Uma urbana no campo

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Tantinhas coisas por saber

Ana Pedrosa

É coisa antiga a paixão por Trás-os-Montes, amor à primeira vista já lá vão mais de duas décadas. Foi afeição outonal que amadureceu durante longas férias, visitas de fim de semana e natais roubados à família. Cativou-me a beleza das paisagens, sim, mas também as portas abertas e o sorriso franco das gentes, o humor tão peculiar e uma das maneiras mais bonitas de falar português: melódica, com a suavidade das primaveras em que garotos e burricos brincam nos lameiros, e esse modo sibilante de perguntar ajoras e dizer ojolhos (fosse Eugénio de Andrade transmontano diria “os teujolhos são peixes verdes”). Quando finalmente nos mudámos, há dois anos e meio, pensei reconhecer todas as sinuosidades e asperezas do linguajar nordestino. Bastou pousar armas e bagagens para me dar conta como estava enganada: uma semana depois já me debatia com quiproquós e conversas sem nexo, como estrangeira numa terra estranha. Sempre que nos viam as vizinhas perguntavam se as crianças estavam afeitas, mas isso foi fácil entender sem recorrer ao dicionário. Mais complicado foi perceber o técnico dos telefones quando afirmou que regressaria “manhã ou passado” para terminar o serviço. Pensei ter escutado mal, tentei determinar a hora certa, porém ele continuava a insistir, repetindo a fórmula cada vez mais alto como se o meu problema fosse ser dura de ouvido. Apareceu dois dias mais tarde, com o ar mais normal deste mundo e eu esqueci. Até que a professora do meu filho me informou de uma reunião “passado manhã”, que reconheci como uma variante do castelhano pasado mañana para indicar o dia depois de amanhã. Depois foi a mãe de uma colega da minha filha a queixar-se de que estava tão mal das costas que nem se conseguia amarrar. Como a conhecia há pouco calculei que não estivesse a confessar alguma atividade íntima, mas escusei-me a saber mais detalhes (hoje, sem sombra de dúvida, teria pensado que a senhora era uma ávida leitora das sombras eróticas do senhor Grey). Mais tarde alguém me falou de uma ponte de madeira, tão precária que até um cão, amedrontado, a cruzou todo amarradinho. Perdida a imaginar o animal a ser amarrado e puxado por cordas, mais uma vez deixei passar a oportunidade de esclarecer a questão. Entretanto, da escola os miúdos traziam novos vocábulos: andar às cavalitas era ser levado às “carrintchas” e uma “carotcha” uma côdea de pão. Ouvi e aprendi que “Idejapé?” não é nome de arbusto brasileiro, mas forma de perguntar se os colegas vão a pé para casa. Um dia o professor de Educação Física mandou a turma amarrar-se e a minha filha ficou a ver o que acontecia. Agacharam-se todos até ela compreender. Fez-se então luz em muitos diálogos estranhos. Cá em casa até o jardim ganhou uma nova dimensão. As cerejeiras-bravas são cerdeiros, os tufos de rosmaninho são de arçã e são núncios as amarelas primaveras, primeiras flores da estação. O último outono trouxe-me aquela que passou a ser a minha palavra favorita, quando as vizinhas à cata de castanhas me ofereceram tantinhas, vocábulo delicioso que fica entre a abundância de tanta e a avareza de um bocadinho. De repente, parecia-me ouvi-la de todas as bocas. Aqui as pessoas pedem tantinha água quando têm sede, confessam estar um tantinho tristes, dão-nos tantinhas sementes para o prado. Cada vez me sinto mais da terra mas sei que tenho ainda muito para aprender. Talvez a ocasião surja no próximo Carnaval, num almoço à roda de um prato de butelo com casulas. Ou numa destas manhãs geladas, quando levar o cão a passear numa rodeira. Como uma maçã caída, vou apanhar cada nova palavra e saborear o seu travo agridoce, até que se torne parte de mim.


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