca mais procurou pela família. A recíproca foi igual, também não foi procurada por ninguém. Os dias na rua pesaram na consciência de Kellin. Arrependida de sair do abrigo, a idéia de voltar a atormentava por um tempo. Mesmo com a situação difícil ela não voltou. A rebeldia não dava espaço para o arrependimento falar mais alto. Queria arrumar trabalho, ganhar dinheiro, ser alguém. O plano não deu muito certo no início. Por dias e noites os bancos de praça eram sua companhia, se alimentava em albergues e instituições que distribuíam comida barata ou de graça. Período triste, onde o medo de ser morta na rua ou sofrer alguma violência a acompanha sempre. 52


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A noite quase chega e andando por aqui, a jovem dá alguns passos até uma loja da rua. Enquanto se debruça numa vitrine vendo um vestido de R$69,90 e desejando tê-lo, ela lamenta não ter tido uma oportunidade, um trabalho digno mas não se arrepende do que faz. __ Pago minhas conta e ninguém tem nada com isso. Não ajuda, não atrapalha. Das lembranças da rua que gosta de falar conta como encontrou seu primeiro namorado. Sentada num banco da Praça Eufrásio Corrêia não viu um rapaz sentar-se ao seu lado. Estava pensando longe. Pensando em comida. E quando se olharam, o mesmo sorriso tomou conta dos rostos sofridos. Conversaram e dez minutos depois já estavam aos beijos. Paixão violenta. Jefferson, esse era o nome do seu príncipe encantado. Não chegou de cavalo branco, mas era o seu príncipe. Um viciado em droga que lhe dava de comer quando tinha dinheiro das esmolas que arrecadava na praça. A paixão que queimava nas noites que passavam juntos foi trocada pela raiva que queimou o então coração apaixonado de Kellin. Numa das noites acabaram dormindo juntos. Era bonito, alto, forte e a protegia. Ficaram quase dois meses juntos. Um dia a proteção acabou. Depois de uma briga feia o príncipe estava muito drogado e bateu na garota. A paixão se foi junto com a moça que fugiu chorando. A única coisa boa que conseguiu naquele tempo partiu junto com os passos largos da menina que fugia com medo de novamente apanhar. Perambulando pelas ruas um dia encontrou a Madame e depois desse encontro seu rumo e trajetória foram modificados. Antes de viver no centro morava num bairro afastado mas, não diferente de hoje, sempre andava pelo centro. Não conseguia emprego e ficava na rua. Um dia foi abordada por uma mulher bem vestida que convidou a menina para trabalhar com ela. Entrou num carro meio velho, parecia um corcel, e foi pra casa da Madame. Era como essa mulher se chamada na boate. Ao descer viu que a casa se tratava de um bar, que não era bar. O local só abria a noite. 53


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A dona disse que tinha um serviço pra garota, que lá ficou. Kellin começou servindo mesas. Quando se deu conta de qual era o real emprego que teria que exercer viu que o cargo não se tratava de ser uma garçonete ou atendente de mesa. Ficou nervosa, nunca tinha feito programa antes e teve poucos homens, não tinha experiência. Ficou calada. Mesmo na situação que estava decidiu ficar e só não fugiu ou foi embora porque tinha se cansado de dormir na rua e enfrentar dias sem nada para se alimentar. Forçada a trabalhar como garota de programa em troca da comida e moradia oferecidas pela dona da boate, aceitou a oferta de quem lhe deu pão e cama. Como não era mais virgem não ficou com medo de passar noites com homens estranhos. Ela também era uma estranha para eles. A orientação que lhe deram era para embebedar os clientes, assim na hora do serviço seria rápido, pois os bêbados estariam cansados e não seria demorado. E bebendo também davam lucro. __ Cerveja em zona é caro. E quanto mais o cara consome mais a gente ganha. Lá tinha comissão disso. Jogada nessa vida ficou na boate por quase dois anos e depois veio pra centro. Tinha um pouco de dinheiro dos programas que fez e conseguir alugar um quarto. Mora numa pensão junto com uma colega que vem mais tarde pro trabalho. Ela nunca mais viu a Senhora e até tem saudades dela. Estendeulhe a mão. Antes de sair daquela boate arrumou briga com um cliente que não queria pagar pelo trabalho. E como o cliente tem sempre razão foi mandada embora do serviço. Mesmo assim a chefe lhe deu alguns trocados e ela veio morar no centro. Arrumou esse quarto pra ficar e fez amizades. Suas amigas também são concorrentes no trabalho. Elas se ajudam e se protegem. Sua renda melhorou desde que veio morar no centro e seus pagamentos aumentaram. Por ter mais movimento por essas bandas a clientela é maior e paga melhor. O preço do programa varia de acordo com o que o cliente quer. São certas definições de cardápio humano, misturas com serviços sexuais, que chegam a ser espantosas. Não tem nem no dicionário. 54


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__ Tem noite que tiro R$ 30, R$ 40, R$ 50, depende do cliente. E tem noite que não tiro nada. A concorrência tá grande. Não sou tão bonita como as outras particulares. As outras particulares que ela conta são meninas que atendem em domicílio e raramente vão para as ruas. São as garotas dos classificados, Vips. São fortes concorrentes da moça magra, de cabelos castanhos e com mechas loiras, que usa um batom cintilante que brilha no escuro. Chique esse batom dela. O horário de movimento aqui é depois das 22hs. Como falta algumas horas ainda, ela vem antes dar uma olhada nas vitrines e procurar por roupa e acessórios baratos. Na profissão que exerce quanto mais bonita e arrumada que as outras mais chances de atrair cliente e ganhar uns trocos no serviço. Antes de começar a trabalhar acende um cigarro que tira da bolsa onde guarda uma escova de cabelo, o batom cintilante, chicletes, carteira de cigarros, isqueiro e dois frascos de perfume. __ Por que dois frascos de perfume? __ Cliente gosta de mulher cheirosa. Tem concorrência aqui. Fuma sem parar. O cigarro acaba rápido para ela, logo acende outro enquanto observa o movimento na rua. Algumas pessoas olham torto pra moça, principalmente as mulheres mais velhas. É parecido como aquele olhar lançado por algumas senhoras carolas, que vivem nas igrejas, como de falassem “pecadora, vai pro inferno”, esses tipos de julgamento. As mais jovens olham e disfarçam. Mas o olhar das mais velhas é mortal. O ódio transparece num olhar que condena um ser humano pela aparência e profissão e que no fundo não sabe nada da vida da moça. Talvez a mini saia num frio desses chame a atenção ou a bota de cano alto com a meia preta ou o decote da blusa. Outras pessoas passam sem olhar. É uma prostituta assumida, se assume não nega sua vida. Torna-se mais uma daquelas que vendem o corpo numa rua qualquer. Encostada numa parede, em fachada de prédio ou numa esquina da vida onde muitas histórias são parecidas com a sua. Moça pobre sem trabalho que pela necessidade e falta de comida vende da própria carne para se alimentar e sobreviver. Usa roupas censuradas pelos olhares que atravessam 55


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a rua. Peças que não são aprovadas pela moda da moral e bons costumes. Fez desta sua profissão. Seus clientes a chamam de tudo: piranha, rameira, garota de programa, prostituta, puta. Alguns delicados. __ Uma vez o cara me levou pra um motel show de boa. Tinha tudo. Me tratou como princesa, uma dama. Quando algum cliente a chama de secretaria e até doutora do sexo ela se irrita. Tem vontade de ir embora mas fica pelo dinheiro. Cobrar moral não há como. Se acostumou a ser tratada como objeto descartável, de pouco uso e poucas vezes retornável à mesma pessoa. Sem direitos, sem respeito nem razão é só mais uma na calçada a olhar as vitrines chamativas e cheias de roupa bonita e ao mesmo tempo algum possível cliente para a noite. Algumas vezes já foi violentada contra a vontade. Espancada até sangrar uma noite de janeiro do ano passado, ela deu queixa na delegacia. O cliente que a espancou nunca foi intimidado pela polícia, sequer encontrado. E as queixas que apresentou foram ignoradas, mais um arquivo pra fazer volume da delegacia, na gaveta da indiferença. O cliente bateu na Kellin porque se recusou a pagar R$50 pelas horas que passaram juntos. Ele foi embora, ela pra hospital levada por uma colega da noite. Durante o boletim de ocorrência, o policial que a atendia deixava escapar um sorriso, parecendo que gostava daquela situação. Enquanto preenchia um papel com seus dados pessoais, quem passava por ela não dizia nada. Nem precisava, as palavras estavam nos olhos discriminadores de quem a via. __ Ele olhou pra mim como se eu tivesse divertindo ele. Fiquei com raiva, mas fiquei quieta. Se falo ainda vou presa. Esse foi mais um momento que a garota percebeu como seu mundo é triste. Sem valor nenhum, uma insignificante, um nada, um ninguém. Foi apenas mais uma mulher violentada como muitas ainda são, prostitutas ou não. Será que quem vive nesta circunstância sempre tem que experimentar os diversos gostos amargos que a vida tem? Se esta profissão existe, é porque há bastante procura. Não será a sociedade a mais culpada, a que mais censura? Cada decisão tem consequências antes e depois de serem tomadas. Ninguém sabe o que vem amanhã. 56


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__ Mas lá só tem fresca, não sirvo pra eles. Só sirvo pra outra coisa. Não sei fazer nada além disso. A moça não é uma pessoa rude, sem expectativa. Tem seus sonhos. Quer crescer na vida, ser tratada como gente. Está onde está porque se acostumou e no momento quer ficar assim mesmo. Se tivesse uma chance queria trabalhar no shopping e talvez ter um filho. Quem sabe se case, mas agora não quer saber de compromisso. Malmente se mantém. E filho não é bem vindo. Afirma que se protege e tenta não engravidar. Nunca ficou grávida e nem deseja. Pra sofrer no mundo basta ela. Quer ter uma criança pra cuidar, dar uma casa não um quarto apertado de pensão. Mais adiante para em outra vitrine. Admira um par de sandálias que é mais caro que o vestido preto de antes. A moça magra pensativa passa a mão no cabelo e desvia o olhar quando é chamada pela amiga que passa por ela e nos cumprimenta. __ Como é que foi ontem? __ Fraco. __ Vamos ver hoje né? __ É. Hoje rende não tá muito frio. __ To indo fazer a unha. __ Poderosa, responde para a amiga. __ Daqui a pouco a gente se vê. __ Tá ficando tarde. Perigoso pra moça ficar aqui, me avisa. Se a noite vai render não sabe. Vai que aparece um príncipe para a vida toda. Alguém que se sinta bem com ela, que a faça feliz. Enquanto ele não aparece pode surgir na noite um cliente por prazo determinado, de horas pagas com dinheiro. Outra coisa ela não aceita, mas presentes são bem vindos, principalmente perfume. Perto da esquina fico numa estação de ônibus e ela volta de onde paramos. Ela vai andando e se junta ao grupo de possíveis colegas numa quadra a frente. Antes de tomar seu rumo e ir ganhar a vida, me despeço e pego em sua mão. Ela se assusta. Mas um sorriso brota dos lábios vermelhos cintilantes e me estende a mão devagar. Acho que a moça não está acostumada com gentilezas. Vou embora e ela segue seu caminho. 57


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7. Incerteza

O sol da hora do almoço aquece o dia gelado e o vento cortante no sul do Paraná. Anda muito frio por essa região mesmo estando em setembro. O cheiro da comida quente num dia como este dá mais fome. Está quase na hora se servir o almoço para as crianças e adolescente. Eles estão voltando da aula com as suas caras de desconfiados e com a preguiça matinal de levantar pela manhã com um clima assim. Aos poucos vão entrando no grande refeitório. Deixam as mochilas num canto e vão lavar as mãos numa correria misturada com desejo de comer. Arroz, feijão, macarrão e hoje tem frango. No fim de semana alguns restaurantes de Rio Negro levam para o orfanato da cidade as sobras de carne, que fazem a festa da criançada e especialmente a festa do menino Renato, que adora frango. O garoto se serve com a mão esquerda e senta perto da responsável do lugar onde conversam baixinho. Num certo momento ele olha pra mim meio desconfiado, e faz uma cara de quem aprontou alguma coisa, com um riso discreto nos lábios. 59


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Terminando de almoçar, todos vão para o quarto trocar de roupa. Retornam para o pátio onde tem sol, mas ficam na sombra de um pinho sentados num banco. O sol queima e o vento frio corta o rosto. Renato veio morar aqui quando tinha onze anos. Hoje com dezesseis espera terminar os estudos. Está na oitava série e quer ir embora para Santa Catarina, morar em Florianópolis, na praia. __ Me falaram que lá é bonito e vi umas fotos. Queria morar lá. O garoto não tem uma pretensão ou já escolheu que profissão quer ter. Não sabe o que quer ser, nem sabe se terá muitas escolhas quando sair. Não sabe o dia de amanhã. Ninguém sabe. Ouvindo música no quarto que divide com mais seis meninos arruma a cama que deixou por fazer de manhã. De vez em quando a preguiça aparece por aqui e tem que fugir depressa. Aqui tem regras, tudo tem que ser organizado e zelado pelos moradores. Nada de bagunça. Quando algum deles tira alguma coisa fora do lugar depois de usá-la tem que devolver onde estava. O quarto é bem arrumado e ventilado. Tem beliches, uma mesa no canto e um grande armário coletivo. Cada criança tem seu espaço nele. Quando a porta do armário se abre mostra tudo que Renato tem na vida: peças de roupas, alguns calçados, e pregadas na porta do armário, fotografias dele e dos amigos da grande casa que mora. Somente isso. Aos onze anos Renato veio de uma Casa de Passagem de um município da região. Passado o tempo que ficou no lugar foi institucionalizado. Quando uma criança se enquadra nessa situação ela fica aos cuidados do Estado, que agora é seu genitor. O garoto morava num bairro podre e vivia mais nas ruas do que em casa. Não sabia ao certo o que a mãe fazia. __ Sempre que chegava gente na casa ela pedia pra eu sair. Passado um tempo a mãe do menino foi presa por tráfico de drogas e o menino foi para uma instituição temporária esperar o destino. Como a mãe do garoto já havia sido presa pela mesma situação tempos antes, dessa vez as coisas mudaram. Uma possível adoção afetiva, onde algum familiar pode ter interesse de ficar com a guarda da criança não aconteceu. Os parentes da mulher eram pobres e não 60


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fizeram questão de ter mais uma pessoa em suas casas. Não tinham condições. Ninguém quis ficar com ele. O garoto não tem notícias de sua mãe e também nunca recebeu visita de nenhum familiar. As únicas visitas por aqui são de uma assistente social e do psicólogo que aparecem de vez em quando olhar as crianças. Ele não se lembra de alguma família ter vindo aqui procurar por uma criança para levar embora. Talvez poucas ou nenhuma das crianças daqui estejam cadastradas no Cadastro Nacional de Adoção, aí os interessados não vêm mesmo. Antes das coisas mudarem ele se lembra das brincadeiras com os amigos da rua, a melhor lembrança que tem. Das corridas de obstáculos, onde colocavam latas de lixo e algum pneu emprestado sem prazo para devolução. Os obstáculos da rua eram colocados para melhorar o desempenho daqueles atletas. __ Até caco de vidro a gente colocava pra corrida ficar boa. Entre os momentos felizes enquanto morou no bairro, também se lembra de um amigo que brincava escondido com ele. A família do colega não gostava de ver os dois juntos Um dia não se viram mais. O amigo foi embora para outra cidade. No último dia que se encontraram o melhor amigo revelou que sua família não gostava da mãe do Renato porque era uma má pessoa, fazia coisa do mal. Sem entender direito ficou até bravo e quando soube que o amigo estava partindo para sempre, uma mistura de raiva e saudade o confundiu. Despediram-se e o amigo se foi. Era mais uma coisa boa que se afastou da vida do garoto. Algum tempo se passou e as brincadeiras de rua continuaram. Numa tarde que brincava com outros amigos, durante a corrida de obstáculos, Renato caiu e se cortou num caco de vidro. Por pouco não corta uma veia que fica atrás do joelho. Ganhou alguns pontos e quase não conseguia dobrar o joelho porque estava doendo muito. Por dias ficou longe das corridas até melhorar. O que ficou visível dessas brincadeiras é a enorme cicatriz que vai do joelho até perto da coxa, uns quinze cm e saudade desse tempo. Meses depois a mãe também partiu. __ Estava na rua quando ouvi o barulho da polícia. No momento que um carro branco chegou no bairro a polícia en61


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trou na casa do menino e ele estava brincando na rua. Alguns vizinhos gritavam com a mãe do garoto e faziam alvoroço. Quando a polícia invadiu a casa, um vizinho mostrou Renato com o dedo para um dos policiais que se aproximou e pediu que o menino o acompanhasse. Uma vizinha entrou na casa do garoto e pegou suas coisas e entregou para o menino numa sacola. Tudo que restava ou tudo que Renato sempre teve estava ali, dentro de uma sacola. A vida cabe numa sacola. Enquanto a mãe entrava na viatura um carro do Conselho Tutelar chegou para levar Renato embora. Como a casa era alugada, o dono deve ter vindo fechar. Se a casa fosse da família, quando o garoto fosse maior de idade seria dele. Nessas situações em que os pais de uma criança são presos, seus bens não podem ser vendidos porque também pertencem como herança do menor. Mas a casa também não era sua e se foi. __ Eles levaram minha mãe que nem viu que eu estava vendo tudo. E me levaram também. Foi a última vez que esteve no bairro. Ao descer do carro chegou numa Casa de Passagem onde ficou por um tempo até decidirem sua situação. Sem nenhum interessado para ficar com ele veio morar no orfanato. O convívio aqui é bom. Todos se respeitam e se entendem e estão no mesmo barco. Renato conversa com todos, tem boa convivência, mas fica no seu canto. É um dos mais velhos, parece responsável. Enquanto conversa comigo os menores ficam em volta do pé de pinho e começam a brincar de pega-pega. Fazem uma gritaria estridente que só diminui quando a responsável pelo lugar pede silêncio. Nos primeiros dias na casa nova o menino ganhou irmãos que nunca teve. As histórias de cada um são diferentes e a situação de abandono da grande família não muda tanto. __ Fiquei com medo daqui. Fiquei quieto. Não sabia o que iria acontecer. Com as poucas coisas que tinha foi chegando. Não era tão diferente do lugar que estava morando de passagem meses antes. A diferença é que lá algumas crianças voltavam com a família. Separar os filhos dos pais é a última coisa a se fazer quando todas as possibilidades são esgotadas pela justiça. Se a situação pode ser remediada e não venha causar riscos a crian62


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ça é possível fazer uma reintegração com a família. No caso de Renato não havia o que se fazer. A mãe não seria libertada tão cedo e como ninguém manifestou interesse de ficar com ele, ficou sozinho no mundo. Então veio morar aqui. Os irmãos que tem hoje também são passageiros. Poucos se foram. A instituição é recente, tem pouco tempo de trabalho. O menino viu poucos irem embora. As crianças que saíram ou foram transferidas para outras instituições ou completaram a maioridade. E também se foram da vida do jovem. Os que restam e os que vão chegar nesse abrigo vão ver Renato partir daqui a dois anos. O tempo que falta para sair num rumo desconhecido começa a esquentar a cabeça do menino, que vai fazendo planos quando o dia chegar. __ Eu quero ir pra Florianópolis. Lá vou fazer a vida. O pensamento dele e a vontade de seguir esse destino o levam para um momento num dia não tão distante de chegar, que pode ser vivido ou não. Quando sair não faz idéia sobre o que poderá acontecer e para onde. Ele gostaria muito de chegar nesse lugar pra “fazer a vida”, ter um futuro. Que futuro o espera? Enquanto o momento e a hora de partir não chegam o menino fica entretido com o que tem. Num canto do grande salão perto da cozinha existe uma prateleira com livros e jornais. A maior parte dos exemplares é doação e lá também ficam os livros usados na escola pelos moradores da casa. Livros infantis se misturam com os de matemática. Nessa matéria o jovem vai bem, português e caligrafia nem tanto. Peço para fazer uma conta de cabeça como se diz. Me fornece o resultado em seguida e a resposta está certa. __ To ligado, diz sorrindo. __ Eu notei. Você é bom de cabeça, falo para ele que fica faceiro. O problema é sua escrita. Tem uma letra indecifrável. Não foi um aluno exemplar por certo tempo. Nos primeiros dias de aula já morando aqui, nem chegava à escola e sempre arrumava um jeito de ficar do lado de fora. Se surpreendido por algum professor era mandado para a secretaria. Muitas 63


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vezes a Cida foi à escola amenizar o problema e levar bronca de algum professor. Era chamada porque um aluno não entrava na sala, se escondia e só queria brincar durante a aula. Não prestava atenção, não respondia nada. Poucas vezes foi chamada antes no local e com Renato quase toda semana estava lá. O garoto reprovou na quinta série e passou para a sétima por décimos. O menino não fazia questão de estudar ou respeitar a rotina do orfanato. Não arrumava a cama, não gostava de participar das atividades da instituição. Tomava banho se alguém ficasse parado na porta do banheiro insistindo pela higiene do garoto, nem o cabelo penteava. Tinha preguiça. A única coisa que gostava nessa fase de rebeldia ou birra de criança era dos passeios. A cada quinze dias as crianças saem dar uma volta na praça da cidade. Nos fundos tem um parquinho, aí sim Renato se encontrava. Com a liberdade da rua corria na praça, pulava os canteiros de flor próximos a igreja, brincava no balanço, na gangorra, em tudo. Quando era hora de voltar ficava triste e se irritava, tinha que ser trazido pelo braço ou não vinha. Talvez sentisse falta da rua onde morava, da liberdade em ficar na rua, dos amigos que tinha e se revoltava. Era saudade, não revolta. Com o tempo mudou. Com tantas broncas foi se transformando num menino quieto e responsável. É outro hoje. Até seu rendimento na escola melhorou. Faz as tarefas e agora a responsável pelas crianças não é mais chamada na escola por causa dele. Até ajuda os colegas nas contas de matemática. O problema é eles entenderem sua letra. Um dos meninos se aproxima. __ O Renato arruma o balança pra gente. __ Espera um pouco, já vou. Existe no abrigo um canto que se transformou num mini parque de diversões. Com a ajuda de um voluntário os brinquedos foram construídos e todos participaram da obra. Depois de alguns finais de semana o parque estava pronto para fazer a festa do seu público. Não é muito grande e tem três balanços, um que vive com o banco caindo, gangorra e até uma roda. Engraçado. 64


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A roda lembra Roda dos Enjeitados, uma construção de séculos passados onde crianças não desejadas por diversas situações eram deixadas nessa invenção. Havia um espaço na frente que quando se coloca um bebê após puxar uma espécie de campainha, alguém do lado de dentro girava a roda, trazendo mais uma criança para dentro do lugar. Naquele tempo algumas crianças eram escolhidas e levadas embora. Geralmente os internos que mais se pareciam ou tinham alguma semelhança com um integrante da família interessada eram levados. Não diferente de hoje. Parece que a construção mudou de nome, pois existem muitas rodas por aí chamadas orfanatos, casas de passagem, abrigos. Tem coisas que não mudam apenas se disfarçam. Renato talvez chegue até Santa Catarina quando sair daqui. Esse destino não é tão longe do lugar que mora. Quem sabe o menino moreno de olhos castanhos escuros consiga “fazer a vida”. Espero que tenha sorte e que não vá morar ou se perder numa rua qualquer.

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8. A situação de quem espera uma família

Muitas pessoas questionam sobre o processo da adoção, como ele funciona, quanto tempo demora. Dentre os muitos mitos e lendas sobre a adoção, o promotor da Vara de Infância e Juventude Felipe Lamarão Martins esclarece que o processo de adoção representa ser um dos maiores e mais temidos entre modelos de ações jurídicas existentes no país. Fatores determinam esse processo entre eles burocracia, habilitação, fila e demora. Do fator burocracia, no mundo inteiro a adoção depende da apresentação de uma série de documentos e não seria diferente aqui no Brasil. A obrigação do juiz, promotor, psicólogos e assistentes sociais é com o bem-estar das crianças e, por isso, devem fazer o possível para ter certeza de que a pessoa que se propõe a adotar é, de fato, capaz de dar ao adotado tudo o que ele precisa para ser uma criança feliz e bem cuidada. A lista de documentos exigida varia de comarca para comarca mas inclui, em geral, cópia de RG, CPF, comprovante de residência, comprovante de renda, atestado de saúde médica e sanidade mental e fotos 67


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da família e da residência. Algumas comarcas também pedem declarações de idoneidade, que podem ser feitas por amigos do adotante. É menos do que qualquer imobiliária do Paraná pede a um candidato a locatário. Na Vara da Infância e Juventude é realizado o trabalho com os pretendentes para adotar e a criança a ser adotada. São feitas as devidas avaliações sociais e psicológicas para subsidiar a decisão do Juiz e os adotantes têm que passar por grupos de discussão antes de serem habilitados para adoção. Para ficar habilitado e se tornar candidato a adotante não é preciso ter advogado para o processo de adoção, que é muito simples. Com a papelada pronta, o adotante dá entrada no pedido de habilitação no Cadastro de Pretendentes à Adoção. O procedimento deve ser feito no Fórum competente, de acordo com o endereço do adotante. Desse ponto em diante será marcada uma entrevista com a uma assistente social e a psicóloga designadas pela Vara da Infância e da Juventude. Em geral a entrevistada é marcada num tempo razoável, no máximo alguns meses depois da entrada do pedido. Em algumas comarcas, depois da entrevista, a assistente social agenda também uma visita à residência do adotante. Passadas estas fases e com parecer positivo dessa equipe técnica, o adotante está habilitado, apto para adotar. O mito de que a adoção demora só existe, na verdade, por causa da fila. A habilitação, em si, pode demorar tão pouco quanto uma semana. Em algumas comarcas do interior, comarcas pequenas e informatizadas, essa etapa costuma demorar no máximo alguns meses. Depois de habilitado, contudo, o adotante entra na “fila”. Isso significa que ele é incluído no Cadastro de Pretendentes à Adoção. Há outra fila importante: a das crianças disponíveis para adoção que são aquelas que, além de já se encontrarem sob a tutela do Estado, em geral em abrigos, já estão com processo de Destituição do Poder Familiar (DPF) pelo menos iniciado. Os profissionais da Vara da Infância e Juventude cruzam as informações das duas filas e a mágica acontece. Deveria acontecer. Mas se tudo é assim tão simples, por que a demora? Bem, como se imagina, o problema é que as duas filas acima não andam porque elas 68


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simplesmente não batem. Enquanto a maioria esmagadora da fila de adotantes busca recém-nascidas, meninas e brancas, a fila de adotáveis é composta na sua maioria por crianças de mais de três anos de idade, negras e na maioria meninos, já que as meninas são mais adotadas. Outro problema é que há muitos grupos de irmãos disponíveis e o ideal é não separá-los. Como 99% dos habilitados não têm disponibilidade de adotar irmãos, as filas não andam. O processo de adoção não é nenhum bicho-papão. É simples, barato e relativamente rápido, se comparado com qualquer outro processo no Brasil. Se o perfil de criança que o interessado em adotar busca não é o padrão, ou seja, se está interessado em adoção tardia, não tem exigência de raça, aceita grupos de irmãos, aceita doenças tratáveis (hiperatividade, dificuldade de fala tratável com fonoaudiologia, etc.), tudo isso vai impactar no tempo que o processo vai demorar. Há casos que se encerram em poucas semanas ou meses. Mas como as duas filas não andam juntas, o envelhecimento de crianças e adolescentes em Casas de Apoio é o resultado da não-aceitação de perfis opostos ao perfil escolhido por quem deseja adotar. As motivações que levam a escolha de determinado perfil variam. De acordo com a psicóloga Cintia Liana, especialista em psicologia conjugal e familiar, o perfil das pessoas que querem adotar crianças é bem amplo. É possível dizer que a maioria que adota, entrando com o pedido de habilitação, é composta de casais que têm entre trinta e quarenta e cinco anos de idade, são pardos, com grau de instrução médio e superior completo ou incompleto. Para adoções onde as pessoas querem legitimar uma situação de adoção afetiva já existente há anos, o perfil dos candidatos é composto de casais e de pessoas solteiras, negras, mulatas e pardas, sobretudo mulheres solteiras que criam um filho que lhe foi “doado”. Contrapondo o perfil do adotante com o principal perfil das crianças a serem adotadas nascem as diferenças e motivos para a crianças permanecer por mais tempo em Casas de Apoio. A grande procura é para crianças de até um ano, mas se encontram dificilmente crianças desta idade para adoção. Hoje em dia muitas pessoas adotam crianças maiores de três anos, pardas, de ambos os sexos. Mas se a criança tem 69


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irmãos, poucos matem o interesse, porque além da criança encontrada é preciso adotar seus irmãos. Um exemplo na hora de escolher quem adotar é visto em Salvador, onde a maioria das crianças é parda, mulata e negra, mas ainda as crianças de cor de pele mais claras são mais aceitas, porque têm um tom de pele mais parecido com o dos adotantes, que querem que essa diferença não seja tão marcante entre eles, para que a adoção não se torne tão evidente aos olhos de todos, e que a revelação do vínculo seja uma opção e não uma declaração rotineira. A psicóloga entende que os principais motivos que levam à adoção para os adotantes é o desejo de se tornarem pais, somente, e isso acontece naturalmente e plenamente. Para as crianças, o desejo e a necessidade existencial de terem uma família, de terem amparo, educação e, sobretudo, amor. Há um número de pais pretendentes para adotar bem maior do que o número de crianças para adoção. Na visão da psicóloga isso acontece porque os adotantes querem adotar crianças diferentes daquelas que estão aptas e disponíveis para serem adotadas, a maioria têm mais de oito anos e uma parte delas tem irmão(s) ou algum problema de saúde, que também afasta o interesse da família. Nesse caso aquela história que quer adotar um filho, onde está o carinho pela criança senão o interesse que a criança seja de um jeito que não existe? Quem quer adotar quer um filho, não uma mercadoria, indaga. O que leva uma pessoa a adotar é o desejo de ter um filho, de amar e ser amado. Existem motivos que levam uma pessoa a optar por ter um filho adotivo, como infertilidade, sonho movido por motivos altruístas ou uma circunstância que trouxe a criança para a convivência. Quem chegou a ter esse desejo entende e sente que ao adotar se pode realizar a maternidade e paternidade em toda a sua plenitude, a criança será vista e sentida como filha, ela não será olhada como filho gerado por outro, ela será amada como gerada daquele amor construído diariamente, as particularidades advindas da realidade adotiva farão parte, mas não será o centro das questões, o amor será o essencial. Ainda há muitas barreiras psicológicas e sociais em relação a adoção mas ressalta, com entusiasmo, que foi conquistado muito espaço 70


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nas discussões, na mídia, informações e centros e ONGs que apóiam a causa. Assim como o espaço social com o fortalecimento de instituições, grupos de apoio e encontros realizados para discussões, criação de leis e incentivos, e não irá parar por aqui. Cada vez mais as pessoas verão e ouvirão assuntos relacionados à adoção, não só porque ela é necessária para a sociedade, mas porque se evita de jogar crianças e adolescentes na rua quando estes terminam sua estadia em Casas de Apoio, Casas Lares e abrigos. E com a criação do Cadastro Nacional de Adoção, as dificuldades de encontro entre adotantes e adotados vai diminuir. O Cadastro Nacional de Adoção (CNA) foi criado em abril de 2008. Mas essa ferramenta que deveria agilizar os processos de adoção no país, até o momento apenas 425 crianças em todo o território nacional ganharam uma família por meio do sistema. O número, que corresponde, em média, a uma adoção a cada três dias, mostra que o cadastro ainda não cumpriu a promessa de promover adoções no país. O valor não representa o total de novas famílias porque a ferramenta ainda não é utilizada plenamente pelos juízes – o que deveria ser obrigatório – e ainda ocorrem procedimentos fora do CNA. Além disso, 44% das crianças inscritas desde 2008 deixaram o cadastro sem conseguir uma família. Envelheceram na fila. Mesmo com o esforço do Conselho Nacional de Justiça (CJN), o cadastro ainda não conseguiu reunir todas as crianças aptas à adoção no país. Há estados, como Amapá e Piauí, que não registrou nenhum menino ou menina no programa. Outros, como Acre, Tocantins e Roraima, têm menos de dez inscritos. Em Curitiba, por exemplo, até maio desse ano há o registro de apenas 16 crianças no sistema, mas cerca de mil vivem nos abrigos da capital. Só está cadastrado quem já tem a situação jurídica definida, ou seja, quando o poder familiar já foi destituído e os pais biológicos não são mais responsáveis legalmente pelos filhos. Essa situação mostra, na prática, que o Judiciário ainda demora para usar o programa. Segundo a nova Lei de Adoção, a utilização de cadastros nacionais e estaduais é obrigatória e o mesmo dizem ser resoluções do CNJ. Mas o baixo número de crianças inscritas, 4.427, mos71


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tra que o CNA ainda não emplacou nas comarcas brasileiras. Além disso, há o problema da superlotação dos abrigos e falta da destituição do poder familiar. É possível que as 425 adoções realizadas por meio do sistema tenham ocorrido envolvendo pessoas de estados ou municípios diferentes, deixando os casos de pretendentes e crianças da mesma comarca fora das estatísticas. Em Curitiba, por exemplo, a prioridade é encaminhar as crianças para famílias que moram na cidade e elas acabam não entrando no cadastro. O dado preocupante é que, das 8.598 crianças e adolescentes que já passaram pelo CNA, 3.784, cerca de 44%, deixaram o cadastro porque chegaram à maioridade sem encontrar uma família. Esse número representa 86% do total de cadastradas hoje, que é de 4,4 mil. Além dos 425 meninos e meninas já adotados, há 196 casos ainda em processo. Na avaliação do juiz auxiliar da corregedoria do CNJ, Nicolau Lupianhes Neto, o número de adoções pelo CNA não é baixo quando se leva em conta as peculiaridades de cada estado. Para ele o cadastro demandou um grande trabalho inicial que começa a mostrar os frutos agora, afirma o juiz, que considera o CNA uma ferramenta importante para quem trabalha na área da infância e juventude por traçar um panorama sobre os garotos e garotas e possibilitar a criação de novas políticas públicas. Apesar da obrigatoriedade em se cadastrar os pretendentes e as crianças disponíveis para adoção, o juiz admite que isso ainda não acontece em todo o país e talvez isso ocorra ainda por uma falta de cultura de utilização dessa ferramenta. Ele acredita que a tendência é o número de adoções realizadas pelo cadastro é aumentar. Mas os dados se confrontam com essa idéia. O promotor de Vara de Infância e Juventude Felipe Lamarão Martins afirma que o cadastro foi um avanço por introduzir uma uniformização. O cadastro conseguiu uniformizar o procedimento em todo o país, e para isso alguém teve de fazer a lição de casa. Hoje a pessoa está habilitada em todo o território nacional e isso é positivo porque a legislação é uma só. O promotor questiona, no entanto, o fato de 72


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o CNJ ter decidido inserir no CNA apenas quem já teve o poder familiar destituído. Existe uma batalha judicial para que também, ao menos, aquelas crianças que já têm uma ação proposta de destituição de poder pátrio, em no início do processo também sejam incluídas porque se ganharia tempo com essa inserção no sistema. Ele considera positivo o número de 425 adoções desde a criação do cadastro. Também lembra que o CNA é um banco de dados que precisa ser alimentado constantemente, o que exige pessoas comprometidas, já que o cadastro é recente e que alguns estados ainda estão se adaptando. Só em Curitiba, perto de mil crianças vivem em abrigos à espera de uma família, mas até a metade desse ano, apenas 16 estavam inscritas no Cadastro Nacional de Adoção. O ritmo de adoções teve uma queda entre 2009 e 2010, devido a problemas burocráticos do Tribunal de Justiça, e passou de 160, em 2010, para 123 no ano passado. Apesar disso, a capital manteve uma média de cerca de 150 adoções anuais. Agora a juíza Maria Lúcia de Paula Espíndola e a equipe técnica da 2.ª Vara da Infância, Juventude e Adoção se prepararam para tentar colocar os processos em dia. Um mutirão foi realizado para rever processos antigos e restaram 362. O procedimento adotado na instituição é oferecer as crianças em situação de adoção, primeiro para os pretendentes da capital. Somente quando o garoto ou garota não se encaixa no perfil requerido por nenhum pretendente é feito o cadastro no CNA. O objetivo é possibilitar que o adotado permaneça no município de origem. Para a juíza a nova lei de adoção impactou na destituição do poder familiar, já que agora, além de procurar os pais, a Justiça deve questionar se a família extensa, como tios e avós, quer cuidar das crianças. Além de ter dado mais transparência ao processo de adoção, o Cadastro Nacional de Adoção (CNA) mostrou outro problema sobre a infância em situação de vulnerabilidade: o grande número de crianças esquecidas nos abrigos do país. Até hoje não existe um levantamento confiável sobre este dado, mas estimativas apontam que existem cerca de 80 mil meninos e meninas vivendo em abrigos. Eles acabam ficando em um limbo legal, já que não podem viver com a família biológica nem em uma família adotiva. 73


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O abrigamento deveria ser uma medida excepcional, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, mas pesquisas mostram que muitas vezes isso ocorre por causa da pobreza dos pais. Os responsáveis por essa medida são, na maior parte dos casos, os conselheiros tutelares, mas eles devem sempre contar com o aval do Judiciário, explica a assistente social Jociana Campanholo. Esse “esquecimento” das crianças nos abrigos fez com que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criasse um segundo cadastro nacional, direcionado a identificar esses meninos e meninas, mas ele ainda foi totalmente implementado. Esse fator também contribui para o baixo número de garotos e garotas inscritos no CNA, já que as crianças continuam nos abrigos, mas o poder familiar dos pais não é destituído. A assistente social afirma que a destituição do poder familiar também é uma decisão difícil para os magistrados, já que a criança perderá completamente o vínculo com os pais biológicos e haverá uma averbação na certidão de nascimento explicando a destituição. Quando há violência o processo é mais fácil, mas muitas vezes a família está envolta em problemas como uso de drogas e álcool e não necessariamente abandonou os filhos. Cortar em definitivo esses vínculos é algo que pode definir a vida dos garotos e garotas, já que a chance para os mais velhos de encontrar uma nova família é baixa, explica. O Cadastro Nacional de Adoção (CNA) ajuda a mostrar estatisticamente como o brasileiro é preconceituoso na hora de adotar. O perfil requerido pelos pretendentes mostra um descompasso em relação aos garotos e garotas disponíveis. Há exigência por crianças pequenas, brancas e sem irmãos, mas no CNA estão disponíveis crianças pardas ou negras e com irmãos.

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9. Como será o amanhã

Como será amanhã? Responda quem puder O que irá me acontecer? O meu destino será Como Deus quiser Como será?... Composição: João Sérgio

A música “O Amanhã”, interpretada pela cantora Simone, é a duvida que todos os mortais têm. Como será o amanhã? O que vai acontecer comigo? Meu destino será como Deus quiser? Como será? Nas situações dos personagens desse livro a dúvida, a incerteza e o medo do destino permanecem como um ponto de interrogação diário na vida dessas pessoas. Os personagens até aqui, na sua maioria, podem ter final feliz como nas histórias simbólicas. Um anjo da guarda entra na vida do vendedor de sonhos Marcos, que encontra abrigo, emprego e até um amor. Amanda, com seu estojo de maquiagem inseparável e seu irmão, tem uma nova chance de encontrar uma família graças ao interesse de um familiar. Talvez se torne cabeleireira quando crescer ou pode escolher outra profissão. O menino da camisa amarela pode se tornar engenheiro, desde que Ricardo consiga emprego e lugar pra morar. Quem sabe uma família se interesse por ele, pois tem três anos ainda para esperar. O futuro de João Gabriel tem tudo pra dar certo agora e poderá ser um professor. 75


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Kellin talvez consiga um dia trabalhar num shopping, se alguém lhe der oportunidade. Renato não sabe o que pretende ser ou o que vai enfrentar quando sair do orfanato. Só quer “fazer a vida” em Florianópolis. Profissões simples e de fácil acesso. Fácil para quem tem estrutura, e que se torna quase inviável para quem não tem ninguém e nem apoio. Desfazer sonhos é matar uma esperança. A intenção desse livro que mescla depoimentos reais em forma de perfis com dados da realidade de crianças e adolescentes que vivem em muitos abrigos do país é mostrar que o interesse pela vida não se perde dentro das paredes de uma dessas instituições. Existe vida lá dentro que quer vida lá fora. Os capítulos que descrevem a realidade de seis personagens com seus sonhos, história e o que desejam do futuro, que passaram parte de suas vidas, ainda permanecem ou já saíram das Casas de Apoio e abrigos, não são tão distantes dos sonhos de pessoas que hoje moram na rua. Por falta de oportunidades e pessoas em suas vidas, o caminho de pedra toma o caminho idealizado e sonhado quando criança. Ao saírem para viver fora dessas instituições ficam perdidos, sem rumo. E como fica o rumo de Lucas? Lucas. Difícil falar com esse moço. Percorrer as ruas do centro de Curitiba, para alguém que vive no interior, andar por aqui é quase uma maratona. Chego à esquina, pego a direita, ando três quadras, paro no sinaleiro, outro sinaleiro, pardal então... Coitado de quem tem carro. E quem está à pé como eu, se livra disso pelo menos mas o caminho é parecido. Mas tem as placas no meio de tanta poluição visual. É só olhar o nome das ruas e fica mais fácil. Porque pedir informação para esse povo curitibano fechado é meio complicado às vezes. E onde está o Lucas? Uma pessoa me informou que durante o dia ele anda pelo centro. O rapaz também aproveita a caminhada e vai até o Jardim Botânico. Quando a noite chega vai dormir num abrigo mantido pela prefeitura. Nesse lugar não o encontrei. No centro sim. Lucas tem dezoito anos. Completou agora em maio. Não ganhou nenhum dos presentes de aniversário que desejava. Até agora nenhum apareceu. Queria um trabalho que lhe dê condições para alugar um quarto num albergue ou numa pensão por aí. E queria um lugar, um quarto em algum canto da cidade. Ganhou a rua de presente. 76


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Ele não tem família e faz parte dos 44% de jovens que envelhecem nos abrigos e orfanatos do país. A maioria vai para as ruas ou se estabelece nos bairros distantes dos grandes centros do Brasil ou nas periferias. São atraídos pela “vida fácil” que as drogas podem oferecer. É uma tentação não entrar nesse mundo. Os poucos que têm sorte são ajudados por pessoas interessadas pela vida alheia. As ações que existem para inserir pessoas na situação de Lucas no mercado de trabalho são poucas, salvo as ações promovidas por algumas instituições religiosas e filantrópicas espalhadas pelo país. É difícil para os jovens que, ao sair da tutela do Estado que os abriga, tenham emprego ou moradia assegurados. Desde que saiu de um abrigo de Curitiba há poucos meses o jovem não teve muita sorte. Durante o dia ele anda pelas ruas a procura de trabalho. Fica entretido olhando os anúncios pregados em postes, paredes e muros da cidade. O que conseguiu até o momento foi trabalhar por uns dias numa plantação de morango em Campo Magro, que fica na região metropolitana de Curitiba. O serviço que arrumou era ajudante de carga e descarga de caminhão. Numa tarde que já estava voltando ao abrigo ele viu, na parede de um bar que fica no caminho, um cartaz onde se oferecia empregos sem experiência. Os interessados tinham que deixar o contato no bar que o responsável pela contratação só viria à noite no local. O rapaz, sem telefone e nenhuma referência para deixar, disse para o senhor que estava no balcão que queria o emprego. __ Deixa teu contato aqui que ele te procura, respondeu o homem. __ Eu não tenho telefone. __ Então venha no domingo de tarde aqui que o chefe da obra vem jogar sinuca e sempre está por aqui. __ Eu venho sim. E Lucas foi. O pagamento era calculado por dia e tinha almoço. O serviço foi durante o mês de agosto, um bico como dizem. Bico que renovou as esperanças do rapaz. Quando terminava o serviço, quase anoitecendo, uma Kombi cheia de gente o trazia com seus companheiros para a capital. __ Na verdade ajudava carregar caixas de morango e também ajudava na colheita quando apurava. 77


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Com o dinheiro que ganhou nesse trabalho conseguiu comprar comida, poucas peças de roupa, chinelo e um tênis. O calçado que tinha estava estragado, partido em baixo e quando chovia era a mesma coisa que se estivesse andando descalço na rua molhada. Mas o serviço acabou e teve que voltar. Pelo menos desde que saiu do orfanato dorme num abrigo, onde divide o grande quarto com bêbados, alguns drogados e moradores de rua. Lá tem comida de noite e cobertor. Não passou tanto frio no inverno, pensou que fosse pior. Pela manhã tem que sair. Quando a noite vai surgindo ele volta. Desempregado e sem lar. Por mais difícil de acreditar tem gente que não desiste mesmo quando o mundo é contra suas vontades. Que mundo desgraçado é esse! Lucas não gosta do seu passado. Se questionado sobre a família ou parentes fica em silêncio. As palavras não ditas devem doer menos e não perturbam os pensamentos do rapaz. Não mexer na ferida é mais sensato, precisa cicatrizá-la. Não insisto nas perguntas sobre alguma lembrança da família porque a tristeza transpira no rosto moreno coberto pela sombra de um boné vermelho sem marca. As poucas coisas que relata são do tempo que morou num abrigo. Tinha teto e pão. Diferente da maioria dos meninos, não gosta de futebol. Gostava de jogar vôlei. Por ser mais alto que seus colegas, ele tinha vantagem na partida e quase não perdia as disputas. O rapaz magro e alto que usa boné guardava dentro de uma lata, que sempre estava pela metade, bolas de gude. A lata nunca ficava cheia porque o rapaz trocava ou dava de presente para as crianças menores algumas bolas. Quando saiu do abrigo dividiu a lata entre dois colegas de quarto. Só pegou as poucas coisas que tinha. Enquanto percorre a cidade durante o dia em busca de trabalho não come nada, ele não tem dinheiro pra comprar comida. São poucas as ocasiões que tem um trocado no bolso da calça jeans velha. As horas não passam e quando a noite chega é um alívio, pois sabe que pode comer alguma coisa. Assim que saiu de uma Casa de Acolhimento sabia que os lugares que poderia dormir eram na rua ou num desses abrigos onde a prefeitura recolhe pessoas abandonadas. 78


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Os amigos que fez no seu antigo lar ficaram e os que saíram antes dele nunca mais encontrou ou soube de alguma notícia. No dia que foi dormir pela primeira vez onde dorme até hoje pensou que encontraria algum deles por lá. Geralmente é pra esses lugares que alguns vão. Mas a maioria cansada de tanta espera por família, emprego, casa, desanima e busca alternativas de vida, que nem sempre é a melhor escolha e torna-se a única. Não basta a muralha da indiferença e do abandono, agora um caminho de pedra também aparece. É assim para a maioria que não teve uma chance. Sem ninguém pra conversar nas suas andanças pela cidade, esses dias fez amizade enquanto estava procurando emprego. Depois de percorrer parte da região central de Curitiba, o rapaz sentou-se num banco ao lado de um senhor para descansar. O homem sentado ao lado, já aposentado, estava com uma sacola de panfletos que distribui pelas ruas do centro durante as tardes. Esse serviço lhe dá uns trocos que complementa a renda da família. O rapaz ficou interessado no trabalho. Fazendo perguntas para o velho e conversando sobre sua dificuldade de arrumar trabalho, o senhor aconselhou Lucas para que ele procurasse às lojas e pedisse emprego. Tem comércios que pagam diárias para pessoas fazer panfletagem na rua. Pagam em dinheiro ao fim do expediente. __ Tem dia que tira R$20 e se fizer pra duas lojas dá mais dinheiro, disse o velho. __ É um dinheirão, respondeu o jovem interessado. No mesmo dia que conversou com aquele senhor que nem perguntou o nome, Lucas foi oferecer seus serviços nas lojas de uma rua onde a maior parte pertence ao ramo de móveis e eletrodomésticos. Vislumbrado com tanta gente trabalhando dentro delas pensou que seria seu dia de sorte. Mas não era seu dia, nem os dias seguintes. O garoto foi se aborrecendo. Tentou o mesmo serviço nas lojas de roupas. Nos lugares que tentou quase não fazem panfletagem. Perdeu seu tempo. A vida não é bela, é triste. Mas ainda há esperança. 79


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__ Daqui uns dias vou fazer um bico, numa obra. Passei lá na rua do bar e vi que tem mais serviço. O cara da Kombi mandou me avisar. Aí fico sossegado. O sossego não tem data certa pra terminar. Dessa vez não é plantação de morangos. O trabalho é na construção de um barracão e não faz idéia de quanto tempo é a duração da obra. Mas essas obras às vezes demoram. As pessoas ficam bravas com o pessoal que trabalha em obra. Reclamam que a construção está atrasada, que está saindo caro, sempre reclamam. Aquela situação que muitas pessoas já passaram por um dia. Nesse caso não tem problema se obra demorar. Quanto mais demorar, o Lucas fica sossegado por mais tempo. Ele está precisando desse sossego. Enquanto o novo “bico” não acontece ele vai vivendo por aí. Dormindo à noite em alguma casa de assistência social, e durante o dia caminhando pelas ruas sem rumo. Bebendo água e se banhando em alguma fonte ou bebedouro de algum canto da cidade. Como será seu amanhã nem ele sabe.

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Se a palavra adoção estivesse sendo praticada no seu conceito em nosso país, talvez esse livro não fosse escrito. O ato de adotar vai além de escolher uma criança, é escolher um filho. É mais uma pessoa que entra na família, é o nascimento de alguém na casa.

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