O menino no parque

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O menino no parque

Um ano fatal


agosto 2018


O primeiro dia

I

13 de setembro

João Paulo Correia Araújo era um jovem de quase treze anos de idade. Frequentava uma Escola Básica que pertencia a um Mega Agrupamento do norte do país.

A sua era uma turma de vinte e oito alunos à qual tinha sido dada a designação de 7H.

Vinha de um Colégio privado de orientação católica que tinha frequentado desde o primeiro até ao sexto ano.

Transferiu-se

para

aquela

nova

escola

por

opção

descuidada dos pais. O Doutor Rogério Araújo e a Doutora Clementina Correia tinham deixado passar a data limite para a renovação de matrícula no colégio e o filho teve de alterar o seu ambiente escolar.

O João Paulo ficou bastante triste com o esquecimento dos pais,

mas

não

teve

oportunidade

de

manifestar

o

seu

descontentamento. Não lhe davam nunca a possibilidade de exprimir os seus desejos, pois era ainda muito novo para isso.

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Tentou convencer-se que talvez até fosse melhor mudar de ambiente e de colegas. Queria também saber o que era estudar numa escola pública e confirmar aquilo que lhe diziam sobre esses espaços.

Já sabia o que era entrar no colégio às sete horas da manhã e só sair quando o iam buscar no final do dia; sempre que as aulas terminavam dispunha de uma sala de estudo que esperava pelos que a quisessem usar, ou de uma sala de jogos para os menos estudiosos.

Sabia o que era estar numa sala com mais dezanove meninos e meninas, com armários individuais para guardar os materiais escolares necessários às aprendizagens semanais.

Sabia o que era ser acompanhado proximamente por professores auxiliares sempre que alguma dúvida surgia.

Sabia o que era almoçar todos os dias sempre à mesma hora e ter aulas sempre na mesma sala.

Estava, agora, numa escola com turmas de trinta alunos, ou mais, a saltar de sala em sala ao longo do dia.

Havia almoços consumidos à hora que se podia ou que se trocavam por uma saída rápida ao café próximo para uma sandes, um sumo e umas quantas gomas.

O substituído

acompanhamento pela

dos

permanência

dos

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professores próprios

auxiliares

era

professores

das


disciplinas que se ofereciam, fora de horas, para estarem com os meninos com maiores dificuldades.

Não tinha um local na escola onde guardar os seus livros, pelo que tinha, todos os dias, de transportar às costas, na sua mochila Adidas, os manuais e restante material para as aulas registadas no horário diário.

Sempre fora um menino muito aplicado nas aulas. Nunca tinha sofrido o desgosto de ver, nos seus resultados, notas inferiores a quatro; tinha mesmo sido, por três vezes, proposto para o Quadro de Excelência do Colégio.

Os professores sempre o trataram com o respeito que ele justificava e que devolvia da mesma forma. Era muito discreto, calado, recatado e chamava a atenção pelos seus olhos azul-céu sempre brilhantes.

Para além dos resultados escolares e da cor dos seus olhos, nada mais o distinguia dos restantes alunos; passava ao lado de qualquer

problema,

que

surgia

pontualmente,

e

que

era

rapidamente resolvido pelo Senhor Reitor com uma visita ao seu Gabinete. Não sabia mesmo nem a cor das paredes desse terrível espaço diretivo.

Chegou à sua nova escola no dia da apresentação aos pais, encarregados de educação e alunos.

Foi o único aluno da turma que surgiu sozinho nesse momento importante da sua vida escolar.

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Todos os meninos e meninas do 7H foram acompanhados pelo pai, pela mãe e alguns até por ambos.

Juntou-se, de imediato, ao Carlos Manuel que morava na sua rua, a umas casas de distância. Conhecia-o por o ter visto, da sua janela, a brincar no parque em frente a sua casa, com os amigos.

- Tu moras à minha beira! - afirmou o João Paulo com um brilho de esperança nos olhos. - Não sei. Onde moras? - questionou o Carlos. - Eu moro na Rua das Trigueiras. - Então é verdade, porque eu também lá moro. - confirmou o Carlos, oferecendo-lhe uma mão estendida em cumprimento. - Como te chamas? - indagou o João. - Eu sou o Carlos. E tu? - Eu sou o João Paulo Araújo. - Então podes ser o Joca! - observou o Carlos, com a certeza que a designação os aproximaria um pouco mais. - Não! Sou o João Paulo. - corrigiu, indignado. - Eu sou o Manias. - mostrava o seu orgulho no epíteto que lhe tinha sido oferecido no quinto ano.

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- Manias? Porquê? - o João não entendia a necessidade de algumas pessoas alterarem o seu próprio nome. Considerava, essa alteração, uma falta de respeito para com os pais. - É uma longa história. Depois conto-ta. - concluiu o Carlos, sabendo que nunca contaria a sua história a um estranho.

No final deste primeiro intervalo, depois de os pais dos outros colegas se terem ido embora, estava na hora de conhecer a Diretora de Turma.

A professora Carla Penha era uma senhora já com alguma idade, alta, mas que chamava a atenção dos alunos pelas roupas escuras que sempre trazia.

- Eu sou a professora Carla Penha. Sou a vossa Diretora de Turma e professora de Física e Química. - confiante. - Onde mora, professora? - interrompeu o Rafa, marcando a sua posição na hierarquia da turma. - Eu sou desta cidade. Nasci aqui e sempre cá fiquei. Se calhar até já ouviram falar de mim ou me viram passar na rua. - declarou a professora passando os seus olhos pela totalidade dos alunos, esperando uma qualquer reação.

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- A Física e a Química são muito difíceis, professora? questionou a Margarida no fundo da sala. - Se estudarem não é nada difícil e até podem ter bons resultados. - Prefere caderno ou capa? - preocupou-se o Blogues, certo que iria fazer-se acompanhar, diariamente, do seu monte de folhas avulsas. - Para as aulas precisam de um caderno de linhas, do manual de Física e Química, do caderno de atividades e de material para escrever. - mostrando conhecimento e necessidade de organização, a professora respondia o mesmo, todos os anos, àquela pergunta comum. - E para os outros professores, o que é preciso? - pergunta feita por um aluno que queria, à imagem do Rafa, marcar a sua posição e dar sinal de vida, o José Maria. - Isso, cada um vai dizer na primeira aula que tiverem. Vão ter de esperar. - informou a Diretora de Turma, sorridente.

Cada um dos alunos apresentou-se à Diretora de Turma e aos colegas.

- Eu sou o Rafael e tenho catorze anos. - levantando-se para que vissem a sua alta estatura e para que fixassem o seu aspeto.

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- Eu sou o Marco Miranda e tenho treze anos. - encolhido no seu lugar. - Eu sou a Luísa e vou fazer treze anos. - empurrando os seus cabelos compridos para trás e dando uma passagem com os olhos pelo Rafa.

Ouviu-se um burburinho, dirigido pelo Rafa, onde surgiam as palavras "linda" e "jeitosa".

- Calem-se lá e vamos conhecer os restantes colegas. interrompeu a professora com ar de respeito. - Eu sou o Zé Maria e tenho treze anos, quase catorze. mostrando-se orgulhoso da experiência de vida. - Zé ou José? - sorrindo. - José Maria. - embaraçado e sentindo que lhe tinham retirado um pouco da sua importância ao ser o único corrigido. Os colegas sorriram. - Eu sou o João Paulo Correia Araújo e vou fazer treze anos de idade. - afirmou, mantendo a sua postura insegura e colado à cadeira. - Eu sou a Carolina Menezes e tenho treze anos. - informou com a sua voz doce.

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- Eu sou a Valéria Peixoto e estou quase nos catorze anos. imitando a colega, empurrava os seus cabelos negros e olhava para o Rafa. - Eu sou o Pedro Pereira e tenho treze anos. - esboçando um gesto que mimetizava a escrita num teclado.

E assim continuaram com as vinte e oito apresentações. No final, a Diretora de Turma deu-lhes os critérios de avaliação que tinham de apontar numa folha ou no caderno, se já tivessem.

O João Paulo tirou o caderno da mochila e começou a tomar nota. O Marco e a Carolina seguiram-lhe o exemplo pegando numa folha solta que tinham consigo. O Rafael afirmou que já tinha aquilo do ano anterior. Os restantes alunos disseram que depois copiavam pela Carolina.

Ouviu-se o toque da campainha e saíram todos a correr porta fora, sem sequer esperar pela autorização da professora.

O João Paulo foi o último.

- Bom dia, senhora professora. Até à próxima. - despediu-se o aluno, educadamente.

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A professora nem respondeu. Não estava habituada àquela simpatia por parte dos alunos e não contava recebê-la da boca de algum menino.

Mal descia as escadas, esperava-o o Rafa.

- Bom dia senhora professora! Já estás a engraxar? Tem cuidado com isso que os professores não gostam de graxistas. - intimidou o Rafa, encostando o seu dedo indicador à cara do admirado colega.

O João Paulo nem respondeu, limitando-se a baixar a cabeça e a tentar encontrar o Carlos que entretanto já tinha corrido para perto da entrada do bar dos alunos.

O João correu ao seu encontro. Chegou-se perto dele e colocou-se ao seu lado.

- Um pão com fiambre e um leite com chocolate. - solicitou o Carlos, já a antecipar o sabor daqueles produtos na sua boca. - Passa o cartão. - ordenou a funcionária. - Já passei. - indignado. - Cá vai. - estendendo as mãos ocupadas com os produtos solicitados.

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O Carlos virou-se para o João e perguntou-lhe se ia comer alguma coisa.

- Sim. Um pão com queijo e um leite com chocolate, se faz favor. - educadamente. - Muito bem, menino. Cá está. Já passou o cartão? - solicitou a funcionária, admirada com a educação do menino. - Onde se passa? - olhando todo o comprimento do balcão. - Aqui, nesta luz. - orientou a funcionária, apontando. - Já está. Obrigado. - confirmou o João Paulo. - De nada. Volta sempre. - sorridente.

A este educado espetáculo assistiam o Rafa, a Luisinha, a Valéria e o Pedro.

O Rafa piscou o olho ao Pedro e este deu-lhe um pequeno toque; fingiu desequilibrar-se, batendo com a mão no pacote de leite com chocolate que o João aproximava da boca e que se entornou na sua roupa.

- Desculpa, foi sem querer Joãozinho. - com um sorriso fingidamente arrependido.

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- Pois é, coitadinho do Joãozinho que sujou a roupa. lamentou o Pedro, sorridente.

A funcionária do bar, vendo aquele espetáculo, pegou num pano quente húmido e deu-o ao João Paulo para que limpasse a roupa.

- Foi sem querer menino. Ele não queria fazer isto. - interviu a funcionária.

Os colegas saíram dali em alta risota e lá ficou o pobre menino a tentar retirar a mancha castanha que se estendia pela sua camisola e parava unicamente nas calças de ganga.

O João Paulo reteve uma lágrima que se aproximava, levantando aquele pano húmido ao encontro do azul-celeste do seu olho. Pensava na reação da mãe ao vê-lo com a roupa suja logo no primeiro dia.

Almoçaram lado a lado, ao final da manhã na Cantina da escola, o maculado João Paulo e o indeciso Carlos. Ao fundo, numa mesa distante, almoçavam a Carolina e a Valéria que pontualmente olhavam para o colega e se riam do castanho que apresentava debotado já da limpeza feita.

Dos restantes colegas nem sinal; tinham saído da escola para comer qualquer coisa no café Curica que estava perto.

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De tarde, o João Paulo preocupou-se principalmente em tapar a camisa e encobrir as calças; para além dessa inquietação, fugia de perto dos desastrados colegas, com medo que se distraíssem novamente.

Com o último toque de saída das dezassete e trinta, todos os colegas de turma foram para casa.

O José tinha de esperar, sozinho, até às dezanove e trinta. A essa hora a sua mãe passava por ali para o encaminhar para casa.

Teve a possibilidade, nesse primeiro dia, de conhecer a biblioteca da escola. Ficou feliz ao ver tantos livros sobre temas variados e soube que aquele seria um local muito visitado por si ao longo do ano.

A mãe chegou à hora combinada.

- Já sujou a camisa e as calças! - acusou a Senhora Doutora. - Foi … - tentando justificar o aspeto que apresentava. - Foi a sua distração. Ainda bem que não chegou às sapatilhas. Sabe o preço dessas sapatilhas, não sabe? interrompeu a Senhora Doutora, certa do que se tinha passado e preocupada com o valor das sapatilhas. - Sim, mãe. Desculpe. - baixando a cabeça em sinal de vergonha. - Vamos ver se a Rosário consegue tirar isso. - desconfiava a Senhora Doutora de forma acusadora.

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- Desculpe, mãe. - arrependido e sentindo-se injustiçado.

Chegaram a casa passados trinta longos minutos de vergonha e silêncio.

O João Paulo foi falar com a Rosarinho pedindo-lhe para ver se conseguia tirar aquelas nódoas que tinha feito na roupa.

- Claro que sim, menino. Vá tirar a roupa, limpe-se e depois traga para lavar. Não há problema. - afirmou, acalmando o João com a sua certeza sorridente. - Obrigado Rosarinho. - aliviado e sentindo apoiado. - Como aconteceu isso? - perguntou admirada com aquela situação original para o menino João. - Foi um acidente no bar da escola! - desculpou o João sem querer acusar ninguém.

Foi tirar a roupa. Lavou-se e voltou a descer, com a camisa e as calças na mão, para se sentar à mesa deserta e jantar. Passou, antes, na cozinha onde deixou as duas peças de roupa.

A Rosário trouxe o seu prato de comida, o seu copo com água. O menino jantou na sua companhia. Ela tentava saber o que se tinha passado naquele primeiro dia de escola.

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- Conte-me o que aconteceu hoje na escola. Gostou? - com os olhos brilhantes de orgulho pela nova fase do João.

O João Paulo não falou daquele incidente com o leite com chocolate. Falou de tudo o resto: dos colegas, do Carlos que era seu vizinho e da Diretor de Turma que ouvia mal, pois não lhe tinha respondido quando se despediu.

A mãe tinha-se recolhido ao escritório onde revia uns artigos científicos sobre uma nova molécula que estaria a ser integrada na cura de doentes como os que tinha lá no Hospital.

O pai chegou eram já vinte e uma e trinta. Fechou-se na biblioteca de casa para analisar um caso que tinha em mãos. Tinha sido nomeado advogado de um homem que era acusado de violência doméstica. Procurava, nas entrelinhas do processo, onde poderia pegar para ilibar aquele cliente.

O João Paulo, com a ajuda da Rosário, preparou a mochila para o dia seguinte, com os materiais necessários.

Passou pelo escritório.

- Boa noite, mãe. Vou para o quarto. - informou o jovem. - Veja lá se amanhã não se suja todo outra vez. - avisou, fria e tão automaticamente como passava as folhas que lia. - Sim, mãe! - aceitou, baixando os olhos.

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A mãe nem os olhos tinha tirado dos papéis para ver o João. Bateu à porta da biblioteca.

- Sim? - respondeu o Senhor Doutor de forma mecânica. - Sou eu, pai. - informou o João, receoso. - Entre. - disse o Senhor Doutor autorizando a interrupção. - Boa noite, pai. Vou para o quarto. O dia correu bem? questionou o João, pretendendo dar início a uma possível conversa entre ambos. - Sim. Vá lá dormir. - concluiu o Senhor Doutor.

O pai repetiu a atenção da mãe, não levantando os olhos para ver o João.

Foi, o João Paulo, com as suas novidades, as suas aventuras, o nome dos seus colegas e dos seus professores presos na garganta.

Talvez no dia seguinte os pais já não estivessem tão ocupados e conseguissem ter uns minutos para falar com ele.

- Talvez amanhã seja diferente e consiga contar as minhas histórias. - conversando consigo próprio, na esperança de uma mudança futura.

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Deitou a cabeça na almofada, olhou para a lua que o espreitava atravÊs da janela, fechou lentamente os olhos e adormeceu no seu sono tranquilo.

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O dia seguinte ao primeiro

II

14 de setembro

- Vamos lá. Despache-se com esse leite! - alertou o Senhor Doutor, gravemente. - Estou pronto, pai. - certificou o João, colocando a sua mochila às costas. - Vamos que já é tarde.

Saíram pai e filho em direção a mais um dia de escola e de processos em tribunal.

Ao longo da viagem de vinte e cinco minutos, o João Paulo foi tentando falar do assunto que lhe tinha ficado encravado na garganta do dia anterior.

Apesar de muito tentar, não conseguiu concretizar os seus objetivos; o pai recebia constantemente chamadas a que ia respondendo, levantando a mão para que o filho se calasse.

Chegaram ao portão da escola dez minutos antes da hora do primeiro toque do dia.

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- Tenha um bom dia, menino. - afirmou o Senhor Doutor, mecanicamente. - Obrigado, pai. Até logo. - agradeceu o João, sorridente.

Abandonou o carro com a sua pesada Adidas às costas e dirigiu-se para a sala dezoito onde teria a primeira aula do dia. À porta não estava, ainda, ninguém.

Começaram a chegar os restantes colegas quando faltava um minuto para o toque de entrada.

- Bom dia, Joãozinho. - Bom dia, Valéria. - Hoje estás mais limpinho.

O João Paulo esboçou um sorriso, mas não respondeu. Chegou o professor de Português que os fez entrar na sala em silêncio e por ordem.

Essa ordem foi interrompida pelo momento em que o Rafa deveria entrar. Estava, mais uma vez, atrasado por culpa dos transportes públicos, segundo justificava constantemente.

- Sentem-se em silêncio. - ordenou o professor.

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- Bom dia, professor. - cumprimentou o João Paulo. - Eu sou o Doutor José Amorim. Vou ser o vosso professor de Português para este ano. Espero que nos entendamos bem e isso só vai acontecer se ninguém causar problemas e se respeitarem todos as minhas ordens. - dando ênfase ao "Doutor" para que os alunos apreendessem a mensagem e reparassem na sua superioridade intelectual. - Que material vamos precisar para as aulas, professor? questionou o José Maria. - Para Português, vão precisar de um bom caderno, do manual da disciplina, do caderno de atividades e de uma esferográfica negra ou azul para escrever. - informou o professor olhando para a turma. - Não pode ser lápis? - retorquiu o José Maria. - Podem trazer lápis, mas tudo deverá estar a tinta azul ou negra. - gracejou o professor. - E é só isso? - voltou o José Maria, já com a mão na cabeça de desespero. - Não. Por vezes vão precisar de um dicionário de Português, mas eu avisarei na aula anterior. - acrescentou o professor com grande autoridade. - E é preciso comprar, professor? - indagou o Pedro Pereira, já a pensar no peso acrescido que teria de transportar.

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- Claro. Como quer trazer o dicionário se o não comprar? comunicou o professor, esboçando um ligeiro sorriso. - Podia haver na biblioteca! - ripostou o Pedro. - Esses são da biblioteca para os alunos que deles precisarem quando estiverem lá a trabalhar. Não podem sair. - afirmou perentoriamente o Doutor, apesar de não ter a certeza se aquilo que dizia era ou não verdade.

Aquela ordem pré-estabelecida parecia familiar ao João Paulo; lembrou-se do seu colégio e da postura rígida de alguns dos professores que tivera.

- Posso entrar? - solicitou o Rafa, colocando a cabeça dentro da sala. - O senhor já viu as horas? - exaltou-se o professor. - Foi o autocarro que se atrasou. - justificou o aluno, olhando para o Blogues. - Entre e sente-se. Esse autocarro costuma atrasar-se muitas vezes? - desesperou o professor, virando costas ao retardatário. - Acontece, às vezes, ao primeiro tempo. - esclareceu o Rafa, fechando a porta da sala.

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Com a chegada do Rafa, estava completa a turma. A Luísa olhou para ele e sorriu. O José Maria, o Carlos Manuel, a Valéria Peixoto e o Pedro Pereira cumprimentaram o retardatário com um gesto disfarçado.

Os restantes alunos continuaram a dispensar a sua total atenção ao discurso do Doutor Amorim.

O João Paulo baixou a cabeça. O Rafa passou por detrás da cadeira do colega e deu-lhe um toque nas costas.

- Então professor, o que vai ser preciso para as aulas? demandou o Rafa, tentando mostrar interesse e corrigir o atraso verificado. - Já disse aos seus colegas. Se tivesse vindo a horas teria ouvido. Depois pergunta-lhes. - desconsiderou o professor, manifestando já algum tipo de impaciência. - Sim, professor. - acedeu o Rafa, apercebendo-se de que o professor estava a atingir o limite.

Continuou, o Doutor Amorim, a explicar os seus desejos para o ano. Falou das matérias que iriam ser ensinadas, dos testes que iriam fazer e dos castigos que aplicaria se alguém contrariasse as

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suas indicações. De resto era preciso estudar, tomar nota de tudo o que ele dissesse e trazer sempre o material.

- Daqui a um minuto ouvirão o toque de saída. Podem começar a arrumar as vossas pastas e preparem-se para sair em ordem. Deixem tudo bem arrumado. - ordenou o professor.

Ouviu-se o início do toque de saída para o intervalo; já não se conseguiu ouvir o final que foi abafado pelo arrastar de cadeiras daquela sala dezoito e pela gritaria da escola.

O Rafa esperou a Luisinha à porta. Cumprimentou-a com um beijo apaixonado, sempre com o canto do olho virado para a Valéria que, disfarçadamente, olhava para aquele encontro.

Dez minutos de intervalo. Foi o suficiente para muitos dos alunos da turma 7H se dirigirem ao campo de futebol para dar "uns toques na bola", competindo com outros colegas de outras turmas.

O Marco Miranda, Mocas para os amigos, aproximou-se do João Paulo e cumprimentou-o, apresentando-se.

- Eu sou o Marco, mas podes tratar-me por Mocas. - informou, sorrindo para o colega. - Eu sou o João Paulo, mas podes tratar-me por João. respondeu o aluno, estendendo a mão ao amigo.

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- Gostei do teu caderno de Português! - Este? Foi a Rosarinho que comprou comigo. - mostrando-se orgulhoso da escolha feita. - Muito fixe. Gosto das cores. - confirmou o Marco, passando a mão pela capa do caderno. - Sim, eu também. - concordou, ainda mais orgulhoso. - Queres vir para a sala? - convidou, colocando o seu braço sobre o ombro do colega. - Vamos. Qual é a seguir? - Agora vamos ter Geografia na vinte e sete.

Para lá foram os dois colegas. O Marco Miranda era um menino muito pálido. Parecia estar sempre muito doente ou maldisposto. Tinha assistido, no dia anterior, ao episódio do leite com chocolate, e apesar de não ter gostado nada do que tinha visto, no momento tinha esboçado um ligeiro sorriso. Estava naquela escola desde o quinto ano e já conhecia todos os cantos à casa.

Estranhamente, à porta da sala vinte e sete estava toda a turma, mesmo o Rafa, antes de se ouvir o toque de entrada. Ouviu-se aquele som característico de um tacão de salto alto a picotar umas escadas de mármore.

Uns meninos ficaram atentos, outros esfregaram as mãos.

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Subia, levemente, um cabelo loiro, com blusa branca decotada e uma pequena bolsa que combinava com uns sapatos vermelhos de tacão alto. A seu lado vinha o professor de Português muito animado.

Aquela figura arejada abriu a porta da sala, entrou e atrás dela seguiram o Rafa, o José Maria e depois todos os outros colegas.

A Luisinha e a Valéria ficaram para o final, mostrando a sua cara de descontentamento e um abanar de cabeça energético.

- Eu sou a professora Júlia Ramos e vamos trabalhar Geografia durante este ano. - informou, imponentemente, a professora enquanto olhava para todos os alunos.

Ouviu-se um burburinho mesmo ali na primeira fila, impercetível para a professora.

- Eu é que te trabalhava! - sussurrou o Rafa, olhando, de relance, para o Manias.

O

Rafa,

sentado

na

primeira

carteira,

olhava

pecaminosamente para aquela senhora com os seus olhos arregalados.

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A professora Júlia Ramos era uma jovem. Contava vinte e oito anos de idade e tinha sido colocada naquela escola logo após a conclusão do curso. Era conhecida pela sua beleza e pela sua apresentação. Usava, todos os dias, os seus sinalizadores tacões de salto alto. Acompanhava-os, naquele dia, com uma vaporosa blusa branca que deixava ver, por baixo, o seu alvo peito; uma saia que lhe cobria as pernas até ao joelho combinava com a cor dos seus sapatos. Projetava, constantemente, os seus cabelos loiros para as costas num movimento de estrela de cinema.

- O trabalho de Geografia será feito, quase sempre, em grupo. Podemos até fazer já os grupos para o ano. - sugeriu a professora.

Começaram a agitar-se as cadeiras.

- Este menino, que está aqui à frente, como se chama? apontando para o aluno da primeira cadeira da fila à sua frente. - Eu sou o Rafael, professora. - informou o Rafa, esboçando um sorriso e piscando o olho. - O Rafael vai trabalhar com quem?

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- Eu posso ficar com o Zé Maria, com o Pedro e com a Menezes. - respondeu, apontando para cada um dos colegas. - Muito bem. Temos já um grupo. - suspirou a professora, empurrando, novamente, os cabelos para trás.

A Luisinha olhava raivosamente para o namorado e levantava o braço.

- Sim, menina! - disse a professora, concentrando a sua atenção naquela aluna. - Posso ficar nesse grupo também? - perguntou, olhando para o Rafa e mostrando a sua insatisfação. - Não. Já estão quatro e é esse o número de elementos por grupo de trabalho. Pode é escolher mais três e fazer o seu. - Então vou ficar com o Carlos, com a Valéria e com o António. - indicou a Luísa, esperando vingar o gesto do Rafa ao constituir dois pares. - Muito bem. Mais um grupo.

E assim se foram criando as equipas de trabalho de quatro elementos até que sobraram o João Paulo, o Marco Miranda e mais duas meninas muito caladinhas que estavam sempre juntas ao fundo da sala, a Carlota e a Maria José.

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Aquele foi o último grupo a ser constituído. Eram os alunos que ninguém tinha escolhido para trabalhar.

O Rafa levantou o braço. A professora deu-lhe a palavra.

- O que precisamos para Geografia, professora? - questionou o aluno enquanto pegava na sua esferográfica e retirava do bolso das calças uma folha dobrada. - Precisam trazer sempre o caderno e o livro. Claro que uma caneta também poderá vir a dar jeito. - informou a professora, soletrando o material calmamente para que fosse possível tomar nota.

Ouviu-se um sorriso sonante do Rafa. A professora começou a tomar nota, no caderno que tirou da sua bolsa a condizer com os sapatos, dos grupos e dos nomes de cada um dos meninos e meninas.

Assim passaram a aula preferida do Rafa e do Cucas. Ouviu-se o toque que marcava o final da aula e saíram todos, ficando o Rafa para trás e deixando passar a professora enquanto lhe segurava a porta.

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- Faça favor, professora. - permitiu o Rafa, inclinando a cabeça e colocando a outra mão atrás das costas. - Obrigada, menino. - Sou o Rafael. - esclareceu o Rafa, sorrindo para a professora. - Obrigada, Rafael.

O José Maria, Cucas como era conhecido, era um menino que estava ali na escola desde o quinto ano. Tinha integrado a turma do Rafa quando este, no seu segundo quinto ano de escolaridade, tinha sido transferido da C para a H.

Tinham ficado, desde logo, muito amigos e eram os companheiros perfeitos; quando o Rafa dizia que era para fazer alguma coisa, o Cucas era o primeiro a avançar. Tinha feito parte, no dia anterior, do comité de receção ao João Paulo no bar da escola.

O João Paulo ficou na companhia do Mocas e das outras duas colegas. Falaram de quem iria ser o chefe de grupo, determinando-se que o Mocas, por ser o mais conhecedor das coisas da escola, ficaria com essa responsabilidade.

O Rafa teve de se entender com a Luisinha e explicar o que se tinha passado na aula. Disse-lhe que gostava muito de Geografia e que queria fazer um bom trabalho para ter positiva no final do ano. Abraçou-se a ela.

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- Chega-te para lá. Estavas era a fazer olhinhos à professora. - ordenou a colega, dando-lhe um forte impulso à mão que se aproximava do seu ombro. - Qual olhinhos. Àquela cota? Só tenho olhos para ti. contestou o Rafa, mostrando-se surpreendido. - Isso é o que dizes! - desconfiou a Luísa. - É verdade, anda cá. Tu sabes que tenho de ter boa nota a Geografia ou o meu pai mata-me.

Deu-lhe um beijo e tudo se resolveu como o Rafa sempre conseguia fazer.

O pai do Rafa era um professor de Geografia que trabalhava também naquela mesma escola. Tinha falado, várias vezes, da colega de disciplina e até já se tinham rido, pai e filho, dos comentários que faziam em conjunto sobre aquela estampa de mulher.

Após mais uma aula da manhã, chegava a hora de almoço. Como era costume em dia de peixe ou, às vezes, mesmo de carne, o Rafa e os seus companheiros mais próximos usavam a sua autorização de saída da escola e juntavam-se no Curisca para a energética refeição do meio-dia: sandes e sumo.

O João Paulo, na companhia dos colegas de grupo de Geografia, almoçou na cantina da escola. Começou a sentir que

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poderia ter ali, naquele grupo, um apoio para as suas dificuldades de integração.

No final do almoço foram, os quatro, dar uma pequena caminhada pelo jardim da escola. Falaram das suas vidas e daquilo que mais gostavam. O João falou de toda a sua experiência no Colégio e de como tudo estava organizado; confessou que tinha gostado muito da biblioteca da escola.

Chegou o toque de entrada do primeiro tempo da tarde e o grupo dos quatro dirigiu-se para a porta da sala dois, onde os esperava uma aula de Matemática.

Ouvia-se o final do toque de entrada, via-se a professora Marta Costa a subir as escadas e logo de seguida começavam a surgir os restantes alunos.

- Eu sou a vossa professora de Matemática. Chamo-me Marta Costa e já tenho muitos anos desta vida. Já conheço os truques todos e, por isso, não pensem sequer em copiar. asseverou a professora, esticando o seu pescoço. - Professora!!! - levantando-se um dedo a meio da sala. - Calma. Ainda não terminei. A Matemática é muito importante para todos. Eu uso muito o computador e por isso, estejam preparados para tomar nota de tudo aquilo que eu apresentar. - levantando a mão aberta. - Professora!!! - em desespero.

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- Calma, já vai dizer. Para as aulas de Matemática é sempre preciso trazer uma capa com folhas quadriculadas e sem margem, o manual da disciplina, o caderno de atividades, lápis, borracha, caneta preta ou azul, transferidor e uma aguçadeira. - voltando a levantar a mão aberta. - Professora!!! - a aluna quase se levantava do lugar, mas ficava a meio do caminho. - Só um minuto e já diz. Depois vou dar-vos a marca de uma calculadora para comprarem e que vai ser material obrigatório para todas as aulas e para os testes. acrescentou a professora, colocando os seus olhos novamente naquele dedo levantado no meio da sala. - Professora!!! - Diga lá, menina. - autorizou, finalmente, a professora. - Posso ir lá fora? Deixei ficar a pasta ali à porta e não posso tomar nota, no caderno, de tudo o que a professora está a dizer. - solicitou a aluna, em voz mais baixa. - Vá lá! Isto é o que não pode acontecer nas minhas aulas. Quando se entra é concentração absoluta e nada de esquecimentos. Sempre que acontecer alguma coisa que me pareça suspeita, tomo nota aqui no meu computador e depois não se queixem das notas no final do ano.

Até o João Paulo, com a sua constante atenção e perfeita concentração, tinha dificuldades em acompanhar a tanta

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informação que ia sendo transmitida. Tentava, no entanto, não deixar escapar nada e registar tudo no seu caderno aos quadradinhos. Já sabia que, chegando a casa, tinha de passar, para uma capa de argolas com folhas soltas, tudo o que estava a escrever ali no caderno.

A maior parte dos colegas ficou atónita e perdida. Olhavam uns para os outros, tentavam completar a informação com aquilo que iam vendo no caderno do colega de carteira e inventavam outras palavras para completar as frases que tinham ficado a meio.

O Rafa tinha tirado mais uma folha branca do bolso e fazia um retrato daquela sua professora. Colocava-a com uma saia comprida, tapada até meio por uma blusa às flores e que terminava com uns sapatos rasos que ficavam semiencobertos pela saia. Pintava um cabelo curto numa cabeça arredondada, onde pontuavam uns olhinhos muito escuros que constantemente se fixavam num computador. Completava a obra-de-arte com alguns números, símbolos matemáticos e balões para significar a muita conversa da senhora e para tirar todas as dúvidas a quem não a identificasse na pintura.

Finalmente ouvia-se o toque para o final da aula.

- Não se esqueçam de trazer todo o material necessário na próxima aula. Já vamos começar a trabalhar a sério; vamos fazer uma ficha de diagnóstico para saber as vossas dificuldades. Quem se esquecer de um simples lápis terá falta

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de material. Acho que é tudo. Podem sair. - concluiu, contrariada, a professora.

Saíram todos rapidamente para que não houvesse alguma recaída por parte da professora e retomasse a longa lista de informações e exigências.

O João Paulo juntou-se ao Mocas e foram trocando cadernos para tentar dar conclusão aos apontamentos da aula. Os restantes colegas, à exceção das duas meninas do grupo de trabalho do João Paulo a Geografia, dirigiram-se ao campo de futebol para libertar a tensão acumulada naquele momento intenso, dando chutos numa bola.

No final daquele dia de trabalho, seguia-se a aula de Educação Física. Como era ainda a primeira vez, ninguém tinha trazido o equipamento, pelo que se juntaram nas bancadas do campo de futebol ao lado do Pavilhão Gimnodesportivo.

O funcionário do Pavilhão tinha chamado todos os alunos da turma a pedido do professor.

Chegava o professor Rui Cunha. Um homem de respeito. Antigo atleta profissional, apresentava a sua boa forma física distribuída por um corpo alto tapado pelo seu equipamento Nike.

- Eu sou o Rui Cunha. Fui atleta profissional e até fui convocado para a seleção nacional. - informou orgulhosamente do alto dos seus quase dois metros.

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Ouviram-se palmas.

- Sou o vosso professor de Educação Física. - Hoje ninguém trouxe equipamento, professor. - esclareceu a Carolina, com receio da reação do professor. - Não há problema. Só começamos na próxima aula. Hoje só vos quero conhecer. - acalmou o professor.

Todos os alunos e alunas se apresentaram, dizendo o nome, a idade e o desporto favorito.

- Quero toda a gente muito empenhada nas aulas. Vou fazer de todos vós atletas. Quem não aguentar tem de se habituar ou desistir. - afiançou o professor, apontando para todos os alunos que se situavam à sua frente. - Professor, eu tenho problemas de respiração. - comunicou o Rui, envergonhado. - Isso trata-se depressa. Se não queres fazer aula, tens de me trazer um atestado do teu médico. - ripostou o professor, minimizando o possível problema.

Terminou a aula e mandou que todos fossem lanchar.

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Eram dezanove e trinta e a mãe do João Paulo apresentava-se para o levar até casa. Tinha o menino já feito uma prolongada visita à biblioteca da escola onde lera um livro de histórias infantis.

- Hoje está limpinho! - observou a Senhora Doutora. - Sim, mãe. Boa tarde. Correu bem o dia? - respondeu o João, sorrindo. - Sim. Vamos lá que ainda tenho muito para fazer. - concluiu.

Prolongou-se, a viagem até casa, por trinta minutos acompanhados pelos constantes suspiros da mãe.

Fechou-se, a Doutora, de imediato no escritório a estudar processos médicos.

O Senhor Doutor chegou às costumeiras vinte e uma e trinta, dirigindo-se, de imediato, à biblioteca acompanhado por uma enorme pasta preta cheia de folhas desarrumadas.

O João Paulo jantou, como de costume, na companhia da Rosário, trocando breves palavras sobre o dia passado na escola.

Passou pelo escritório e pela biblioteca para se despedir dos pais, trocando com eles breves palavras.

Organizou os trabalhos do dia, copiou os apontamentos de Matemática para umas folhas quadriculadas sem margens,

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recheou a mochila do dia seguinte, tomou o seu banho e foi para a cama.

Enquanto olhava para a lua que, de novo, se tinha colocado a espreitar na janela do seu quarto, pensou em que realmente aquele incidente do dia anterior, com o leite achocolatado, deveria ter sido isso mesmo: um acaso. Tinha passado um dia calmo, sem qualquer problema com os colegas. Tinha, atĂŠ, arranjado um parceiro que demonstrava algum interesse na sua companhia.

Adormeceu calmamente, depois de acomodar a cabeça na sua alva almofada.

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Os restantes dias

III

- Vamos lá. Despache-se com esse leite! - Estou pronto, pai. - Vamos que já é tarde.

Desta forma tinham começado os dois dias anteriores e prometiam começar todos os dias seguintes do João Paulo.

Fazia a sua viagem até à escola com a presença do pai ali à frente agarrado ao volante e ao telemóvel.

- Tenha um bom dia, menino. - despediu-se o Senhor Doutor. - Obrigado, pai. Até logo. - respondeu, agradecido, o João.

Da mesma forma automática atingiam a porta metálica azul do estabelecimento e que antecedia a longa escadaria em pedra. Dava uma última espreitadela ao pai que se afastava rapidamente.

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O João Paulo dirigia-se, imediatamente, à porta da sala de aula

marcada

no

seu

horário

diário.

Era

quase

sempre

acompanhado pelo seu novo amigo, o Mocas.

Aproveitava, este colega, para consultar alguns dos resultados obtidos pelo João Paulo nos trabalhos de casa.

- É só para confirmar os meus trabalhos. - informou o Mocas, espreitando para os trabalhos que o colega apresentava no caderno. - Sim, eu sei. Vê lá se estão como os meus. - sugeriu o João. - Sim. Está aqui uma coisinha diferente. Deixa-me corrigir. - Despacha-te que deve estar a chegar o professor. - afirmou o José, olhando para as escadas. - Sim, é rapidinho. Só falta isto e mais aquilo. - consultou apressadamente o aluno.

Entravam na sala, atentavam às aulas. O Rafa mantinha-se, na maior parte das vezes, na última carteira da sala, ao lado da Luisinha. Era o local que lhe ficava mais perto nas suas constantes chegadas tardias. Ocupavam-se mais um com o outro do que com as matérias da aula. Trocavam corações em pedacinhos de papel, mensagens ligeiras e alguns toques por baixo da carteira.

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Alteravam-se a posição e o atraso quando a aula era de Geografia; nessas alturas colocava-se, o Rafa, mesmo à frente da professora de vinte e oito anos bem tratados. Pasmava para aquela beleza que tanto desgostava a Luisinha e a Valéria. No final da aula de Geografia o cenário costumeiro: discussão entre os namorados, a Valéria a ser espreitada, através do canto do olho, pelo rapaz enquanto trocava um beijo e um abraço com a Luisinha.

Para o João Paulo a vida parecia mais calma do que no primeiro dia. Pelo menos não tinha havido mais conflitos acidentais. Tinha unicamente recebido alguns comentários relativos aos seus cadernos, à sua atenção e ao seu empenho nas aulas, mas que deixava passar rapidamente.

- Que caderninho lindo. Que letra tão direitinha. - brincava o Rafa. - Não se distraia, menino Joãozinho para depois saber tudo. acrescentava a Luisinha. - Levante o braço, menino Joãozinho. - propunha o Manias. - Diga bom-dia à senhora professora. - adia o Cucas. - Já disse até amanhã, menino? - concluía o Blogues.

Comentários como estes saídos da boca do Rafa, da Luisinha ou do Cucas eram já considerados normais. Chegou

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mesmo a ouvir-se a Vivi, o Manias ou o Blogues a alinharem na brincadeira despropositada.

Os professores não ouviam, ou estavam muito ocupados, ou não queriam ouvir por considerarem normais aquelas intervenções inocentes dos alunos.

Aquele menino elegante, com cabelo cortado a pente dois por cima das orelhas e pala virada para trás sobre a testa, mostrava-se já mais satisfeito com os amigos que tinha arranjado.

Sempre aprumado, com as suas calças em ganga e a camisola da moda, cuidava das suas sapatilhas de marca que tanto tinham custado à sua mãe.

Não tinha chegado a ser considerado muito popular pela maior parte dos colegas de turma; o facto de ser muito educado, muito respeitador de professores, colegas e funcionários, assim como o único menino "bonito" que tinha estado num colégio particular, marcavam a sua diferente presença naquele ambiente que era gerido por regras muito particulares.

O Doutor José Amorim preocupava-se em dar as suas aulas mantendo o necessário silêncio e organização. Protegido pelo seu fato e gravata, chegava à sala, retirava o manual da sua pasta em pele, colocava os óculos graduados e começava a debitar conhecimentos.

Algumas mensagens iam sendo trocadas entre o Rafa e a Luisinha ou entre o Rafa e o Cucas; o professor não dava por nada, concentrado como estava em demonstrar a sua ciência.

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Com os seus cinquenta e nove anos, não tinha nem tempo a perder, nem paciência na correção de comportamentos dos meninos.

Fazia as suas pontuais questões muito organizadas, mas nunca esperava pela resposta, certo que estava de que iria sair asneira daquelas cabecinhas tontas.

Os alunos chegavam mesmo a levantar o dedo para indicar o seu desejo de responder, mesmo que não soubessem a resposta. Sabiam que o professor iria ficar com aquela imagem de interesse e participação, mas não com a resposta, pois não precisavam dá-la; apresentava a sua própria resolução da dúvida, numa demonstração de conhecimento inseguro.

O João Paulo tomava nota de tudo o que o professor debitava; chegado a casa, lia a matéria toda e ajudava esse estudo com algumas consultas em livros da biblioteca e pesquisas online.

A professora Marta Costa, do alto dos seus quarenta e dois anos, mantinha o seu longo discurso constante. Fazia as suas apresentações computorizadas de matérias, sentada na sua cadeira. Sempre que algum aluno se atrevia a colocar uma dúvida, ela respondia imediatamente com muitas palavras e explicações que levavam a que ficasse a ser percebido tudo como antes da dúvida.

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- Mas então o menino não percebe? Isto é básico. Todos sabem que o resultado só pode ser este e que o processo não poderia ser diferente. Basta estar atento e praticar. Não há dúvida possível. Atentos e trabalhadores, vamos lá. afirmava, admirada, a professora que não conseguia entender a dúvida apresentada.

Os meninos lá acomodavam as dúvidas e tentavam, aqueles que

manifestavam

algum

interesse,

encontrar

soluções

e

explicações em casa.

O João Paulo era um dos meninos que se ocupava, em algum do seu tempo de espera na biblioteca, a resolver as dúvidas de Matemática, solucionando exercícios e consultando livros ai existentes. Era, muitas vezes, acompanhado por uma das colegas do grupo de Geografia, a Maria José, que complementava o seu esclarecimento com explicações que a mãe lhe tinha dado em casa.

A professora de Geografia tinha sempre organizadas as suas salas em conjuntos de quatro mesas e quatro cadeiras. Os alunos sabiam que tinham de entrar e sentar-se junto dos elementos do seu grupo.

Entrava na sala, retirava da sua bolsa uns cartões com temas e começava a distribuir um a cada responsável dos grupos.

O Rafa acompanhava atentamente todos os movimentos da Júlia Ramos, enquanto eram distribuídos os temas de trabalho

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para a aula. Oferecia-se, muitas vezes, para acompanhar a professora na execução da tarefa.

Continuava a pairar com as suas roupas arejadas e os seus tacões de salto alto que variavam diariamente na cor, mas não no tamanho. Projetava a matéria na tela e indicava as páginas a consultar no manual para a realização da tarefa semanal.

Os grupos sabiam que, através dos seus responsáveis, teriam de apresentar resultados na primeira aula da semana seguinte. Fazia, este esquema, com que uma semana fosse dedicada ao trabalho de grupo e a seguinte à apresentação dos resultados do trabalho.

O professor de Ciências Naturais tinha quarenta e oito anos de idade e era um homem comprometido mais com o seu Doutoramento do que com o ensino dos meninos e das meninas.

Chamava-se Carlos Pinto e, depois de realizar o seu Mestrado, tinha agora dado início ao Doutoramento; este empenho desviava o seu interesse das aulas para a formação.

Não aceitava qualquer comentário por parte dos alunos, pois não sabiam mais do que ele que era quase Doutor. Quem tivesse alguma dúvida deveria tomar nota da mesma e depois pesquisar dados para a resolver; assim fazia ele para o seu Doutoramento e queria que todos o copiassem.

Apresentava-se sempre vestido com o seu fato moderno e desportivo, pois não lhe juntava uma gravata como o de Português. Trazia sempre muitos papéis e muitos esquemas que

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copiava para o quadro e esperava que os meninos os passassem para os cadernos em tempo útil.

Comunicava os seus largos conhecimentos e mesmo antes de o toque ser ouvido na escola, já ele estava à porta da sala pronto para sair e tratar do que era importante: o Doutoramento.

Mantinha, constantemente, o seu afastamento em relação aos estudantes e não admitia qualquer tipo de comentário aos seus científicos esquemas e irrepreensíveis apontamentos.

A professora de Física e Química tinha cinquenta e cinco anos e via-se como a mamã dos meninos.

Preocupava-se muito com eles como Diretora de Turma. No entanto, a sua insegurança científica fazia com que divagasse mais com assuntos domésticos do que com temas de aula.

Falava, constantemente, dos seus problemas particulares; do seu divórcio e dos filhos que estudavam em Universidades fora daquela sua cidade.

- Estes computadores! Ninguém os entende. - referiu a professora, enquanto olhava para aquela máquina à procura de algum botão no qual carregar. - Professora, é só carregar nesse botão vermelho. - informou o Blogues, não entendendo o que a professora procurava.

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- Sim, pois! Quem percebia muito disto era o meu ex-marido. Esse sim fazia deles o que queria. Que falta me faz! confessava saudosa a professora, enquanto largava um suspiro. - E os filhos? - questionou a Vivi, tentando prolongar a conversa. - Os meus anjos estão longe. Um estuda Direito e vai ser Doutor. A outra estuda Psicologia e vai também ser Doutora. Tenho muitas saudades deles e vou visitá-los sempre que consigo. - manifestou a Diretora de Turma, enquanto simulava a limpeza de uma lágrima inexistente. - O pai está muitas vezes com eles? - Vai tentando estar, coitado. Trabalha muito e não lhe sobra tempo para a família. Sacrifica-se tanto por nós. Trabalha todo o dia. - concluiu a triste Carla. - Pois é. É a vida. - concordou a Luisinha, tentando adoçar a conversa.

Ouvia-se um telemóvel, pontualmente, a tocar. A professora atendia e era o filho, ou a filha ou o ex-marido.

- Desculpem, mas tenho de atender. É muito importante. informou, afastando-se até um canto ao fundo da sala.

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Passava os minutos seguintes com o aparelho colado ao ouvido, mantendo aquela saudosa conversa com os seus anjos ou com o sacrificado ex-marido.

Mantinham a atividade na aula com estes episódios, esperando que se ouvisse o toque e saíssem.

Quanto à Física e à Química ficava para alguns esquemas e apontamentos que ia entregando em cópia aos alunos para que estudassem em casa.

Como Diretora de Turma dizia estar sempre à disposição dos meninos, das meninas e dos pais. Quando surgia uma necessidade momentânea, era complicado encontrar espaço na agenda daquela senhora sempre muito atarefada.

O quarentão Rui Cunha mantinha a sua intenção de fazer dos meninos e das meninas bons atletas.

Queria que desenvolvessem a sua resistência à dor, esforçando-os até um pouco além das suas capacidades. Quem não demonstrasse garra ou não exigisse de si mais do que podia, era

castigado

com

o

afastamento

do

jogo

de

equipa

desenvolvido no dia.

Sempre que se verificasse algum tipo de contacto físico entre os alunos, minimizava o facto.

- Isso faz parte do jogo! - amesquinhou o ex-atleta.

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- Mas, professor, ele atirou a bola com força e de propósito. queixou-se o aluno, agarrado à perna e mostrando um esgar de dor. - Cale-se lá com as queixinhas. É preciso ser duro e resistir. acompanhando a sua afirmação com um serrar de punho. - Mas a perna dói-me muito. - choramingava o aluno. - Isso passa como duas voltinhas a correr ali à pista. Vamos lá. - apontando para a pista e batendo palmas compassadas.

E tinha de ir dar as voltas necessárias à pista para que o professor visse que era forte e resistente.

Desta forma se apresentavam os dias do João Paulo. Entre o esforço físico, a incompreensão das matérias, os trabalhos de grupo e a solução das dificuldades logo que chegava a casa, se o não tivesse conseguido fazer na biblioteca enquanto esperava transporte de regresso a casa, preenchia o seu tempo.

Recorria, algumas vezes, aos conhecimentos do pai e da mãe. Recebia, sempre, a mesma resposta.

- O menino vê-me a pedir ajuda a alguém? Para que servem tantos livros na biblioteca e o computador que compramos para o seu quarto? - recriminou o Senhor Doutor.

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- Mas… - Vá lá menino. Um homem a sério trabalha para resolver os seus problemas e satisfazer as suas necessidades. - ensinou o Senhor Doutor a sua lição sobre o que era ser homem, não retirando, no entanto, os olhos dos seus próprios documentos.

Apesar dos seus parcos conhecimentos, era a Rosário que, muitas vezes, se sentava junto do menino e tentava ajudá-lo com o pouco que tinha aprendido até ao seu sexto ano de escolaridade. Não

era

muito,

mas

a

companhia

e

a

dedicação

que

demonstrava eram, na maior parte das vezes, o suficiente para o João Paulo resolver as dúvidas que tinha. Podia, ainda, telefonar ao seu amigo Mocas que, apesar de estar também cheio de dúvidas, apoiava no que podia; muitas das vezes era o Mocas que aproveitava para tirar uma ou outra resposta às questões de trabalho de casa que havia para fazer.

Havia, ainda, os almoços tomados no refeitório da escola sempre ao lado do seu amigo, os lanches cuidadosos no bar dos alunos e as poucas brincadeiras que o João Paulo conseguia manter com os seus colegas.

Chegava a casa com a mãe sempre à mesma hora, jantava na

companhia

da

sua

Rosarinho,

falava ligeiramente

das

atividades diárias.

Despedia-se, de passagem pelo escritório e pela biblioteca, dos pais e encaminhava-se para o seu quarto.

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Resolvia os trabalhos diários e organizava a mochila com os materiais escolares para o dia seguinte. Tomava o seu banho, conversava com a sua lua através da janela do quarto e adormecia acomodado na sua almofada.

No dia seguinte repetia-se a rotina diária. Assim viveu o seu primeiro período de atividades letivas. Não se verificou a presença dos pais na reunião final para entrega de notas, mas recebeu a carta em casa. Registava nível quatro a todas as disciplinas e nível cinco a Língua Estrangeira I, História, Geografia, Educação Visual e Tecnologias da Informação e Comunicação. Um Satisfaz Bastante a Formação Cívica era sinal do seu comportamento, empenho e envolvimento com as atividades de turma.

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A meia

IV

7 de janeiro

A primeira aula, de um dia de escola do início do segundo período, era de Educação Física com o professor Rui Cunha.

Entraram, os meninos, para o balneário masculino e as meninas para o que se situava mesmo ao lado daquele.

Vestiram os seus equipamentos; uns do Benfica, outros do Porto, outros de uma equipa francesa que poucos conheciam. Havia até um com o da Juventus, o número sete e Ronaldo escrito nas costas.

O João Paulo levava o seu equipamento de camisola dos LA Lakers, calção da mesma equipa e umas sapatilhas Adidas a condizer com os calções.

Tirou as peças de roupa do seu saco e pousou-as cuidadosamente no banco de madeira enquanto se despia.

Penduradas as calças de ganga no cabide, dobrada a camisola e arrumadas as sapatilhas por baixo do mesmo banco, virou-se e começou a equipar-se de amarelo.

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Reparou, desde logo, na falta de uma das meias. Olhou em redor para verificar se a teria deixado cair; espreitou, incrédulo, para dentro do saco, para o chão e até para o interior das sapatilhas. Não a encontrou em lado nenhum.

Ouviu o professor chamar e o último aluno saiu do balneário. Calçou a meia que lhe restava e depois as sapatilhas. Entrou no pavilhão e tinha à sua espera o Rafa, a Luisinha e a Vivi; os outros colegas olhavam ao longe. Logo que apareceu em público foi recebido por uma risota geral.

Então Joãozinho! Não havia mais meias em casa? questionou o Rafa, rindo e olhando para os colegas.

Os mais próximos riam também ao ritmo do Rafa. Os que estavam mais afastados chamaram o professor e apontaram para o João que, envergonhado, tentava passar entre os colegas.

- O que se passa? - indagou o professor, olhando para onde se encontrava aquela conversa. - Professor, o João só tem uma meia. Pode fazer aula assim? questionou o Rafa, gritando do fundo do espaço desportivo. - O que se passou, menino? - perguntou o professor ao João.

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- Não sei, professor. Achei que tinha trazido todo o equipamento, mas parece que me esqueci de uma meia! Não a encontro em lado nenhum. - confessou o João, encaminhando-se para a posição onde se encontrava o professor. - Não há problema, faz aula mesmo assim. - autorizou o docente.

Continuou a caminhar o João, embaraçado, em direção ao centro do campo.

Começaram

por

fazer

um

breve

aquecimento

sob

orientação do ex-atleta. Dez voltas aos campos no interior do Pavilhão. Depois alguns estiramentos e a seguir iriam fazer salto em altura.

Organizaram-se em filas, uma pela direita e outra pela esquerda. Avançava o primeiro de cada fila para o salto de um metro que se situava à sua frente. Depois rodava e colocava-se no final da fila contrária.

Todos foram saltando; uns ultrapassaram o obstáculo e outros, com o pé ou com outra parte do corpo, derrubaram a fasquia.

O João Paulo, mesmo tendo-lhe saído a sapatilha do pé sem meia durante o salto, conseguiu superar a altura. No entanto, quando circulava para tomar o seu lugar nas traseiras da fila,

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estando o professor de costas, foi rasteirado pelo Blogues. Caiu, ficando com o pé sem meia e sem sapatilha.

- O que se passa agora? - reagiu o professor, começando a demonstrar a sua insatisfação. - Foi o José que tropeçou e caiu. Deve ser da meia que lhe falta. - julgou o Blogues, mostrando uma cara de admiração.

Riso do Rafa e da Vivi.

- Pois, deve ter sido. Aperte bem esses cordões, menino. Ainda se magoa. - ordenou o professor. - Sim, senhor professor. Desculpe. - reagiu o João. - Pare lá com as desculpas e componha-se.

Apertadas as sapatilhas, terminado o salto em altura, era necessário arrumar o material utilizado na arrecadação.

- Vamos lá a arrumar tudo como deve ser. - comandou o professor olhando para a turma.

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O Rafa correu a pegar num pino plástico que marcava o início do percurso de corrida; o Manias seguiu-lhe o exemplo e pegou noutro pino; assim foram recolhendo o material até que sobrou o colchão que amparava a queda após o salto.

Ficara o João Paulo para último na companhia do colchão. Pegou numa das pontas e começou a tentar arrastá-lo para o local certo.

Vendo o esforço do amigo, o Mocas deu meia-volta, pegou na outra ponta do pesado colchão e arrastaram-no até à arrumação final.

O João Paulo agradeceu ao amigo e este deu-lhe uma palmada nas costas e um sorriso.

Entrados no balneário, já quase que a totalidade dos colegas tinha tomado o seu ligeiro banho. Faltavam os dois amigos.

O Mocas despiu-se juntamente com o João e lá se dirigiam para o chuveiro. Nesse momento, o Mocas foi chamado pelo Cucas, tendo voltado atrás.

O João Paulo entrou na zona de banho e abriu a água. Não saiu nada. Olhou para o chuveiro no exato momento em que a sua meia desaparecida, cheia que estava de água, se projetou na direção da sua cara, atingindo-o no nariz.

Sentiu, depois de desligar a água, um líquido viscoso e quente que lhe corria para a boca. Passou a mão e reparou que

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estava a sangrar. Tentou conter aquela hemorragia, recorrendo a algumas informações que lera em livros da mãe.

Tomou o seu banho, vestiu--se, colocou a roupa do equipamento dentro do saco, embrulhando a desaparecida meia totalmente encharcada.

O Mocas reparou que um pouco de sangue ainda corria do seu nariz. Recolheu um pouco de papel higiénico, molhou-o e colocou-lho a bloquear a narina.

O funcionário do Pavilhão, que se dirigira ao balneário para ver se tudo estava em condições, viu aqueles dois meninos a meter papel um no nariz do outro.

- O que se passa aqui? - perguntou incrédulo. - Nada. Foi ele que começou a sangrar do nariz e estou a ajudá-lo. - asseverou o Mocas. - Não quero nada sujo aqui! Vão lá para fora fazer essas coisas. - ordenou, estalando as mãos vigorosamente. - Sim, senhor. Já vamos. - concordou o Mocas. - Toca a mexer. Não quero dessas porcarias no meu balneário. - mostrando-se zangado com a manutenção dos alunos no seu espaço.

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Saíram ambos do Pavilhão e dirigiram-se ao bar dos alunos para beber um pouco de água.

Esperava-os a costumeira equipa de receção que muito se riu do aspeto do colega com papel pendurado no nariz.

- Tu não sabes que isso não é para colocar na cara! - gritava o Rafa. - Parece que em casa se confunde uma coisa com outra! concordava o Cucas.

Alguns alunos de outras turmas, que ali se encontravam, acompanharam o riso daquele comité, acrescentando-lhe umas palmas ruidosas.

O João Paulo, envergonhado, já nem bebeu a água de que tanto necessitava.

Saiu daquele espaço para o exterior e foi para um corredor ao ar livre.

Encontrou a Diretora de Turma, que passava apressada em direção a uma reunião para a qual já se encontrava atrasada por culpa de um telefonema de última hora.

- O que se passou, João? - perguntou a Diretora de Turma, parando o aluno com a mão.

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- Não foi nada, professora. - garantiu o João. - Mas o que é isso no nariz? - questionou a professora admirada. - É um pouco de papel. Sangrei na aula de Educação Física. - Muito bem. Vá lá. - acedeu a professora, apressada. - Obrigado, professora.

No final do dia, mais um problema: explicar à mãe o que se tinha passado. Como justificar uma hemorragia acidental a uma médica.

- O que é isso no seu nariz? - repetiu a Senhora Doutora, admirada com o aspeto do filho. - Foi na aula de Educação Física. … - explicava o João. - Já entendi. Caiu e magoou-se. - concluiu a Doutora. - Não, mãe. - discordou, respeitosamente, o rapaz. - Sim. Só pode ter sido isso. É tão distraído! - confirmou a Senhora Doutora, certa do seu bom entendimento. - Não, mãe. Foi a meia. - acrescentou o João. - Qual meia? - questionou, admirada. - A de educação Física. - tentando esclarecer o que realmente acontecera.

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- E uma meia fez-lhe isso? - interpelou, franzindo o sobrolho. - Sim. - reagiu o menino amedrontado. - Não minta. Então uma meia ia fazer-lhe isso no nariz? referiu desconfiando da palavra do filho. - Não, mãe. Desculpe. - concluiu o rapaz, tentando terminar aquela conversa.

Foi apoiado pela Rosário, logo que chegou a casa. Tratou do nariz do menino e conversou sobre o que tinha acontecido.

- Não disse nada ao professor? - admirou-se a Rosário. - Não. Não valia a pena. - garantiu o José, cabisbaixo. - Mas devia ter dito! O professor podia ter ajudado. - afirmou a empregada, certa do que dizia. - Não ajudava nada. - asseverou o aluno, mantendo o seu olhar colado ao chão. - Como assim? - desconfiada daquela certeza.

O João Paulo contou-lhe uma outra história que tinha acontecido numa outra aula de Educação Física.

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O professor tinha tomado conhecimento de uma brincadeira realizada pelo Rafa e pelo Manias e não tinha feito nada. Aliás até se tinha rido.

- Na semana passada, dois colegas fecharam-me num dos armários do Pavilhão onde se guardam as bolas. Quando o professor foi fechar o quarto de arrumos de material, ouviu um barulho. Abriu a porta e viu que eu estava lá fechado. relatou o João.

- O que faz o menino aqui no armário? - perguntara, admirado, o professor. - Fecharam-me aqui. - respondera o João, assustado. - Quem foi que fez isso? - questionara o ex-atleta. - Não sei, professor. Estava de costas. - desculpara o aluno, tentando evitar conflitos com os colegas. - Vá, saia lá daí. - ordenara o docente.

- Mal eu virei costas, o professor deu uma gargalhada e os colegas, que estavam a espreitar, ouviram e riram-se também. - continuou a contar o João. - Que mau exemplo! - admirou-se a Rosário com o comportamento do adulto.

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- Parece que só achou graça por me ver naquela situação. Não foi por mal. - voltou a desculpar o seu professor de Educação Física. - De qualquer forma devia ter dito alguma coisa aos outros meninos. - retorquiu a empregada. - Deixa lá, Rosário. Foi a brincar.

E assim desculpava, o João, mais uma "brincadeira" dos colegas, agora com o apoio do professor. Era assim aquele menino; aproveitavam a bondade que apresentava, sabendo que dali não viria qualquer reclamação ou resposta violenta.

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Os castigos

V

28 de janeiro

Pouco tempo depois do episódio da meia encharcada, também na aula de Educação Física, aconteceu algo de muito grave.

Tinha chegado à escola, o João Paulo, algum tempo antes do primeiro toque da manhã. Entraram, normalmente, os alunos para a sala onde iam ter Matemática com a professora Marta Costa.

Registaram o sumário, que a professora projetara na tela branca. Prepararam-se para resolver um exercício de matemática relativo a funções numéricas.

A professora ligou o seu computador e transferiu os dados para o projetor da sala. Era uma projeção bastante apelativa, com movimentos, sons e cores que atraíram a atenção de todos.

- Posso entrar, professora? - perguntou, colocando a cabeça no interior da sala através da porta entreaberta. - Faça favor, menino Rafa.

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- Obrigado, professora.

A professora continuava concentrada na sua apresentação e nem sequer tinha olhado para a porta de entrada. Sabia que, com toda a certeza do mundo, seria o Rafa.

Os meninos, colocadas as dúvidas sentidas e recebida a não-resposta habitual da professora, começaram a tentar resolver os exercícios.

Passaram-se quinze minutos.

- Acabou o tempo. Menino João Paulo, venha ao quadro, por favor. - ordenou a professora.

Levantou-se o João da sua cadeira e deu dois passos até estar em frente ao quadro.

- Vamos lá resolver esse exercício.

O aluno começou a apresentação da sua resolução. Terminada, olhou para a professora que examinava atentamente o exercício no quadro.

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- Muito bem. Está correto. Pode sentar-se. - Obrigado, professora. - agradeceu o aluno, dirigindo-se ao seu lugar sem sequer olhar para os colegas.

Sentou-se o João e levantou-se a Menezes. Logo que se sentou, o João reparou que o seu caderno apresentava uma série de desenhos e riscos que se estendiam pela maior parte das páginas guardadas na sua capa.

Olhou em redor enquanto levantava o dedo. Parou os olhos no Cucas, que estava mesmo na mesa atrás da sua; viu que se estava a rir enquanto fazia de conta que escrevia no seu caderno onde nenhuma das quadrículas apresentava um único número.

Baixou o dedo, tendo percebido o que se tinha passado, mas tarde demais.

- Sim, menino. Alguma dúvida? - indagou a professora. - Não, professora. Obrigado. Já percebi. - disfarçou o João. - Muito bem. Continuemos, menina Carolina.

Foram resolvendo os exercícios à vez. Uns acertavam, outros, como o Cucas que estivera muito ocupado com a pintura, ficou a olhar para aquele quadro com a cabeça da mesma cor: negra, sem nada perceber.

- 63 -


A professora explicou o exercício, resolvendo-o ela mesma e ouviu, no final, uma expressão de admiração por parte do questionado.

- Então é isso! - admirou-se o aluno, coçando a cabeça. - Sim, era isto.

No final da aula.

- Não se esqueçam de fazer os trabalhos de casa. Quem não os apresentar devidamente resolvidos na próxima aula, recebe um menos na avaliação. Não estou a brincar. Isto é muito importante. - comunicou a professora, autoritária. - Professora? - levantou-se um dedo a meio da sala. - Calma, já vai falar. Sem perceberem bem como se resolvem estes exercícios não podemos avançar. Há mesmo que trabalhar muito para ficar tudo percebido. - continuou a professora, certa da importância do comunicado. - Professora? - de novo o mesmo dedo a meio da sala. - Calma, só um pouco. Já fala. Não se esqueçam de trazer a calculadora e o caderno de exercícios que pode ser preciso para trabalhar na próxima aula. - solicitou a professora, continuando a sua explanação.

- 64 -


- Professora?

Ouviu-se o toque de saída e com ele o ruído da escola que marcava o alívio do fim de mais um momento matinal de aprendizagem.

- Sim, menina. Diga! - questionou a professora, tentando sobrepor a sua voz ao ruído que se instalara. - Nada, professora. Fica para a próxima. - respondeu a aluna que tinha levantado o dedo, esboçando um sorriso. - Muito bem.

Seguia-se, após o intervalo dedicado ao lanche leve da manhã, a aula de Educação Física.

Tendo aprendido, com o episódio da meia, que não poderia tirar os olhos dos seus bens, o João Paulo equipou-se sentado sobre a sua roupa para que nada desaparecesse.

Fizeram a aula no exterior. Pretendia-se verificar a qualidade do lançamento de peso de cada aluno.

Transportaram a bola e a fita-métrica; o professor fez-se acompanhar de um bloco de notas e uma esferográfica.

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Formaram fila, arremessando, à vez, a pesada bola de metal o mais distante que podiam.

Não importado com a distância que poderia atingir, o João Paulo preocupava-se com a aplicação da técnica que o professor tinha ensinado na aula anterior.

Estava bastante calor no exterior, o que fez com que todos transpirassem abundantemente.

Recolheram aos balneários, após arrumarem o equipamento que tinham transportado para o exterior. É claro que a pesada bola metálica ficou para o tecnicista do lançamento que se manteve sempre alerta durante a sua permanência no quarto de arrumos.

Tomaram o banho devido. Quando voltou ao seu lugar no banco de madeira, o João Paulo reparou que lhe tinham desaparecido as calças de ganga. Perguntou se alguém as tinha visto.

- Eu não. As minhas estão aqui e as tuas não me servem. afirmou o Rafa, levantando as suas calças no ar. - Eu também não. - acompanhou o Cucas. - Eu muito menos. - referiu o Blogues.

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Preparava-se para chamar o professor, seguindo as indicações que recebera da Rosário, quando o Rafa lhe disse.

- Olha ali. Estão umas calças penduradas na porta das meninas. Como terão ido ali parar? - afirmou, com admiração simulada, apontando para a porta.

O João, pegando num pequeno banco que ali se encontrava, dirigiu-se à porta do balneário feminino, subir o banco e elevou-se à altura da porta. Recolheu as suas calças e desceu. Terminou de se vestir e saiu juntamente com o amigo Mocas.

Dirigiram-se ao refeitório para a merecida refeição. O Rafa e os colegas do costume não se encontravam lá. Nada que fosse anormal já que saíam sempre para comer no café.

Terminado o almoço, foram, os dois colegas, dar a sua volta pelo jardim da escola. Tinham começado a sua caminhada quando foram chamados pela funcionária do telefone. O Senhor Subdiretor queria falar com o João Paulo urgentemente.

Calmamente, dirigiu-se ao gabinete. Estava certo que seria alguma questão menor.

Quando chegou à porta do gabinete deu de frente com os sorridentes Rafa, Luisinha e Cucas. Não percebeu muito bem o que se passava, mas aguardou que o chamassem.

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- Entrem se fizerem o favor. Então quem foi que fez isso? questionou o Subdiretor.

O João Paulo olhou para os lados sem entender a que "isso" se referia o Subdiretor.

- Foi aquele ali, o João. - apontou o Cucas. - Sim, foi ele. Eu vi tudo. - afiançou a Luisinha, choramingando.

- Diga lá, menino. Por que razão fez isso? - retomou o Subdiretor. - Não sei ao que se refere! - exclamou o João perdido no meio daquele questionário. - Ainda por cima é mentiroso. Então não sabe o que fez? voltou a perguntar o professor, mostrando estar zangado. - Quando? - questionou o João, ainda perdido. - Hoje mesmo, após a aula de Educação Física. - esclareceu o docente, dando um ligeiro murro na sua secretária. - Tomei banho e saí. Depois fui almoçar. - Está a brincar comigo? - dando um murro mais forte na mesma secretária.

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O João Paulo começava a ficar com a garganta seca e uma lágrima esforçava-se por vencer a força que o menino fazia para que não saísse.

- Não, desculpe. Não sei realmente do que está a falar. afirmou, soluçando, o aluno. - Disse aqui a sua colega que o viu a espreitar para o balneário feminino quando se vestia. - afirmou o Subdiretor, apontando para a Luisinha que mantinha uma lágrima no canto do olho.

O João olhou, admirado, para a Luisinha.

- Mas isso é mentira. Nunca faria isso. - firmando o seu olhar na colega. - Mas parece que fez. Estes dois colegas são testemunhas do que se passou. - acrescentou o Subdiretor olhando para os dois alunos. - Sim, Doutora. Eu e o José Maria vimos tudo. - confirmou o Rafa, solenemente. - Não é possível terem visto nada. - desconfiou o João. - Vimos sim. Estás a dizer que somos mentirosos? - questionou, elevando a sua voz.

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- Não. Só estou a dizer que não espreitei para lado nenhum. emendou o choroso João.

A lágrima vencera a dura luta e trazia consigo umas quantas iguais à primeira.

- Doutora. Nós vimos aquilo e temos como provar. assegurou o Rafa, dando um passo em frente. - Como querem provar? - perguntou o Subdiretor, admirado. - Até tiramos uma fotografia da cena. - informou o Cucas metendo a mão no bolso de trás das suas calças. - Mostrem lá a fotografia. - solicitou o Subdiretor, curioso.

Ligaram o telemóvel do Cucas e mostraram a dita fotografia. Via-se nela o João Paulo em cima de um banco, com as calças na mão e a porta do balneário feminino mesmo em frente. O Subdiretor nem sequer se lembrar de pensar em como teria sido possível, num momento imprevisto, aquele aluno ter o telemóvel pronto para fotografar o colega.

- Então menino. E agora? - acusou o professor, sorrindo. - Isso… não foi assim… - gaguejou o João.

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- Não foi assim? Então não está aqui à porta do balneário das suas colegas a espreitar com as calças na mão? afirmou o professor apontando para a fotografia do telemóvel que entretanto já tinha na sua mão. - Sim, estou. Mas não é … - tentava justificar, o João. - Não me diga que não é o menino! - ordenou o Subdiretor, colocando em pé e afastando a sua cadeira com o movimento, empurrando-a com as pernas. - Sou eu, sim. Mas… - confirmou o aluno que se sentia aprisionado e apontado por todos como sendo um criminoso muito procurado. - Mas nada. Sabe bem que isto é muito grave. Vou ter de comunicar aos seus pais e aplicar um castigo. Vocês podem sair e obrigado pelo gesto em defesa da vossa colega. afirmou, acompanhando os alunos à porta e colocando a sua mão nas costas do Rafa.

Saíram os três inocentes queixosos.

- Bem te disse que ia dar certo. - cochichou o Rafa, sorrindo. - Já está tramado. - previu o colega, orgulhoso do ato. - Aquilo de por as calças em cima da porta foi o máximo. - acrescentou a Luisinha, abraçada ao Rafa.

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- E tu, Luisinha. Parecias uma estrela de cinema. Merecias um Óscar. - retribuiu o Rafa, limpando a água colocada na cara da colega para substituir a lágrima necessária à encenação. - Somos os maiores. - congratulou o Cucas.

- Então, menino. Como vamos resolver esta questão? perguntou o Subdiretor, certo de tudo o que se tinha passado e confiante nas suas capacidades investigativas. - Não sei. Não sei de nada. - confessou o João, confuso. - Eu também não, mas alguma coisa vai ter de acontecer. condescendeu o professor pegando numa caneta e numa folha de papel. - Mas posso contar o que se passou. - solicitou o João na esperança de poder reverter a situação. - Já vimos o que se passou, mas se pretende dar outra versão, faça-me esse favor. - condescendeu o professor, começando a escrever na sua folha.

O João Paulo contou a história exatamente como ela tinha acontecido. Na realidade não tinha visto nada nem tinha pretendido ver o que quer que fosse. Só queria recuperar as suas calças.

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- O menino acha que alguém vai acreditar nessa história? A fotografia não mente e os seus colegas disseram a verdade. O menino, ainda por cima, quer enganar-me. - afirmou com escárnio. - Não. Esta foi a verdade. - garantiu o João já convencido da culpa que lhe era atribuída. - Tem alguém que confirme a sua versão? - interpelou o responsável pela escola, ciente da resposta que receberia. - Não. Já tinham saído os outros colegas e só lá estavam os que aqui viu e o Pedro Pereira. - confirmou o João as expetativas do interlocutor. - Muito bem. Não pode provar nada. Pode ir. - ordenou, apontando a porta de saída ao aluno que limpava constantemente as lágrimas da cara. - Mas… - esboçando um contraditório. - Saia, se faz favor. Já percebi tudo o que se passou. asseverou o Subdiretor, colocando um ponto final na conversa e na frase escrita na folha que tinha colocada à sua frente.

O João saiu dali a chorar. Dirigiu-se à aula de Educação Visual que já tinha começado.

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- Então o João fez asneiras! - perguntou o professor, sorridente e já ao corrente da situação que lhe tinha sido relatada, expressivamente, pelo Rafa, justificando o seu atraso e o dos outros dois colegas. - Pois foi, professor. É um mirones. - antecipou-se a Luisinha. - Não diz nada, João? - voltou o professor ao ataque. - Ele sabe o que fez. A espreitar as meninas! Que depravado! - acusou a Vivi.

O João não conseguia tirar da sua boca seca nem uma palavra que pudesse dirigir ao seu professor ou que contrariasse o vitorioso Rafa. Limpava as lágrimas da cara enquanto se dirigia para o seu lugar.

Ali passou os quarenta e cinco minutos chorosos. No final tinha uma folha de papel Cavalinho pintalgada de lágrimas sem cor.

Sentiu a injustiça que lhe tinha sido feita pela escola; já sabia que não era adorado pelos colegas, mas a escola deveria ter percebido o que se tinha passado. Devia ter ouvido os seus motivos e as suas explicações.

Não estava preocupado com os castigos que lhe fossem impostos.

Não

estava

preocupado

com

os

pais.

preocupado com a injustiça.

Foi comunicado o sucedido à professora Carla Penha.

- 74 -

Estava


Foi aberto procedimento disciplinar contra o menino. Foi-lhe atribuída pena de três dias de integração na comunidade.

Foi enviada comunicação para casa. Tudo realizado com a mesma eficácia e rapidez com que tinha sido concluída a sua culpa no caso.

- Boa tarde, mãe. - disse o João de forma entristecida. - Vamos. Tenho muito que fazer. - mandou a Senhora Doutora sem reparar no estado do filho. - Tenho de lhe dizer uma coisa, mãe. - preparando para confessar o que acontecera e apresentar explicações. Mantinha os olhos vermelhos direcionados para o chão. - Agora não me pode distrair da condução. - regulou a Senhora Doutora. - Mas é importante. - retorquiu o rapaz. - Agora estou a conduzir, menino. Não vê? - contrariou a Doutora, atenta à condução e ignorante do aspeto do filho.

Fizeram a restante viagem calada durante os usuais trinta minutos.

- 75 -


O João Paulo chegou a casa, ainda calado. Subiu ao seu quarto e ali ficou fechado. Foi chamado pela Rosário para descer e jantar. Não obtendo resposta, subiu ao quarto e deparou-se com o João que chorava deitado na sua cama.

- O que se passa, menino? - perguntou a preocupada Rosário, apercebendo-se do estado do menino. - Nada, Rosário. É a escola. - despachou o João, cansado da confusão do dia. - O que se passou na escola? - insistiu a Rosário.

Contou à Rosarinho o que se tinha passado naquele dia na aula de Educação Física. Relatou os factos ao minuto.

- Mas isso é uma injustiça! O menino não fez nada! - ajuizou a empregada, admirada com a injustiça precipitadamente cometida. - Pois não, mas agora vou ser castigado. - certificou o menino, colocando a mão direita na testa. - Isso é o que vamos ver. Vou buscar o seu jantar. Não se preocupe que eu resolvo tudo. - indignou-se a mulher, decidida a fazer justiça.

- 76 -


- Não, Rosário. Deixe estar. - respondeu o José derrotado. - Não, meu querido menino. Não posso deixar estar. retorquiu a Rosário.

Saiu e subiu, dez minutos depois, com o jantar do João Paulo que continuava embrulhado na sua almofada já húmida.

Acompanhou o João durante o jantar. No final confortou-o, encaminhou-o para o banho e saiu dando-lhe as boas-noites.

Bateu na porta do escritório.

- Sim? - questionaram. - Sou eu, minha Senhora. - informou a Rosário, colocada perante a necessidade de buscar defesa para o menino. - Diga, Rosário. - ordenou a Doutora. - É o menino. Está a chorar no quarto. - informou a empregada, revoltada. - A chorar? Magoou-se? - perguntou a Senhora Doutora. - Não, minha Senhora. Não se magoou. - Então qual o motivo do choro? - tentando esclarecer a dúvida.

- 77 -


- Foi na escola. - adiu a Rosário.

Contou à mãe a história relatada pelo José.

- Estas crianças de hoje em dia lembra-se de cada coisa! Agora vai ter de sofrer as consequências! Pode ser que assim aprenda. - concluiu, definitiva, a Doutora. - Mas, minha Senhora. O menino não fez nada. - reagiu a Rosário, ainda mais revoltada com aquela reação da Senhora Doutora. - Para ser castigado, alguma coisa fez. Depois falamos. Agora estou a meio de um artigo de opinião. - confirmando a culpa que certamente estava bem estabelecida. - Muito bem, minha Senhora. Com licença. - solicitou, sentindo a indiferença que recebia daquela mãe.

Já nem se dirigiu à biblioteca por saber a reação que ia ouvir e não queria ficar ainda mais revoltada com toda aquela injustiça que faziam com o seu menino. O Senhor Doutor iria falar, com toda a certeza, de leis, de direitos e deveres do cidadão e não resolveria nada.

Dois dias depois do acontecimento, era entregue, em casa, uma carta, registada com aviso de receção, da escola. Trazia uma comunicação

de

resultado

de

- 78 -

Procedimento

Disciplinar.


Confirmava-se a culpa do aluno e a penalização a que seria sujeito: nove horas, distribuídas por três dias, de atividades de integração na escola - organização da biblioteca da escola e limpeza do espaço.

A Rosário, naquela mesma noite, deu conhecimento ao Senhor Doutor e à Senhora Doutora da missiva.

A Senhora Doutora abriu a carta.

- O que é isto? - questionou a Doutora, intrigada e incomodada pela intromissão. - Não sei, minha Senhora. - respondeu a Rosário. - É uma carta da escola que fala de um processo disciplinar. Deve ser para o Senhor Doutor. Ele é que percebe destas questões de leis. Deixe-a ficar em cima da sua secretária na biblioteca. - ordenou a Doutora, empurrando o problema para o campo da Justiça. - Sim, minha Senhora. - acedeu a ainda revoltada empregada.

Colocou a referida carta em cima da secretária e saiu. Subiu ao quarto do João Paulo e disse que tinha chegado uma comunicação da escola.

- 79 -


- O que dizia? - perguntou, curioso, o João. - Não li. Ficou em cima da secretária do papá. - desvalorizou a Rosário.

O João desceu a correr e foi fazer a leitura do texto recebido. Pousou-a no mesmo local junto dos muitos processos que o pai mantinha acumulados em pilhas.

Não mais se ouviu falar daquela comunicação escolar, nem o Senhor Doutor a referiu em qualquer momento.

No dia seguinte começou a cumprir a sua injusta penalização disciplinar.

Talvez tenha sido a primeira vez, mas o Rafa, o Manias, o Cucas, o Blogues, a Luisinha e a Vivi fizeram questão de se dirigir, na hora de almoço, à biblioteca para ver o colega a cumprir o castigo, registando o momento em fotografia.

Pegavam, aleatoriamente, em livros, folheavam algumas páginas e pousavam no carrinho de transporte. Depois ficavam ali sentados no sofá a ver o João a colocar o escrito no devido lugar, seguindo o número de registo.

Repetiam a consulta logo que a anterior se encontrava devidamente colocada.

No final do dia, enquanto esperava a chegada do seu transporte para casa, terminava a arrumação dos restantes livros e procedia à limpeza do espaço.

- 80 -


Repetiu

aquele

processo

durante

os

três

dias

da

penalização. Almoçava rapidamente durante os quinze minutos que lhe restavam e, religiosamente, dirigia-se ao seu castigo para cumprir as nove horas a que estava obrigado.

No final do cumprimento sentia que tinha, injustamente, satisfeito a sua divida para com a comunidade.

Num desses dias que tinha passado na biblioteca a cumpri o seu castigo, cruzou-se com uma professora que dava apoio às atividades daquele espaço.

A professora vira, no dia anterior, aquele menino que lhe pareceu não encaixar no perfil de aluno que causasse problemas.

- Boa tarde. - afirmou a professora sorridente. - Boa tarde, professora. - cumprimentou o João educadamente. - Já o vi aqui ontem a fazer estas limpezas e não entendi os motivos que poderiam tê-lo trazido a esta situação. tentando recolher mais informação da boca do menino. - Foram umas coisas que aconteceram! - concluiu o João. - Não me quer contar essas coisas? - solicitou a atenciosa professora, baixando e adoçando o seu tom de voz. - É melhor não, professora. Tenho de acabar isto. - disse o ocupado aluno.

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- Fazemos assim. Eu ajudo-o a arrumar e vai-me contando as suas aventuras. - propôs a professora.

Partilharam aquela atividade e foram trocando histórias. A professora Sílvia Araújo mantinha a sua impassividade, não querendo que o menino parasse o seu relato se verificasse alguma reação da sua parte.

O João relatou a causa do seu castigo, mas, agradado em ter ali alguém que o ouvia sem recriminações, juntou muitos dos outros episódios passados desde o início do ano.

No final do relato, a professora perguntou se poderia dar um abraço ao João. Este respondeu afirmativamente e a Sílvia abraçou-o sensibilizada pela sua história.

Naquele dia, o João voltou a casa com o coração mais leve.

Naquele dia, a professora Sílvia chegou a casa e chorou sozinha.

- 82 -


A mensagem

VI

28 de fevereiro

A meio do segundo período, numa aula de Tecnologias da Informação e Comunicação, os alunos dirigiram-se para a sala dos computadores.

Entraram e sentaram-se aos pares em frente ao computador. O professor explicou o exercício que fariam naquela aula, colocando umas imagens explicativas na tela de projeção. Seria necessário criar uma folha de cálculo com tabela de contagem de valores aleatórios.

Recebeu, cada par de alunos, uma fotocópia com os dados que cada um deveria introduzir na sua folha. Estabeleceu um tempo máximo de trinta minutos para a realização da tarefa.

Deu ordem para começar. Ligados os computadores, introduzidos os dados de arranque de sessão, surge uma imagem, no ambiente de trabalho de todas as máquinas, onde surgia a seguinte mensagem acompanhada de um boneco representativo:

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"Sou o Joãozinho. Gosto de meter papel higiénico no nariz e de pintar a minha roupa de castanho."

Começaram a rir os alunos da turma, exceto o João Paulo e o Marco Miranda que se colocaram em par frente ao seu computador.

Ouvida aquela confusão, o professor interrompeu.

- O que se passa aí? - pergunto o professor em voz alta e ríspida. - Professor, os computadores estão todos com vírus. concluiu o Blogues recorrendo aos seus avançados conhecimentos informáticos, tentando, ao mesmo tempo, disfarçar a sua culpa. - Como assim? - retornou o professor admirado. - Estão todos a dizer o mesmo. Veja! - complementou a Luisinha, julgando estar a exprimir-se numa linguagem correta e conhecedora.

O professor dirigiu-se a um dos terminais e leu a mensagem animada.

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- Quem colocou isto nos computadores? - inquiriu o professor, agora inquieto.

Ninguém falou. Ao fundo o Blogues sorria silenciosamente. O Blogues, nome pelo que era conhecido pelos amigos mas que tinha sido batizado como Pedro Pereira, era um menino muito entendido em informática. Conseguia aceder à rede da escola e colocar em todos os computadores da rede aquilo que bem lhe apetecesse.

Era um amigo que o Rafa utilizava quando precisava de trabalhos passados a computador e que era mantido na proximidade por questões de oportunidade.

O Pedro Pereira tinha treze anos e tinha vindo para aquela escola no quinto ano.

- Ninguém fala, mas eu vou descobrir o que se passou. assegurou o docente. - Deve ter sido algum engraçadinho. - adiantou o Rafa.

Tentava o Rafa desviar as atenções de si e do amigo de ocasião.

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- Se calhar foi alguém que teve aula aqui antes de nós! - adiu o Rafa. - Vou já apagar isso dai. Toca a trabalhar que já não vos resta muito tempo. - informou o informático.

O Blogues fez o trabalho rapidamente e enviou, pela rede, para o Rafa, para o Cucas e para o Manias. O tempo que lhe restou dedicou-o a enviar aquela mensagem de ambiente de trabalho para os restantes computadores das salas de aula.

O João Paulo pediu para sair por um minuto.

- O que se passa, menino? - inquiriu o docente. - Nada professor. Só tenho necessidade de ir à casa de banho. - comunicou o aluno entristecido. - Faça favor. - autorizou o professor. - Obrigado, professor. - Deve ir meter mais um pedaço de papel higiénico no nariz! - concluiu o Rafael Pereira sorridente.

O professor mandou o Rafa calar-se com aqueles comentários sem propósito.

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O João Paulo foi à casa de banho e chorou. Começava a sentir que afinal aquilo nunca mais iria acabar. Estavam sempre a pegar com ele, a brincar e a envergonhá-lo. Chorou mais um pouco sozinho naquela casa de banho com cheiro estranho.

Lavou a cara com um pouco de água para tentar esconder os olhos azul-céu avermelhados e turvos.

Regressou à sala. Ao passar junto do local onde estava o Rafa com a sua colega de trabalho foi agraciado com um "chorãozinho".

Acomodou-se, de novo, junto do seu colega de trabalho. Incomodado com tudo o que se tinha já passado, o Marco Miranda prometeu que iria falar com a Diretora de Turma para lhe contar tudo.

O João Paulo suplicou para que não o fizesse. O amigo não cedeu e repetiu que aquilo não podia continuar mais assim.

Terminada a aula, o João Paulo dirigiu-se, de novo, à casa de banho. O Mocas foi procurar a Diretora de Turma. Os restantes colegas de turma foram para o campo dar uns toques na bola de futebol e rir da brincadeira.

O Marco pediu à funcionária da entrada da escola que chamasse a Diretora de Turma, Carla Penha. A funcionária foi

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procurá-la, tendo vindo a encontrar a docente agarrada ao telemóvel no corredor de acesso à sala de professores.

A professora pediu que mandasse o menino esperar que já o atendia.

- A professora já vem falar contigo. - disse a funcionária. - Obrigado.

O Mocas esperou e pouco tempo depois surgiu a agitada professora.

- Diga lá, menino. O que se passa? - interpelou a curiosa Diretora de Turma. - Precisava de falar com a professora sobre o João Paulo. informou o sério Marco. - Como assim? Ele andou a fazer asneiras? - indagou a professora, prevendo trabalhos que teria. - Não, professora. Ele não fez nada. - replicou o Mocas. - Diga então! - descansou a professora. - Podemos marcar para outra hora, professora. Está quase a tocar e não vai dar tempo para acabar a conversa. requereu o aluno, mostrando sinais de inquietação.

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- É uma coisa assim tão complicada? - retornou a Carla Penha. - É sim, professora. - confirmou o aluno, mantendo a seriedade. - Muito bem. No final das aulas da manhã, antes do almoço, encontramo-nos aqui e falamos. - combinou a docente. - Muito bem, professora. Obrigado. - acedeu o aluno, partindo com pressa em direção à sala de aula.

O Marco foi para a aula de Inglês com a certeza que no intervalo seguinte resolveria o problema do amigo.

Na aula de Inglês o professor reparou que havia uma mensagem no ambiente de trabalho do computador. No entanto não ligou ao que estava escrito e não usou o computador durante a aula.

No final, o Marco saiu decidido a conversar com a Diretora de Turma, mesmo que não tivesse tempo para depois almoçar. Quando saiu da sala, o João Paulo veio atrás dele e apanhou-o à saída do bloco.

- Olha o menino do papel higiénico no nariz! - dizia, para que todos ouvissem a sua graça, um aluno do nono ano.

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- Olha o castanhinho! - acrescentava, ainda num tom mais elevado, outro aluno de uma outra turma de oitavo ano. - Coitadinho do menino que se suja todo! - dilatava uma outra aluna que passava.

Estes foram alguns dos comentários que ouviram quando chegaram ao átrio de entrada. O João nem chegou a falar com o amigo e fugiu para o campo de futebol.

O Marco pensou em ir atrás dele, mas decidiu que seria mais importante contar à Diretora de Turma.

Quando chegou, voltou a pedir à funcionária para chamar a professora. Foi chamada e encontraram-se num pequeno gabinete destinado ao atendimento dos pais e encarregados de educação.

- Diga então o que de tão grave se passa. - questionou a professora ainda muito curiosa. - O que se passa, professora, é que o João Paulo tem sido maltratado por alguns colegas de turma. Ainda agora aconteceu

com

uma

mensagem

colocada

nos

computadores da escola. - relatou o amigo. - Vamos lá ver essa mensagem. Ligue esse computador que está aí. - ordenou aquela professora, que tanta alergia

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demonstrava ter por aquelas máquinas, apontando com o dedo.

O Marco ligou o computador e surgiu, de imediato, a mensagem.

A professora leu.

- Quem colocou isto no computador? - questionou a docente, admirada pelo que lia. Como seria possível colocar aquelas coisas em todos os monitores. - Deve ter sido ou o Pedro Pereira ou o Rafael Pereira. Ou, se calhar, os dois. - afirmou o Marco. - Sabe que essa é uma acusação muito grave? - informou a Diretora de Turma. - Sim, professora. Eu sei. - Tem a certeza do que está a dizer sobre os seus colegas? tentando que o aluno pensasse bem no que estava a dizer, reconhecendo a responsabilidade que estava a assumir. - A certeza não tenho, porque não vi, mas é quase certo que foi um deles. - declarou. - Mas se não tiver a certeza, não pode acusar ninguém. O que o leva a concluir que foram os seus colegas? - apontou a professora, solicitando explicações.

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- Esses dois meninos já fizeram outras coisas ao João Paulo. Um dia, no bar dos alunos, o Rafa… o Rafael Pereira entornou um pacote de leite com chocolate por cima da roupa do João. - adicionou o defensor do João. - Quando aconteceu isso? - perscrutou a Diretora de Turma, inquieta relativamente a tudo o que estava a ouvir da boca daquele menino. Nunca se tinha apercebido, nem ela nem outro professor, de qualquer questão daquele género dentro da turma. - Foi logo no início do ano. - E ninguém disse nada? - admirou-se com a quantidade de tempo passado. - Ele pensou que tinha sido sem querer e calou-se. - justificou o menino. - O que mais aconteceu? - tentando tomar conhecimento da totalidade dos casos surgidos. - Outro dia, no balneário, tiraram-lhe uma meia e depois levou com ela no nariz. - somou o Mocas. - O professor de Educação Física não resolveu essa situação? - interpelou a Diretora, admirada. - Não professora, ele nem viu. - E o funcionário do pavilhão? - O funcionário só nos disse para sair dali para fora. - replicou o amigo acrescentando um encolher de ombros.

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- Realmente eu vi o João com um pedaço de papel higiénico no nariz um dia que passou por mim. Mas disse que tinha sido um acidente. - recordou a professora. - Foi nesse dia, sim. - confirmou o menino. - E dessa situação, já que a do leite foi sem querer, tem a certeza que foram os colegas que referiu os culpados pelo acontecimento? - Ai também não vi, mas pela reação do Rafa só pode ter sido ele. - Voltamos ao mesmo. Só pode ter sido, mas não há certeza de nada. O que quer, o menino, que eu faça sem ter certeza de nada? - perguntou a professora, não sabendo muito bem o que seria melhor fazer; podia começar a investigar, o que daria trabalho e muitos papéis, ou esperar que alguém fizesse alguma coisa. - Se calhar podia chamar o Rafa e o Blogues … - sugeriu o discente. - Quem? - pretendendo solicitar esclarecimento, mostrando um franzir de testa. - Desculpe. Podia chamar o Rafael e o Pedro e perguntar se tinham sido eles ou não! - aclarou o menino. - Mas aconteceu mais alguma coisa? - Sim, professora.

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O Marco contou à Diretora de Turma outras situações em que o amigo tinha sido castigado pelos colegas. Relatou situações que tinham acontecido desde o início do ano. A umas tinha assistido e outras tinham sido contadas pelo João.

No final daquela conversa bastante longa, a professora perguntou, de novo, se tinha certeza de quem teria praticado aqueles atos que estava a relatar.

- Certeza, certeza não tenho, mas só podiam ter sido eles. Nunca gostaram do João desde o início do ano. - voltou o Marco a afirmar. - Não gostar não quer dizer que lhe façam mal. Tente ter certezas e depois venha falar comigo de novo. - pediu a Diretora de Turma, decidida a ver se alguém faria alguma coisa antes dela. - Eu sei professora, mas … Está bem, eu vou tentar. - concluiu o amigo do João, sentindo que tudo iria continuar a acontecer na mesma.

Tocou um telemóvel e a professora abriu a mala.

- Desculpe, mas agora tenho de atender esta chamada importante. Até logo. Vá almoçar. Estou, sim?

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O rapaz lá foi para a cantina tentar ainda almoçar, mas a vontade era realmente pouca. Sentia-se impotente para ajudar o amigo.

No final do almoço falou com o João Paulo e contou-lhe a conversa com a Diretora de Turma.

- Eu disse que não valia a pena falar. - confirmou o João a sua certeza, dececionado. - Mas eu não podia ficar calado mais tempo. - ripostou o colega.

No dia seguinte, na aula de Formação Cívica, a Diretora de Turma começou por chamar o Rafael Pereira e o Pedro Pereira.

- Cheguem cá meninos. Tenho de lhes fazer umas perguntas. - solicitou a Diretora de Turma, apontando para os dois alunos.

Ambos se aproximaram da secretária da professora.

- Sim, professora. - respondeu o Rafa.

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A professora relatou o que lhe tinha sido contado, enquanto os dois meninos iam abrindo a boca de admiração. A Luisinha e a Vivi, ao fundo da sala, iam esboçando um sorriso tapado com a mão. - Meu Deus professora. Nós nunca fizemos nada disso. Só aquilo do leite, mas foi sem querer. Até a funcionária viu e pode falar com ela. Quem lhe disse uma coisa dessas? exclamou o Rafa, dando um passo atrás, olhando para os colegas e colocando as mãos na cabeça. - Quem me disse não interessa. O importante é se é verdade ou não. - replicou a professora, enquanto o Rafa olhava para o João Paulo. - É completamente mentira, professora. - acrescentou o Pedro Pereira, que se tinha sentado na mesa que estava mesmo atrás de si, como que se sentindo mal com aquela acusação injusta.

A professora deu o assunto por encerrado naquele momento. Referiu, no entanto, que se voltasse a acontecer alguma coisa teria de agir.

No final da aula, os dois meninos inocentes chamaram o João Paulo para falar com ele.

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- Então agora também és um queixinhas! És mesmo um triste. Vê lá se te calas. Aguenta e cala-te ou ainda levas mais e acontecem-te coisas piores. - aconselhou o Rafa. - Mas eu não disse nada a ninguém. Não fui eu. - afirmou o João. - Cala-te Joãozinho. Ainda levas um cachaço ou pior. prometeu o Rafael.

Levou a sua mão ao pescoço do João Paulo e aplicou-lhe, com toda a força, uma sapatada com a mão que fez o colega bater contra um poste ali próximo.

- Vê lá se tens cuidado! Ainda acabas por te magoar sem querer! - aconselhou o agressor.

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A visita de estudo

VII

O final do período aproximava-se rapidamente. O João Paulo faltou às aulas daquele dia. Tinha acordado com temperatura muito alta.

A Rosário tinha reparado, quando o acordou, que estava muito calado e com os olhos azul-céu muito vermelhos. Encostou os seus lábios à testa do menino e sentiu aquele calor.

- Não, menino. Deixe-se estar. Hoje não vai à escola. Está muito quente. - decidiu a Rosário. - Mas tenho de ir, Rosarinho. Está quase a terminar o período e pode haver alguma coisa importante para fazer. - insistiu o João, tentando levantar a pesada cabeça da almofada. - Não, hoje não vai. Vou telefonar para a escola e para a Senhora Doutora. Deite-se. Trago-lhe já alguma coisa para comer e para beber. - repetiu a empregada, ajudando o menino a colocar confortavelmente o corpo na posição inicial. - Não quero, obrigado.

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- Não perguntei. Eu já trago.

Saiu, a empregada, e foi imediatamente telefonar para a escola, avisando que o João Paulo estava doente e não iria às aulas.

Telefonou, de seguida, à Senhora Doutora.

- Sim? - atendeu a Doutora, incomodada com a interrupção da sua atividade. - Sou eu, Senhora Doutor. A Rosário. - informou a empregada. - Diga, Maria do Rosário. - demonstrando o seu cada vez maior incômodo. - O menino está doente. - comunicou a Rosário, esperando indicações do outro lado. - O que se passa com ele? - indagou a Doutora. - Está muito quente e sem forças. Acho que é melhor não ir à escola hoje. Depois, logo à noite, a Senhora Doutora vê o que se passa. - determinou a empregada. - Se acha melhor e vê que não está em condições, que fique. Ligue ao Doutor do menino e peça para que vá aí a casa vê-lo. Logo não terei tempo. - acedeu a Senhora Doutora, esperando poder voltar à sua atividade normal no Hospital.

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- Muito bem, Senhora Doutora. Até logo.

A Rosário subiu, novamente, ao quarto do João Paulo, levando-lhe um sumo e umas bolachas que lhe mantivessem o estômago forte e resistente à doença.

Confirmou que não estava bem e que a temperatura se mantinha alta. Telefonou, ali mesmo do quarto, ao médico do menino, pedindo que viesse a casa.

Manteve-se ali a seu lado forçando o consumo das bolachas e do sumo.

A campainha de casa tocou, uns vinte e cinco minutos depois.

- Bom dia, Senhor Doutor. - Bom dia. O que se passa? - questionou o médico. - O menino está muito quente. Acho que está doente. referiu a Rosário. - Vamos ver, então.

O diagnóstico foi uma infeção viral leve que estava a atacar naqueles dias os mais novos.

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Havia necessidade de manter o menino bem hidratado, tomar um medicamente que imediatamente prescreveu e estar atento à temperatura. Para além disso, descanso.

- Não se preocupe Doutor. Já não saio mais daqui. Vou tratar bem dele. - certificou a Rosário que acompanhava o médico na sua saída. - Tenho a certeza que está bem entregue. - afirmou o médico, conhecedor da dedicação da mulher àquele menino.

Naquela noite, a chegada da senhora Doutora e do Senhor Doutor a casa foi seguida da sua recolha imediata ao escritório e à biblioteca. A Rosário informou-os do estado do menino.

- Muito bem. - despacharam, de igual forma, a intrusa ambos os progenitores.

Três dias de aconchego caseiro e de cuidados da Rosário foram a base da recuperação do João Paulo.

- Vamos sair. Termine o seu leite! - ordenou o Senhor Doutor, começando a sair a porta de casa.

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- Já vou, pai. - afirmou o menino, deixando um pouco de leite ainda no copo. - Não podemos demorar que estou atrasado. - respondeu o Senhor Doutor já de fora da porta de casa. - Sim, pai. - acedeu o menino, colocando, rapidamente, a mochila às costas e saindo a correr.

Fez, de novo, a viagem até à escola. Lá chegados, o menino saiu e despediu-se do pai que rapidamente partiu.

Entrou e verificou que todos os colegas de turma se encontravam ali, junto à entrada da escola, na companhia da vaporosa professora Júlia Ramos.

Questionou a professora sobre o que se passava e foi informado que estavam à espera do transporte para a visita de estudo que estava marcada para aquele dia.

- Visita de estudo? - tentando confirmar se tinha ouvido bem a informação. - Sim, menino. Na aula passada marcamos uma visita de estudo. - confirmou a professora. - Na aula passada? Eu faltei porque estava doente! recordou o João, mostrando o seu desconhecimento relativo à atividade.

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- Pois, é verdade. O menino faltou e voltou mais cedo. Isso, agora, vai ser um problema. - complemento a professora, tentando controlar dois outros alunos que se afastavam na brincadeira. - Mais cedo? - sem entender a expressão. - Sim. Na aula em que combinamos a visita, alguém disse que o menino estaria ausente toda a semana e não o contei para a saída. - relembrou a professora com os dois alunos já debaixo do seu controlo. - Mas eu não tinha dito a ninguém que estaria doente toda a semana! - afirmou o João Paulo, admirado com a informação transmitida.

- Menino Rafael. Chegue aqui, por favor. - convocou a professora. - Sim, senhora professora. O que posso fazer por si? perguntou o Rafa, apressando-se a colocar-se à disposição da Júlia Ramos. - Foi o menino que disse que o seu colega estaria ausente toda a semana. Como o soube? - questionou a docente. - Pareceu-me ouvir dizer isso. Como estava preocupado com o sucesso da visita de estudo da senhora professora, antecipei essa notícia. - justificou, carinhosamente, o aluno. - Mas não tinha a certeza! Não devia ter-me comunicado isso. Agora o seu colega não tem lugar e o menino deveria

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dar-lhe o seu. - criticou a professora, colocando o seu cabelo para trás. - Eu até cedia o meu, mas nem marquei almoço para hoje. - Pois, mas o erro foi seu. - acusou a docente, mostrando o seu descontentamento. - Desculpe, professora. Mas até tenho a certeza que o meu colega não quer ir no meu lugar. - sorrindo delicadamente para a professora e para o colega. - Vamos saber.

O Rafa, aproveitando as costas da professora, olhou de forma ameaçadora para o João Paulo, mostrando-lhe um punho fechado.

- O que diz o menino? Quer ir no lugar do seu colega? perguntou a professora. - Não, senhora professora. - respondeu o João Paulo, estacando o seu olhar no Rafa. - Tem alguém que o possa vir buscar para ir para casa? - Não, não tenho ninguém. Só ao final da tarde. - disse o menino, entristecido. - Então teremos de arranjar o que fazer. Não vai ter aulas todo o dia! - determinou a professora de Geografia.

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- É melhor eu ficar a recuperar as matérias dos dias em que faltei. - propôs o jovem, tentando libertar-se daquele olhar que ainda o prendia.

O João Paulo respondia à professora de Geografia, mas não conseguia tirar os olhos do Rafael que mantinha a sua posição intimidadora. Alterou-a logo que a professora se virou para si.

- Desta vez vai, menino, mas não volte a fazer o mesmo. - Desculpe, senhora professora. Foi sem intenção. reconheceu o Rafa, pensando na alegria de ter prejudicado o colega.

O João Paulo ficou ali na escola a copiar para os seus cadernos as matérias em atraso. O Marco emprestara-lhe os seus apontamentos para que ficasse a par dos conteúdos perdidos.

Passou todo o dia na biblioteca a copiar os apontamentos. Viu a professora com quem tinha já falado quando aconteceu o problema das mensagens. A professora Sílvia também o tinha visto e, algum tempo depois de o João Paulo entrar pela porta em vidro que guardava os livros, dirigiu-se a ele.

- De novo aqui sozinho, menino? - questionou a admirada professora.

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- Sim, mas agora não é por castigo. - respondeu o João, tentando parecer menos triste do que realmente estava. - Melhor assim. Precisa que o ajude? - ofereceu-se a docente. - Não, muito obrigado. Não e necessário. - Se precisar, eu vou estar por aqui. - Muito obrigado. - Está triste? - observou a professora Sílvia olhando fixamente para o João. - Não, estive doente e ainda recupero. - disfarçou o João, tentando enganar simpaticamente a mulher. - Mas essa sua carinha não é de doença, é de tristeza. Já o conheço um pouco! - observou, sorrindo carinhosamente para o menino que baixara a cara. - Não, foi de estar com temperatura. Ainda me sinto fraco. confirmou envergonhado por não estar a dizer a verdade. - Muito bem. Se precisar falar, chame por mim. - Sim, obrigado. Se precisar eu venho cá falar com a professora. - agradeceu, afastando-se daquele local.

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A fotografia

VIII

29 de março

Aquele menino muito educado e calado sentia-se cada vez mais só entre os colegas de turma.

Só podia contar com a compreensão do seu amigo Marco Miranda. A Carolina Menezes também não se punha ao lado de ninguém. De resto, todos os outros, até o seu vizinho Carlos Manuel, se tinham colocado no grupo dos que o maltratavam ou apoiavam os comportamentos desse grupo.

Um dia, logo pela manhã, veio ter com o João Paulo, alguém que foi totalmente inesperado. A Valéria cumprimentou-o e deu-lhe um abraço apertado, acrescentando um beijo na cara.

O João Paulo não percebeu aquele gesto da colega, mas sentiu-se bem por receber um carinho ao fim de tanto tempo.

Estranhamente, durante os dias seguintes, ninguém se meteu com ele e até o convidavam para as brincadeiras e para o futebol. Ele, desconfiado, lá se ia chegando cautelosamente daqueles que o tinham afastado até ao momento.

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A Valéria aproximava-se cada vez mais do João Paulo. Na hora de almoço até se sentava ao seu lado na mesa. Passeava com ele e com o amigo Mocas nos seus passeios pelo jardim da escola após o almoço.

Começaram a visitar a biblioteca em conjunto. Falavam muito e a surpreendente menina mostrava-se muito cuidadosa e carinhosa com o João.

Um dia, para grande surpresa do João Paulo, a Vivi acercou-se do colega, deu-lhe um beijo demorado na cara e disse que queria ser amiga dele. Acrescentou que gostava muito dele e que o achava muito interessante.

O João não conseguiu dizer nada. Só sentiu a sua cara aquecer e experimentou esse calor facial estranho que lhe corria pela coluna. Sorriu, naquele momento, mas nada mais lhe saiu da boca.

No final do dia, chegado a casa, falou com a única pessoa que se dispunha a ouvi-lo. Também não conseguiria falar daquele assunto nem com o pai nem com a mãe que continuavam sempre muito ocupados com os seus afazeres.

A Rosário ouviu-o falar sobre aquela aproximação súbita da colega de turma. Deu-lhe um abraço.

- Se calhar a sua colega até gosta do menino. - disse, orgulhosa, a empregada.

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- Mas como pode ser isso, assim tão rápido? - desconfiou o João. - As coisas acontecem assim. Não escolhem hora. - afirmou a mulher, recorrendo a alguma experiência adquirida com a idade. - Não sei se acredite muito no que se está a passar. comunicou o João, torcendo um pouco o nariz. - Menino, não seja assim. A sua colega deve gostar realmente de si e quer estar consigo. Não desconfie de toda a gente. Fale com a menina e perceba se ela gosta ou não de si. O amor nunca fez mal a ninguém. - determinou a Rosário, tentando orientar o menino em direção à felicidade. - E se eu gostar também dela? - supôs o menino. - Se gostar, melhor ainda. - concluiu, rapidamente, a Rosário, sentindo que o seu menino estava realmente a sentir alguma coisa pela colega. - Tenho medo, Rosarinho. - confessou, aproximando-se um pouco da interlocutora. - Não tenha. Deixe as coisas acontecerem. - recolheu-o nos seus braços. - Está bem. Agora vou dormir. - concluiu o João, tentando ganhar algum tempo e espaço para pensar naquela novidade. - Boa noite, menino. Durma bem.

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O João Paulo aconchegou-se na sua almofada e ficou a pensar na Vivi enquanto olhava para a lua lá fora.

- Vamos lá. Despache-se com esse leite! - dava o Senhor Doutor início a mais um dia igual a todos os outros, dirigindo-se para a porta de saída. - Estou pronto, pai. - afirmou o menino já com a mochila às costas e o copo vazio. - Vamos que já é tarde. - saindo ambos juntos.

Assim começava um dia diferente do João Paulo. Fazia, novamente, a viagem até à escola com a presença do pai ali à frente agarrado ao volante e ao telemóvel.

- Tenha um bom dia, menino. - despachou o Senhor Doutor. - Obrigado, pai. Até logo. - agradeceu o João, fechando a porta do carro.

À sua espera, à porta da escola, estava a Vivi.

- Estava à tua espera. Pensei que não vinhas. - afirmou carinhosamente a colega.

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- Olá, bom dia. E porque haveria de não vir? - admirou-se o João com aquele medo súbito. - Não sei. Podias ter-te assustado ontem comigo. - justificou a Vivi. - Assustar-me? Claro que não. - respondeu o rapaz, querendo mostrar a sua muita coragem e naturalidade naquelas situações. - Vamos para a aula? - indagou a colega. - Sim. Vamos lá. - acedeu o alegre e vaidoso João.

Assim se manteve aquela relação entre os dois ao longo de vários dias. A Valéria passava os intervalos com o João Paulo, esperava por ele à entrada das aulas, de manhã; muitas vezes até ficava com ele um pouco mais de tempo no final das aulas, acompanhando-o nas suas visitas à biblioteca.

O João Paulo parecia uma pessoa diferente. Tinha mais confiança em si próprio, sorria com mais frequência, brincava com a Vivi e com o Mocas.

Até na relação com os pais passou a ser um menino diferente. Agora, entrava no carro da mãe ao final da tarde, ligava-se ao telemóvel a trocar mensagens com a Valéria. Chegava a casa e ia diretamente para o quarto; continuavam as mensagens. Jantava na companhia da Rosário, mas já não lhe fazia companhia por estar nas mensagens. Não passava nem pelo

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escritório, nem pela biblioteca, porque tinha de ir a correr para o quarto estudar.

Mantinha o telemóvel ligado a seu lado enquanto resolvia um trabalho ou outro.

Deitava-se e a última coisa que via antes de adormecer já não era a sua lua, mas o "boa-noite" da Vivi na última mensagem recebida.

Um dia, perto do final do segundo período, aconteceu. O João Paulo ganhou coragem e aceitou um pedido de namoro que a Vivi lhe tinha feito.

- João, queres namorar comigo? Gosto muito de ti e queria namorar contigo. - propôs a Valéria. - Eu também gosto muito de ti. - afirmou o João, corando ligeiramente. - E queres namorar comigo? - repetiu a Valéria. - Sim, quero namorar contigo. - respondeu o João, sentindo a cara cada vez mais quente. - Mas vamos manter tudo em segredo para ninguém se meter na nossa vida. - sugeriu a proponente. - Está bem. - concordou o João, esperando que ninguém interferisse naquela nova relação.

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O João tinha encontrado a sua primeira namorada. Dava o seu primeiro beijo com toda a importância que tinha para ele.

Mantiveram aquela relação próxima sem dizer nada a ninguém, respeitando o que tinham prometido um ao outro. O João começou, a pouco e pouco, a afastar-se do seu amigo Mocas; já não tinha muito tempo para ele, porque a Vivi estava com ele a todos os minutos. Só se afastava, de vez em quando e por pouco tempo, quando ia conversar secretamente com a Luisinha. Tinham sempre conversas rápidas e que terminavam constantemente com uma risada.

Em casa, os pais já não tinham de se preocupar, como não tinham feito sempre, com a vida do filho e com as suas atividades diárias na escola.

Antecipando a partida para férias, combinaram muito bem os seus encontros românticos diários.

Com o final do período, vieram as usuais reuniões de notas. Os pais, como tinha acontecido antes, não tiveram tempo para se deslocar à escola. Receberam as notas em casa. Repetia, o João, os resultados do período anterior, verificando-se, unicamente, uma alteração de nível quatro para cinco na disciplina de Português.

Aquela subida tinha sido resultado de uns poemas que tinha escrito para um trabalho que apresentara numa das aulas da disciplina, e em que não tinha tirado os olhos da sua Vivi. O professor

ficara

agradavelmente

surpreendido

com

a

sua

capacidade de exprimir sentimentos e com a forma eloquente com que fizera a leitura do texto.

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- Muito bem, menino. Estou admirado. - maravilhou-se o professor.

Durante as férias, o João e a Vivi encontravam-se todos os dias. Iam ao cinema, passeavam no Centro Comercial, lanchavam juntos e muitas vezes até tomavam um ou outro almoço em conjunto.

Andavam sempre de mão dada um ao outro e não se inibiam de trocar um ou outro beijo em público.

Um dia, sabendo que os pais estavam nos seus trabalhos e não apareceriam, o João convidou a Vivi para ir a sua casa ver um filme. A Vivi já tinha falado, várias vezes, da possibilidade de estarem sozinhos em casa.

Foram, os dois, até casa. O João apresentou a namorada à Rosário que a achou muito bonita e simpática. Subiram para o quarto para assistir ao tal filme.

Pouco tempo tinha passado do início do "Star Wars".

- Não queres parar o filme um bocadinho para falarmos? sugeriu a Vivi, que se chagava cada vez mais do companheiro. - Sim, posso parar. - acedeu o João.

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- Tu sabes que gosto muito de ti e que já namoramos há algum tempo. - declarou a Valéria, sabendo perfeitamente até onde queria levar aquela conversa. - Sim, eu também gosto muito de ti. Tem-me feito muito bem estar contigo. - confirmou o João. - Mas eu só te conheço por fora e gostava de conhecer melhor. - reclamou a colega. - O que queres saber mais sobre mim? - questionou o admirado João com surpresa. - Não quero saber mais; quero ver mais. - emendou a rapariga. - Como assim? - questionou o João, mostrando a sua admiração e incompreensão relativamente à afirmação da Valéria. - Gostava de te ver nu para saber como é. - arriscou a Vivi. - Queres ver-me nu? - questionou o rapaz, tentando confirmar se realmente teria ouvido corretamente. - Sim. Nunca vi nenhum rapaz nu e como tu és o meu namorado, queria ver-te a ti. - justificou a jovem. - Eu também nunca estive assim à frente de uma rapariga. Achas boa ideia? - confessou o João, ainda a tentar recuperar da sugestão anterior. Era a primeira vez que estava, daquela forma, com uma rapariga e agora aquela surpreendente proposta.

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- Claro que sim. Se quiseres até tiro também a minha roupa. ofereceu-se a colega, tentando atingir o seu objetivo. - Não sei… não sei se consigo. - duvidou o rapaz, não certo da sua coragem. - Então fazemos assim: tu fechas os olhos e eu vou tirando a tua roupa. Depois eu fecho os olhos e tu tiras a minha. propôs a companheira, tentando vencer aquelas reticências sentidas. - Está bem. Vamos tentar. - concluiu o jovem rapaz.

O José fechou os olhos e sentiu as suas calças caírem, depois a sua camisola a passar pela cabeça, desarranjando-lhe os cabelos. Seguiram-se as sapatilhas, depois as meias. Nesse momento abriu ligeiramente os olhos, mas voltou a fechá-los rapidamente.

Finalmente caiam os boxer e sentiu-se muito envergonhado.

- Tira a mão. Se pões as mãos não consigo ver-te todo. mandou a Vivi, sem, no entanto, tocar no companheiro de aventura. - Está bem, eu tiro. - cedeu o João.

Tirou as mãos e ficou ali de olhos fechados durante uns minutos com vergonha de os abrir.

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Quando finalmente os abriu, viu a namorada que se tinha levantado e metia a mão no bolso das calças.

- O que foi? - perguntou o João, olhando para a mão da colega. - Chegou uma mensagem da minha mãe e tive de ver. emendou a Valéria. - Tudo bem. Agora és tu. - disse o João que começava a sentir-se mais à vontade com aquela situação. - Não, não pode ser. A minha mãe disse que tinha de ir já para casa. Precisa ir às compras e eu tenho de ajudar. Ficou de me vir buscar ali à esquina daqui a dez minutos. Veste-te rápido. - informou a rapariga. Já tinha atingido o seu objetivo e não queria, realmente, mostrar-se nua. - Está bem, mas para a próxima és tu. - afirmou o crédulo João. - Sim. Anda. - sugeriu a rapariga. - Vamos lá. Eu levo-te à porta. - ofereceu-se o rapaz, terminando de vestir a última peça de roupa.

Acompanhou a Vivi à porta de casa e lá foi ela a correr e a saltar até à esquina onde parou. O João observou-a, disse-lhe adeus com a mão e fechou a porta.

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Durante todos os outros dias de férias enviou mensagens à Vivi e, quando ela respondia, tinha sempre alguma coisa para fazer com a mãe, ou com a avó ou mesmo com o pai.

O João ficava triste, mas entendia. Chegou a pensar, numa tarde em que estava sozinho no quarto, que se calhar ela não tinha gostado de o ver nu e que agora já não queria namorar com ele.

Se calhar tinha feito mal em desiludir a namorada. Despiu-se novamente e ficou a olhar para o reflexo no espelho.

- Pois, se calhar não gostou! - pensou desapontado com a não conclusão do projeto inicial.

Terminaram as férias sem que se encontrassem novamente. Primeiro dia do terceiro período. Dois meses e meio para o final do ano.

João Paulo voltava na ansia de encontrar a Vivi e saber se tudo estava bem entre eles.

Entrou o portão da escola onde já não foi esperado pela colega de turma. Não a encontrou ao chegar à porta da sala.

A primeira aula era com o professor Carlos Pinto. Entrava o doutorando na sala e todos se sentavam nos respetivos lugares.

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Alguns minutos depois, estavam os colegas já a registar o sumário, batiam à porta.

- Sim? - questionou o professor. - Podemos entrar, professor? - perguntou o Rafa, seguido pelos colegas. - Sim. Entrem. Foi o autocarro, certo? - questionou o professor, certo da resposta que obteria. - Sim, professor. Obrigado. - confirmou o Rafa.

Entravam, já fora de horas, o Rafa, a Vivi, a Luisinha e o Blogues. Sentaram-se o Rafa e a Luisinha, a Vivi e o Blogues logo ao lado.

Enquanto

o

professor

explanava

os

seus

doutos

conhecimentos, os quatro trocavam conversas e alguns sorrisos; olhavam, pontualmente, para a frente onde se encontrava o João Paulo.

A aula decorreu normalmente. No final, saíram da sala. O João Paulo procurou a Vivi, mas ela já saíra com os outros três amigos. O Mocas foi encontrar-se com o antigo amigo e desceram as escadas em conjunto até ao recreio.

Foram ao bar comer o pão com queijo e beber o leite com chocolate do costume. Falaram das férias passadas e dos encontros entre o João e a Valéria; as idas ao cinema, os passeios em conjunto, tudo. Tudo, menos o encontro em casa do João

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Paulo; não se sentia à vontade para conversar sobre esse assunto mais privado.

Aquela distância estranha entre o casal de final de segundo período manteve-se ao longo do dia. Não trocaram sequer uma palavra durante toda aquela manhã.

Na hora de almoço, o João Paulo almoçou sozinho. Concluiu que realmente aquilo que tinha acontecido durante as férias, no seu quarto, teria levado a Vivi a desistir daquela relação. Como não tinha coragem e guardava alguma vergonha, não falou com ela sobre o que se tinha passado.

- Olá, mãe. Correu bem o dia? - perguntou o rapaz. - Sim. Vamos lá que ainda tenho muito para fazer. respondeu a Senhora Doutora apressava, sem sequer olhar o filho, como de costume.

Nessa mesma noite, enquanto fazia os seus trabalhos de casa no quarto, o telemóvel, que mantinha constantemente perto de si desde de começara a namorar, deu sinal de mensagem.

Olhou e viu que era a Vivi. Animado e com esperanças renovadas, abriu a mensagem. Tratava-se de uma fotografia dele nu com comentário "Joãozinho anjinho".

- 120 -

um

pequeno


Ficou admirado com aquilo que via.

- Olá Valéria. O que significa isto? - Não significa nada. Amanhã, na escola, já te explico. - Não sabia que tinhas tirado fotografias daquele dia! - Há muita coisa que tu não sabes! - Como assim? - Até amanhã, lindinho! - OK. Até amanhã.

Adormeceu com bastante dificuldade. Sentia um misto de curiosidade, ansiedade e medo. Estava curioso com a conversa que teria, no dia seguinte, com a Vivi; sentia ansia por retomar a relação com ela; o medo resultava de uma conversa que tinham tido, no segundo período na aula de Tecnologias de Informação e Comunicação, quando o tema era a segurança na Internet. Nessa altura foi-lhes apresentado um caso de uma aluna de uma escola no estrangeiro que vira fotografia suas publicadas na rede sem a sua autorização.

Pensou, no seu íntimo, que a Vivi não seria capaz de fazer uma coisa tão terrível, ainda por cima gostando dele como dissera gostar.

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- Vamos lá. Despache-se com esse leite! - Já estou pronto, pai. O leite já o tomei há muito. - revelou o João aquela grande novidade. - Vamos lá então. - ordenou o Senhor Doutor.

Ao longo da viagem de vinte e cinco minutos, o João Paulo foi enrolando, na sua cabeça, aquele episódio da noite anterior. Tentava criar cenários, antecipar conversas, imaginar motivos.

Com esta agitação que enchia o seu pensamento, nem sequer deu pelo tempo passar durante a viagem para a escola. Quando o carro do pai parou, acordou daquele filme e viu o portão da escola onde se encontravam muitos alunos juntos.

- Até logo, pai. - despachou o rapaz sem esperar resposta.

Saiu do carro. Aquela reunião desorganizada de alunos olhou para ele.

- Olha o nuzinho! Que lindo que é! - diziam algumas vozes saídas do grupo.

Admirado, não percebeu o que se passava.

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- Olha que vestido não se nota que é tão pequeno. Disfarça bem! - afirmavam outras vozes.

Foi-se chegando perto do portão metálico e reparou numa grande folha de papel vermelho com uma fotografia sua, nu no seu quarto. Era uma imagem igual à que recebera na véspera na mensagem da Valéria.

Correu

escada

acima

e

dirigiu-se

ao

Pavilhão

Gimnodesportivo onde teria a primeira aula do dia. Pelo caminho recebia os comentários dos alunos com quem se cruzava e que, naquela manhã, parecia ser toda a escola.

- Olha o nuzinho! - cumprimentou um colega sorridente do oitavo ano. - Anjinho! - acusou uma aluna de outra turma do oitavo ano. - Devias ter a mania que eras bonito, devias! - gritou um aluno que não conheceu por já não olhar para mais ninguém. - Pipi pequeno! - voz saindo da janela do polivalente da escola.

Correu o mais que pode e teve a receção entusiástica do Rafa, da Luisinha, do Cucas, do Manias, da Vivi, do Blogues e de muitos outros colegas de turma. Tinham formado duas filas de

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receção ao colega, para que passasse pelo meio. Sapatadas de um lado, chutos do outro, interrompidos pela chegada do Mocas e da Belezas que o resguardaram um de cada lado.

Ainda atónito, sentou-se no banco de madeira do balneário e começou a mudar, atordoado, a sua roupa, enquanto recuperava da receção. Equipou-se o mais rapidamente que lhe foi possível para estar sob a proteção do professor Rui Cunha.

O professor reuniu a turma à volta de uma pequena mesa e começou a explicar o exercício desse dia.

- Primeiro, vamos fazer um pequeno aquecimento. Depois extensões musculares e finalmente uma corrida de estafetas. Quero medir o vosso progresso em relação ao primeiro período. Vou avaliar velocidade e precisão na transmissão do testemunho. - determinou o organizado ex-atleta.

Organizaram-se em equipas de quatro, aproveitando os grupos criados para as aulas de Geografia.

Terminada a atividade, foram comunicados os resultados.

- O que se passa hoje com o João Paulo? Demorou o dobro do tempo de referência. - afirmou o professor confuso com o resultado obtido e com o pouco esforço demonstrado. O João era uma aluno que sempre se comprometia

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com as atividades desenvolvidas para obter os melhores resultados. - Deve ser o peso da responsabilidade. Se calhar está maldisposto! - registou o Rafa maldosamente sorridente. - O que se passou menino? - questionou o professor.

O João nem respondeu ao professor, retirando-se a correr para o balneário. Tomou um banho de passagem rápida por baixo do chuveiro, vestiu-se e correu daquele ambiente claustrofóbico.

Foi, diretamente, para a porta da sala de Informática onde decorreria a aula de Tecnologias da Informação e Comunicação.

Ligados os computadores para a atividade do dia, apareceu a dita fotografia a nu que renovou o burburinho entre os alunos. O professor, que reparara naquela indecência, virou-se para o João Paulo.

- Então, João. Que brincadeira é esta? - perguntou o professor, incrédulo. - Não sei professor. Não fui eu. - respondeu o João. - Então quem foi? Está de olhos fechados, nu num quarto. Quem lhe tiraria esta fotografia sem o menino deixar ou saber? - observou o informático. - Não sei, professor. Não fui eu. - repetiu o João.

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- Isto vai trazer-lhe problemas. Desliguem os computadores. Vou chamar o Subdiretor. - ordenou o professor, muito irritado com a situação, dirigindo-se à porta da sala.

Chamou o funcionário do corredor, pedindo que chamasse o representante do Mega Agrupamento na escola. Como era um outro professor que estava, também, em aula, tiveram de ali ficar a olhar uns para os outros, quietos.

Os colegas de turma conversavam, entre si, riam e olhavam para o João Paulo que mantinha os olhos húmidos recolhidos entre as pernas. Não percebia o que se estava a passar, nem aceitava que a Vivi tivesse feito aquilo.

Terminada a aula sem a visita do Subdiretor, professor e aluno dirigiram-se ao gabinete diretivo.

- O que se passa? - questionou o Subdiretor, intrigado por receber tal visita. - Colega, uma fotografia deste menino nu apareceu nos computadores da minha sala. Já lhe perguntei, mas diz não saber o que se passa. - informou o professor que dava aulas na sala de informática. - Isso tem alguma coisa a ver com aquela fotografia indecente que apareceu no muro da escola? - perguntou o responsável pela escola.

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- Não sei. Não ouvi falar de nada. - referiu o professor desconhecedor da situação. - Hoje de manhã fui chamado para ver uma fotocópia de uma fotografia de um menino nu afixada à entrada da escola. Quando lá cheguei vi, realmente, uma folha com uma imagem imprópria. Parece que era mesmo este. relatou o Subdiretor, olhando fixamente para o João. - Como aconteceu isto? - indagou o Subdiretor.

- Não sei, mas vou descobrir com toda a certeza. Diga lá o menino qual foi o objetivo de tudo isto. - ordenou o responsável, virando a sua atenção para o João. - Não sei, senhor Diretor. Não fui eu. - respondeu o João. - Então, se não foi o menino, quem foi? - retomando o interrogatório. - Não sei. Não fui eu. - O menino só sabe dizer "Não fui eu"? - observou o Subdiretor, começando a ficar irritado. - Mas não fui mesmo eu. - Então quem foi?

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Assim se mantiveram naquele diálogo que não parecia levar a lado nenhum. Chamada a Diretora de Turma, para que tomasse conhecimento do que acontecera, bateu à porta e entrou.

- Então, o que se passa? - questionou a Diretora de Turma.

Comunicada a situação, a professora Carla Penha tirou o seu telemóvel da bolsa e abriu um ficheiro recebido.

- Será que é esta fotografia? - tentou confirmar a docente mostrando uma mensagem no seu telemóvel. - Sim, é essa mesma que estava nos computadores. confirmou o professor de informática. - Sim, é a mesma fotocópia que retirei de manhã. - asseverou o Subdiretor.

- Como aconteceu isto, José? - questionou a Diretora de Turma, olhando para o encolhido João Paulo. Neste momento aquele menino parecia-lhe um ser totalmente diferente do que conhecera. Estava mais pequeno, mais magro, mais branco, ou pelo menos parecia. - Não sei, professora. Não fui eu.

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Continuava a chorar compulsivamente o João Paulo, chegando a um estado de desespero total.

- Quero a Rosário. Chamem a Rosário, por favor. - pediu o rapaz. - Quem é a Rosário? - questionou o Subdiretor. - Chamem a Rosário, por favor. - repetia desesperado o João.

Consultado o processo do aluno, não surgia, em lado nenhum, uma Rosário. Telefonaram ao pai do menino, mas não conseguiram obter resposta daquele número desligado.

Tentaram a mãe.

- Sim, quem fala? - respondeu a Senhora Doutora. - Aqui é da escola do seu filho. Precisamos falar com a senhora. - comunicou o Subdiretor. - O menino fez alguma asneira? - adiantou a Senhora Doutora. - Não sabemos, mas ele está aqui e precisamos falar com um responsável. - insistiu o responsável. - Neste momento não posso ir ai. Estou no Hospital e tenho consultas agendadas. - rematou a Senhora Doutora.

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- Mas estamos aqui a viver uma situação que pode ser muito complicada e o menino chama constantemente por uma Rosário que não sabemos quem seja. - persistiu o professor. - A Rosário é a nossa empregada. - informou a Senhora Doutora. - E ela poderá vir aqui à escola? - questionou o interlocutor. - Poder podia, mas nem tenho forma de a conduzir até ai, nem posso deixar que descuide a casa. - esclareceu a Senhora Doutora. - Minha senhora, o seu filho está aqui no meu gabinete. Aconteceram coisas muito complicadas aqui na escola. Preciso falar com alguém que seja responsável pelo menino para que tente acalmá-lo; chora compulsivamente. - relatou o Subdiretor, detetando a falta de cooperação que recebia do outro lado. - E, se calhar, ainda está a faltar às aulas! - recriminou a Doutora. - Sim, mas isso é o menos importante. Agora temos de resolver esta questão. - defendeu o responsável pela escola. - Já ligaram ao Senhor Doutor? - questionou a Senhora Doutora do menino. - Qual Senhor Doutor? - questionou o professor. - O pai do menino. - elucidou a Senhora Doutora. - Já, sim. Ninguém atende. - contou o professor.

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- Está, como é normal, muito ocupado. Vou tentar enviar a Rosário para a escola de táxi. Posso falar com o menino? solicitou a progenitora. - Claro que sim. - consentiu o Subdiretor.

- O que aconteceu menino? - questionou a Senhora Doutora com um tom recriminatório. - Mãe, eu nem consigo falar. Só quero a Rosário. - disse o menino. - Fez alguma asneira e agora está arrependido, correto? Peça desculpa e não incomode mais as pessoas. Seja responsável. - ordenou a Senhora Doutora, certa que, mais uma vez, o menino era culpado daquele incômodo todo. - Não, mãe. Eu não fiz nada. - Claro que não. Nunca faz. Passe ao Senhor Professor. - finalizou a Senhora Doutora.

- Sim? - questionou o Subdiretor. - Peço desculpa pelo meu filho. Às vezes faz assim umas coisas para chamar a atenção. Em casa é a mesma coisa; está sempre a bater à porta do meu escritório para me incomodar com questões sem interesse. - relatou a progenitora.

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- Não me parece que seja esse o caso. De qualquer forma vamos esperar a chegada da Dona Rosário. - comunicou o responsável pela escola. - Muito bem. - Bom dia.

Ali ficaram, o professor de Tecnologias da Informação e Comunicação, a Diretora de Turma e o Subdiretor à volta do João Paulo, tentando acalmá-lo e retirar dele alguma confissão.

O menino repetia sempre o mesmo "Não fui eu". A Rosarinho acabou por chegar à escola uma boa hora depois. Dirigiu-se, na companhia da funcionária, até ao gabinete diretivo. Entrando recebeu, de imediato, um abraço do menino que retribuiu acrescentando um longo beijo.

- O que se passou, menino? O que lhe fizeram? acusou a Rosário.

- O que lhe fizeram ou o que fez ainda não sabemos. O aluno não consegue ou não quer dizer nada. - referiu o Subdiretor. - Ele não fez, com toda a certeza, nada. É um bom menino e não faz asneiras. Se aconteceu alguma coisa, a culpa não é dele. - certificou a empregada, mantendo o menino à distância de toda a gente.

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- Isso é o que vamos determinar. - comunicou o Subdiretor. - Determinem o que bem entenderem, mas o meu menino não mente e se diz que não foi ele, então é porque não foi. Agora investiguem o que quiserem, mas ele vai comigo para casa. - decidiu a Rosário, determinada. - Mas ainda vai ter mais aulas, hoje. - acrescentou a Diretora de Turma. - Depois falo com os paizinhos dele e justificam-se as faltas. - Muito bem. Se assume essa responsabilidade. - confirmou o Subdiretor, olhando para a Diretora de Turma de relance e abanando afirmativamente a cabeça. - Sim. Assumo essa e a de que o menino não fez nada de mais. Vamos, menino. - ordenou a Rosário, carregando o João por baixo do seu braço.

Partiram no mesmo transporte que tinha trazido a Rosário até à escola. Pelo caminho nem uma palavra. Só abraços, beijos e uns mimos com a mão na cabeça. O menino, esse, continuava a chorar compulsivamente.

Chegaram a casa. A Rosário acompanhou o João ao quarto e deitou-o aconchegando-o no seu colo. Tentou falar com ele, mas não obtendo resposta, deixou que adormecesse.

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- Fui buscar o menino à escola e disseram-me que já tinha vindo para casa. O que se passou, Maria do Rosário? perguntou a Senhora Doutora muito irritada. - Não sei o que se passou, Senhora Doutora. Quando cheguei à escola o menino não estava em condições para lá continuar e trouxe-o para casa. - confirmou a empregada, ciente que tinha feito o que estava correto. - Mas, está magoado? - questionou a Senhora Doutora. - Não, não está magoado. - respondeu a empregada. - Então deveria ter ficado na escola. - recriminou a Senhora Doutora. - Não Senhora, ele não estava em condições. - contrariou a Rosário, incapaz de perceber a reação de uma mãe que não atendia aos problemas do filho. - Vou terminar de fazer uns trabalhos ali no escritório e depois falo com o menino. - protelou a Senhora Doutora.

O pai chegou a casa à hora do costume. Fechou-se, de imediato na biblioteca. Tinha mais um processo complicado em mãos e não podia perder tempo.

A Rosarinho levou uma refeição ligeira ao menino que dormia soluçante na sua cama. Acordou-o com um beijo na testa.

- Vamos comer qualquer coisa, menino? - disse a Rosário.

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- Não tenho fome. - comunicou o João com a cabeça enfiada na almofada. - Mas tem de comer alguma coisa ou fica muito fraquinho. observou a Rosário. - Só este pedaço de maçã. - acedeu, condescendente, o João. - E o sumo também. Tem de ser. - negociou a Rosário. - Está bem. - acedeu o João, levantando a cabeça da almofada. - Quer dizer-me alguma coisa sobre o que se passou hoje? pediu a Rosário. - Não sei bem o que se passou. Cheguei à escola e estava uma fotografia minha na parede da escola. Os alunos que lá estavam riram-se de mim. Depois, na aula de Informática a mesma fotografia apareceu nos computadores. - comunicou o João, ainda soluçando do choro da escola. - Foi esse o problema? Uma fotografia do menino? - admirou-se a Rosário. - Pois foi, mas eu estava nu. - concretizou o João, envergonhado. - Nu? O menino estava nu na fotografia? - tentando confirmar aquilo que tinha ouvido. - Sim. - Como aconteceu isso? Quem fez essa maldade?

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- Não sei quem foi. Mas lembra-se daquele dia em que veio aqui a casa uma colega minha? - questionou o João, tentando levar as frases até ao final sem que lhe faltasse o ar. - Sim, aquela muito bonitinha de quem o menino gostava muito. Parecia boa menina. - confirmou a Rosário.

Contou, o João Paulo, tudo o que se passara naquele dia de cinema no quarto. Falou dos acontecimentos do leite com chocolate, da meia de desporto e de todos os outros momentos em que fora agredido pelos colegas desde o início do ano.

A Rosário abria a admirada boca a cada episódio que ouvia contado pelo rapaz. Estava incrédula. Não conseguia entender como tinha disfarçado todo aquele pesadelo durante tanto tempo e como não se tinha ela, que era mais do que uma mãe para ele, apercebido de nada.

Adormeceu, aconchegado novamente no colo da sua Rosarinho. Teve um sono agitado que era acompanhado pelos constantes movimentos que mantinha com os braços a afastar alguma coisa que o incomodava no sonho.

A Rosário desceu as escadas, bateu à porta do escritório onde a Senhora Doutora trabalhava.

- Tenho de falar com a Senhora sobre o menino. - comunicou a Rosário.

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- É alguma coisa grave? - perguntou a Senhora Doutora. - Sim, minha Senhora. É muito grave. - confirmou a Rosário, mantendo uma cara muito séria. - Está doente ou ferido? - questionou a Doutora. - Doente não está. Ferido parece que está muito. esclareceu a Rosário, olhando atentamente para a patroa. - Onde se magoou? - indagou a Doutora, ainda sem olhar para a sua empregada que se aproximara da sua secretária. - Não é nada que se veja de fora. - informou a Rosário. - Está a dormir? - perguntou a Doutora. - Sim, adormeceu outra vez agora mesmo. - comunicou a Rosário. - Então, se está a dormir é porque não está muito mal. Ainda tenho de acabar isto e depois ou amanhã vemos isso. concluiu a Senhora Doutora, virando mais uma página de leitura atenta. - Mas, Senhora … - Não, Rosário. Se não partiu nada e está a dormir é porque não é grave e pode esperar para amanhã. - decidiu a Senhora Doutora. - Muito bem, minha Senhora.

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Bateu à porta da biblioteca.

- Sim? - autorizou o Senhor Doutor. - Boa noite, Senhor Doutor. - Boa noite. O que se passa? - questionou o ocupado advogado. - É o menino. Acho que deveríamos falar. - propôs a Rosário. - O menino? Fez alguma asneira? Bateu em alguém? Danificou algum bem? - interrogou o advogado. - Não, Senhor Doutor. - afirmou a Rosário. - Então, o que se passou? - Aconteceu uma coisa muito complicada e o menino vai precisar de ajuda médica. - esclareceu a preocupada e séria empregada. - Se a ajuda é médica tem de falar com a Senhora Doutora. concluiu o Senhor Doutor. - Mas o menino vai precisar falar com alguém! - contrapôs a Rosário. - Agora tenho de terminar este parecer urgente. Não posso parar para não perder a linha de pensamento e a argumentação. - resolveu o Senhor Doutor, tomando nota de alguns pontos importantes na margem da folha que lia. - Mas, Senhor Doutor …

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- Não, Maria. Agora não. - Sim, Senhor Doutor.

Manteve-se a Rosário atenta, toda a noite, ao menino que continuava com o seu sono agitado. Sentou-se ali na cadeira que o menino usava para fazer os trabalhos de casa. Observou aquela lua que brilhava fora da janela, viu o sol nascer ao fundo, atrás das grandes árvores do jardim. Acordou o menino João Paulo com um beijo na testa. Colocou-lhe a roupa que vestiria nesse dia e saiu, com "um bom dia", para o deixar preparar-se calmamente.

- Vamos lá. Despache-se com esse leite! - ordenou o Senhor Doutor. - Sim. - acedeu o menino. - Vamos que já é tarde. - reforçou o Senhor Doutor. - Vou já.

Fizeram os vinte e cinco minutos de viagem em silêncio. O pai falava através do telemóvel, como de costume. O José mantinha-se silencioso com a cabeça encostada à mão que apoiava na porta do carro.

Um pouco antes de chegar à escola, pediu ao pai para que o deixasse ali, naquele cruzamento, pois tinha de se encontrar com um amigo com quem faria o restante percurso.

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O pai assim fez.

- Adeus, pai. Bom trabalho. - despediu-se o menino, esperando, por momentos, receber uma resposta diferente das habituais. - Sim.

Arrancou com a mesma velocidade que normalmente demonstrava quando deixava o menino à porta da escola. O João acompanhou-o com os olhos ao longo do percurso até que já o não via.

Não se encaminhou para a escola. Dirigiu-lhe a um Centro Comercial que tinha visitado, um dia, na companhia da Vivi. Entrou num farmácia daquelas onde não é preciso ter receita para comprar alguns medicamentos. Pegou numa quantidade de caixas indiscriminadamente e dirigiu-se a uma caixa de pagamento automático.

Meteu tudo na sua mochila Adidas e seguiu caminho. Mandou parar um táxi solicitando que o levasse a um parque situado perto da casa onde tinha morado quando se mudara com a família para aquela cidade.

O pai tinha arranjado uma colocação numa importante firma de advogados que lhe poderia dar a visibilidade necessária

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para a desejada promoção a Procurador-Geral. Trouxera consigo toda a família, com a certeza que a Senhora Doutora iria continuar a sua carreira como Chefe de Equipa numa unidade hospitalar próxima. Quanto ao filho, não havia problema, poderia frequentar um colégio que houvesse por ali perto e estaria aquele problema resolvido.

Chegou ao local desejado, pagou ao taxista e dirigiu-se a um velho banco de madeira verde desgastado. Sentou-se, tirou umas folhas de linhas do seu caderno de Português, uma caneta preta e começou a escrever tendo como base o manual da mesma disciplina.

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"Criança encontrada morta num jardim"

IX

11 de junho

Um sem-abrigo ocupava, em mais uma noite da sua longa vida desprotegida, o seu lugar no usual banco de jardim, coberto por um telhado de ramos de uma velha árvore. Ali pernoitava no seu leito de eleição das segundas-feiras de um junho já quente.

Recorria a uns cartões de embalagem de frigorífico, adquiridos no depósito de detritos de um armazém de uma grande-superfície, e a umas folhas de jornal, recolhidas de um caixote do lixo, para se proteger do tempo e dos bichos que de noite o atacavam constantemente.

Naquela noite deitou-se, como fazia há já alguns anos, na sua cama verde gasto de madeira; adormeceu rapidamente ajudado pela quantidade de cerveja que bebera ao longo do triste dia e pelo cansaço da labuta diária na conquista de mais um dia de sobrevivência.

Recolhia as muitas latas abandonadas no chão das ruas da cidade e nos caixotes do lixo. Vendia-as para ganhar o necessário à compra da sua dose diária de anestesia da solidão e do esquecimento. Apoiava, ainda, alguns condutores no processo de

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estacionamento dos automóveis nos locais que para ele tinha reservados pelo costume de lá estar e pela correria que fazia em perseguição dos que se atreviam a tentar ocupar o seu poiso laboral.

Acordou, de manhã bem cedo, com o barulho do carro de recolha de lixo que parou na rua vizinha ao parque vazio. Parara para recolher um contentor que ali se encontrava e que transbordava de despojos; ligara o braço mecânico de recolha, deu-lhe meia-volta e ouviu-se o grito do funcionário que operava os botões laterias.

- Bora lá. Este já tá. Segue em frente.

Levantou-se, aturdido, e arrumou as roupas da sua original cama. Dobrou muito bem aquelas folhas de jornal, colocou-as dentro dos cartões e acomodou tudo num saco plástico que lhe servia de armário.

Colocou a bagagem por baixo do seu leito duro e, ao espreitar para trás, parou repentinamente.

Jazia, no chão, um corpo imóvel.

- Ei! Ei! Acorda que já é dia. O que estás a fazer ai?

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Não obteve qualquer resposta. Contornou o banco, dobrou-se sobre o corpo, olhou-o atentamente e abanou-o.

- Ei! Vamos lá. Gosto pouco de gente aqui em casa. Não te convidei para dormires aqui. Acorda!

Sentiu frio na ponta dos dedos e endireitou-se subitamente com aquela sensação particular e invulgar.

Aquele corpo jovem, encontrado no parque da cidade, estendido atrás de um banco de jardim, tinha consigo umas quantas caixas vazias de medicamentos e uns papéis escritos à mão que jaziam no chão revestido de folhas. Mantinha uma mochila de marca a seu lado.

O velho sem-abrigo ainda recolheu uma das caixas que ali estavam, verificou que continha dois comprimidos e meteu-a ao bolso.

- Disto já não vais precisar e eu sim. - declarou o homem.

Vasculhou a mochila e, ao certificar-se de que só havia livros no seu interior, atirou-a para o lado.

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A polícia, alertada pelos berros que o sem-abrigo começou a dar depois da recolha, dirigiu-se ao local e tomou conta da ocorrência.

- Senhor agente, quando acordei, encontrei-o ali atrás do banco. Eu não fiz nada. Já lá estava quando eu acordei. Nem lhe toquei. - afiançou o homem. - Sim, tem calma. Ninguém te está a acusar de nada. descansou-o o agente. - Não fui eu, Senhor agente. Não fui eu. - voltava a justificar-se o pobre homem. - Muito bem, homem. Calma. Já vou tomar nota das tuas palavras. - acalmou-o o agente, afastando-se.

O agente chamou o médico legista. Foi declarado o óbito. O corpo foi transportado, numa ambulância vermelho-vida, ao Hospital para exame médico-legal mais completo e que confirmasse a causa da morte.

- Agora nós. Conta lá tudo. - ordenou o agente, pegando no seu bloco de notas.

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O velho mendigo relatou toda a história desde o dia anterior em que se tinha deitado naquele banco. Não se tinha apercebido de nada por estar já muito escuro e a atenção estar nublada com a bebida.

O agente recolheu o seu nome, tirou-lhe uma fotografia sorridente para anexar à participação e disse-lhe para não se afastar muito dali, pois podiam precisar falar outra vez com ele.

Jovem do género masculino, com aproximadamente doze anos de idade. Nenhum sinal de violência ou agressão. Causa da morte: intoxicação medicamentosa.

A esta declaração, registada num papel branco de relatório forense, se resumiu uma vida que terminava naquele calmo banco de jardim.

O corpo ficou naquela sala do Instituto Médico-Legal, coberto por um lençol branco amarelado, uma etiqueta no dedo do pé direito, rodeado por outros muitos corpos de desconhecidos numerados.

Os papéis escritos à mão encontrados ao lado do corpo foram ensacados, pelo agente responsável, como evidência e sinalizados no auto de ocorrência.

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O desaparecimento

X

11 de junho

- Muito boa tarde. - cumprimentou o Subdiretor da escola. - Boa tarde. - respondeu a Rosário. - Daqui fala da escola do João Paulo Correia Araújo. complementou o responsável da escola. - Sim. Aconteceu alguma coisa com o menino? - perguntou a Rosário, antecipando que tivessem feito mal ao João, novamente. - Era isso mesmo que ia perguntar. - Como assim? - estranhou a Rosário. - O aluno está a faltar às aulas e precisávamos saber se está doente! - informou o Subdiretor, que pensou nas consequências do que se tinha passado no dia anterior. - Não. Ele foi para a escola logo de manhã com o Senhor Doutor. - afirmou a Rosário. - Não, não veio. Não deu entrada com o cartão de identificação. - corrigiu o Subdiretor.

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- Isso não pode ser. Eles saíram juntos. - estranhou a empregada. - Será melhor, então, falar com o senhor e saber o que se passou. Aqui o menino não entrou. Se calhar foram a algum lado juntos! - sugeriu o Subdiretor. - Muito bem. Vou falar com o Senhor Doutor.

Desligou rapidamente e ligou para o pai do João Paulo.

- Estou? - respondeu o Senhor Doutor. - Sim. O Senhor Doutor levou o menino à escola? - questionou a Rosário. - Que pergunta é essa. Claro que sim. Deixei-o mesmo à porta. - estranhou o Senhor Doutor. - Ligaram da escola a dizer que não estava lá. - informou a Rosário. - Isso é impossível. Ligue à Senhora Doutora que agora tenho de entrar para um julgamento. - concluiu o Senhor Doutor.

Desligou o Senhor Doutor e ligou à Senhora Doutora. O telefone tocou constantemente, mas a Senhora Doutora não atendeu. Deixou mensagem na caixa de correio.

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- Senhora Doutora, é a Rosário. Ligaram da escola a dizer que o menino não foi às aulas. Quando tiver tempo, ligue para casa ou para a escola se fizer o favor. - registou a Rosário, preocupada.

Às vinte horas e alguns minutos chegou a Senhora Doutora a casa.

- O menino apareceu? - perguntou a Rosário, ansiosa. - Isso pergunto eu. Onde está o menino? - estranhou a Senhora Doutora. - Não sei, minha Senhora. Não está em casa. - informou a Rosário. - Como é que não está em casa! Fui buscá-lo à escola e não apareceu ao portão. Esperei cinco minutos e nada do menino. - reclamou, chateada, a Senhora Doutora. - Telefonei à Senhora Doutora e deixei mensagem. acrescentou a Rosário. - Qual mensagem? - estranhou a Senhora Doutora. - Veja aí no telefone. - orientou a Rosário. - Sim, está aqui qualquer coisa. O Senhor Doutor já chegou? demandou a Senhora Doutora.

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- Ainda não, minha Senhora. Não será melhor ligar à polícia? - sugeriu a Rosário. - Claro que não. Se calhar está com o Senhor Doutor ou com algum amiguinho da escola. - concluiu a Senhora Doutora.

Esperaram que o Senhor Doutor chegasse. A Senhora Doutora foi para o escritório e a Maria do Rosário ficou ali à porta. Esperava que o menino entrasse com o pai a qualquer momento. Se calhar estava ali preocupada e não era nada.

O Senhor Doutor chegou às vinte e duas horas e tinha a Rosário à porta.

- O menino, Senhor Doutor? - questionou a empregada, espreitando para fora da porta. - Outra vez essa questão! O menino deve estar aqui em casa. - resmungou o Senhor Doutor. - Não está, não. Não veio com a Senhora Doutora. - informou a Rosário. - Como assim? - A Senhora Doutora foi buscá-lo à escola e ele não estava. - Terá ido para a casa de um amigo. Vamos esperar que diga alguma coisa. - declarou o Senhor Doutor, mais

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preocupado em retomar as suas atividades do que em saber daquela ausência. - Não seria melhor ligar à polícia? - propôs a Rosário. - Claro que não.

Não passou

o

tempo legalmente

estabelecido para estarmos perante um desaparecimento. Vamos esperar. - esclareceu o advogado.

E esperaram. No dia seguinte, a Senhora Doutora foi para o seu trabalho bem cedo. O Senhor Doutor desceu as escadas enquanto acomodava convenientemente a sua gravata dentro do fato cinzento.

- Vamos lá. Despache-se … Onde está o menino. Não está pronto? Tenho de me despachar. Não posso chegar atrasado. - questionou, contrariado, o Senhor Doutor que se dirigia à porta de saída. - Senhor Doutor, o menino não apareceu. - informou a Rosário.

A Rosário tinha chorado toda a noite, no silêncio do quarto do João Paulo, sem saber o que fazer. Tinha um pressentimento de que algo de errado se tinha passado com o seu menino.

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- Vamos esperar até logo e depois ligamos a um colaborador meu para que ele descubra o que se passou. - esclareceu o Senhor Doutor, pensando na possível ajuda que um investigador privado, que costumava ajudá-lo, poderia dar. - Mas, Senhor Doutor … - Logo vemos. Já estou atrasado. - saiu, virando as costas ao problema.

Ali ficou sozinha a Rosário banhada em lágrimas. O peito estava apertado, a cabeça só pensava em desgraças e acidentes; sentia-se perdida e presa de movimentos.

Ao final daquela manhã, o telefone tocou. A Rosário correu para o atender.

- É da casa do Senhor Doutor Rogério Araújo? - questionou uma voz grave de homem. - É sim senhor. É da casa do Senhor Doutor. - respondeu a Rosário. - Aqui é da esquadra de polícia… - esclareceu a voz do outro lado. - Encontraram o menino! - depreendeu a ansiosa empregada.

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- Seria melhor avisar o Senhor Doutor ou a esposa para que passassem por aqui. Precisávamos falar com um deles. É da esquadra treze. - propôs o agente. - Vou ligar para os dois e já lhe ligo. Diga-me o seu número, por favor. - pegando numa caneta e apontando o número num bloco da notas.

- Senhor Doutor. Ligaram da polícia para falar com o Senhor Doutor. - informou a Rosário. - Disseram do que se tratava? - questionou o Senhor Doutor. - Não, Senhor Doutor. Fiquei com o número do senhor. - Vou passar à minha secretária. Deixe ficar o número com ela. Depois eu peço para ela ligar. - voltando a afastar-se de qualquer ação necessária que o desviaria da sua atividade. - Mas pode ser por causa do menino, Senhor Doutor. alertou a Rosário.

- Diga-me o número, Dona Rosário. - solicitou uma voz feminina. - Quem fala? - perguntou a Rosário, confusa. - É a secretária do Senhor Doutor. Diga o número.

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Ditou o número e desligou.

- Senhora Doutora, é a Rosário. - Diga Rosário. Estou a meio de uma consulta. - mostrando o seu descontentamento por aquela interrupção. - A polícia ligou aqui para casa. - E o que pretendia? - Queria falar com a Senhora Doutora ou com o Senhor Doutor. - Já ligou ao Senhor Doutor? - Sim, já liguei, mas… - Então se já ligou, o Senhor Doutor trata do assunto. descartando a sua intromissão. - Mas pode ser do menino. - O Senhor Doutor resolve, Rosário. - certificou a Senhora Doutora. - Tenho um aperto no coração, Senhora Doutora. - Beba um pouco de água com açúcar e isso passa. Deve ser do calor. - prescreveu a Doutora, tentando terminar aquele afastamento da atividade médica.

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- Senhora Doutora. Senhora Doutora. - tentava encontrar resposta de um telefone desligado que só emitia um som agudo repetitivo.

A Senhora Doutora tinha desligado o telefone. A Rosarinho não conseguia ficar ali à espera do final do dia. Vestiu o seu casaco de malha, chamou um táxi e disse para a levar à esquadra treze da polícia. Chegou ao local indicado, pagou e entrou apressada na esquadra.

- Sou a Maria do Rosário. - informou, autoritária, o agente que se apresentava do outro lado do balcão. - Boa tarde, minha senhora. O que posso fazer por si. indagou o desgastado homem. - Ligaram para mim aqui da esquadra. - mantendo o tom autoritário. - Quem ligou? - questionou o agente. - Deve ser por causa do meu menino. - Estou a perceber! Sente-se aí um pouco. - solicitou o homem, coçando a cabeça.

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A Rosário sentou-se e viu o agente dirigir-se a uma pequena sala ao fundo do corredor. Não tirava os olhos dele. Voltou, pouco depois, acompanhado por um homem de fato.

- Quem é a senhora? - questionou o homem de fato e óculos graduados. - Sou a empregada do Senhor Doutor Rogério Araújo e da Senhora Doutora Clementina Correia. E o senhor quem é? argumentou a mulher, admirada pela presença daquela cara. - Eu sou o Inspetor Rogério Fonseca. - informou, mostrando a sua identificação profissional registada num cartão que pendia do seu peito. - Inspetor? O que aconteceu ao meu menino. - Venha comigo, minha senhora. - solicitou, virando as costas à Rosário.

Entraram na pequena sala ao fundo do corredor. O Inspetor sentou-se na sua cadeira, por trás de uma secretária cheia de papéis. A Rosário sentou-se na cadeira de madeira em frente à secretária.

- A senhora reconhece esta cara? - demandou, mostrando uma fotografia.

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- Ai o meu menino. O meu querido menino. O que aconteceu. Tens os olhos fechados e está todo sujo! mostrando a sua estranheza pelo aspeto do João naquela foto, aproximando-a de si. - Já vi que reconhece. - concluiu o inspetor observando a reação da mulher. - Sim. Onde está o meu menino. Chame por ele. - solicitou a Rosário, agarrando a mão do inspetor. - Infelizmente não posso. - respondeu o homem, tentando soltar a sua mão. - Chame por ele. Quero vê-lo. - Não posso, minha senhora. - Chame por ele, por favor! - O menino foi encontrado num parque, atrás de um banco de jardim. - informou, tentando por fim àquela conversa que não avançava. - Não pode ser… - Tinha uma série de caixas de medicamentos e já não se conseguiu fazer nada por ele. - acrescentou o inspetor. - Não pode ser… Não pode ser… Chame por ele, senhor Inspetor. Quero vê-lo e falar com ele. - repetia a Rosário, sem conseguir tirar aquela imagem da sua cabeça. - Venha comigo, minha senhora.

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Entraram ambos num carro, conduzido por um polícia. Levou-os até um local onde se encontrava escrito "Instituto de Medicina Legal".

Saíram do carro a Rosário e o Inspetor. Correram um longo corredor de chão em madeira. Pararam em frente a uma porta metálica com uma pequena janela em vidro.

- Minha senhora. Agora vamos entrar aqui nesta sala, mas vai ter de manter a calma. - informou o inspetor, tentando acalmar a mulher desesperada e sem saber o que se iria passar. - Sim, senhor Inspetor. Deixe-me ver o menino. - pedindo, no seu íntimo, que o João estivesse à sua espera do outro lado da porta. - Com muita calma. Preciso que me diga se reconhece a criança que vai ver. - solicitou o inspetor. - Sim, senhor Inspetor. - confirmou a Rosário, sem tirar os olhos da porta.

Entraram naquela sala repleta de camas cobertas com lençóis brancos de onde pendiam etiquetas. Dirigiram-se a uma delas onde se encontrava um senhor vestido com uma bata branca.

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- Pode levantar. - autorizou o inspetor. - Ai o meu menino. O que aconteceu ao meu menino. tomando consciência desesperada da realidade que tinha antecipado mas que desejava estar errada. - Calma minha senhora. - disse o inspetor, colocando a sua mão sobre os ombros da mulher.

A Rosário abraçou-se àquele corpo frio ali estendido e coberto com um lençol branco até à cintura nua. Beijou-o na testa e chorou como nunca tinha chorado em toda a sua vida.

- Ai meu Deus, o meu menino. Ai o meu lindo menino. - Pode tapar. - ordenou o inspetor, certo do reconhecimento.

Afastada, vigorosamente, a Rosário, o corpo era novamente coberto.

Saíram. O Inspetor agarrava a Rosário e impelia-a para o exterior da morgue. Ela resistia como podia com a certeza que o seu menino ficaria ali sozinho e cheio de frio. Não tinha o conforto da sua almofada nem os seus lençóis confortáveis.

Repetia insistentemente as únicas palavras que lhe enchiam o coração.

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- Ai o meu lindo menino, meu Deus.

Desmaiou ao chegar, de novo, à porta do Instituto de Medicina Legal. Foi chamada uma ambulância que a transportou ao mesmo hospital onde trabalhava a Senhora Doutora.

Acordou com a Senhora Doutora a seu lado.

- Ai, minha Senhora. O meu menino. - repetia, atordoada e pegando na mão da Senhora Doutora. - O que tem o seu menino, Rosário? - tentava esclarecer, afastando a mão da Rosário que apertava a sua. - Ai o meu menino, meu Deus. - A Rosário sentiu-se mal e a ambulância trouxe-a até aqui. Fechou a porta de casa? - indagou a Senhora Doutora, preocupada com a segurança da sua casa. - Ai o meu menino, Senhora Doutora. - Sim, Rosário. Fechou a porta de casa? - O meu menino morreu. - acrescentou a Rosário, como que tomando consciência do que se tinha passado. - Sim, Rosário. Tenha calma que já vamos ver o que se passa. - O meu menino morreu.

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A Senhora Doutora saiu do pequeno gabinete médico onde se encontrava e pediu o registo de entrada. Verificou que tinha, a paciente, sido recolhida em frente ao Instituto de Medicina Legal; a causa do transporte estava registada como síncope.

Questionava-se sobre o motivo que teria levado aquela mulher a dirigir-se ao Instituto de Medicina Legal e voltar a chorar pelo seu menino. Teria algum filho que desconhecia? Teria visto alguma criança a morrer e achara que era alguém conhecido? Teria fechado a porta de casa?

Não sabia bem o que pensar.

- Diga lá o que se passou, Rosário. - demandou a Senhora Doutora. - O meu menino morreu. - Isso já disse. Agora acalme-se e diga-me o que se passou.

A

Rosário

contou,

da

melhor

forma

que

lhe

foi

humanamente possível, o que tinha acontecido naquele final de manhã desde que o telefone tocara.

Entendido o acontecido, a Senhora Doutora saiu novamente do pequeno gabinete médico. Pegou no telemóvel e ligou ao Senhor Doutor.

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Teve a sorte de ser atendida e contou-lhe o que a Rosário lhe tinha contado a ela própria naquela cama.

O Senhor Doutor disse que ligaria à esquadra da polícia, cujo número estava na posse da sua secretária, e que esclareceria aquele evidente mal-entendido rapidamente.

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O processo

XI

O funeral do João Paulo contou com a presença de todos os colegas do 7H, de todos os professores da turma e de alguns colegas e professores da escola. Esteve presente, também, o Subdiretor da escola em representação da direção.

O seu amigo Marco falou, sentindo as lágrimas que lhe corriam pelo rosto, em nome dos alunos da turma, mas principalmente em seu próprio nome.

- O João gostava de toda a gente. Acreditava que todos eram boas pessoas e nunca apontava o dedo a ninguém. Foi meu amigo e gostava de ter sido amigo de todos. Sempre o tentei ajudar naquilo que precisava, mas foram mais as vezes que me ajudou a mim do que eu a ele. Na última conversa que tivemos, disse que não culpava ninguém por aquilo que lhe tinha acontecido; disse que eram brincadeiras e que apesar de o magoarem muito, não passavam disso mesmo. Temos todos de aprender com isto que aconteceu.

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Temos de estar mais atentos aos nossos colegas e tentar perceber o que sentem. Não podemos abandonar ninguém como abandonamos o nosso amigo. Espero que sirva de exemplo para todos. O João, agora está num sítio sem maldade. Está a olhar para nós e deve estar feliz por nos ver todos juntos. Obrigado João por teres sido meu amigo. Até um dia.

A Rosário não conseguiu dizer nem uma palavra. Chorava compulsivamente com o seu terço branco na mão, encostada a uma árvore ao canto de todos aqueles que ali se encontravam.

O Senhor Doutor e a Senhora Doutora vestiram de preto e mantiveram a sua compostura ao longo de toda a cerimónia. Não dirigiram nenhuma palavra aos que ali estavam e poucas foram as lágrimas que se viram correr nas suas caras.

O local ficou enfeitado com enumeras coroas de flores, mensagens em pequenos pedaços de papel e uma rosa isolada ao fundo da campa.

Devolvido aquele corpo à terra, voltaram todos para as suas felizes ou infelizes vidas. De uma forma ou de outra, partiram.

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Enquanto era feito o luto por aqueles que o sentiam, deveriam correr os necessários processos judiciais.

Tinham ficado situações por determinar, investigações por realizar e culpados para castigar. Tinham ficado, essencialmente, feridas por sarar em algumas pessoas.

Havia que determinar a questão da fotografia do João Paulo que tinha circulado por todos os alunos da escola e que, mais tarde, tinha aparecido na Internet.

Precisavam saber quem teria tirado a dita fotografia e quem a teria colocado na rede.

Havia que determinar o que tinha feito a escola para evitar que aquela tragédia tivesse acontecido.

Como teria intervindo o Subdiretor e os restantes professores da turma? Teriam feito tudo para evitar aquele desfecho trágico?

Recorrendo à forte influência que o Senhor Doutor tinha nos meios judiciais, conseguiu-se que não houvesse queixa, com a certeza que tudo iria ser decidido, atempadamente e com diligência, no ceio da comunidade familiar e escolar.

A Senhora Doutora, com a interferência que tinha no meio médico, conseguiu influir na decisão de envio do processo médico-legal para as entidades competentes. Esse relatório correu internamente pelos corredores da medicina e da justiça, até ser depositado na mesa de um juiz amigo do Senhor Doutor. Do relato escrito não houve mais notícias.

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Realizou-se uma reunião, na escola, entre o Diretor do Mega Agrupamento, que pela primeira vez se dirigira àquele espaço escolar, e os pais do João Paulo. Deviam decidir sobre a responsabilidade dos dirigentes naquele triste episódio.

- O Senhor Doutor sabe que não é possível controlar estas situações. - afirmou o Diretor. - Sim, eu sei que é complicado. - concordou o Senhor Doutor. - Ainda por cima, eu estou noutra escola e não consigo controlar tudo. O colega que me substitui aqui, para além de dar aulas, também não pode estar sempre a dirigir-se à sede para falar comigo. - esclareceu o Diretor, tentando justificar o que acontecera. - Compreendo perfeitamente todos esses constrangimentos. Estou certo que fizeram o melhor que vos foi possível para acautelar possíveis consequências dos atos praticados. asseverou o advogado. - Agradeço a compreensão. Como vamos determinar a avaliação da nossa responsabilidade? - Vamos redigir uma declaração a enviar aos seus superiores, comunicando o nosso entendimento e salvaguardando o vosso bom desempenho nesta questão. - decidiu o causídico, procurando conciliar as vontades das partes.

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- Agradeço, Senhor Doutor. Já sabe que pode contar com a discrição da escola. - agradeceu, submisso, o Diretor. - Conto com ela. - Peço desculpa pelo incômodo. - inclinando, ligeiramente, a cabeça. - Realmente estou a perder uma reunião muito importante com um cliente. Tenho de sair. - encerrou, cumprimentando o Diretor. - Boa tarde, Senhor Doutor.

Arrependidos, o Rafa e os restantes colegas, tinham confessado, à Diretora de Turma, toda a sua culpa nos acontecimentos ocorridos com o João Paulo.

Pediram-lhe muitas desculpas e disseram que não mais voltariam a cometer o mesmo erro.

O Senhor Doutor não queria ver o seu nome envolvido em nenhuma controvérsia que pudesse por em causa os seus objetivos profissionais.

O Diretor do Mega Agrupamento concordava que aquele assunto deveria ser resolvido dentro da instituição; tinha de se preocupar com o bom-nome da escola e com o seu próprio.

Para além disso, não seria bom que a vida daqueles meninos fosse estragada devido a um episódio pontual comum entre crianças com aquelas idades.

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Tendo em atenção que o pai do Rafa era professor naquela escola, seria, ainda, necessário não publicitar todo aquele caso. Estava em questão a reputação profissional e pessoal de um colega.

Concordaram, ali naquela mesma reunião, que seria suficiente que o menino Rafael e os restantes colegas sofressem um castigo dentro da escola.

Deveriam realizar tarefas de integração durante uma semana; tarefas de limpeza e apoio aos colegas que viessem de novo, no ano seguinte.

Aquela era a questão de resolução menos complicada e assim ficou determinado o acordo escrito e assinado pelos responsáveis.

O Rafael, a Luisinha, o José Maria, o Carlos Manuel, a Valéria Peixoto e o Pedro Pereira receberam esta mesma penalização que começaram a cumprir naquele final de ano e que continuariam no ano seguinte.

O problema da fotografia do João apresentava questões mais complicadas que envolviam o sistema judicial.

Facilmente se concluiu que a autora da fotografia tinha sido a Valéria Peixoto. Foi determinante toda a informação recolhida no interrogatório a que a Rosário tinha sido submetida e a confirmação da própria Vivi.

- 168 -


Também se sabia que o responsável pela publicação tinha sido o Pedro Pereira. Tinha criado, num computador da escola, um perfil falso numa rede social e tinha enviado aquela fotografia para toda

a

comunidade.

conhecimentos

Recorrera

informáticos

para

aos

seus

desenvolver

avançados todo

aquele

processo sem levantar suspeitas. A sua confissão arrependida foi a única forma de determinar o culpado.

Ambos os alunos seriam acusados de vários crimes, dependendo da queixa apresentada.

A Valéria Peixoto era filha de uma grande empresária da cidade. Contribuía, regular e abundantemente, para as atividades da escola através de parcerias e apoios financeiros.

- Minha Senhora, temos de determinar a melhor forma de solucionar esta questão. - sugeriu o Diretor. - O Senhor Diretor veja a melhor forma de não prejudicar a minha filha. Não quero que ela sofra, nem quero que a escola se ressinta. - respondeu a senhora. - Claro que não. A filha da Senhora terá de ser castigada, mas temos de ver bem como. - Muito bem. Concordo que tenha de sofrer um castigo qualquer, mas o Diretor sabe que isto são brincadeiras de crianças.

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- Eu sei, minha Senhora. Quanto ao resto, espero que não esteja nada em causa. - comunicou o Diretor, pensando nas relações futuras. - Claro que não. Até estava a pensar se não poderiam colocar publicidade da minha empresa ali no campo de futebol durante a realização do Corta-Mato escolar! - Claro que é possível. - Eu compensaria a parceria da mesma forma que fiz das outras vezes. - esclareceu a senhora, reconhecida pela atenção que o Diretor demonstrava relativamente ao futuro da sua filha. - Estamos de acordo. Não se preocupe mais com a menina Valéria. - afiançou o Diretor, mostrando satisfação pelo resultado obtido. - Muito obrigado e até à próxima. - estendendo a mão. - Boa tarde. - cumprimentando o Diretor.

Não se afigurava conveniente, para o Diretor do Mega Agrupamento, terminar com aquela parceria que mantinham. Seria muito prejudicial para toda a comunidade que se fechasse aquela "torneira" de ar puro que era injetado, amiúde, nas contas da escola.

O Senhor Doutor, por seu lado e mantendo a sua preocupação profissional, também não queria ver o seu nome associado a uma questão tão polémica. Para além disso teria de

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se apresentar em tribunal, colocando as suas fragilidades à vista dos seus colegas e superiores.

- Como quer o Senhor Doutor que seja tratado este trágico mal-entendido? - indagou o Diretor. - Julgo que seria benéfico para ambas as partes que houvesse um acordo. - sugeriu o Senhor Doutor. - Concordo com esse desejo. Pensou em alguma solução? - Talvez fosse conveniente concordarmos com a aplicação de uma penalização aos responsáveis pelos meninos. - Sim, é o procedimento mais conveniente. - agradecido e aliviado pelo caminho que a conversa estava a seguir. - Faremos assim, então. Amanhã darei ordens à minha secretária para enviar uma minuta com os dados apurados e com uma proposta de acordo na penalização a atribuir aos infratores. - determinou o Senhor Doutor. - Fico a aguardar esse documento. - Boa tarde. - Boa tarde, Senhor Doutor.

Ponderadas todas as situações, pesados os prós e os contras, decidiu-se por uma indemnização, a atribuir pelas famílias da Valéria e do Pedro aos pais do João Paulo.

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Essa verba reverteria totalmente para o desenvolvimento de um projeto, nas escolas do Mega Agrupamento, relacionado com a violência nas Redes Sociais.

O acordo foi aceite em tribunal, no gabinete de um juiz conhecido do Senhor Doutor.

Foi instaurado, no entanto, um procedimento disciplinar a uma docente da escola que teria apresentado queixa de umas mensagens que tinham aparecido nos computadores da escola.

Alegava que se verificara culpa dos serviços do Mega Agrupamento que deveriam ter acautelado a segurança da rede informática e dos alunos de forma a evitar que contactassem com aqueles factos.

Acrescentara, a título de contextualização, que o objeto daquelas mensagens era um aluno que tinha já sofrido de outros tipos de violência ao longo do ano. Relatava uma conversa que tivera com o aluno João Paulo, aquando do cumprimento de uma penalização disciplinar que considerara ter sido injusta.

A docente foi acusada de queixa caluniosa, declarada culpada e rapidamente afastada daquele Mega Agrupamento.

A professora Sílvia Araújo não justificava, pela sua aparência, a pouca idade que tinha. Parecia uma senhora já com uma idade respeitável. No entanto, tinha unicamente vinte e sete anos com muita experiência de vida.

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Tinha, quando andava na escola, sido objeto de violência por parte dos seus colegas. Tinha sofrido uma violação quando frequentava a Universidade. Desse terrível acontecimento vivido, nascera um filho com uma doença degenerativa rara que o conduziria à morte quando atingisse quatro ou cinco anos.

Tinha dedicado, desde o momento do seu nascimento, toda a sua vida e atenção àquele filho que tinha falecido, conforme esperado, com a idade de quatro anos.

Devido à sua experiência de vida, convivia muito mal com as injustiças, principalmente com aquelas que não levavam à responsabilização dos verdadeiros culpados.

Havia ainda um elemento que era necessário controlar, a Rosário.

A empregada manifestava a sua discordância em relação às decisões amanhadas entre as partes e dizia que não tinha sido feita justiça ao seu menino.

Concordava que não havia necessidade de estragar a vida daqueles jovens, mas acrescentava que ninguém se tinha preocupado com o seu menino.

Apontava, abertamente, o dedo ao Senhor Doutor e à Senhora Doutora pelo seu descuido no acompanhamento ao João Paulo.

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Mostrou-se, mesmo, disposta a apresentar, ela mesma, queixa à polícia de forma a obter punição para o descuido dos pais e da escola.

O Senhor Doutor e a Senhora Doutora resolveram a situação com

o

despedimento

da

funcionária

e

com

o

seu

encaminhamento para a sua aldeia natal.

Ofereceram-lhe uma boa quantia em dinheiro para que se esquecesse do que acontecera e desistisse dos seus intentos; aquela oferta pareceu-lhe uma indecência e não a aceitou, determinada que estava a avançar com a dita queixa. - Maria do Rosário. - Sim, Doutor. - O caso está resolvido a contento de todas as partes. determinou o Senhor Doutor. - E quem pensou no meu menino? - Pensamos todos no menino e nos outros meninos. - Acho que não pensaram no meu menino. Só pensaram nas vossas vidas. - ripostou a Rosário, incomodada pelo caminho que a conversa levava e levantando um pouco a voz acusadora. - Isso não é verdade. Nós também sofremos com o que aconteceu. - Pois, mas eu vou apresentar queixa. - afirmou, convicta.

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- Não pode fazer isso porque o caso já foi julgado e a Rosário não é nada ao menino. - esclareceu o Senhor Doutor. - Posso. Já perguntei e posso apresentar queixa. Não posso deixar que isto fique assim. - Isto já está resolvido. - Não está, não. Ainda falta muito para estar. - ameaçou a Rosário. - Maria do Rosário, sabe que se fizer isso eu vou acusá-la de fazer uma queixa falsa. - anunciou o Senhor Doutor, inquieto com aquela possibilidade. - Mas isso não é verdade. - Apresento a acusação e vai ser presa por isso. - adicionou o Senhor Doutor, já não atendendo ao que a Rosário dizia. - O Doutor não era capaz de fazer isso. - Pode ser presa por muitos anos. - continuando a não atender ao que a Rosário comunicava. - Só quero que se faça justiça ao meu menino. - implorou a Rosário. - A justiça está feita. Agora ele já partiu e temos de tratar dos que ficaram. - findou o Senhor Doutor. - Doutor, isso não é de pai. - Maria do Rosário, pegue neste dinheiro e vá para casa. Não conte nada disto a ninguém e daqui a pouco já nem se

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lembra. - estendendo um maço de notas na direção da Rosário. - Não quero o seu dinheiro. Não precisa de me mandar para casa, porque eu não conseguiria ficar aqui a servir depois do que fizeram. Vou para casa, mas não me esqueço do meu menino. - informou a Rosário, afastando com a mão aquela oferta indecente e silenciadora. - Vá e não volte a falar mais do assunto a ninguém. Este caso está encerrado.

Foi, a Rosário, naquele mesmo dia, para a sua aldeia. Antes da viagem foi visitar, pela última vez, o seu menino naquela campa fria e despida de ornamentos. Mantinham-se as flores, os pequenos papéis. e a flor ao fundo da campa.

Entrou na camioneta de carreira e não mais foi vista naquela cidade. Também nunca mais houve notícias dela.

Sabia-se que, de tempos a tempos, alguém deixava uma rosa perdida aos pés da campa do menino, mas sem se saber que era da Maria do Rosário.

O Senhor Doutor acabou por ser promovido ao desejado cargo de Procurador-Geral.

A Senhora Doutora acedeu à Direção do Centro Hospitalar onde trabalhava.

Continuavam a chegar a casa às mesmas horas.

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Continuavam a fechar-se no escritĂłrio e na biblioteca a tratar de assuntos importantes para as suas vidas profissionais.

Agora jĂĄ nĂŁo tinham de se ocupar em levar e trazer o menino. Podiam regressar a casa logo depois de sair dos empregos e continuar as suas tarefas.

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Últimas palavras

XII

agosto

Num certo dia, alguns meses após o funeral do João Paulo, a Diretora de Turma do 7H recebeu uma carta, na escola, dirigida nominalmente à sua pessoa.

Tinha sido remetida anonimamente. Abriu o envelope onde se encontrava uma folha dirigida aos meninos que entretanto já tinham partido de férias de final de ano.

A professora leu, trémula, o seu conteúdo. Após a leitura emocionada da mensagem, considerou ser importante enviar um exemplar a cada um dos meninos da sua antiga Direção de Turma.

Enviou a seguinte mensagem, escrita pela mão do João Paulo poucos minutos antes da sua morte.

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Colegas de turma

Agradeço-te, Marco, por me teres acompanhado neste ano e por me teres ajudado quando eu precisei. Foste tu quem me ouviu e foste um dos poucos que acreditou em mim. Tenho de te pedir desculpa por não te ter contado que estava

farto

do

que

me

faziam

e

que

queria

desaparecer. Ao Rafa quero dizer que te desculpo pelo que me fizeste. Apesar de tudo, acho que és um bom rapaz, mas precisas

de

pedir

ajuda

para

melhorares

o

teu

comportamento. Sei que só querias dar nas vistas e mostrar que eras muito importante. À Luisinha quero dizer que te desculpo e que sei que só fizeste aquilo por vontade de outros. Sei que nunca me quiseste fazer mal e que só alinhaste por causa do Rafa. Cucas e ao Manias, também vos desculpo e sei que não foram vocês os principais culpados. Blogues, tens de utilizar o que sabes de Informática para coisas boas e para ajudar as pessoas. Também te desculpo, porque sei que és bom rapaz. Vivi, foste a minha primeira namorada. Foste a primeira pessoa a quem dei um beijo daqueles.

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Por algum tempo senti que gostavas tanto de mim como eu gostava de ti. Fizeste-me feliz durante esse tempo e por isso te agradeço; gostei dos teus beijos e dos teus abraços. Desculpo tudo o que fizeste, porque ainda gosto muito de ti. Um abraço de adeus a todos e obrigado por me terem aturado. Cuidem bem dos vossos professores. Às vezes são uma seca, mas só tentam fazer alguma coisa para vos ajudar a ser gente boa.

Na mesma altura em que a Diretora de Turma recebeu aquele envelope, chegou a casa do Senhor Doutor e da Senhora Doutora um outro envelope anónimo.

A empregada Rosa Maria recolheu a missiva, que estava no chão em frente à porta de entrada, e entregou-a, em mais uma trabalhosa noite, ao Doutor.

- Sim? - autorizou o Senhor Doutor. - Sou eu, Doutor. - informou a empregada. - Senhor Doutor! - corrigiu o Senhor Doutor. - Sou eu, Senhor Doutor. - emendou.

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- O que se passa? - Chegou esta carta agora mesmo. Deixaram-na por baixo da porta. - mostrando o envelope. - Muito obrigado. Deixe ai. - ordenou o Senhor Doutor, apontando com os olhos para cima da sua secretária. - Sim, Senhor Doutor.

Assim fez a empregada. Algum tempo depois, o Senhor Doutro, numa pausa entre processos, pegou no envelope. Analisou minuciosamente o seu exterior, sentiu-lhe o peso e abriu-o.

Retirou um papel escrito à mão e leu.

Pai e mãe

Tentei, muitas vezes, falar dos meus problemas com o pai e com a mãe. Estavam sempre muito ocupados e não arranjamos tempo para conversar comigo. Precisava de ajuda e não me puderam ouvir. Também não sei se me poderiam ajudar. O que me custou sempre mais foi perceber que nem a mãe nem o pai acreditavam que a culpa de algumas coisas que aconteciam não era minha.

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Preocupavam-se responsabilidade

com e

as

não

roupas, ouviam

com nem

a as

minha minhas

explicações nem os meus problemas. Agora já não vão ter de se preocupar mais comigo e com perder tempo a ouvir-me. Vão poder tratar das vossas carreiras sem interrupções. Obrigado por me terem dado boas roupas, boa comida. Mas o que eu precisava mais era de atenção e de falar convosco. Não vos culpo pelo que me aconteceu e também não quero que chorem por mim. Gostava de ter sido mais vosso filho, mas compreendo que estavam muito ocupados. A Rosário foi a única pessoa que me ouviu. Quero que os meus colegas de escola não sofram nada por aquilo que fizeram. Eu sei que só queriam brincar comigo e que não queriam que isto acontecesse. Quero que pensem um bocadinho melhor quando decidirem fazer o mesmo a outra pessoa. Quero que pensem que às vezes há pessoas que não conseguem aguentar aquelas brincadeiras. Um beijo para o pai e outro para a mãe. Adeus.

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Nessa mesma noite, o Senhor Doutor dirigiu-se ao escritório da Senhora Doutora, talvez pela primeira vez desde que se tinham mudado para aquela casa.

Levava aquela folha escrita à mão e entregou-lha.

- Leia esse papel. - solicitou o Senhor Doutor. - De quem é? - questionou a Senhora Doutora. - Leia, se fizer o favor. - retomou o Senhor Doutor, friamente, depositando a folha nas mãos da Senhora Doutora.

A Senhora Doutora leu as palavras escritas pela mão do João Paulo. Olhou para o Senhor Doutor e ali ficaram os dois, em silêncio sentido.

Nessa noite, sentaram-se os dois no sofá da sala e não conseguiram terminar nem mais um processo, nem mais um artigo científico.

A Rosário, no dia em que se dirigira à morgue para proceder à identificação do corpo, recebeu, do Inspetor, aqueles três papéis ensacados que tinham sido encontrados ao lado do corpo do menino descoberto no jardim.

Tinha-os guardado religiosamente dentro da Bíblia Sagrada que sempre mantinha na mesinha ao lado da sua cama. Lera a

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parte que lhe tinha sido dirigida pelo seu menino e mantivera as outras duas sob reserva.

Chegado o momento certo, encaminhou as duas para os destinatários que julgou convenientes e conservou a sua.

Rosário

Hoje vai acabar o inferno que tu sabes que tenho vivido. Não quero que chores por mim, porque quando leres esta carta eu já vou estar bem. Estou cansado de fugir, de me esconder dos rapazes e das raparigas que me fizeram mal durante este tempo. Foi logo desde o princípio do ano que tudo se complicou e nunca mais acabou. Tive problemas todos os dias. Passei muitas dificuldades e chorei muitas lágrimas às escondidas. Chamaram-me nomes, bateram-me e esconderam-me coisas. Mas o que mais me custou sempre foi saber que ninguém acreditava em mim; nem os professores, nem os diretores e nem os meus pais. O único amigo que sempre me apoiou foi o Marco. Tenho de lhe pedir desculpas por me ter afastado um bocado dele, mas digo-lhe obrigado por ter acreditado em mim e me ter ajudado.

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Tu sabes que gostei muito da Valéria e que acreditei que ela também gostava de mim. Não te sintas culpada por me teres dito para acreditar no amor. Temos mesmo de acreditar nisso para podermos ser felizes. Um beijo grande para ti. Obrigado por acreditares e por tratares de mim nestes anos todos. Se não tivesse sido o teu amor, tudo tinha sido muito mais complicado.

Remeteu, ainda, uma cópia daqueles documentos a um jornal da sua aldeia com o pedido expresso que fossem encaminhados para um jornal nacional. Acrescentara uma pequena frase "Em memória do meu menino".

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No ano seguinte

XIII

13 de setembro

Começava um novo ano letivo no Mega Agrupamento do Norte do país.

A turma do 8H aparecia constituída por vinte e seis alunos. O Rafa tinha sido transferido para uma outra escola, fora daquela cidade, acompanhando a família. O pai, depois do que tinha acontecido, tinha pedido o seu destacamento; a mãe, doméstica

de

profissão,

tinha-o

acompanhado.

Tinha

sido

considerado pela família que aquele afastamento seria o mais adequado para todos os envolvidos.

Os restantes alunos do 7H tinham transitado. Encontravam-se, de novo, juntos, mas não eram já os mesmos. Todos estavam diferentes; mais adultos, mais responsáveis, mais experientes.

Na primeira reunião de início de ano, presidida pela professora Carla Penha, não se fizeram apresentações, não foram comunicados os critérios de avaliação, não foram ouvidos sermões. Foi realizada uma cerimónia de homenagem ao colega que tinha partido no final do ano anterior. Foram lidas mensagens que os alunos tinham escrito, por sugestão da Diretora de Turma,

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quando tinha enviado a cópia da mensagem deixada pelo João Paulo. O Rafa também tinha escrito uma, antes de partir, que foi lida pela professora.

Ficou, ainda, determinado, por pedido dos colegas de turma, que a primeira carteira de cada sala, onde a turma tivesse aulas nesse ano, estaria sempre reservada para o João Paulo e que ninguém a ocuparia nunca.

Foi colocada, pelos colegas, uma fotografia gigante do João Paulo, assinada por todos os alunos do estabelecimento, à entrada da escola. Em frente a essa imagem, toda a escola respeitou um minuto de silêncio, cronometrado pelo Diretor do Mega Agrupamento, que foi totalmente ocupado por palmas e algumas lágrimas.

A primeira semana de aulas foi totalmente dedicada à recordação da memória do aluno desaparecido, com o objetivo que uma situação igual nunca mais acontecesse. Realizaram-se, com orientação da psicóloga da escola, sessões de formação e esclarecimento sobre a violência em ambiente escolar. Foram dirigidas a todas as turmas, a todos os professores, a todos os funcionários e a todos os pais e encarregados de educação.

O dia treze de setembro ficou marcado como o dia de luta contra a violência escolar. Nesse dia de "Festa das Pazes" não havia aulas e todos se reunião, no campo de jogos da escola, para se conhecerem melhor e resolverem problemas que tivessem com outros colegas.

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Nunca mais se registou uma situação de violência naquela escola. Todos os funcionários estavam atentos ao mais pequeno sinal de alarme, todos os professores se mantinham alerta às mudanças apresentadas pelos alunos e a direção da escola recolhia informação, mensalmente, sobre o estado dos alunos da escola.

Em todas as turmas da escola, para além do delegado e do subdelegado de turma, elegeu-se um "responsável pelo bem-estar dos alunos" que reportava, mensalmente, situações problemáticas ao Diretor de Turma.

O 8H foi escolhido para realizar um estudo, na escola, que determinaria se a Direção estava a realizar bem as suas tarefas. Teriam, ainda, de saber se havia sugestões a apresentar por parte dos alunos e que deveriam ser implementadas pela Direção.

Ainda hoje, nesse Mega Agrupamento, se celebra o dia, apesar de muitos alunos, que foram chegando, não saberem muito bem a razão da sua existência.

É recordado o menino no parque. É contada a sua história e durante

um

minuto

é

silenciosamente

recordada

a

sua

experiência.

Apesar de parecer que o João Paulo não tinha sido importante para os colegas, ele acabou por mudar toda a escola, criando um melhor ambiente para os colegas e para os que vieram a seguir a ele.

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