6e Dezembro/2013 - ANO LXIV Nº 10
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Carlos Romero
Uma vida dedicada à vida
6 editorial
Quem é ele Não é tarefa fácil classificar o cidadão Carlos Romero. O caminho menos penoso seria rotulá-lo de jornalista, pela paixão que devota à profissão. Mas o cronista, o escritor, o magistrado, o professor, o espírita, o viandante, o amante apaixonado da música, da literatura e da natureza não ficariam magoados? Carlos Romero tem uma trajetória singular no vasto mundo da cultura e do jornalismo paraibanos. Singular porque sua catedral foi construída quase em silêncio, sem açodamento egoísta, sem carência midiática. Arriscamos dizer que a argamassa utilizada foi e continua sendo o amor pela vida. Cremos que quem ama a vida tem o coração e a mente abertos para a natureza e a cultura. Em síntese, ama e cuida desse imenso jardim chamado Terra, e vai registrando a sua e a forma de
Engana-se quem
híbrido -, para dar o seu testemunho do mundo, mas não vive isolado nas torres de marfim de sua catedral. Escreve em jornais paraibanos, notadamente em A União, há mais de meio século. É um dos fundadores do Correio das Artes e, seja como editor, seja como colaborador, foi figura de proa nos momentos marcantes do suplemento. É membro da Academia Paraibana de Letras (APL), entre outras entidades. Esta edição do Correio das Artes homenageia Carlos Romero. Não só pela sua dedicação ao suplemento, mas por tudo o que ele fez e continua fazendo em prol do desenvolvimento cultural da Paraíba. E se propõe a revelar, em uma extensa reportagem, a verdadeira dimensão de sua rara personalidade.
pensa que Carlos Romero é um ser passivo. A contemplação foi a via que escolheu para manter-se conectado com os planos do mundo.
viver de seus contemporâneos. Uns plantam. Outros destroem. Por isso, a cidade o encanta e angustia. Engana-se quem pensa que Carlos Romero é um ser passivo. A contemplação foi a via que escolheu para manter-se conectado com os planos do mundo. Optou pela crônica - não por acaso um gênero
O Editor
6 índice
4 @
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19 2
23 D
31
homenagem
crítica
religiosidade
ilustrado
Carlos Romero, cronista
O crítico de literatura
Estudioso da Idade Média,
O escritor W. J. Solha
de A União e um dos
Ronaldo Cagiano comenta
Gilberto de Sousa Lucena
participa desta edição com
fundadores do Correio
o livro Amanhã não tem
assina artigo esclarecedor
o criativo ensaio ilustrado
das Artes, é tema de
ninguém, do escritor Flávio
acerca do movimento
"Arte é igual a massa,
reportagem especial do
Izhaki. O lançamento é da
formado por begardos e
vezes a velocidade da luz
jornalista Alexandre Nunes.
Editora Rocco.
beguinas.
ao quadrado".
Suplemento mensal do jornal A UNIÃO, não pode ser vendido separadamente A União Superintendência de Imprensa e Editora BR-101 - Km 3 - CEP 58.082-010 - Distrito Industrial - João Pessoa - PB PABX: (0xx83) 3218-6500 - FAX: 3218-6510 Redação: 3218-6511/3218-6512
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Editor do Correio das Artes William Costa Supervisor Gráfico Paulo Sérgio de Azevedo Editoração Paulo Sérgio de Azevedo
Foto da Capa Evandro Pereira Ilustração Domingos Sávio Revisão Antônio Moraes
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perfil
Carlos Romero
Um homem que sabe e ensina a viver Alexandre Nunes
Especial para o Correio das Artes
A
vocação para a leveza no trato com a palavra escrita não se sabe se veio dos verdes campos e do clima ameno de Alagoa Nova, no Brejo paraibano - sua terra natal -, do sítio da infância nas proximidades do Parque Sólon de Lucena - a Lagoa -, ou dos encantos de uma natureza preservada da praia de Tambaú de sua juventude, em João Pessoa. O que se tem certeza é que a vocação de Carlos Romero para o jornalismo foi descoberta muito cedo. “Desde criança que eu sou apaixonado pelo jornalismo”, confirma o escritor. Carlos Romero escreveu um jornal manuscrito ainda na pré-adolescência, quando tinha 12 anos e morava na Rua Nova, hoje denominada Rua General Osório, no Centro de João Pessoa. Mas a circulação do único exemplar do jornalzinho entre as meninas e meninos residentes naquela rua teve vida curta. Acontece que num dos números do jornal O Riso, o jovem Carlos Romero fez uma referência não muito agradável a uma moçinha e a família dela não gostou. O pai do “jornalista” tomou conhecimento do caso e lhe aplicou 12 “bolos” de palmatória. “No outro dia, ainda sentindo as dores do castigo, editei outro manus-
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c crito, sendo que este não levava mais o nome de O Riso e sim de O Choro, já que eu tinha chorado muito. Foi a primeira decepção que vivi com relação à liberdade de pensamento, que transformou o riso num choro”, lembra Carlos Romero, com o bom humor que lhe é característico. Filho de José Augusto Romero e Pia de Luna Freire, o jornalista Carlos Augusto Romero nasceu numa tarde de domingo, precisamente no dia 10 de junho de 1924, na cidade de Alagoa Nova. “Vim ao mundo no crepúsculo do dia, no ‘Sítio Público de Mangueiras’, como o meu irmão, o poeta e historiador Eudes Barros, chamava Alagoa Nova. Deixei minha terra natal com quatro anos de idade, quando minha família se transferiu para João Pessoa, onde papai comprou uma casa na Rua Nova. Essa casa ficava junto onde é hoje o Shopping Popular ‘Terceirão’. Aliás, ela foi demolida. Passamos um tempo lá nessa casa. Depois papai comprou um sítio na Lagoa (denominação popular do Parque Sólon de Lucena). Foi aí que começou a minha vida feliz, num paraíso, porque o sítio tinha todas as frutas e era uma beleza”, relata. Carlos Romero foi casado em primeiras núpcias com a senhora Carmem Coeli e em segundas núpcias com Alaurinda Padilha. Do primeiro matrimônio nasceram os filhos Carlos Augusto Romero, professor de Física da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e Germano Gouveia Romero, arquiteto e professor de música. Aos 89 anos, Carlos Romero diz que João Pessoa foi a cidade que acolheu seus sonhos, inspirou seus projetos e abriu espaço para suas conquistas. Uma cidade que ele continua amando cada vez mais, e que teve o prazer de, no último mês de setembro, receber o Título de Cidadão Pessoense, outorgado pela Câmara Municipal de João Pessoa. “Mesmo quando viajo muito para o estrangeiro, nunca me esqueço dessa cidade e, sobretudo, de Tambaú. De modo que essa cidade sempre me encantou, porque aqui passei toda minha juventude. Até hoje moro aqui na
‘Cidade das Acácias’, como chamam. Aqui estudei, trabalhei e construí toda minha vida, toda minha família”, reconhece. Carlos Romero iniciou seus estudos na Escola Normal, que funcionava no prédio onde hoje está instalado o Tribunal de Justiça da Paraíba, na atual Praça João Pessoa, também chamada “Praça dos Três Poderes”. Depois ele foi estudar no Grupo Escolar Epitácio Pessoa, no bairro de Tambiá, que dispunha de um grande professorado. “Em seguida, passei para o Lyceu Paraibano e a coisa melhorou ainda mais. O Lyceu era muito bem conceituado naquela época, uma verdadeira universidade, com grandes professores, onde iniciei meu estudo complementar de Humanidades”, rememora.
O jornalista Ao deixar o Exército, em 1945, Carlos Romero retornou à sua vida normal e ingressou no jornal A União. “Eu acabara de sair do Exército, estava à procura de emprego e o meu pai me levou ao diretor de A União, que, na época, era o escritor João Lélis. Aí começou a minha verdadeira profissão que era de jornalista, profissão que ainda hoje admiro, porque é e sempre foi a profissão da moda. João Lélis, que era meu primo, me disse que eu iria começar na revisão. Só depois é que iria para a Redação. E eu fui para a revisão”, conta. Carlos Romero, ao explicar como era o seu trabalho na revisão, deixa claro que o que ele queria mesmo era ser transferido para a Redação e escrever para o jornal. “Na revisão, a gente fazia esse trabalho de conferir. Um ia lendo, outro ia anotando e fazendo as correções, mas o grande desejo da gente, o grande sonho, pelo menos o meu, era escrever. Mas tinha que esperar. Até que um dia o secretário de Redação me convidou para a uma nova função: repórter. Para mim
Os estudos de Carlos Romero sofreram uma interrupção, quando ele foi convocado para o Exército, onde permaneceu de 1942 a 1945, em pleno período da 2ª Guerra Mundial. Ele passou um tempo no 15° Regimento de Infantaria, em João Pessoa, onde diz ter sofrido muito como soldado. Depois, ele foi transferido para Natal (RN), onde esteve na iminência de seguir para os campos de batalha na Itália. “Houve a possibilidade de se viajar para Dakar, na África, e de lá ir para a Europa e isso me angustiou muito. Mas passou. Graças a Deus fiquei aqui para contar a história. Minha passagem pelo Exército, apesar de dolorosa, valeu muito como experiência. Dou muito valor à experiência, pois sem ela a vida é nula”, assegura.
foi uma maravilha. Na Redação, conheci o grande escritor Silvino Lopes, que escreveu muito em A União e que exercia o cargo de redator chefe do jornal. Ele foi meu mestre e quem me orientou e estimulou na Redação”, lembra. A primeira reportagem de Carlos Romero aconteceu no Porto do Capim, em João Pessoa, e teve como título: “Os homens que venceram a fome”. Ele foi com o fotógrafo ao Porto do Capim e diz que “foi ótimo”. No outro dia, quando a matéria saiu publicada, Carlos se encheu de vaidade e alegria. Queria ser jornalista e isso aconteceu logo cedo, no vigor de sua juventude. “Após um período como repórter, fui redator. Na Redação, trabalhei muito também com a tradução das mensagens telegráficas. A tradução do telegrama era justamente dar uma redação ao texto que vinha em linguagem telegráfica, ou seja, era traduzir os sinais. Lembro-me de um discurso muito longo, horrível e difícil de traduzir que foi o discurso do General Dutra. Além de dar muito trabalho, era uma tarefa de grande responsabilidade”, sublinha.
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Foto: divulgação
Rubem Braga, cronista insuperável
O cronista Um olhar que mistura realidade com lirismo, dando ênfase às coisas simples da vida. É como Carlos Romero revela seu lado cronista. Ele conta que começou a escrever crônicas inspirado na cidade de João Pessoa. “A cidade daquele tempo me encantou pelos seus bondes e por ser uma cidade bela e pacata, como já descrevia o escritor Ascendino Leite”, observa. A primeira crônica escrita por Carlos Romero foi publicada no jornal A União, com o título de “Rua Triste”, e que falava sobre a Rua Nova, hoje Rua General Osório, no Centro de João Pessoa. A partir daí, não parou mais de escrever textos nesse gênero lítero jornalístico. São crônicas sobre a cidade, sobre as pessoas. Os temas são sempre temas livres, humanos. Escreve e publica também livros de crônicas. A temática tem sempre como destaque o homem e a vida em si mesma. Em seu entender, a crônica oferece muita beleza ao jornal. “A crônica ameniza, a crônica é muito comunicativa. Um jornal sem crônica deixa de ser um jornal para se transformar num diário oficial”, ressalta. Carlos Romero atribui ao escritor e teatrólogo pernambucano Silvino Lopes o incentivo para que passasse a escrever crônicas. “Esse homem foi o maior estimulador para eu escrever crônicas. Ele fazia correções dos meus textos em A União e me dizia sempre que um dia eu iria escrever crônicas. Eu vivia na expectativa e, um dia, ele chegou para mim e pediu para que eu escrevesse uma crônica. Eu escrevi, ele gostou e eu continuo até hoje escrevendo crônicas para o jornal A União”, relata. Carlos Romero confessa admiração por grandes cronistas brasileiros, a exemplo de Rubem Braga e Luis Fernando Veríssimo. Foto: divulgação
Veríssimo, outro cronista admirado
O magistrado Carlos Romero graduou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), e, posteriormente, fez curso de Especialização na UFPB, em vários ramos do Direito, onde se tornou professor universitário. Sua carreira de magistrado começa quando ele é designado juiz substituto de Santa Rita (PB). “Depois que me formei em Direito, Ozias Gomes me perguntou se eu queria ser juiz em Santa Rita. Eu não tinha prática nenhuma, mas aceitei e foi ótimo. Mas não demorei muito, não. Depois tentei a advocacia, mas não tive jeito nenhum para o ofício”, admite.
Em seguida, Carlos Romero fez concurso para juiz de Alagoa Nova, sua terra natal. “Fui muito tempo juiz lá. Depois fui promotor de Justiça e quem me nomeou promotor da cidade de Areia (cidade do Brejo paraibano) foi José Américo de Almeida. Eu gostei muito do tempo em que fui promotor em Areia”, acrescenta. Carlos Romero também foi conselheiro membro do Tribunal de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), membro do Conselho de Cultura do Estado da Paraíba, diretor da Rádio Tabajara, chefe da Casa Civil no governo Pedro Gondim e um dos fundadores da Orquestra Sinfônica da Paraíba (OSPB).
O escritor O primeiro livro publicado por Carlos Romero foi A dança do tempo, uma coletânea de crônicas que trata do cotidiano da vida familiar. Entre suas obras também se destacam os livros O Papa e a mulher nua (crônicas de viagem), Meu encontro com Kardec (diálogos imaginários), Lições de viver (crônicas) e as plaquetes O milagre de Anchieta, A outra face de Beethoven, Lauro Neiva: um médico entre dois mundos e A Falência no Direito Brasileiro. Seu último livro publicado foi Viajar é sonhar acordado (crônicas de viagem). Escreveu ainda uma peça teatral intitulada O bom assaltante. O escritor revela que ainda chegou a escrever uns poemas, que estão colecionados e que sua pretensão é publicá-los brevemente. Carlos Romero assumiu a cadeira nº 27 da Academia Paraibana de Letras (APL), em 26 de junho de 1961, sendo recepcionado pelo acadêmico Higino Brito. Com relação à sua entrada para a Academia, ele conta que quem o estimulou a se inscrever foi o escritor e médico Oscar de Castro. “Nunca pensei em fazer parte da Academia, apesar de admirá-la e assistir as reuniões. Oscar de Castro, que foi presidente da entidade, gostava muito de mim e quase me forçou a concorrer a uma vaga. Então, eu me escrevi, não tive concorrente e graças a Oscar de Castro, entrei para a Academia”, explica.
ilustração: divulgação
Allan Kardec
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A opção pelo Espiritismo Todo ser humano tem uma visão de mundo, uma ideia de Deus, e a dimensão religiosa e filosófica do homem Car-
los Romero é a de um espírita convicto, com vários trabalhos publicados relacionados com a doutrina codificada por Allan Kardec. Quando Carlos Romero nasceu, o seu pai, José Augusto Romero, um ex-seminarista, já era espírita. “Meu pai presidiu a Federação Espírita Paraibana (FEP) por 44 anos consecutivos e foi graças a ele - que muito me estimulou - que eu abracei a doutrina. hoje eu sou dedicado ao Espiritismo”, destaca. Ele enfatiza que sempre procurou estudar os filósofos que fundamentaram a doutrina espírita, porque, em sua opinião, o Espiritismo é uma doutrina que nasceu de um livro, o Livro dos Espíritos, e quem quer ser espírita tem que estudar. Além dos doutrinadores espíritas, Carlos
Fotos: divulgação
Da esquerda para a direita, Osvaldo Trigueiro de Albuquerque Melo, José Lins do Rego e Hermano José
Pioneiro do Correio das Artes Carlos Romero integrou a equipe que fundou o Correio das Artes. Mas, segundo ele, a alma do suplemento literário foi o poeta Edson Régis, que era de Pernambuco e veio para a Paraíba, juntamente com Silvino Lopes, não se sabe se por causa da política naquele Estado, que era governado por Agamenon Magalhães. Aqui na Paraíba, logo Edson Régis assume o cargo de secretário do jornal A União e se junta com Simeão Leal, muito prestigiado no meio jornalístico e literário, principalmente com o pessoal do Sul. “Simeão Leal e Edson Régis foram as vigas mestras do Correio das Artes”, opina. O Correio das Artes foi publicado pela primeira vez em 27 de março de 1949 e Carlos Romero é um dos únicos participantes da fundação do suplemento ainda vivo. Carlos Romero conta que no primeiro número do Correio das Artes foi publicado, na última página do suplemento, um conto de sua autoria intitulado “Noturno”. Ele explica que o conto foi o gênero que ele iniciou sua trajetória no universo literário. “Ainda escrevi vários contos, mas depois deixei de escrevê-los por causa do ciúme da minha primeira mulher,
Romero diz ter estudado outras religiões e filosofias. Ele revela que aproveita esse conhecimento da doutrina espírita em sua crônica, no sentido de divulgar o Espiritismo e também de expressar o que sente acerca do assunto. Segundo Carlos Romero, ao se deparar com o imediatismo e materialismo que imperam no mundo, o espírita, que está sempre consciente dos princípios da doutrina, a exemplo da mediunidade, reencarnação e lei de causa e efeito, fortalece suas convicções nessa convivência, de modo que ele sabe qual é o seu destino e também sabe que não há morte, apenas uma mudança do mundo físico para o espiritual e essa é a maior mensagem que a doutrina espírita pode dar.
porque tudo que eu escrevia das personagens, ela pensava que era verdade”, comenta. A história do Correio das Artes acaba se confundindo com a história de Carlos Romero, que chegou a editar o suplemento por algum tempo. “Sempre acompanhei toda a história do Correio das Artes em A União. Quando não participava com crônicas, participava com registro de livros, já que eu tinha uma coluna sobre livros”, ressalta. Segundo Carlos Romero, o Correio das Artes surgiu num contexto jornalístico em que imperava os cadernos literários e quem liderava era o Diário de Pernambuco. Todo jornal, aos domingos, tinha a sua página literária. É quando surge o Correio das Artes como suplemento, encartado ao jornal, o fato repercute como uma inovação. Na época do lançamento do Correio das Artes, quem governava a Paraíba era Osvaldo Trigueiro de Albuquerque Melo, que prestigiou a iniciativa do jornal dirigido por Sílvio Porto. Carlos Romero faz questão de enfatizar a presença do trabalho do pintor Hermano José já nos primeiros números do Correio das Artes, e também a colaboração do escritor José Lins do Rego. c
Foto: Marcos Russo
Reflexões salgadas Carlos Romero
“Faltei hoje ao meu encontro com o mar. É que amanheci meio indisposto. Perdi assim momentos de agradável e sadia convivência com o mestre. Sim, o mar é um excelente mestre. Ele me ensina muitas coisas. Ensina-me, por exemplo, que é possível conciliar a humildade com a dignidade. Ensina-me, ainda, que a felicidade está em dar sem visar recompensa. E pensando bem: O mar nos dá tudo e nada exige em troca. Já a terra é diferente. Para que haja colheita é necessário que haja a semeadura. Nada plantamos no mar, e, no entanto, ele nos dá muita coisa...” (Do livro A dança do tempo)
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Fotos/ilustração: divulgação
A mãe: musa inspiradora da leitura Carlos Romero, um venerador da leitura, considera que foi sua mãe, Pia de Luna Freire, a primeira grande incentivadora para que desenvolvesse o hábito de ler. “Minha grande mestra, que me estimulou, que me entregou um livro para ler ainda criança, aos 12 anos, foi minha mãe. O livro foi Menino de engenho, de José Lins do Rego. Eu devo a ela, minha formação literária, meu gosto pela leitura”, confessa. Ele também atribui à sua mãe o estímulo de sua capacidade criativa como escritor, ao despertar a sua imaginação de criança com as histórias bonitas e notáveis que contava. “Acho que muitas dessas histórias ela inventava. Às vezes ficava até às dez horas da noite contando essas histórias. Eram histórias dramáticas, de terror. Ela contava e dizia: ‘Agora você vai dormir!’ Minha mãe era uma intelectual, seria uma escritora se quisesse”, complementa. Érico Veríssimo é considerado o escritor preferido de Carlos Romero. “O meu grande escritor, sobretudo na minha mocidade. O livro dele Olhai os lírios no campo me emocionou muito. Também gosto muito dos poetas e escritores paraibanos. A Paraíba é fértil de grandes escritores”, acentua.
A paixão pela música Carlos Romero afirma que a música é tão importante para ele como o oxigênio. “Eu não posso passar sem música, tanto é assim que eu trabalho no computador sempre ouvindo música. A música sempre despertou em mim grande emoção. Acho que devia ter sido músico, mas nunca aprendi instrumento nenhum, fiquei apenas como um ouvinte de música”, lamenta. Frequentador assíduo dos concertos sinfônicos, Romero diz que foi justamente num desses concertos que conheceu a sua atual esposa, a violinista Alaurinda Padilha. Ele diz que não troca o seu gosto musical pelo gosto de maestro nenhum. “Gosto muito de música, não entendo, mas sinto a música, e já expressei isso em crônicas. Cheguei até a escrever a plaquete A outra face de Beethoven, cuja edição já está esgotada”, relata.
Acima, Érico Veríssimo. Em seguida, Dorival Caymmi e Beethoven; outros ídolos
Os compositores clássicos prediletos de Carlos Romero são Johann Sebastian Bach, Ludwig Van Beethoven e Frédéric Chopin. Com relação à música popular, ele gosta de ouvir Dorival Caymmi, Djavan e Chico Buarque.
Vida de viajante Seguindo o exemplo de Érico Veríssimo, seu escritor predileto, Carlos Romero também pode ser considerado um bom escritor de viagens. O último livro de viagem de Carlos Romero, Viajar é sonhar acordado, no próprio título define o sentimento de quem procura contato com outras culturas. Ele confessa que o objeto de sua atenção, ou seja, o que mais procura no estrangeiro são as livrarias. “Quando viajo, a pri-
meira coisa que eu faço é visitar as livrarias e não apenas os museus. As livrarias me encantam, tanto assim, que ultimamente eu escrevi uma crônica sobre livraria, dizendo que na Paraíba, em João Pessoa, as livrarias contam com a presença da criança e isso é muito importante, coisa que eu não vi lá fora”, frisa. Carlos Romero, que viaja sempre acompanhado da esposa Alaurinda e do filho Germano Romero, diz que a sua cidade predileta é Paris (França), a “cidade do livro”, daí a importância de visitar as livrarias. Mas também gosta de Lisboa (Portugal) e Viena (Áustria). “A primeira viagem que fiz, aliás, vale ressaltar que quem me estimulou, quem me orientou e quem me levou mesmo para viajar foi o meu filho Germano. Devo a Germano as viagens que fiz”, reconhece. c
Foto: divulgação
Hildeberto classifica Carlos Romero como “um cronista das coisas simples e harmoniosas da vida”
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O cronista dos valores intemporais Um sismógrafo das letras e um cronista das coisas simples e harmoniosas da vida. É assim que o poeta, professor universitário e crítico literário Hildeberto Barbosa Filho define Carlos Romero, ao considerar a dimensão intelectual do serviço jornalístico que ele prestou, através da sua coluna sobre livros e autores, e também o trabalho intenso e constante de um dos últimos jornalistas da velha guarda que continua militando e escrevendo suas crônicas, principalmente para o jornal A União, com quem mantém vínculo visceral. Carlos Romero participou do lançamento do Correio das Artes, em 1949, e editou o referido suplemento literário já no final dos anos 50. Começou pelos contos e enveredou pela crônica, que é considerada, na opinião de Hildeberto, como um tesouro, um troféu, dentro da dimensão do jornalismo cultural e literário que A União sempre fez. “As crônicas dele são simples, curtas, mas que você lê fluindo numa leitura extremamente prazerosa e constante. Você pode ler e reler que nunca desgasta a relação prazerosa com o texto. Carlos é um dos grandes valores já consolidados na história da literatura paraibana”, destaca. Segundo Hildeberto, tudo que se publicou na Paraíba, ou fora dela, direta ou indiretamente, passou pelo registro de Carlos Romero, em coluna fixa, no jornal A União, voltada para a notícia do mundo cultural. “Não
tem esse, nem aquele autor, que não tenha sido visto, lido ou contatado por ele. Isso parece um traço fundamental dele, considerando essa presença, continuidade e perseverança, o que é muito difícil no mundo intelectual”, garante. O crítico destaca que o fato de Carlos Romero ter contribuído ao longo do tempo com uma coluna voltada para a cultura e, particularmente, para a questão dos livros e dos autores, é um registro que implica numa contribuição fundamental para a produção intelectual da Paraíba. No entanto, Hildeberto vai mais além e oferece um destaque maior à figura do cronista Carlos Romero, sem descurar da personalidade do professor, sempre uma pessoa muito cordata, educada e humana. Na sala de aula, segundo testemunha Hildeberto, que foi seu aluno, Carlos Romero mantinha com os estudantes não só uma relação de ensino e aprendizado dos conteúdos jurídicos, mas, sobretudo, dava um exemplo de vida e de como o professor deve conduzir um tratamento aos alunos. “Gostava muito de ouvir e ajudar os alunos, essa é uma marca que eu guardei dele para sempre, uma postura pedagógica educada e muito sincera. Não era uma postura de verniz, de etiqueta, falsa”, ratifica.
foto: Adriano Franco
A cidade de João Pessoa na inspiração do cronista Como cronista, de acordo com Hildeberto Barbosa, Carlos Romero sempre esteve ligado a uma temática voltada para certa compreensão, percepção, e também entusiasmo para com a cidade de João Pessoa. “Um dos traços fortes da crônica de Carlos Romero é essa inclinação, é esse amor que ele c
c tem pela cidade de João Pessoa. Aliás, acho interessante, porque esse tema me parece ser a menina dos olhos de todos os nossos cronistas. Gonzaga Rodrigues, Natanael Alves, Chico Viana, Luiz Augusto Crispim, todos esses cronistas têm uma espécie de canteiro particular para fazer da sua crônica um espelho poético, histórico e reflexivo acerca da cidade de João Pessoa”, analisa. João Pessoa está muito presente na sua crônica, mas além de João Pessoa, Hildeberto destaca como temática fundamental a presença da natureza e, dentro da natureza, o mar. “E aí fica claro que ele viveu sempre na orla marítima. Ele é um ser Foto: Marcos Russo
matinal, como ele diz numa das crônicas. Acorda muito cedo, faz aqueles passeios que hoje chamam de cooper e essa é uma temática que é recorrente tanto no livro A dança do tempo, como no livro Lições de viver, que foi o terceiro livro de crônicas dele, porque o segundo é um livro de crônicas de viagem. Ele gosta muito de viajar”, comenta. Nesse aspecto, na opinião de Hildeberto, Carlos Romero é um ser a la Montaigne, o Michel de Montaigne, que era um filósofo francês do século XVI, autor dos Ensaios que tinha na viagem uma espécie de recurso que detonava sabedoria, ou seja, a viagem ajuda a saber mais sobre o mundo. “E Carlos parece
que aprendeu, não sei se com Montaigne, mas ele absorveu essa lição”, complementa. No entender do crítico literário, Carlos Romero faz a crônica de viagem não só descritiva. Ele descreve monumentos e lugares, mas em função dessa descrição, retira um ensinamento, uma imagem poética, uma máxima filosófica que vai servir para a vida inteira. É um traço muito forte na crônica de Carlos Romero esse compromisso com a natureza, com a cidade e também com a ideia de conhecer o mundo. Parece que ele quer dizer nas entrelinhas que o homem precisa viajar para se transformar num ser mais humano e mais sábio.
Opção pela simplicidade “A natureza, a cidade, a preocupação com o conhecer o mundo, a família também é muito presente, a presença da mulher, dos filhos, dos amigos, são temas com os quais Carlos Romero vai convivendo ao longo do tempo, sempre explorados em suas crônicas numa dimensão ora filosófica, de reflexão, ora com certo humor, um traço que é próprio dos filósofos dos séculos XVI, XVII e XVIII”, reitera. Hildeberto acrescenta que isso vai gerar aquela postura que é a de Montaigne, La Rochefoucauld e Voltaire, que são os moralistas, autores que têm aquelas frases aforismáticas. “Carlos tem muito disso na crônica dele. Agora, claro, num estilo extremamente simples. Eu diria que dos cronistas nossos é o que escreve mais fácil. Ele usa uma linguagem cristalina, como água de cacimba, aquela coisa simples, sem nenhuma pretensão. Você não vê preciosismo, nem rebuscamento nas crônicas dele”, analisa. Hildeberto lembra uma frase escrita por Carlos Romero em uma de suas crônicas que ele
acha muito interessante. É quando Romero diz que o cronista é o pescador de peixes pequenos. Não é o pescador das albacoras, nem da cavala, mas o pescador da tainha. “Em cada crônica dele, você capta algo interessante. Ele tem uma crônica sobre o silêncio, na qual ele diz uma frase emblemática: ‘nos envolvam os grandes silêncios’. Com isso Carlos quis ressaltar a necessidade dos grandes silêncios, fazendo um contraposto com essa barulheira absurda que a gente vive na cidade grande”, explica. O crítico revela que Carlos Romero é sempre esse cronista preocupado com os valores mais intemporais, mais humanos e mais delicados, que a civilização moderna, em função dessa visão de um projeto muito materialista, parece que violou, danificou e destruiu por completo. “Ele vive como um cronista da resistência dessas coisas miúdas, pequeninas, mais que são extremamente valiosas, como, por exemplo, cultivar um jardim, fazer uma caminhada, conversar com um amigo, sentar no banco da praça”, complementa. c
“A vida todos os dias nos ensina o que é a morte. Todos os dias renascemos. A manhã é a infância, o crepúsculo é a velhice. A noite é a grande pausa para a reflexão, a prestação de contas, o juízo final. Será que é por isso que a coruja simboliza a filosofia? Pela manhã, somos crianças e poetas, durante o dia técnicos e homens de negócios, à noite somos filósofos...”
“Disse o Cristo que o cristão é o sal da terra. Eu direi que ele é o sal do mar... Não foi sem razão que Jesus arrebanhou os seus discípulos à beira mar. No mar está o sal que é símbolo da fé e a visão do infinito, que é a vida imortal...” (Do livro A dança do tempo)
Foto: Evandro Pereira
“Atrasei-me um pouco para o meu culto à natureza, que é uma forma de cultuar a Deus, o Deus imanente. A verdade, como Deus, está em tudo. A verdade está até na mentira. Por mais paradoxal que isso pareça, é uma verdade. Em tudo há um fundo de verdade. Assim como o Reino de Deus está dentro de nós, a verdade, é evidente, também está. A mentira, como a nuvem que esconde o sol, está na superstição, na exterioridade. A mentira é forma, vestimenta, aparência. A verdade é essência. O sol, como a verdade, pode estar escondido pela nuvem da mentira. Mas essa ausência é por pouco tempo. Não adianta atirar pedras ao sol, nem tentar ocultá-lo. Ele terminará sempre triunfando.”
Fotos: divulgação
Luiz Augusto Crispim (1945-2008) também está no rol dos cronistas prediletos...
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...assim como Gonzaga Rodrigues, outro mestre paraibano do gênero
Despistamento temático Hildeberto procura refinar a análise para descrever mais um traço forte na crônica de Carlos Romero, que o crítico chama de “despistamento temático”. “A princípio ele começa a falar de uma coisa séria, uma grande tema. Aí você pensa que ele vai desenvolver aquilo. Então, ele dá um pulo de repente e passa a falar de uma coisa a mais insignificante possível. Ele despista e o leitor tem aquela surpresa, de repente. Essa é uma característica do verdadeiro cronista. Ele não é só um cronista, é um humanista, um poeta, no rigor da palavra. Agora, o cronista é ao mesmo tempo tudo isso”, enaltece. Hildeberto faz uma ponte entre Carlos Romero e os grandes cronistas brasileiros. Primeiro o crítico toma como referência os cronistas paraibanos e considera Carlos Romero inserido na “família cronística” que passa por um Luiz Augusto Crispim, sobretudo quando o tema é a cidade e a natureza, e também por Gonzaga Rodrigues. Carlos Romero é um cronista talvez muito mais lírico, muito mais poético do que o cronista social que foi, por exemplo, Francisco Pereira Nóbrega. Na crônica brasileira, Hildeberto afirma que Carlos Romero tem momentos de Ruben Braga,
que também é um cronista da natureza, do detalhe, e muito lírico. “Eu vejo ele muito próximo de Ruben Braga, na linha de Joel Silveira, que também é muito lírico, de um Marques Rebelo e até de Carlos Drummond de Andrade, que são cronistas onde o elemento poético se sobressai. Eu vejo tudo isso em Carlos Romero, porque ele está mesmo muito ligado a essa temática delicada. Ele é o cronista por excelência”, elogia. Carlos Romero tem ainda uma temática que Hildeberto chama de “matemática” ou “metalingüística”, que é crônica sobre a crônica. Você encontra aqui ou acolá nas crônicas de Carlos Romero, ele dizendo que está sem assunto. Então, o assunto é falar que está sem assunto, é escrever a crônica sobre isso e ele termina fazendo a crônica sobre o fato de está sem assunto. Nas lentes do crítico literário, a simplicidade que aparece como produto final no texto de Carlos Romero é decorrência de um grande exercício cotidiano com a palavra. A crônica dele é bem trabalhada, mas esse trabalho não se revela no texto pronto. “Você não vê o processo desse trabalho na crônica pronta. Mas isso é um segredo, porque o grande escritor é
aquele que trabalha, mas o processo do trabalho não fica revelado. Você vê o produto muito simples, mas a simplicidade é decorrência de uma grande experiência que, por sua vez, decorre de uma lida, de uma labuta constante, e Carlos Romero escreve muito, realmente, sempre”, justifica. Hildeberto diz que não se pode falar em intencionalidade na forma de escrever de Carlos Romero. Ele não vê Carlos Romero como aquele escritor experimental, que às vezes escreve como se estivesse num laboratório. “Acho que ele flui, ele é espontâneo. Agora, essa espontaneidade também não é aleatória, não é uma coisa ao acaso. Ele tem uma consciência de processo. Tanto é que essa consciência de processo se revela nas crônicas que ele escreve sobre as crônicas. Ele tem toda uma consciência de que é um gênero difícil, principalmente porque revela a natureza humana. Acho que Carlos nunca deixou de estar atento ao seu entorno cultural, existencial, afetivo, seja lendo, seja escrevendo, caminhando, olhando a natureza, seja viajando, ele é um cara muito antenado, muito atento”, assinala. Hildeberto considera Carlos Romero um cronista realizado e uma figura humana muito harmonizada com as coisas. Para o especialista, essa harmonização interior se reflete na construção exterior dos textos do cronista. “Eu sei que ele é espírita e a base filosófica do Espiritismo é a procura dessa harmonia dos elementos da vida e da natureza. E isso aparece muito na crônica dele, que é equilibrada, não só enquanto estilo, quer dizer, em jogar com as palavras, mas de um equilíbrio que a gente vê objetivamente nos textos dele, na frase simples, tudo bem harmonizado do ponto de vista do ritmo; o adjetivo bem casado com o substantivo. Quero crer que isso é reflexo dessa harmonização mais interior, eu diria até transcendental, que ele apresenta por ter essa formação espírita e a sensibilidade c do espírita”, conclui.
“A mulher hoje resolveu me acompanhar nos passeios à beira-mar. E eu fico me lembrando da advertência bíblica: “Não é bom o homem estar sozinho”... Assim, o meu paraíso ganhou uma Eva. Aliás, a paisagem geográfica se completa com a presença humana. O homem sozinho é um ser incompleto. Só não concordo com essa história da mulher ter vindo de uma costela masculina. O movimento em prol da emancipação e dignidade da mulher deve se insurgir contra tal versão...” (Do livro A dança do tempo)
Foto: Marcos Russo
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Menções e referências A atuação literária de Carlos Romero, principalmente no que se refere às suas crônicas, sempre foi objeto de manifestações favoráveis por parte dos leitores, escritores, críticos e amigos, por meio de cartas, e-mails, publicações em jornais e revistas e até nas redes sociais. Entre as cartas, destaca-se uma enviada pelo escritor Carlos Drummond de Andrade, datada de 29 de dezembro de 1985, onde faz referências elogiosas ao livro A dança do tempo. Num determinado trecho, Drummond afirma: “A dança do tempo é um exemplo do que deve ser um livro de crônicas, no qual a acessibilidade da linguagem deve estar sempre a serviço de um pensamento lúcido”. Em depoimento recente, o professor Chico Viana disse o seguinte: “Carlos Romero é um cronista nato. Seus textos têm a leveza, a sensibilidade e o lirismo que caracterizam a crônica. Ele tem o dom de escrever como quem conversa. É um herdeiro de Montaigne na arte de tratar temas profundos sem afetação, num “aqui pra nós” que conquista o leitor desde as primeiras linhas. Admiro nele o coloquialismo e sobretudo o humor – um humor compassivo, jamais ferino, que é uma marca do seu espírito elevado”. O filho de Carlos Romero, o arquiteto e também escritor Germano Romero, diz ser leitor assíduo das crônicas do pai, além de revisor dos textos. “Sempre ajudo. Ele tem um blog, a gente interage, eu posto as crônicas no blog dele também. Sabe aquela inveja boa da maneira poética e simples como ele escreve? Ele é capaz de transformar uma folha seca na calçada numa crônica belíssima. Ele tem esse dom de falar de coisas simples com uma profundidade e um lirismo peculiar que eu acho que só ele tem. É essa inveja que eu tenho”, explica. Já o jornalista Severino Ramos escreveu em setembro de 1985 o seguinte: “Carlos Romero nos ensina a pensar e a viver, falando do fugaz e do transcendental em algumas linhas de rara inspiração que só um homem com a sua convicção religiosa poderia conceber”. O mestre Gonzaga Rodrigues disse, com todo o seu poder de síntese: “Carlos Romero sugere-me o cronista sensível, o espírito de paz e boa vontade”. Oduvaldo Batista, também em 1985, nas páginas de A União, disse que Carlos Romero era um lutador paraibano em defesa da cultura, escrevendo crônicas admiráveis e sempre construtivas. Em carta datada em 7 de abril de 1993, Mário Moacyr Porto escreveu a Carlos Romero afirmando o seguinte: “Você é um dos melhores cronistas da terra, e tem um jeito todo seu de falar das mulheres, que lhe dá sobre o belo ‘assunto’ uma extraordinária autoridade”. Em texto primoroso, Luiz Augusto Crispim escreveu, em agosto de 1985, sobre a leveza de Carlos Romero e afirmou que os grandes cronistas são vizinhos dos poetas. “Não é de agora que aprecio o elegante volteio das crônicas de Carlos Romero. Nada mais apropriado ao cronista, esse vizinho dos privilégios poéticos. Aparentemente liberado da rigidez formal com a linguagem, o que mais encanta em Carlos Romero é a situação de liberdade de cada crônica”, complementou. Wellington Pereira escreveu, em 1986, que “o cronista Carlos Romero é um autor ensimesmado. Caminha no interior do seu domicílio, retirando ritmos para a sua dança do tempo, livro recém-publicado. “Ele busca vestir a linguagem jornalística com a poética de seus textos”. “Percorro a última página do livro de Carlos Romero, A dança do tempo’, e dele saio com uma sensação de leveza, de encantamento, como se tivesse recebido uma carga de energia positiva, emanada pelos bons fluidos que o autor consegue passar para os seus leitores”, comentou a escritora Fátima Araújo. Ainda sobre A dança do tempo, José Mário da Silva escreveu que ali encontrou “um bem acabado exemplo da crônica bem escrita e provida dos recursos que a fazem literária e artística no sentido superior do termo e na acepção semântica”. I Alexandre Nunes é jornalista. Mora em Santa Rita (PB)
6 entre os livros Expedito Ferraz Jr.
expeditoferraz@uol.com.br
O estranho
caso Leminski
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livro é Toda Poesia (Companhia das Letras). O autor é Paulo Leminski (1944-1989). Lançada no primeiro semestre, a poesia reunida do paranaense surgiu como um inesperado fenômeno editorial e deve ser lembrada, nesse aspecto, como a grande surpresa de 2013. Quem acompanhou atentamente a repercussão desse lançamento tem a medida do espanto: um livro de poemas de autor brasileiro contemporâneo encabeçando listas de mais vendidos é, sem dúvida, algo totalmente fora do script em nosso meio. Eu, que nessa matéria nunca me interessei por nada que não acontecesse dentro dos livros, não pude deixar de reparar nos movimentos desse fato literário (lato sensu). Mais complexo do que pode parecer à primeira vista, esse êxito de público não deve ser tomado como mero fruto do acaso, nem pode ser atribuído tão-somente a um capricho dos deuses do mercado. Há um processo bem mais rico em sugestões e possibilidades de análise, que escapam às minhas pretensões nesta coluna. Mas, como de palpites também se faz o sabor da nossa vida entre os livros, permito-me refletir, nestas próximas linhas, sobre o que há de positivo, e também de negativo (sim, de negativo!) em todo o sucesso de Toda Poesia. Eu explico. Não se trata de deflagrar falsa
polêmica sobre o lugar que cabe a Leminski na literatura brasileira. A propósito disso, bastaria lembrar (e subscrever) a opinião do poeta e crítico Frederico Barbosa (em lista elaborada para o site da editora Saraiva), para quem Toda Poesia foi o melhor lançamento do gênero em 2013. De fato, seja na recriação de uma autoironia que parece retomar de modernistas como Oswald e Drummond (“Tudo o que eu faço / alguém em mim que eu desprezo / sempre acha o máximo...”); seja no impulso de expandir o próprio conceito de poesia, no diálogo com outras formas de expressão; seja na abertura ao exotismo de uma estética oriental; ou no aproveitamento criativo dos recursos visuais do poema — em quase todas as frentes em que a poesia de hoje resiste como pesquisa de linguagem, é notável a presença provocadora desse poeta. Descrever com exatidão (e poesia) a experiência de ler Leminski exigiria uma transcrição integral do comentário de Leyla Perrone-Moisés, publicado em 2000 (Inútil Poesia, Companhia das Letras) e agora reproduzido no “Apêndice” da coletânea. Aqui vai uma síntese: Samurai e malandro, Leminski ganha a aposta do poema, ora por um golpe de lâmina, ora por um jogo de cintura. Tão rápido que nos pega de surpresa; quan- c
6 c do menos se espera, o poema já está ali. E então o golpe ou a ginga que o produziu parece tão simples que é quase um desaforo... (p. 398) Para ser mais assertivo quanto ao acontecimento que é Toda Poesia, penso que, se o nosso acervo ganha muito com o registro, com o acesso ao conjunto dessa obra poética, e com a sua consequente disseminação, a figura do poeta — ou seja, aquilo que ele representa no conceito dinâmico que vamos elaborando do que seja a literatura brasileira — pouco ou nada se beneficia desse estouro recente. Muito antes de se tornar best-seller, o “samurai malandro” já estava consagrado na apreciação de nomes como Haroldo de Campos e Leyla Perrone-Moisés, esta já citada. Que sua obra dá pano pras mangas como problema de pesquisa acadêmica, também não precisamos ir muito longe para demonstrar: uma busca rápida na Internet mostrará a lista considerável de trabalhos que foram produzidos nos últimos anos sobre os seus escritos. Pouca coisa se altera, portanto, no curso que já havia tomado a recepção crítica dessa obra. Não acredito que, nos próximos anos, o leitor especializado vá estimá-la menos em razão desse sucesso. O fato novo a se considerar, a partir desse evento, é a exceção que o fenômeno Leminski impôs a uma sólida premissa segundo a qual a boa literatura está fadada a não alcançar grande público. O que poderia haver então de negativo nessa saborosa revanche da poesia? Sem querer profetizar infortúnios (“ó glória de mandar, ó vã cobiça...”), não me custa advertir contra alguns riscos que podem parecer ainda remotos, mas não me parecem absurdos. O primeiro é o risco de se distorcerem os parâmetros em nosso juízo de valor. Nada pode ser pior para a
entre os livros
criação literária do que um possível sofisma do tipo: Leminski é bom poeta; Leminski vende muito; logo, boa poesia é aquela que vende muito. Carregando um pouco nas tintas, posso antever o surgimento de toda uma geração de poetas profissionais, todos preparados para o sucesso (pois o poeta bem sucedido passa a ser o diapasão), formados em cursos intensivos de como fazer poesia que vende. É claro que isso nada tem a ver com a profissionalização da atividade literária: falo do risco da fabricação em série de novos fenômenos de popularidade, de novos leminskis, todos com bigodes chineses, todos nascidos sob o signo mercadológico da padronização. O segundo risco é o primeiro mesmo (como diria Clarice), mas visto apenas em seu viés estético. Abstraia-se a má influência do mercado, da indústria cultural. Ainda assim, não estamos imunes ao efeito colateral daqueles vinte mil exemplares vendidos em pouco mais de um mês, ou seja, da promessa de prestígio que a imitação desse modelo soprará aos ouvidos das novas gerações de poetas: é quase certo que dali se erguerá uma onda robusta e duradoura de epigonismo. Ora, direis, mas isso não será exclusividade de Leminski. É verdade. Também há epígonos de Cabral e de Drummond por toda parte. Mas, enquanto o epígono de Drummond quer imitar sua sensibilidade aguda para os males do mundo; enquanto o epígono de Cabral quer imitar suas imagens minerais e a secura de seu ritmo; adivinho o subleminski diluindo a metalinguagem irônica do poeta, confundindo brevidade com ligeireza ou facilidade e apostando na intuição e na tirada espirituosa como receitas de poesia pronta — vale dizer: ignorando cada uma destas observações de Leyla Perrone-Moisés
(no artigo já referido): Malandro da linguagem, Leminski não é apenas um intuitivo, um criativo, um sacador, como os 130 milhões que se dispensam de conhecer seus ofícios. Como observa Haroldo de Campos, sua poesia é “sempre construída, sabida, de fabbro, de fazedor”. Esse autointitulado “cachorro louco” queimou pestana na poesia universal. Sabe onde está pisando e com quem, queira ou não, o poeta de hoje tem de se confrontar (p. 400) Nada disso, porém, é motivo para não celebrarmos o raro encontro que essa publicação promoveu entre um autor e uma nova geração de leitores (“Escrevia no espaço. Hoje grafo no tempo...”). Descrer na feliz possibilidade (“Perhappiness”) desse encontro é alimentar o mito romântico da marginalidade da poesia, que induz tantos outros poetas a cultivarem a imagem narcísica e autocomplacente do gênio incompreendido. Contrário a isso, Leminski parece ter apostado sempre na comunicação com o leitor (“Um poema / que não se entende / é digno de nota. // A dignidade suprema / de um navio / perdendo a rota.”). Conhecendo o poder desestabilizador que exerce a poesia sobre tudo o que é vã certeza no terreno da criação, o poeta riu de tudo isso há exatos trinta anos (em “Caprichos & relaxos”, de 1983): “O pauloleminski é um cachorro louco que deve ser morto a pau e pedra a fogo a pique senão é bem capaz o filhadaputa de fazer chover em nosso piquenique”. I
Expedito Ferraz Jr. é professor de Teoria Literária da Universidade Federal da Paraíba. Mora em João Pessoa (PB)
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artigo açã Foto: Div ulg
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Seis personagens
à procura de uma dor Ronaldo Cagiano
Especial para o Correio das Artes
N Foto: Divulgação
Flávio Izhaki, autor do romance Amanhã não tem ninguém, lançado pela Editora Rocco (capa acima)
uma família de origem judaica, seis parentes arregimentam seus diferentes olhares para contar uma mesma história, em que as dores, os silêncios, os pequenos dramas e outros conflitos e dilemas são repassados numa prosa seca e cortante, que costura memória e sentimento para falar de solidão, afetos e esgarçamento de relações. Essa é a tônica de Amanhã não tem ninguém, segundo romance do carioca Flávio Izhaki, que estreou em 2008 com a novela De cabeça baixa (Ed. Guarda-Chuva), bem recebida pela crítica. As diversas gerações do núcleo familiar são mapeadas por um sutil desfiar de novelos íntimos, em que as percepções sobre determinados fatos variam a partir da visão de cada um dos seus protagistas. Transitando entre Israel, São Paulo e Rio de Janeiro, as histórias ocorrem em espaços cronológicos, geográficos e psicológicos distintos, porém com um profundo liame existencial, como se infere da própria circularidade estrutural da obra. A cena inicial do romance invoca a simbologia e a natureza judaicas, quando Patrick, bisneto de Natan, um adolescente ensimesmado, pouco comunicativo, cujos pais se separaram e viciado em videogame e computador, é escolhido para acompanhar o caixão do avô até o cemitério. No percurso, o motorista da Kombi que conduz o féretro inicia um diálogo improdutivo com ele, na tentativa de conhecer as tradições e costumes do seu povo. No entanto, por ter convivido pouco com seu ancestral, a conversa não resiste ao silêncio e às lacunas, e sob essa perspec- c
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tiva é que se delineia toda a ação e tensão do livro, na alternância das diversas vozes que vão, no confronto entre passado e presente, e na esteira de flashbacks e fluxo de consciência, rememorando situações e vivências. A narrativa em primeira pessoa na voz de cada um dos membros da família - o menino, sua mãe e seu pai, um tio, o avô e o bisavô – traça, em chave fragmentária, as nuances de vidas cujas re(l)ações se abrem feito um leque de encontros e perdas, desencontros e lutos, em que as lembranças resgatam peculiaridades determinantes em suas vidas. A ascendência judaica é tema instigante e encontra vasta ressonância na ficção produzida no mundo e no Brasil ecoa nas obras de alguns dos nossos principais autores, entre os quais Moacyr Scliar e Samuel Rawet, e mais recentemente em Michel Laub, Ronaldo Wrobel, Tatiana Salem Levy, Bernardo Ajzenberg, Leandro Sarmatz, Noemi Jaffe, Jacques Fux e Adriana Armony. Nesse mesmo diapasão sintoniza-se Amanhã não tem ninguém, em que Izhaki constrói uma espécie de Diário da queda de uma família, utilizando em sua densa narrativa os confrontos entre gerações e costumes, explicitando situações de ruptura e tensão, como no caso de Mônica, mãe de Patrick, que pagou alto preço por não ser judia, não sendo aceita pela sogra. Em Amanhã não tem ninguém todos carregam uma angústia, ora afetados por uma carência ou uma precariedade afetiva; ora atravessados por um passivo psicológico, que se traduzem em momentos chave, quando uma experiência aguda funciona como divisor de águas em suas trajetórias. É o caso do filho caçula, Marquinho, que serviu ao exército israelense, flagrou o suicídio de um rapaz no metrô após um flerte amoroso e platônico, presenciou a morte do pai, fulminado por um enfarto
e vive assombrado com a morte de um paciente. Ou ainda, o impasse geracional de Ana e Natan que, diante da impossibilidade de terem um filho, foram obrigados a adotar Marlene, depois de cinco gestações frustradas e cujo nome geraria certo desconforto por ser considerado anti-judaico. Sensível e delicado, Amanhã não tem ninguém empreende uma viagem, com uma mirada impressionista, às razões, à essência, aos fantasmas e aos segredos de uma família cujas vivências e recalques, tão desconfortáveis e corrosivos, foram determinantes para o rumo que tomaram. Nessa sutil topografia sentimental e de forte carga mítica e sensorial, o autor reflete sobre a memória, o esquecimento e a história pessoal, como se cada personagem em busca de sua dor única fosse também ao encontro de outros valores, no sentido de se evitar que a rigidez que contaminou certos relacionamentos e impingiu a consciência de um dilaceramento insularizante seja superada, para que a vida continue e se recoloque nos trilhos, apesar dos paradoxos que a inviabilizaram até ali. Em seu final inusitado e impactante, o livro sugere uma leitura possível dessas vidas que poderiam ter sido e não foram, a partir do encontro entre avó e neto no cemitério, quando este, sob o influxo do jogo que tanto mobilizara suas forças, abre fronteira à esperança e ao recomeço: “A vida não acaba com uma morte, vó.” E naquele espaço de tristeza, incomunicabilidade, acaba por reverberar a consciência da própria mãe, que em um dos momentos alto do livro, ao refletir sobre tantos vazios e ausências, acicata: “Para onde vai aquilo que sentimos e perdemos?”. Eis a grande inquietação que percorre toda a narrativa de Izhaki. I Ronaldo Cagiano é advogado, escritor, ensaísta e crítico de literatura. Reside em São Paulo (SP). Contato: ronaldo.cagiano@hotmail.com
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convivência crítica Hildeberto Barbosa Filho hildebertobarbosa@bol.com.br
Bola, bicho e palavra...
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a altura de seus 67 anos, Sérgio de Castro Pinto não perde o frescor do diálogo com as musas, ou melhor, com as antimusas que sempre o acompanharam no árduo labor da criação poética. Eis, aqui, mais uma coletânea, ensejada, a princípio, pela magia do futebol e pela genialidade de seus craques, porém, estendida a outros tópicos e interesses que prefiguram o território simbólico da poesia. A flor do gol é o título que se descortina em múltiplas sugestões semânticas a revelar o mesmo e um outro Sérgio, através de uma persona lírica das mais inventivas em solo estético paraibano. Já na primeira parte de título homônimo ao do livro, Sérgio de Castro Pinto como que arma seu esquema tático no gramado do verso, e, valendo-se de rápidas fintas metafóricas, percorre o primeiro e o segundo tempos do lirismo, com dribles, passes e lançamentos vocabulares que culminam nos mais surpreendentes gols de seu jogo poético. Em seis poemas (“Didi”, “Vavá”, “Jairzinho”, “Leônidas” e “Gar-
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rincha” I e II), tece uma espécie de resenha literária de teor simultaneamente descritivo e dissertativo, para homenagear os craques de nossa seleção, trazendo à tona, características e elementos técnicos , substanciais e criativos que melhor representam o talento de cada um. O futebol, ou melhor, sua intrínseca dramaturgia, com seus componentes líricos e épicos, alicerça a motivação nuclear dessa primeira seção do livro. A conexão analógica entre folha e bola, marcando o espaço aberto das estações (outono e primavera), serve de ponto de partida para a construção do primeiro poema. A luz, o brilho, o amarelo, o sol e a “fulva juba” do leão, que encadeia o arqueiro, fundam a artilharia do gol, do gol que se prolonga no grito, no segundo texto. No terceiro, os andaimes da arquitetura se organizam em torno do furacão, da brisa, da rede e do “peito pátrio”, para, em jogada de mestre, movimentar-se no quarto (“Leônidas”), onde os léxicos “bicicleta”, “bola” e “pés” se ajun- c
6 c tam para formar o “beija-flor
/ que sorve / o néctar do gol”. Garrincha é a persona dos dois últimos, modulados sobretudo a partir dos “parênteses/ das pernas tortas”, que só não entortam o adversário pela via do drible da linguagem, mas cultiva a esfera da magia a liberar os “muitos pássaros” do nome, não importa se fintado por vias utilitárias “fora do gramado”. Quero crer que, nestes poemas, jogadores e poeta parecem se fundir isomorficamente no corpo de suas respectivas linguagens, no propósito de seus respectivos estilos. Há uma poeticidade intensa percorrendo o traçado das jogadas, assim como existe um intenso jogo no tocar as palavras, no sentido de transmutá-las em objetos lúdicos, em expressão poética. Digamos que a folha seca, a bicicleta, o drible, enfim, o gol, emoldurados no plano físico e cronológico, correspondem às metáforas, às metonímias, às elipses e a outras figuras inscritas no tapete da linguagem. O carinho e o cuidado que os craques têm com a bola, o poeta também possui em relação às palavras. Palavras que, nos poemas, são bolas; bolas que, no gramado, são palavras. Palavras, sobretudo, poéticas. Pela coerência do ritmo, pelo encanto das imagens e pela energia da ideação. Em “A minha fala dos bichos”, Sérgio retoma a investigação imaginária em torno de seu pequenino bestiário. Tamanduá, formigas, gato, caranguejo e bode se predispõem ao seu foco inusitado de percepção, à sua empatia zoomórfica, à sua lupa microscópica que devassa detalhes secretos, particularidades mínimas, regiões invisíveis ao olho nu do prosaísmo cotidiano. Para além da propriedade terminológica que preside a fo-
convivência crítica
tografia poética desse mágico zoológico, conta, principalmente, na fatura do verso e na jaula do poema, o lúdico fabulário, tão metalinguístico quanto ecológico, de um texto ímpar, como “O gato e o poeta”. Se “paciente, o poeta / atrai o gato / com o novelo / dos vocábulos”, o gato, que ao poeta não “ensinou / o pulo do gato” (...) foge / do poema pro telhado”. É nesta dialética entre bicho e palavra, entre coisa real por fora e coisa poética por dentro, entre verdade e fantasia, que o poeta, num lance, em extrema diagonal semântica, nos convoca, leitores, para refletir sobre as tensões entre ser e palavra, entre vida e morte, entre morte, vida e arte. É claro que o poeta não consegue colocar o gato dentro do poema. O gato prefere o telhado ao poema-prisão, embora “os faróis de um fusca” acendam e ofusquem “os olhos do gato / que foscos se apagam / na escuridão do asfalto”. Mesmo assim, o gato protesta, entre irônico e conformado: “ – valeu a pena, poeta, / fazer de seu poema / o meu cemitério? / por que não, poeta, / um poema-telhado, / cheio de vida e de gatos?”. Em “Bricabraque”, terceira e última parte de A flor do gol, a motivação e os diálogos temáticos se diversificam mais, abrindo-se o poeta, num poema emblemático como “Esta lua”, para o verso longo e cadenciado, sobremodo pelo fluxo ininterrupto das rimas internas e toantes, como também pelo processo metafórico em expansão, a sugerir uma espécie de lua pelo avesso, uma lua antirromântica, palpável, carnal, viva, humana, na contramão da história literária. Diríamos, uma antilua que, ao mesmo tempo em que urina “gotas de luar no gozo / dos amantes tristes e extenuados”,
lambe, em pertinente alusão ao texto homérico, “os dedos róseos da aurora”. E mais, uma lua que “é o osso adamantino dos cachorros”, “estrela espatifada, / nas pupilas aquosas dos vira-latas”; uma lua que, num breve raio de dupla intertextualidade, entre Camões e Bandeira, vai “muito além da trapobana e de pasárgada”. Aqui, a metalinguagem, o intertexto, o erotismo, a memória e o recorrente apego ao miúdo, vezes até ao reles e anônimo das coisas e dos seres, caracterizam a substância temática do minimalismo poético de Sérgio de Castro Pinto. Poemas, como “Urbano”, “Simbiose”, “Aniversário”, “À queima-roupa” e “Aspirador”, entre outros, ilustram bem esta marca registrado do poeta, marca que já vem de longe, desde Gestos lúcidos (1967) e A ilha na ostra (1970), e que se solidificou ao longo de sua trajetória literária. O ponto nevrálgico dessa marca se localiza na perspectiva objetiva e concreta com que argamassa a matéria de seu lirismo, um lirismo por excelência comedido, enxuto, anticonvencional, intenso, a exemplo do que vemos num texto erótico como “À queima-roupa”: “nua, ateias fogo / às minhas vestes / e o teu corpo despe-me / em carne viva”, ou mesmo no recado paródico e pedagógico, intertextual e metapoético, de um poema como “A lua de Augusto’: “a lua de augusto / é uma lua nova. // uma lua cheia / de modernidade. // a lua de augusto / é uma pedrada // em olavobrásmartins dos guimarãesbilac”. I
Hildeberto Barbosa Filho é poeta, crítico de literatura e professor da Universidade Federal da Paraíba. Mora em João Pessoa (PB)
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artigo
Begardos
e beguinas
da baixa idade média Gilberto de Sousa Lucena
Especial para o Correio das Artes
O
estudo acerca da religiosidade popular no mundo ocidental revela particularidades da experiência religiosa de extratos subalternos da sociedade que se apresentam distintas da realidade que diz respeito às religiões ditas institucionalizadas. Na denominada Baixa Idade Média, especialmente em países como Bélgica, Holanda, Alemanha e França, surgiram movimentos que poderíamos definir como sendo de caráter sócio-religioso, laicizante, que se mantiveram de certo modo “distanciados” da grande influência e do poder político e econômico da Igreja Católica. Tal “distanciamento” ensejou o aparecimento de associações e/ou confrarias que, a seu modo e sem deixar de lado certas formas de contestação, optaram por uma prática mística e religiosa por demais envolvida com o serviço social e a filantropia. No entanto, é preciso discernir que esses grupos piedosos não deixaram de levar a cabo sua devoção, seus costumes, tradições, crenças e práticas rituais, sem que a dimensão cristã católica devocional de sua religiosidade deixasse de se constituir a razão fundamental da sua atuação no âmbito da sociedade medieval. Neste particular aspecto, queremos nos referir a um movimento espiritual, com forte influência c
ILUSTRAÇÕES: DIVULGAÇÃO
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na esfera social, constituído por homens (os boni viri) e mulheres (as mulieres religiosae), religiosos e leigos, de grande destaque e influência durante alguns séculos da Baixa Idade Média. As mulheres ficaram conhecidas por beguinas e os homens eram chamados de beguinos ou begardos. Embora de origem controversa, de acordo com o Dicionário de Mística (BORRIELLO et alii, 2003, p.153154) a palavra “beguina” (do francês begini[e]) foi originariamente usada no Brabante, em áreas ou territórios da cidade belga de Liège e nas diversas regiões do rio Reno, podendo se constituir tanto uma corruptela popular de albigense como uma derivação do verbo anglo-saxão beggen (que significa “pedir”, “mendigar”). Daí sua associação, por parte dos ortodoxos católicos, aos perseguidos hereges albigenses – também conhecidos por cátaros (“puros”) – que se estabeleceram na cidade de Albi, situada no sul da França. Em francês, o termo béguine significa “religiosa” ou “devota”. Na língua neerlandesa, beggaert pode ser traduzido pela expressão “freira mendicante”. No caso das mulheres beguinas, “eram vistas com desconfiança pela Igreja, que procurou integrá-las às ordens dos Franciscanos e dos Dominicanos” (SOUSA, 2003/2004, p.163). As que não aceitaram esta determinação “foram consideradas hereges e, por isso, excomungadas, isto é, excluídas do seio da cristandade” (MACEDO, 2002, p.49-50). Begardos e beguinas eram, portanto, sempre marginalizados e considerados como loucos(as) ou insanos(as). Porém, é necessário considerar que, de acordo com a medievalista Tereza Aline Pereira de Queiroz, O herético não é, no entanto, um elemento que abandona a fé. Ao contrário, seu problema configura-se a partir de um novo encontro com ela, a seu ver mais verdadeiro, mais límpido, mais profundo. O herético não possui nenhuma das características do apóstata, do infiel, do libertino, do descrente. Ele crê, talvez até demais, mas crê de uma maneira arrogante aos olhos da Igreja. Como acredita com excesso de zelo e de emoção, sua exaltação podia ser motivo até de abalo nas relações sociais (QUEIROZ, 1988, p.11). Outra origem semântica – (consi-
derada a mais provável pelos medievalistas) – para o termo “beguina” seria o francês arcaico bege (“lã crua, não trabalhada”) mais o sufixo inus. Assim, teríamos a junção de bege(u) inus que pode ser traduzida pela expressão: “pessoa que vestia o hábito dos hereges (cátaros ou lolardos)”. Em termos semânticos, no caso dos homens – os begardos – o acima citado compêndio sobre mística estabelece a seguinte definição: O termo begardo (bogard, beg(h)inhard) derivado de beguino e usado não antes do século XIII, possuía, prevalentemente, um significado herético. Os termos adquiriam significado ambíguo porque nem sempre se distinguiam os centros ortodoxos dos grupos que defendiam doutrinas heterodoxas (irmãos do espírito livre) [CROCE in BORRIELLO et alii, 2003, p.154]. Reforçando a controvérsia sobre a semântica desta palavra, segundo alguns medievalistas, o substantivo beghard (“beguino”) pode ser também uma alusão a Robert Le Bègue (o Gago), um famoso pregador de Liège (ver LOYN, 1991, p.45). Há notícia de que neste município da Bélgica, já na segunda metade do século XII (mais precisamente no ano de 1170), um sacerdote chamado Lambert organizou uma casa de beguinas, enquanto que na fundação de Santa Ivetta de Huy (1158-1228) foi edificado um leprosário cuidado por mulheres da mesma devoção (isto por volta de 1180) [CROCE in BORRIELLO et alii, 2003, p.154]. Tradicionalmente, os begardos e beguinas viviam separadamente em casas isoladas e só depois – com a expansão e o crescimento do movimento – edificaram as chamadas beguinarias, que correspondiam a agrupamentos de moradias muitas vezes dispondo de oratórios, pequenas igrejas ou capelas e até de cemitérios, o que caracterizava um convívio em comunidade. Eram devotos de Deus e geralmente celibatários, sendo que – conforme antes ressaltado – suas “relações com a Igreja institucional foram difíceis durante toda a Idade Média, e a suspeita de heresia nunca foi afastada” (LOYN, 1991, p.45). Embora a quantidade de beguinarias tenha crescido por praticamente toda a Europa durante o século XIII, foi sobretudo nos países baixos – Bélgica e c
Luís IX (1214-1270) mantinha quatrocentas religiosas em uma beguinaria que mandou construir em Paris
c Holanda – que as mulheres beguinas se congregaram, às centenas, de modo mais intenso e organizado1. Todavia, segundo o sociólogo Alder Júlio Ferreira Calado, As mulheres não constituíam certamente o único segmento estigmatizado. A elas se somavam todos os contingentes que viviam à margem e que ousavam transgredir os códigos dominantes: camponeses, pobres, doentes, mendigos, errantes, trovadores, críticos e contestadores da ordem imperante... Dificilmente, porém, se contesta terem sido as mulheres as maiores vítimas do período, até porque elas se faziam presentes nos demais segmentos estigmatizados (CALADO, 2008, p.12).
modasse quatrocentas religiosas que eram generosamente mantidas por aquele monarca. É importante salientar que os begardos e beguinas “não faziam votos perpétuos”, podendo – quando quisessem – deixar a comunidade para, por exemplo, casar ou levar uma vida comum. Do ponto de vista da administração das beguinarias, “não possuíam superiores regulares” – que podiam ser escolhidos de acordo com o consenso do grupo sem que isso implicasse na criação de mandatos administrativos estipulados por tempo determinado. Esses grupos de religiosos medievais se dedicavam preferencialmente à prática da caridade, assistindo aos leprosos, pobres e doentes. Em geral, se mantinham através de trabalhos manuais (a exemplo da tecelagem), pelo ensino – não só de base religiosa – ou pela mendicância, prática que inclusive os aproximavam do movimento fundado no século XIII por Francisco de Assis (1182-1226). Durante a Baixa Idade Média as beguinarias serviram de abrigo para os desamparados sem teto ou mesmo de asilo para viúvas solitárias ou até às senhoras idosas de origem abastada mas que sofriam pelo abandono familiar. Costumeiramente as autoridades diocesanas ou eclesiásticas não viam com bons olhos o modo de vida levado pelos begardos e beguinas, que geralmente se caracterizava pela “desobediência” a determinados ritos da Igreja, por um preferencial isolamento e pelo exercício da peregrinação. A atividade das beguinas também estava estreitamente ligada a alguns poucos movimentos femininos surgidos entre os séculos XII e XIII na Europa, a exemplo das papelardes (na França), das pinzocchere ou bisocche (“penitentes”, não confundidas com as mantellate – “religiosas”), na Itália, e as beatas da Espanha (CROCE in BORRIELLO et alii, 2003, p.154). Tratava-se de um movimento
No caso da França, o rei Luís IX (1214-1270) ordenou que se construísse em Paris uma beguinaria que aco1 Sobre este aspecto, conferir texto da conferência “Mística Feminina na Idade Média” proferida pela professora Lieve Troch (da Radboud Universiteit Nijmegen [Holanda] e do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião [Universidade Estadual Paulista]) no “II Seminário de Estudos Medievais da Paraíba – Sábias, Guerreiras e Místicas” (UFPB/Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes/PPGL, 11 a 13 de Junho de 2012).
[...] historicamente explicado pela impossibilidade de as mulheres consagradas (reclusas) continuarem a viver associadas a uma ordem religiosa e seguindo uma regra, coisa proibida pela nova disciplina monástica (reforma gregoriana) do século XII. Por este motivo as beguinas começaram a agrupar-se em associações autônomas para se dedicarem a uma fervorosa c
[...] porque, embora não vivessem em estado estabelecido pela Igreja, dedicavam-se a altas questões espirituais, como a perfeição (perfectio), a felicidade eterna, a pureza continuada depois da morte, a contemplação pura (altitudo contemplationis), a liberdade (CROCE in BORRIELLO et alii, 2003, p.154). Em outro decreto posteriormente emitido pela Igreja, as beguinas foram consideradas “alienadas” ou “insanas” (quase perductae in mentis insaniam) e injustamente acusadas por difundirem uma doutrina contrária à fé católica. A este respeito e ainda de acordo com Alder Júlio Ferreira Calado,
Joana d’Arc (1412-1431) é heroína e santa padroeira da França. Foi chefe militar da Guerra dos Cem Anos e acabou sendo queimada viva pelos borguinhões
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vida religiosa, mas sem ingressarem em convento (CROCE in BORRIELLO et alii, 2003, p.154).
Podemos, desse modo, compreender o fato de as beguinas nunca terem sido oficialmente aceitas como ordem religiosa pela Igreja Católica. Nem por isso deixaram de se propagar “ao longo das rotas de comércio do noroeste europeu e foram excepcionalmente poderosas em Colônia [antiga cidade da Alemanha], onde comunidades beguinas ainda existiam no século XVIII” (LOYN, 1991, p.45). Um fato importante que marcou a atividade beguinária na Europa foi a obtenção – por iniciativa e esforço do frade dominicano Tiago de Vitry (1160-1240), seu grande protetor na Bélgica – da aprovação da atuação das beguinas (embora não por escrito) por parte do papa Honório III (1148-1227), o que desencadeou uma maior e mais rápida difusão do movimento em países como França, Holanda e Alemanha. Do ponto de vista jurídico e religioso, as beguinas sofreram grandes perdas após serem condenadas em 1317 pelo Concílio de Viena, com a emissão da Bula Ad Nostrum (datada de 6 de maio de 1312),
[...] trata-se de um período em que a organização eclesiástica se impunha cada vez mais, a modelar suas estratégias de dominação, inclusive por meio da imposição de sua rigorosa grade de valores. Pela secular expropriação dos bens culturais do conjunto da sociedade, os setores da alta hierarquia eclesiástica iam, a ferro e fogo, consolidando seus privilégios. Tudo em nome de Deus... Escândalos se multiplicavam. E para se manterem e ampliar seu controle sobre o conjunto da sociedade daquele período europeu, os setores privilegiados não hesitavam em recorrer aos instrumentos mais cruéis de tortura e perseguição, de que a Inquisição seria o ponto exponencial (CALADO, 2008, p.18-19). Acerca deste aspecto, dentre as beguinas que também foram escritoras e tiveram seus escritos terminantemente proibidos pela santa Igreja, temos como exemplo dos mais relevantes o da francesa Marguerite Porète (1250?-1310) e o seu compêndio de teor místico intitulado de Le Miroir des Âmes Simples Anéanties (O Espelho das Almas Simples Aniquiladas). Ela, inclusive – da mesma forma que a jovem heroína Joana d’Arc (1412-1431) –, foi perseguida e condenada a ser queimada viva numa fogueira, em 1 de junho de 1310. Este lastimável episódio ocorreu durante o pontificado do papa Clemente V (1264-1314). Outras místicas famosas da Europa que viveram como beguinas são, em ordem cronológica: Ida de Nivelles (592657), Hildegard de Bingen (1098-1179), Lutgarda de Tongres (1182-1246), Hadewijch de Amberes (nascida no final do século XII e morta em 1260), Matilde de c
Hildegard de Bingen (10981179)
Matilde de Magdeburgo (1210-1282)
Hadewijch de Amberes (?-1260)
c Magdeburgo (1210-1282) e Juliana de Norwich (1342-1416). Conforme podemos constatar, no âmbito do movimento beguinário europeu medieval é incontestável a prevalência da atuação das mulheres – até do ponto de vista intelectual – sobre o gênero masculino. Este fato nos leva a questionar, em tom de salutar contestação, a afirmação do historiador medievalista francês Georges Duby (1919-1996) que defende ser a Idade Média um tempo dos homens. Neste tocante, é inquestionável o fato de que a influência masculina até hoje se sobrepõe ao papel desempenhado pela mulher na sociedade, mas não podemos deixar de reconhecer que aos poucos o gênero feminino vem ocupando espaços que ao longo do tempo foram exclusivos dos homens. No caso do pe-
ríodo que corresponde à Baixa Idade Média, é imperioso destacar a atuação fundamental e influente das mulheres (nos referimos às beguinas) em atividades ou projetos por elas levados a cabo com admirável dedicação. Apesar de condenadas pela Igreja Católica no Concílio de Viena – por causa do “perigo” de heresia que representavam – as beguinarias subsistiram sob a forma de asilos ou casas de caridade, sendo por exemplo ainda hoje encontradas e bem conservadas em cidades belgas como Bruxelas, Antuérpia, Kortrijk e Gante, ou mesmo da Alemanha como é o caso de Colônia. Do ponto de vista histórico e social, esta realidade atesta a importância e influência do movimento beguinário que se deu a partir do período medieval e se estendeu até nossos dias. E
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Juliana de Norwich (13421416)
Lutgarda de Tongres (11821246)
CROCE, Giovanna Della. “Begardos – Beguinas”. In: BORRIELLO, L. – CARUANA, E. – DEL GENIO, M. R. & SUFFI, N. (Diretores). Dicionário de Mística. Tradução de Benôni Lemos et alii. São Paulo: Editora Paulus/Edições Loyola, 2003. (Dicionários). CALADO, Alder Júlio Ferreira. “O Perfil Instituinte do Movimento das Beguinas, na Baixa Idade Média”. In: DEPLAGNE, Luciana Eleonora de Freitas Calado (Organizadora). Faces do Medievo: Gênero, Poéticas, Resistências. Recife: Baraúna, 2008, p.11-45. LOYN, Henry R. (Org.). Dicionário da Idade Média. Tradução de Álvaro Cabral e revisão técnica de Hilário Franco Júnior. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991. MACEDO, José Rivair. A Mulher na Idade Média. 2ª Edição. Rio de Janeiro, Contexto, 2002. MULDER, Bakker & ANNEKA, Barbara. “Ivetta of Huy: Mater et Magistra”. In: Sanctity and Motherhood: Essays on Holy Mothers in the Middle Ages. New York: Garland, 1995, p.225-258. QUEIROZ, Tereza Aline Pereira de. As Heresias Medievais. 3ª Edição. São Paulo: Atual, 1988. (Discutindo a História). SOUSA, Itamar de. “A Mulher na Idade Média: A Metamorfose de um Status”. In: Revista da FARN. Natal, Volume 3, Números 1/2, Julho de 2003/Junho de 2004, p.159-173.
Gilberto de Sousa Lucena é crítico literário e membro do Grupo Interdisciplinar de Estudos Medievais (GIEM), da Universidade Federal da Paraíba. Mora em João Pessoa (PB)
6 jogada de letras Edônio Alves
edonio@uol.com.br
A ficção
da bola aos pés O FUTEBOL PELA REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA
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o seu magistral livro Veneno remédio: o futebol e o Brasil, em que ousa uma interpretação do Brasil fecunda e original, através da leitura de um dos seus mais vigorosos elementos culturais, o futebol, o crítico literário e músico José Miguel Wisnik, a certa altura, nos diz, antecipando a chave resolutiva do seu trabalho, baseado na sugestão de um artigo que lera na década de 1970 de autoria do cineasta italiano Pierre Paolo Pasolini, que fazia corre-
FOTO: Adriana Vichi
O músico e escritor José Miguel Wisnik é autor, entre outros livros, de Veneno remédio: o futebol e o Brasil
lações entre o futebol e a literatura (a prosa e a poesia) e que se encantara com a Seleção de Pelé e companhia, aquela que ganhou o tricampeonato mundial de futebol no México: “Pasolini sugeria com isso, pela via estética, uma maneira de abordar o jogo por dentro, e nos dava, de quebra, uma chave original para tratar a singularidade do futebol brasileiro. (…) Ou de constatar, na literatura como no futebol, que a ‘prosa’ pode ser bela, íntegra, articulada e fluente, ou burocrática e anódina, e a ‘poesia’, imprevista, fulgurante e eficaz, ou firula retórica sem nervos e sem alvo. Pois a mais importante consequência da sua rápida semiologia exploratória, a meu ver, é de que o futebol é o esporte que comporta múltiplos registros, sintaxes diversas, estilos diferentes e opostos e gêneros narrativos, a ponto de parecer conter vários jogos dentro de um único jogo. A sua narratividade aberta às diferenças terá relação, muito possivelmente, com o fato de ter se tornado o esporte c
6 c mais jogado no mundo intei-
ro, como um modelo racional e universalmente acessível que fosse guiado por uma ampla margem de diversidade interna, capaz de absorver e expressar culturas. (…) O grande teatro e o rito da presença, expondo ao vivo, em corpo e espírito, um largo espectro da escala humana. Sendo assim, uma zona de contatos lúdicos, primária e
jogada de letras
refinada, física e metafísica, que desafia e desencadeia o desnudamento da existência autêntica”. Págs. 12 a 15.
*** Pois bem! Dentro dessa filosofia de ver o jogo de futebol – e também dando continuidade a uma série de pequenos ensaios escritos para o Correio das Artes sobre a relação futebol e
Jogo encoberto Aércio Consolin Um gol contra figurando um perturbador ato falho faz a correlação temática entre o jogo de futebol e o jogo da vida, neste belo conto de Aércio Consolin. Narrado em primeira pessoa, marca textual dos encaminhamentos ficcionais de viés memorialístico, o texto apresenta, através de Zé Pedro, quarto-zagueiro de um time de amigos de uma cidadezinha do interior paulista, um quadro psicológico que remói o remorso vivido por um personagem que admirava outro no plano do mundo do futebol, mas que teve que traí-lo no plano da vida prática, ao apaixonar-se pela namorada do amigo, e parece que correspondido. Com uma prosa segura e sem floreio algum, necessária a esta situação narrativa em que de logo o narrador conclui que “o jogo da bola é um e o da vida é outro”, e que “nessa época aprendi que é sempre possível ser leal nas disputas do futebol e que o mesmo não ocorre nas disputas da vida”, repetindo, a sua maneira, a observação de
O escritor paulista Aércio Consolin é autor, entre outros livros, de A dança das auras
Albert Camus de que (“a maior parte de tudo que sei da vida aprendi jogando futebol”), Aércio Consolin vai expondo paralelismos conceituais entre o futebol e a vida, para narrar o desconforto psicológico do zagueiro que por ironia do destino é obrigado a disputar dois jogos simultâneos num mesmo dia: o de futebol em que tem a função de auxiliar seu amigo
literatura -, oferecemos, a seguir, uma leitura de um conto de ficção em que o futebol é representado, pela via literária, na sua condição de metáfora total; isto é, o jogo da vida dentro do jogo da bola, um ao mesmo tempo se identificando e se diferenciando do outro. Isso é, portanto, o que pretendemos demonstrar com a análise da narrativa em questão. Boa leitura!
goleiro, Severo, ajudando-o a evitar o objetivo do adversário que é o gol, e o outro da vida, em que transformado ele mesmo em adversário do goleiro amigo, está prestes a chegar ao objetivo principal de sua vida até então, isto é, conquistar definitivamente a namorada do companheiro por quem se apaixonara. Pronto, estão aí o achamento e a situação que no dizer de Alfredo Bosi estruturam uma estória curta quando comparada à narrativa mais longa, extensiva e horizontal do romance. Diz ele: “Se o romance é um trançado de eventos, o conto tende a cumprir-se na visada intensa de uma situação, real ou imaginária, para a qual convergem signos de pessoas e de ações e um discurso que os amarra”. Pois esse conto é fincado no achamento de uma situação que torna seu entrecho severamente inventivo. Zé Pedro é um zagueiro que se define como limitado: “Eu não era mais que um jogador correto, postando-me à frente da zaga. O bom quarto zagueiro sabe sair jogando e eu não sabia, embora tivesse a sabedoria de logo soltar a bola, procurando quem cuidasse dela com maior competência”. c
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Já Severo, o goleiro, é definido pelo companheiro como um dos “cobras” da turma ao lado do meia Ciça: “O nome calhava à luva naquele rapaz bonito, o mais bonito de todos, vantagem que lhe garantia um sucesso com as garotas do qual não se aproveitava como achávamos que se podia aproveitar.” E quanto as suas qualidades propriamente de goleiro, seu amigo Zé Pedro o tem como “ágil, destemido, guardião do espaço para onde se concretizavam vitórias e derrotas na posição maldita de goleiro, quase infalível, pisando o chão onde a relva não medrava”. Alegórico, sugestivo, o discurso ficcional de Aércio Consolin vai amarrando uma trama em que o aleatório, como é típico num jogo de futebol, vai opondo o elemento reconhecido como superior (aqui, no plano individual, o goleiro Severo com seus excelentes atributos de homem e de jogador; e no plano coletivo, o time adversário, reconhecido por Zé Pedro como “um time melhor que o nosso”) ao elemento inferior, isto é, Zé Pedro em comparação a Severo, e o time dos dois, que naquela partida decisiva de domingo tinha que se dobrar ao fato de que “a qualidade superior do adversário, impunha-se”. Mas o jogo da vida é um e o jogo de futebol é outro, como assevera o narrador quarto- zagueiro. E o que pode ser vantagem num campo pode ser desvantagem no outro. Observando, ao expor suas limitações de zagueiro, que era daqueles que não sabia sair jogando, mas que, mesmo assim, tinha a sabedoria de logo soltar a bola, procurando quem cuidasse dela com maior competência, o narrador sugere que no plano da vida, o zagueiro poderia ser melhor que o goleiro. O desfecho dessa sugestão
jogada de letras
narrativa é o que vai compor a situação estrutural do conto: um jogador que disputa dois jogos simultâneos diferentes, em tempos e espaços diferentes, contra adversários diferentes e com resultados finais diferentes. Repleto de representações típicas do mundo do futebol e que têm repercussões diretas no mundo da sociedade real, como a observação do narrador de que o futebol, para aquele grupo, abolia preconceitos sociais, ou a da passagem em que se unem, num só bloco narrativo, as qualidades do personagem Severo e a maldição da sua posição de goleiro, como a se firmar a ideia, recorrente no meio, de que os goleiros são uma espécie de anti-heróis (o primeiro jogador do ataque de um time e o último da sua defesa, daí não poder falhar jamais), este conto de Aércio Consolin firma-se entre as boas narrativas de estórias curtas sobre o futebol na literatura brasileira. Como exemplo do que está acima sugerido, deixemos ao leitor duas passagens do próprio texto. Um tanto longas, é verdade, mas operacionalmente úteis no que elas têm de conteúdo alegórico, sugestivo e representativo das situações que quase sempre ligam, num paralelismo impressionante, as coisas do futebol com as coisas da vida. Como o crítico Alfredo Bosi assegura, para a garantia de fatura de um bom conto, só cabe ao bom escritor encontrar um discurso que as amarrem. E este é um desses casos (ou causos) bem sucedidos: O futebol abolia preconceitos sociais. Ciça, o meia-esquerda, um escurinho, que durante a semana trabalhava duro como servente de pedreiro, era um portento, num quadradinho de grama fazia misé-
rias, ninguém lhe tomava a bola. Chutava com a direita e esquerda e cabeceava bem, mesmo baixinho como era. Adivinhava os espaços por onde progrediam as jogadas. Comandava com gestos. Ele e Severo eram os cobras. (…) Severo no voo onde o corpo se arqueava, seguindo a curva da bola, o admirável cálculo mental acompanhando a parábola que se arrematava em suas mãos, o couro trazido de encontro ao peito enquanto o corpo procedia à aterrissagem como se pousasse num tapete macio. Terminado o solo virtuoso, Severo erguia-se e olhava o campo à frente, o sol animando a silhueta no uniforme negro, àquele tempo a maldição dos goleiros se espantava também na roupa preta que vestiam. Severo raramente largava um rebote. Colocava-se sob as traves com perfeita intuição. Fechava os ângulos com um ou dois passos à frente, crescendo diante do atacante. Quando saía do gol para enfrentar o adversário, avançando livre com a bola nos pés, parecia adivinhar o ato alheio e a direção que o outro se derivaria, não permitindo ser driblado e atirando-se com os braços compridos para apanhar a bola. Severo pairando acima do emaranhado de jogadores, saltando para segurar a bola vinda do escanteio e que ele arrebatava sobranceiro. I
Para maior aprofundamento, ler:
CONTOS BRASILEIROS DE FUTEBOL. Cyro de Mattos, Org. Brasília: LGE, 2005. VENENO REMÉDIO: o futebol e o Brasil. José Miguel Wisnik. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
Edônio Alves é jornalista, poeta e professor de Comunicação Social da Universidade Federal da Paraíba. Mora em João Pessoa (PB)
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ensaio ilustrado
Arte é igual a massa,
vezes a velocidade da luz ao quadrado. W. J. Solha
Especial para o Correio das Artes
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994. Visitei - na Fundación La Caixa, Caille Serrano, 60, Madri - a mostra Dos caminos hacia la abstracción – Dois caminhos para a abstração - que fazia uma retrospectiva de Mondrian e Kandinsky, comemorando o cinquentenário de suas mortes, ocorridas em fevereiro e dezembro de 44. Do holandês vi esta sucessão de quadros, em que se acompanha seu encaminhamento para a abstração pura:
ilustrações: divulgação
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c A trajetória de Kandinsky, por ser semelhante, pode ser resumida assim: 1906:
Nesse meio tempo, a música erudita seguia evolução igual, como se pode ver por esta partitura de Stockhausen, de 1943/44:
O problema é que, de repente, só quem conseguia ler uma partitura era o próprio autor. O mesmo acontecia na literatura. Romances como “Finnegans Wake”, de James Joyce, lançado em 39, tinham seu entendimento completo reservado apenas ao romancista, que infelizmente, neste caso mais notório, morreu dois anos depois c
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Veja seu primeiro parágrafo: riverrum, past Eve and Adam´s, from swerve of shore to bend of bay, brings us by a commodius vicus of recirculation back to Howth Castle and Environs Tentemos a tradução de.Augusto de Campos: riocorrente, depois de Eva e Adão, do desvio da praia à dobra da baía, devolve-nos por um commodius vicus de recirculação devolta a Howth Castle Ecercanias. Donaldo Schüler tem outra versão, quem sabe mais clara: rolarrioanna e passa por Nossenhora d´Ohmem´s, roçando a praia, beirando ABahia, reconduz-nos por cominhos recorrentes de Vico ao de Howth Castelo Earredores. Bem, ao contrário do que sempre se dera, cada obra de arte, no século XX, passou a ter de ser única, insólita. Repudiando-se a estética do rebanho, acabou-se criando outro, onde – uniformemente – experimentava-se de tudo. Chegou-se até ao que Malevich chamara de “Branco no Branco”:
John Cage – o autor da segunda partitura acima – foi ao cúmulo: criou a peça musical 4´33´´ (“Quatro Minutos e Trinta e Três Segundos”), em que o concertista entrava no palco, sentava-se ante seu instrumento (qualquer que fosse ) e, na atitude de quem vai começar a execução, detinha-se durante quatro minutos e trinta e três segundos, devidamente cronometrados por ele mesmo. Você pode ver várias versões desse concerto digitando-lhe o título no youtube..
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No teatro, Beckett criou Ato Sem Palavras I e II, peças curtas em que nada se diz. No Youtube também. E nós com isso? Bem, no início dos anos 90, o maestro Eli-Eri Moura telefonou-me de Montreal, onde fazia doutorado de composição pela McGill University, convocando-me para uma grande parceria, e eu lhe disse: “Não, vi e ouvi o último trabalho que fizemos juntos, no Departamento de Música da UFPb. Sua composição está tão... complicada, que, francamente, não compreendi uma só palavra do que eu mesmo escrevi. Pra que um texto, então, se a música enveredou por esse caminho?” : - Solha – ele me respondeu - estamos vivendo uma reviravolta na área, e a ordem, agora, é criar melodias que as pessoas saiam das salas de concerto assobiando-as. Bem. Muita água rolou, e no dia 18 de dezembro, agora, estreia no Teatro Santa Isabel, no Recife, durante o XII Festival Virtuosi, aquela que será nossa maior parceria, desde Réquiem Contestado, que foi bastante elogiado pela crítica: “A Ópera Dulcineia e Trancoso” – a primeira armorial. Parece-me incrível o que conseguimos de clareza e simplicidade, nela. Eu com um épico cheio de cordéis e martelos agalopados, diálogos cômicos e idéias para grandes cenas, Eli-Eri às voltas com a transferência deles para tenores, coros, sopranos e orquestra, cheia de frevos e maracatus. Mas... voltando a Madri, 94: tive, no dia em que vi a mostra de Mondrian e Kandinsky, um insight que me seria impossível se eu não tivesse saído da Fundación La Caixa diretamente para o Centro Cultural de la Villa, onde, depois de passar sob uma grande cascata artificial, deparei-me com uma vasta exposição do soberbo hiper-realista espanhol Cristóbal Toral, Tive, então, o impacto – pelo contraste - de ver pinturas como estas:
O hiper-realismo é um movimento - em pintura e escultura - que teve início em 1968, e sua meta era e continua sendo a da reprodução mais do que fotográfica da c realidade, como nesta obra de Ron Mueck
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Numa trajetória em sentido inverso à de Mondrian e Kandinsky, que vinha arrebentando a figuração desde o início do século, Cristóbal Toral partira da abstração e do cubismo – em voga no começo de sua carreira (ele nasceu em 40) - para aquele exacerbado fotorrealismo que ele descobriu nos Estados Unidos em 69.
Não por acaso, dois anos antes voltara com tudo o realismo – embora mágico – também na literatura:
Conclusão: as artes tinham caminhado para a própria destruição, na metade do século XX, e praticado, em seguida, a retomada da captação da realidade que nos cerca. Vistos em retrospectiva, alguns quadros de Mondrian, recapitulados em série, passaram a me parecer etapas de uma... desintegração nuclear: c
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Como o processo Mondian-Kandinsky somente cessou com a morte de ambos em 44, ficou difícil, para mim, não pensar no que ocorreu em 06 de agosto do ano seguinte:
Premonição? Mais que isso. Como disse Maria, Rainha da Escócia, ao caminhar para a morte, “In my End is my Beginning”, ou como a corrigiu Eliot, nos “Quatro Quartetos” ( de 1936 a 43 ): “In my beginning is my end”. Pois o curioso é que essa explosão nuclear deriva da Teoria da Relatividade, que Einstein desenvolvera em 1905, a partir do livro “Ciência e Hipótese”, de Henri Poincaré, publicado em alemão em 1904, no qual se propunha, entre outras coisas, que a geometria que descreve a realidade não é única. Picasso obteve a mesma informação através do livro “Tratado Elementar sobre a Geometria das Quatro Dimensões”, de Esprit Jouffret, que popularizava as cogitações do grande matemático e físico francês e, a partir dessa leitura, é que pintou “Les Demoislles d´Avignon”, o primeiro quadro cubista, entre 1906 e 1907. Eis uma página desse tratado e a obra de ruptura de Picasso:
Que se pode concluir de tudo isso? Que há mais coisas entre o céu e a Terra do que sonha nossa vã filosofia. I W. J. Solha é escritor, ator e artista plástico. Mora em João Pessoa (PB)
6 imagens amadas João Batista de Brito brito.joaobatista@gmail.com
Benditos defeitos (II)
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a primeira parte deste artigo tratei de defeitos encontrados na maioria dos filmes americanos, e que estão arrolados em Listas que circulam, na imprensa, na internet e noutros meios de comunicação. Os que cito são três, e, para refrescar a memória do leitor, abaixo reproduzo o primeiro parágrafo da parte (I) deste artigo, publicado na edição anterior deste suplemento: No cinema americano, se o protagonista faz uma ligação telefônica, a pessoa do outro lado da linha geralmente atende imediatamente, como se estivesse ao pé do aparelho, esperando que tocasse. Se esse protagonista necessita encontrar um certo objeto (uma caderneta escolar do tempo em que era estudante secundário, por exemplo) esse objeto é achado, dentro de casa, com incrível facilidade. E se, na rua, precisa de um meio de transporte, os táxis estão sempre disponíveis a qualquer hora do dia ou da noite – é só estender a mão e gritar “táxi!”. Analisando cada caso, demonstrei que, ao invés de de-
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feitos, se tratam de elipses temporais, imprescindíveis para que o filme possa ter uma duração viável, e, um pouco brincalhonamente, chamei-os de “licenças poéticas”. Agora prossigo com o comentário de outros casos, expostos nas famosas Listas dos defeitos dos filmes americanos. Os analisados anteriormente estavam relacionados com o uso do tempo (eram elipses), mas outros há nas Listas dos cinéfilos reclamantes que se prendem a questões de ordem técnica. Por exemplo: quando, num filme americano, se apagam as luzes, o quarto ou sala nunca fica realmente escuro e a gente continua vendo o rosto dos atores. É verdade, mas se ficasse escuro mesmo a narração seria interrompida. Trata-se de uma convenção fotográfica muito útil que, afinal, não ofende tanto a nossa inteligência, até porque o teatro já a praticava de forma sistemática muito antes do cinema. Um caso semelhante e paralelo, também citado nas Listas de defeitos, é que uma única vela acesa seja capaz de ilumi- c
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imagens amadas Ilustração: Domingos Sávio
c nar um compartimento inteiro.
Ora, muito mais convencional do que estes dois recursos fotográficos são aquelas cenas em que, passando de uma sala a outra, a câmera em deslocamento, corta literalmente a parede ao meio... e nunca vi ninguém reclamando disso. O mesmo se diga do uso do som, quando num salão repleto de pessoas, ouvimos o diálogo de um casal metido no meio da multidão, e o restante das falas ficam artificialmente inaudíveis para o espectador. Já outros “defeitos” apontados nas Listas são de ordem narrativa mesmo. Exemplo: quando alguém tosse num filme americano é porque vai cair doente. Também é verdade. Mas, convenhamos, contar a estória de uma pessoa que até mais da metade do filme parece completamente sadia e, de repente, sem mais nem menos, jogá-la numa cama de hospital, sem ter dado ao espectador qualquer pista, seria coisa ainda mais inaceitável. E se for para por a tosse como mera tosse e mais nada, seria pior porque, vejam bem, a vida real das pessoas está cheia, não apenas de tosses, como também de escarros, arrotos, flatulências, dores de cabeça, dores de dentes, etc. A questão é: qual o sentido de por isto na tela, se não for como sintoma de uma situação importante no desenvolvimento dramático da estória? As Listas dos cinéfilos reclamantes põem todos estes casos (e mais os três citados na primeira metade desta matéria) na categoria dos clichês, que, no meu entender, são outra coisa. Os casos citados acima, que estou chamando livremente de “licenças poéticas” são necessários. Os clichês não são necessários: poderiam não existir, se os autores do filme não os quises-
sem. Ou seja, não é tanto a repetição o que define um clichê, mas a sua prescindibilidade. Como já me estendi bastante, cito apenas um exemplo de clichê do cinema americano, talvez o mais assíduo nas comédias românticas, e o cito para fazer contraste com os casos anteriores: se, num filme americano, um rapaz e uma moça se conhecem e se antipatizam do modo mais ostensivo é porque vão se apaixonar e ficar juntos no final da estória. Vejam bem: aqui o cinema está imitando, não a realidade, mas a si mesmo, pelo simples fato de que esse lance de roteiro rendeu um monte de bilheteria em dezenas de filmes anteriores e ainda hoje rende. Enfim, espero que, para o meu leitor, tenha ficado clara a
diferença entre um clichê propriamente dito (repetitivo e desnecessário) e as – por mim chamadas - “licenças poéticas” (repetidas, mas necessárias), erroneamente reputadas nas famosas “listas dos defeitos dos filmes americanos” como clichês. Para fazer justiça a Hollywood, um “em tempo” que não pode faltar é que as mesmas aqui apelidadas “licenças poéticas” arroladas nesta matéria estão, com a mesma assiduidade, presentes no cinema não-americano. Revejam os seus Truffauts, Kurosawas e Bergmans e confirmem. I
João Batista de Brito é escritor e crítico de cinema e literatura. Mora em João Pessoa (PB)
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conto
Bar Cláudio Feldman
Especial para o Correio das Artes
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o espelho gasto da parede, duas moscas passeavam sobre a imagem do único freguês, um anão grisalho. Logo após, entrou no bar um gordo, fugitivo da rua em brasa. Suado, com um lenço inquieto no rosto, estava à procura de sombra e líquido. Antes mesmo de se manifestar ao atendente ou ao dono (que palitava as cáries), dirigiu-se ao lavatório, onde umedeceu os poros. Não pôde, porém, usar o sabonete, pois havia uma mosca grudada nele. Enojado, quis sair. Mas, como já utilizara a pia, ficou sem jeito de escapar, evitando alguma despesa. Ainda mais que o outro freguês tinha partido, num piscar de tempo, e o gordo estava só, na arena. Conformado, colocou o traseiro volumoso na cadeira (quase não coube) e resolveu pedir uma cerveja, não exposta às moscas. Um sanduíche de queijo com presunto, ali, nem pensar! Mas, e se o copo não fosse bem lavado? O garçom, a um sinal do gordo, aproximou-se, olho esquerdo remelento: - O que manda, amigo? - Uma cerveja bem gelada. O atendente se afastou, espantando, com seu movimento, algumas moscas de outra mesa. O gordo aproveitou sua ausência para encontrar uma solução: “E se eu evitasse o copo, usando um canudinho? Mas ele afundaria na garrafa, o garçom me acharia um maluco e o dono do bar um desconfiado de sua limpeza. O que fazer, meu Deus?” E completando a reflexão: “Além do mais, o próprio canudinho pode estar contaminado.” O garçom chegou com a bandeja (copo, garrafa, moscas). Tirou a tampinha e, num gesto de gentileza (ou esperança de gorjeta), derramou a
cerveja no copo. “E agora? – pensou o gordo - Um milhão de micróbios!” Já ia levar o copo à boca, forçado, quando teve uma ideia. Mal o atendente se distanciou, resolveu colocá-la em prática: esticou o braço volumoso, estabanado, e derrubou o copo e a garrafa na mesa. Arredou o corpo do falso acidente, porém, como era lento, devido ao peso, foi atingido pelo líquido louro e espumante. Em sua calça formou-se uma ilha urinada. O garçom aproximou-se com um pano suspeito e perguntou: - Quer se limpar? O freguês secou-se mal e ainda usou o pano para enxotar várias moscas que começaram a sobrevoar a mesa úmida de cerveja. O gordo, aborrecido com a situação, levantou-se o mais rápido que pôde e disse ao atendente: - Perdi a vontade de beber. Quanto devo? - Dois reais, dr. Enquanto o freguês remexia nos bolsos, o garçom, com o mesmo pano, começou a esfregar a cerveja. O gordo dirigiu-se ao dono do bar, que ainda palitava as cáries, ao lado da registradora, e estendeu-lhe as duas verdinhas , amassadas. Depois, já perto da porta, percebeu que uma mosca tinha se grudado no círculo de cerveja de sua calça. Retirou a estonteada e saiu. Só então, ao sol, reparou no nome do estabelecimento: Bar “Paraíso”. Pondo-se em marcha, monologou: - Sim, o paraíso há muito tempo foi invadido pelas moscas. I
Cláudio Feldman é poeta, escritor e roteirista. Mora em Santo André (SP)
6 novo almanaque armorial Carlos Newton Júnior cnewtonjr@gmail.com
Pelo caminho sagrado
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inguém compreendeu melhor do que Ariano Suassuna a significação profunda do episódio de Canudos para o nosso país e o nosso povo. A meu ver, a súmula de sua visão sobre o arraial de Antônio Conselheiro (visão registrada, de forma dispersa, em artigos de jornal, conferências, entrevistas etc.) encontra-se no texto “Canudos, nós e o mundo”, originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 7 de dezembro de 1999, e por mim incluído, quase dez anos depois, na antologia de seus ensaios que tive o prazer e o privilégio de organizar (Almanaque armorial, Rio de Janeiro, José Olympio, 2008). No referido texto, Suassuna chama a atenção, em primeiro lugar, para a dimensão supratemporal de Canudos, símbolo do “Brasil real” que, durante toda a “nossa atormentada História”, vem sendo violentamente oprimido pelo “Brasil oficial”: “Quando, no interior do país, uma milícia de poderosos, governamental ou não, assassina um pobre posseiro e sua família, é o Brasil dos que incendiaram e arrasaram Canudos que está atirando no Brasil real e matando seu povo. Quando, numa grande cidade, a polícia invade uma favela ou destrói uma ‘invasão’, são outros tantos dos nossos inumeráveis ‘arraiais de Canudos’ pertencentes ao Brasil real que estão sendo destruídos e assolados pelo país oficial, que, para isso, consegue recrutar, a seu serviço, outros pobres integrantes do Brasil real”. Depois, num segundo momento, sugere a ampliação e a restrição deste símbolo: ampliação para o plano internacional, em que os países pobres do Terceiro Mundo surgem como imensos “arraiais de Canudos” diante dos países ricos e poderosos; e restrição para
a nossa vida pessoal, para o reconhecimento dos “arraiais de Canudos” particulares que as classes mais abastadas do nosso país possuem “na cozinha, no jardim ou no lavador”. Foi através de um exemplar de Os Sertões encontrado na biblioteca deixada por seu pai, o ex-governador da Paraíba João Suassuna, que Ariano, ainda adolescente, tomou contato, pela primeira vez, com a obra de Euclydes da Cunha. Aos poucos, reconstituindo a história de João Suassuna (morto quando Ariano contava apenas três anos de idade), através de leituras e de depoimentos de familiares e amigos, descobriu Ariano o quanto seu pai admirava o autor de Os Sertões e sentira a sua morte, ocorrida a 15 de agosto de 1909, nas condições trágicas que todos conhecem. Quando Euclydes morreu, João Suassuna era um jovem de 23 anos, concluinte da Faculdade de Direito do Recife. Vinte e um anos depois, em 9 de outubro de 1930, João Suassuna, então Deputado Federal, morreria assassinado no Rio de Janeiro, vítima das cruentas lutas políticas desencadeadas com a Revolução de 30. O fato de João Suassuna também ter morrido em condições trágicas, como Euclydes da Cunha, e praticamente com a mesma idade em que este morrera (Euclydes aos 43 anos, João Suassuna, aos 44), associado à semelhança física que o jovem Ariano percebia entre os dois, através de algumas fotografias, talvez tenha contribuído para que a figura de Euclydes assumisse, em relação a Ariano, uma dimensão quase mítica, que só fez aumentar ao longo do tempo, influenciando decisivamente uma obra que começava a se realizar. Como se fosse algo hereditário, que c
6 c passasse, obrigatoriamente, de pai para filho, o fascínio em relação a Os Sertões e ao episódio de Canudos chega, então, a um dos filhos de Ariano, este excepcional pintor que se chama Manuel Dantas Suassuna e que já é hoje, seguramente, o artista plástico brasileiro que melhor e mais intensamente se dedicou ao tema, compondo um sem número de desenhos e pinturas – sobre tela, madeira ou papel – a partir da história do arraial messiânico de Antônio Conselheiro e de sua gente. Pessoalmente, há mais de uma década venho acompanhando, com interesse cada vez maior, tomado de espanto e renovada admiração, o trabalho de Manuel Dantas Suassuna sobre essa temática, sobretudo os retratos que ele tem pintado de Antônio Conselheiro. Agora, inicia Manuel Dantas Suassuna um projeto grandioso e cujos resultados seguramente suscitarão uma revisão histórica – já hoje absolutamente imprescindível – da figura emblemática de Antônio Vicente Mendes Maciel, ainda tido por muitos, infelizmente, como um “louco” ou um “fanático”, numa interpretação tão injusta quanto simplista de um personagem de dimensão e importância indiscutíveis. Manuel Dantas Suassuna começa a refazer, acompanhado de uma equipe de artistas – entre os quais o fotógrafo Geyson Magno e o programador visual Ricardo Melo – todo o caminho que Antônio Conselheiro percorreu, a pé, do sertão do Ceará até o sertão da Bahia, quando se dedicou, como penitente, à construção e à recuperação de igrejas e cemitérios, antes da fundação da sua cidadela sagrada – o arraial de Belo Monte, que passaria à história com o nome de Canudos. O percurso servirá de inspiração para obras de pintura, desenho, fotografia, vídeo-arte e literatura. O projeto, que se intitula Pelo caminho sagrado, foi apresentado em um impressionante vídeo de 27 minutos realizado sob a direção de Claudio Brito, que captou ima-
novo almanaque armorial ilustração exclusiva de manuel dantas suassuna para a coluna novo almanaque armorial
gens grandiosas de Monte Santo e da região onde se ergueu a antiga Canudos, hoje tomada pelas águas do Açude de Cocorobó. Imagens em que Manuel Dantas Suassuna, vestido de profeta e apoiado num longo cajado, adornado, na ponta, com fitas vermelhas e azuis, ora sobe, numa verdadeira ascese, a escadaria do Santuário da Santa Cruz, em Monte Santo (que se tornou célebre a partir do filme Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha); ora contempla, em Canudos, o cruzeiro que se encontrava em frente à “Igreja velha” do arraial de Belo Monte e hoje se encontra num pequeno museu; ora caminha entre ruínas da antiga Canudos, que res-
surgem das águas do açude em tempos de seca. E por aí já se entende porque em alguns retratos recentes de Antônio Conselheiro, pintados por Manuel Dantas Suassuna, o rosto do retratado lembra tanto o do pintor: é do ponto de vista de Antônio Conselheiro que Dantas quer encontrar o sentido do seu próprio caminho sagrado, que é o da arte, esse caminho áspero, duro e pedregoso à procura da beleza, e que todo verdadeiro artista percorre, palmilhando-o com coragem, sem saber ao certo aonde irá chegar. I Carlos Newton Júnior é poeta, ensaísta e professor da Universidade Federal de Pernambuco. Mora em Recife (PE)
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duas palavras William Costa
wpcosta.2007@gmail.com
Ano novo Em dois mil e catorze, peço a Deus saúde e tempo para dedicar aos livros cuja leitura iniciei, mas não consegui concluir em dois mil e treze, como é o caso de A morte de Empédocles, de Hölderlin, que empacou no, literalmente, grande ensaio introdutório de Marise Moassab Curioni, para a edição da Iluminuras. Confesso que comprei Hipérion ou o eremita na Grécia, do romântico Hölderlin, com os olhos. Encantei-me com a palavra “Hipérion”, antes de sabê-la nome do protagonista da obra. Li as primeiras cartas enviadas por ele a Belarmino, revelando sua paixão pela Grécia, seu amor por Diotima, e fiquei por aí.
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Há tempo reservei espaço para Walden em minha estante. Folhas de relva, de Whitman, há muito aguardava tão ilustre companhia. Hölderlin, Thoreau, Whitman... A natureza ornamenta, com lua cheia sobre um detalhe do Parthenon, a janela imaginária do meu gabinete de leitura... Aos pés da cadeira que balança sozinha na sala vazia, ainda com o envelope selado da Estação Liberdade, A gangue escarlate de Asakusa, de Kawabata, com uma capa que provoca os sentidos – acrílica vermelha sobre folha de ouro de Miguel Simon, com traços incidentais de Midori Hatanaka. A trilogia poética de Solha exige cadência, atenção para
os fatos, paisagens e personagens de Trigal com corvos, Marco do mundo e Esse é o homem, estilhaços do espelho no qual se reflete a face inconcebível do mundo da arte e da ciência, da política e da filosofia. Sintonizar a frequência do autor não é para qualquer um. Ângelo, não o ignorei. Silente, tardivo também espera por mim. São lutos pelas mortes diárias de nascituros papiróides, para as quais não há remédio e só quem se salva são os autores das novelas. Confortam-me os ciclos vegetais. A esperança de que nem eles nem eu iremos embora tão cedo, oquêi, dáblio Solha? Editor do Correio das Artes
RODAPÉ – Ponto de vista crítico Rinaldo de Fernandes
rinaldofernandes@uol.com.br
Sobre ilhas e outros ventos (2) Em alguns dos poemas de Ilhéu (Ed. Patuá, 2013), de Edson Cruz, ainda da primeira parte, o poeta que busca a reflexão (a logopeia poudiana) se transporta para o mundo das imagens (a fanopeia), tornando-se fortemente contemplativo. Vale a pena reproduzir “Arabescos”, com seus enjambemant quase sempre felizes: “As crianças equilibram borboletas/ e planetas// Os homens enxugam copos/ com sua dor// As mulheres geram bentos/ e arrebentos// Gafanhotos devoram os verdes/ da paisagem// Profetas esboçam desígnios/ no deserto// Os bêbados balbuciam coerências/ bor-
rachudas// Os poetas cadenciam tudo/ o que tocam// A natureza redesenha o mundo/ em fractais”. A segunda parte do livro, que é também a melhor, intitulada de “Bonsai”, é composta de poemas-miniaturas de extração oriental. Nesta parte, mais encorpada, mais exata na fatura dos poemas, sem sobras, adiposidades, Edson Cruz se revela, realmente, um talentosíssimo poeta. Há aqui alguns excelentes hai-cais, achados primorosos, como os que cito abaixo: “Vento de janeiro. As árvores esbravejam sem controle algum.”
“Milagres latejam na noite escura. Vaga-lumes dando um rolê.” O novo livro de Edson Cruz revela, uma vez mais, um poeta consciente da tessitura do poema, senhor de sua arte. Edson, sem dúvida, é um nome que se coloca com força na poesia brasileira atual. Rinaldo de Fernandes é escritor, crítico de literatura e professor da Universidade Federal da Paraíba. Mora em João Pessoa (PB)