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Carga de Riso
Crónicas de um comboio escalfado II
Na Gare do Oriente, o inter-cidades parte às dezassete e dois. Tói Casquinha veio do Alentejo a uma consulta logo pela manhã. Umas tonturas não o deixam andar equilibrado com a vida. Veio fazer uns quantos exames prescritos pelo médico de família. Para a coisa ser mais célere marcou no hospital privado, porque nos hospitais públicos quando dessem pela maleita já a morte o teria atendido há muito tempo. E não lhe está a apetecer partir tão cedo para o avesso da terra. Não, enquanto não conquistar de uma vez por todas o coração da sua amada. Está desejoso de regressar! Hoje tem jantar marcado com a mulher dos seus sonhos. Coisa romântica que irá acontecer numa das melhores casas de pasto da cidade. A degustação começará por uma cabecinha de borrego assada no forno, uns pezinhos de coentrada, posteriormente, como prato principal, umas migas de espargos acompanhadas por uma carninha frita. Caso não seja suficiente arremata-se com uma borda de pão alagada em queijo amanteigado da zona de Serpa. Se no final a azia surgir traiçoeira, chupa-se duas ou três pastilhas com sabor a menta. O que até se torna mais vantajoso, pois assim fica o caminho mais aromatizado para o beijo na boca que lhe pretende roubar. Obviamente que o frugal manjar será devidamente acompanhado por um robusto tinto de Pias, de preferência com um teor alcoólico à volta dos catorze graus e meio. Porque em assuntos de coração, nada melhor que um tinto alentejano de carácter encorpado para que a língua se desentorpeça e solte as palavras aprisionadas pela timidez do coração: “Escuta, estou capaz de te enfiar um beijo pelos beiços adentro que até as azeitonas quando caem das oliveiras já vêm retalhadas!” Pelas contas feitas, o início do namoro em contexto de refeição afrodisíaca regional, deverá rondar os quarenta e cinco euros. Se ela disser que não, envia-lhe a
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Jorge Serafim Humorista
factura do jantarinho por correio em carta registada. Se não for ela a pagar, que seja o pôrra do pai ou a palerma da mãe a abrir os cordões à bolsa. O amor é um investimento feito para ter retorno, assim pensava enquanto fumava o seu cigarro de enrolar e se entretinha a expelir o fumo escrevendo coisas voláteis no ar. Era o seu passatempo predilecto. Quando se encerrava em pensamentos do coração, conseguia através do fumo do tabaco escrever frases que ilustravam o seu sentir. Naquele dia, quase à hora do comboio partir, na Gare do Oriente uma frase escrita em fumo espesso atravessou toda a estação: “Tói Casquinha + Isabel Franganita = a Amor para Sempre”. Esta é a equação para ser feliz na sua vida. Está nervoso, acredita que é a carência de amor não correspondido que o desequilibra no presente e o derrubará no futuro. As pernas tremem-lhe! O coração está em plena alteração cardíaca. Nem nas obras onde costuma dar serventia se sente tão agitado quando em cima dos andaimes vê passar as miúdas de decote avantajado. Sai piropo atrevido, “Viva o meloal biológico!”. Nem o comboio a passar a ponte vinte e cinco de Abril abana tanto quanto o seu coração. Mete-lhe medo olhar para o rio lá em baixo. Sempre que a atravessa de comboio, fecha os olhos e profere uma benzedura de ocasião, “Pai Nosso que estais no Céu não deixes o maquinista puxar o travão de mão!” Às dezassete e dois, ala que se faz tarde, entrou na carruagem, tomou o lugar indicado pelo bilhete em segunda classe e deixou-se ficar absorto a olhar a paisagem, como quem vê, olhando para dentro. Ou melhor, as diferentes paisagens que vão surgindo durante a viagem. Nas estações de Lisboa, Oriente, Entrecampos, Sete Rios é um corrupio de gente a movimentar-se. No Pragal (Almada), idem aspas. A partir do Pinhal Novo, começa o sossego. A natureza toma conta do horizonte. Uma remessa de bois, vacas, ovelhas pastoreiam livres e indiferentes ao rolar do comboio...Tói Casquinha contemplando os pachorrentos animais, imagina espetadas de novilho, vitela estufada e costeletas de borrego em molho de tomate. Assim chegue ele a mestre do ofício e a sua Isabelinha há-de comer do bom e do melhor. Se Deus quiser, calorias e filhos não lhe hão-de faltar... Vendas Novas e depois Casa Branca. Nesta estação há que mudar para a automotora que conduzirá os utentes às Alcáçovas, a Vila Nova da Baronia, Alvito, Cuba e, finalmente, Beja. No transbordo, a voz oriunda do altifalante da estação prenuncia uma desgraça: “Senhores passageiros, devido a avaria, a automotora que deveria partir às 18h29, na linha número dois, partirá com cinquenta minutos de atraso, às 19h19”. Tói Casquinha acende mais um cigarro. O nervosismo agora é de irritação. Do altifalante, nova mensagem: “Senhores passageiros, devido a motivos de avaria e na impossibilidade de recuperação da composição a viagem até Beja será feita de autocarro, com paragens em todas as estações intermediárias. Hora prevista de chegada: 21h47”. Tói Casquinha queima frases na ponta do cigarro, vê-las cair transformadas em cinza no chão do apeadeiro. Com a biqueira da sua bota caneleira, procura na cinza palavras que o consolem do desgosto inesperado. Na última passa, houve uma frase que se escapou do cigarro e foi levada pelo vento até se dissipar na direção de Beja. O pretendente a ser amado ainda conseguiu ler: “O amor não acontece em horas programadas...”