Degusta Julliet e o Espelho Mágico

Page 1




Renan Bittencourt


Copyright © 2011 Aped - Apoio & Produção Ltda. Todos os direitos desta edição reservados ao autor. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida por qualquer processo eletrônico ou mecânico, fotocopiada ou gravada sem autorização expressa do autor. ISBN: 978-85-98792-24-8 Capa: Cláudia Lobato Projeto Gráfico e Diagramação: Apoio & Produção

CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ B536j Bithencourt, Renan, 19932011.

Julliet & o segredo do espelho / Renan Bithencourt. - Rio de Janeiro : APED, ISBN 978-85-98792-24-8 1. Romance brasileiro. I. Título. II. Título: Julliet e o segredo do espelho.

11-4772. 01.08.11

CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3 04.08.11

028471

Aped - Apoio & Produção Editora Ltda. Rua Sylvio da Rocha Pollis, 201 – bl. 04 – 1106 Barra da Tijuca - Rio de Janeiro – RJ – CEP22793-395 Tel.: (21) 3183-0849/ 2498-8483 www.apededitora.com.br aped@wnetrj.com.br


Dedico este livro ao meu grande amigo Gabriel, pois sem ele Lour jamais seria uma vila t達o peculiar.



Sumário

Capítulo 1 • Capítulo 2 • Capítulo 3 • Capítulo 4 • Capítulo 5 • Capítulo 6 • Capítulo 7 • Capítulo 8 • Capítulo 9 • Capítulo 11 • Capítulo 12 • Capítulo 13 • Capítulo 14 • Capítulo 15 • Capítulo 16 • Capítulo 17 • Capítulo 18 • Capítulo 19 •

O espelho A vila de Lour Os planos de Sckat O ataque A rosa dos séculos Forêt Obscure O desespero de Julliet A maldição De volta a Lour O Conselho A véspera Preparativos A batalha de Lour Guerra em alto-mar Chamas em Forêt Claire A morte de uma musa Umbrae Rex A aurora de Lour

13 25 43 65 83 109 149 191 225 251 283 303 311 321 335 347 365 383

7



E

ra uma vez um pequeno vilarejo, distante e pacífico, onde ninguém imaginava que o mal estava por vir. Era um dia chuvoso, nuvens cinzas despejavam gotas de água gelada de um céu morto. Em meio às sombras, um homem para em frente ao portão do castelo clamando por ajuda. Ele era de estatura mediana e estava coberto por um sobretudo marrom, com um capuz por cima da face. O rei e a rainha, comovidos com a história de perseguição e trajetos mal percorridos deixaram-no passar a noite no castelo. Eles não imaginavam que esse seria o pior erro que já cometeram. A lua subira no céu e já era tarde quando, de repente, um estardalhaço na sala de bailes foi ouvido por todo o castelo. O casal de governantes acordou pulando de suas camas, literalmente. Não pensaram em nada, a não ser em ver o que havia ocorrido. Quando todos, rei, rainha e vários criados curiosos chegaram à sala do estrondo, as cortinas de veludo vermelho estavam rasgadas, as janelas de um fino cristal haviam se partido em milhares de fragmentos e o lustre que iluminara o salão por tantos anos estava agora caído no chão. O visitante só estava em pé no 9


centro do local, rindo. Uma risada maníaca, apavorante que ecoaria por aquelas paredes anos e anos a fio. Ele amaldiçoou o castelo. Todos que lá moravam ficaram aprisionados à estrutura de pedra e cimento sem jamais poder sair, exceto o rei e a rainha, que haviam tido destino pior. Com um gesto de astúcia e ironia, o visitante os trancou no próprio calabouço. O reino caiu em um profundo desespero. Dias e dias intermináveis de dor e sofrimento haviam passado, quando uma garota simples, encapuzada, com olhos castanhos como avelãs, quase invisível, resolveu tomar uma atitude em relação ao terror que assombrava sua terra. Ela invadiu o Castelo de Gentreé. Estava à procura de um objeto que a ajudasse em sua jornada. Com o coração explodindo no peito foi para uma ala escura e sombria, e, após muito procurar, revirar cortinas, abrir armários quase podres e vasculhar pelas frestas mais estreitas, finalmente achara um espelho de mármore branco. O objeto emitia uma fraca luz verde e soltava faíscas da mesma cor. Quando o pegou firmemente em sua mão, raios esmeralda dispararam por toda a sala atingindo vasos, móveis em pedaços, janelas e ricocheteando cada vez mais e produzindo um barulho insuportável. Isso fez com que o dono do castelo acordasse. A camponesa ouviu passos furiosos descendo as escadas rapidamente. Ela tinha que pensar rápido, mas era tarde, uma sombra surgiu. Seu coração saltou por um instante e seus olhos se arregalaram. — Não é a mim que tem que temer — uma criada lhe falou. Estava muito apressada e angustiada. — Vá, vá! Aqui é muito perigoso para você, fuja! Mal suas palavras saíram, um som tomou os ouvidos da menina. Uma figura tenebrosa de aura ameaçadora irrompeu pela porta. Seus cabelos eram castanhos, escuros como os troncos das árvores, e seu corpo estava coberto por uma capa negra. Sua respiração era ofegante. — Você, sua traidora! — rosnou para a empregada. 10


Com um gesto rápido, suas mãos faiscaram em uma luz vinho que saltou em direção à bondosa figura. Ela foi arremessada pela janela, soltando um berro de horror. A jovem viu a criada cair, bater em outra torre, e escorregar de uma enorme altura berrando a plenos pulmões. Agora estava completamente aterrorizada. Seus músculos tremiam e sua pele esbranquiçava. — E você... — rugiu o homem apontando para ela. — Vai aprender a não invadir mais os aposentos de Lorde Sckat! Guardas levem-na da vila, e que ela fique num lugar bem distante daqui! Pela primeira vez ela notou a presença de dois guardas postados ao lado de seu amo. Eles a agarraram e a levaram para fora do castelo. Jogaram-na, com descaso, numa carruagem qualquer e a levaram para um lugar bem distante dali como fora mandada. O rei a exilou, porém, jamais soubera que aquela garota pegara o espelho sorrateiramente. A menina foi levada para uma vila bem distante da que havia nascido e as gerações da família foram passando e passando...

11



Capítulo 1 O espelho

A

Vila de Charleir, localizada no sul da França, não era um lugar muito agitado. Em alguns dias aconteciam brigas entre comerciantes, discussões entre pessoas e fofocas. O máximo de extraordinário era o inesperado inverno do ano, que chegara até mesmo quente. As folhas continuavam em seus galhos e o sol aparecia sem qualquer timidez. Pelo visto a natureza decidira enforcar uma estação, mas nada fora do comum. Nesta vila previsivelmente tediosa havia uma jovem. Seu nome era Julliet. De cabelos castanhos, brilhosos e levemente ondulados. Dotada de uma beleza interessante: pele branca, olhos marrons como as mais belas avelãs da Europa e movimentos sutis e vivos. No entanto, não era apenas um corpo bonito, em sua aldeia era famosa por ser muito gentil, prestativa, inteligente, criativa e com um gosto imenso por histórias fabulosas. Mas nem todos apreciavam essas características. Na realidade, quase ninguém. Mulheres deveriam ficar caladas, paradas, e, quando se movessem, que fosse para fazer uma tarefa ao seu marido. Julliet sequer possuía um pretendente, e apesar dos cochichos constantes e desdenhosos a respeito de sua vida, sempre desfilava pelo local com um sorriso e simpatia inigualáveis. 13


Ela já havia criado inúmeros objetos, invenções de sua autoria. Não posso lhes dizer que todos eram úteis e nem que funcionavam perfeitamente, mas apenas o fato de ter a vontade de pensar diferente já lhe deveria ser digna de elogios. Vivia mais tempo dentro de si do que fora, com o olhar perdido por entre as nuvens do céu ou as águas do chafariz, as únicas coisas tão grandes ou deslumbrantes quanto sua mente. Julliet realmente possuía um gosto tremendo por histórias, e assim sendo, lera quase todos os livros da biblioteca de Charleir (excluindo alguns assuntos como política, economia, entre outros, que não deixam a imaginação fluir), Odisseia, Ilíada, mitos, fábulas e contos eram seus preferidos. Se quisessem encontrá-la, nem na casa dever-se-ia ver. Iam direto à biblioteca. Seu pai havia morrido de uma doença rara e estranha, nenhum médico pôde explicar as causas da morte, o que atribuía à sua família uma não muito apreciada fama de azarados. Apesar das dificuldades, a jovem sempre ajudava a mãe quando criança e, certas vezes, sentia compaixão dela. Os olhares dela remoendo imagens do passado e solitária em um quarto, inspiravam este sentimento. Ah, mas mesmo com tamanha imaginação Julliet jamais poderia adivinhar como sua vida mudaria tão repentinamente. Em pouco tempo seu mundo de constância renascentista ganharia algumas pinceladas um tanto mais barrocas. Certo dia, Julliet passeava em seu vilarejo, sem prestar muita atenção nas coisas, quando deparou-se com Cindy, uma pequena garota de cabelos claros como a verdade, mas de olhar estranho, fixo e sem emoções. Ilegível. Ninguém sabia nada sobre sua vida, e nem ousavam perguntar. Ela aparentava ter por volta de seus quatorze anos, mas não se sabia ao certo. Todos em Charleir a viam tão bem quanto Julliet, se não pior. — Uma esquisita. Indigna de qualquer confiança. — Seria a provável resposta que você receberia ao perguntar para qualquer habitante sobre Cindy. 14


Julliet era, provavelmente, a única que não pensava isso, completamente livre de preconceito. Ambas formavam uma dupla quase perfeita. — Olá Julliet como vai? — sua fala desprovida de qualquer emoção. — Feliz, eu presumo. Na véspera de seu aniversário deveria estar... Como todos ficam. — É claro... — disse-lhe observando a movimentação da rua. Subitamente parou, encarou a amiga por alguns segundos e finalmente prosseguiu. — Vou comprar meu presente agora mesmo. Gostaria de vir? — abriu um enorme sorriso. — Economizamos por tanto tempo! Finalmente vou poder comprar meu próprio livro! É um sonho! Cindy aceitou tão animada quanto um poste. Elas se dirigiram até a livraria da vila, um lugar velho e escuro quase abandonado. O dono, Sr. Lorchant, era bem-humorado e falava sem parar quando alguém entrava, tamanha era sua carência. Sua noiva havia morrido e ele era muito solitário. — Bom dia, Sr. Lorchant! — Julliet saudou passando batida pelo homem e correndo direto às prateleiras. — Oi — disse Cindy, seca. — Ah, meninas, é ótimo ver vocês aqui! Hoje em dia ninguém liga mais para livros... Bons tempos eram aqueles que os exemplares eram únicos... Muita gente queria se tornar monge só para poder ver algumas dessas preciosidades. E hoje estão todos abandonados. Não entendo como... — e por aí foi. Elas já haviam se esgueirado sorrateiramente por entre as estantes para fugir da longa e demorada conversa que estava por vir. Após uma procura demorada e bastante seletiva, Julliet, escolhera um livro novo e bonito. Um que sua imaginação sempre almejara ter, daqueles vermelhos de bordas douradas, com um título pedante e tudo o que uma história possa ter. Seus olhos chegavam a cintilar — Acho melhor você ler este... Irá se interessar mais. — Cindy interveio baixando o livro das mãos de Julliet. — Eu garanto... — acrescentou, tentando soar mais persuasiva. 15


Ela mostrou outro exemplar que era o exato oposto daquele que sua amiga escolhera. Capa verde e desbotada, páginas velhas e amareladas com até um pouco de mofo. — Confie em mim, esse livro é muito melhor — Cindy insistiu. — Já o leu? — Julliet ergueu uma das sobrancelhas. — Já. Agora pegue — e tentou enfiar aquele exemplar nas mãos da amiga. Julliet afastou as mãos com um movimento rápido ao mesmo tempo em que dizia: — Mas esse tem uma história tão boa! — choramingou. — Viagens longínquas, criaturas mitológicas e magias esplêndidas! Era tudo que poderia querer para minha vida... — contestou apertando o objeto contra o peito. — Quem avisa amigo é... Não havia uma ponta de ameaça sequer naquela fala — na verdade, não havia uma ponta sequer de alguma coisa — mas Julliet sentiu como se Cindy fosse lhe rogar uma praga se não lhe obedecesse. — Tudo bem, eu levarei, já que insiste tanto — aceitou, tentando disfarçar o medo que aquelas frases de Cindy às vezes lhe causavam. Guardou o lindo objeto na estante com uma pontada de remorso, e levou o livro mofado para o balcão. — O senhor pode embrulhar pra mim, por favor? — pediu ao dono, e assim ele o fez, com muita alegria, tagarelando de como amava seus livros e infinitos outros assuntos. O som das moedas das economias de Julliet batendo na madeira do balcão apertou-lhe o coração. Mataria Cindy, caso a história não fosse boa. A manhã seguinte chegou rapidamente. O sol já caminhava pelo céu quando uma voz animada retumbou no ouvido da menina: — Vamos querida, acorde! — sua mãe, Christine, abria as cortinas alegremente. — Afinal é seu décimo sexto aniversário! 16


A jovem acordou a contragosto resmungando coisas ininteligíveis. A luz do sol que batia em seu quarto era forte e a forçava a ficar com os olhos parcialmente fechados, fato que não contribua para seu bom humor. Julliet desceu as escadas com sua mãe, que lhe havia preparado o primeiro esmerado café da manhã do ano (o segundo era no aniversário da outra), isso porque nenhuma das duas tinha muita fome pela manhã. Mas como aquilo já se tornara uma tradição, e essa tradição custava esforço e economias, jamais recusaria aquela refeição tão especial. E mesmo sem fome, não demorou muito para acabar, tamanha era sua gula: — Estava delicioso, mãe. Obrigada. — agradeceu, acabando de mastigar o último pedaço de pão com queijo em sua boca. As duas mulheres, mãe e filha, saíram da casa e foram direto ao mercado comprar peixe, batatas e algumas frutas para o almoço. Elas passaram o resto da manhã passeando pela aldeia até voltarem para almoçar um suculento peixe com purê de batatas e uvas verdes de sobremesa. Ao fim da refeição, horário que sua mãe ficava mais emotiva, Christine disse enquanto remexia um resto de purê: — Filha, me desculpe, eu queria poder dar um mundo para você... Não apenas um livro, uma biblioteca inteira! — uma pequena lágrima reluzente borrou seus olhos. — Você é uma filha tão boa, sempre alegre e solícita... Eu... — seus olhos caíram, repentinamente, interessados no prato. — Mãe, as únicas coisas que eu poderia querer na minha vida era um bom livro para ler, um bom almoço de aniversário e uma mãe que sempre fica ao meu lado. Nada mais. — Julliet abraçou a mulher, enchendo seu coração de felicidade. — Tudo está em seu perfeito lugar... Agora... Se quiser fazer minha vida melhor, poderia começar me entregando meu presente em vez de insistir em me dar mais tarde. — Jamais! Você sempre se aproveita do almoço para me persuadir não é sua cobrinha traiçoeira! — respondeu Christine 17


com um sorriso, piscando e tocando a ponta do nariz de sua filha que ria alto. Já era de tarde quando sua mãe lhe entregou o embrulho. Julliet abriu o presente e começou a ler perto da janela. Um dos seus maiores prazeres era ler. Ouvir histórias cheias de emoção e seres mágicos a fascinava. Esse hábito a ajudava a fugir do ritmo tão pacato da vila e da tristeza do mundo, no entanto, uma coisa que realmente a deixava incomodada era o barulho enquanto tentava devorar um livro e, naquele momento, lá fora, duas pessoas berravam sobre certa cesta de compras derrubada no chão. Inconformada com aquela ridícula baderna, Julliet saiu de sua confortável e única posição para buscar, enquanto praguejava, outro lugar para prosseguir com sua leitura. Percorreu a casa até chegar a seu quarto, onde, nostálgica, puxou um alçapão no teto, deixando cair uma pequena escada aos pedaços. Sempre que queria um lugar para ler sossegada, Julliet ia para um quarto secreto (o sótão) que pertencera à sua bisavó, “Uma mulher com espírito aventureiro, fora de seu tempo. Vivia dizendo que essa vida era sem graça, insuficiente para ela. Ah, ela era realmente divertida... Assim como você querida! Essas semelhanças familiares me divertem bastante...” Era a caracterização imutável que sua mãe a dava. Julliet se deparou com uma sala inteiramente de madeira. Lá existiam pequeninas estantes de livros, completamente vazias, apenas esperando hospedeiros, uma aconchegante poltrona velha, uma janela redonda com cortinas furadas, uma bela luminária e um grande baú de couro no qual se encontravam antigos objetos de sua bisavó. Mal cabia tudo aquilo na pequena sala. Deixando o corpo cair, se aconchegou na poltrona e começou a ler, completamente relaxada. A história tratava de um reino, invadido pelo mal, por um bando de tiranos que disputavam pelo trono. E eles tinham poderes sobrenaturais, como feiticeiros. Julliet leu uma, duas, três, dez, vinte páginas. Mal estava no começo da história quando, ao virar mais uma folha, se chocou: não havia continuação, apenas dezenas de páginas em branco. A garota não entendia como um 18


livro poderia parar assim, sem ao menos um desfecho, sequer um bom desenvolvimento tinha, porque acabara ali se havia tanto mais para ser lido? Examinando o objeto, curiosa, percebera que na parte de trás de sua capa havia o desenho de um espelho ornamentado com plantas e uma única flor no topo. Iria matar Cindy, existia algo de errado com seu presente! Jurava que aquilo não estava lá antes. Abriu o livro novamente na primeira página a fim de ver se havia outro detalhe antes passado despercebido por seus olhos. Ali, no verso da capa, tinha algo escrito em letras miúdas e estranhas. — Victorine... Victorine... — ela repetia confusa tentando ler o sobrenome da tal moça, estreitando os olhos. — Meu Deus! Bisavó?! Porém, nesse momento, algo maior chamou a atenção da jovem: um brilho esverdeado passava pelas frestas do baú. Com uma mescla de terror e intriga, ela abriu o objeto vagarosamente. As juntas de ferro rangeram, já há muito tempo não possuíam função, e um barulho tomou conta do pequeno espaço. A luz do espelho, o qual emitia o incandescente brilho verde que hipnotizava cada ser que olhasse para ele, agora estava nas trêmulas mãos de Julliet. Ela o observou com medo e ao mesmo tempo com curiosidade. Quando começou a processar seus detalhes mais afinco, percebeu que tratava-se de um interessante objeto de mármore branco que, por incrível que pareça, era bem leve, até demais. Sua borda era minuciosamente esculpida com plantas e folhas, e em seu topo uma soberba e divina flor aberta. Outro detalhe que chamou muito sua atenção foi um símbolo em relevo atrás do objeto: o leão alado, marca de Veneza. Julliet estranhou muito. Como algo de Veneza foi parar no sul da França, justamente em sua casa? Por que aquele espelho era igual ao que havia em seu livro? E o mais importante: como emitia uma luz tão forte? Não tivera sequer tempo para pensar, pois, naquele momento, começaram a sair do objeto faíscas e minúsculos raios verdes percorrendo-lhe as bordas. Ela sentiu um 19


forte misto de calor, e algo que se assemelha à eletricidade percorrer suas veias. Seu corpo ficou mais leve e ela sentiu o poder que emanava do espelho. Era incrível. Uma experiência incrivelmente eterna, pelo tempo que durou. Por alguns segundos, ficou em estado de choque, até finalmente recuperar os sentidos. Estava horrorizada e maravilhada ao mesmo tempo, porém, ambas as sensações convergiam rapidamente para o medo. Julliet desceu as escadas rapidamente com o misterioso espelho e livro na mão, centenas de milhares de perguntas foram formuladas em sua mente até que encontrasse sua mãe na cozinha, ansiosa para achar respostas. — Mãe! Veja o que eu encontrei! — Ela berrava olhando para os lados, na esperança de encontrar Christine. — Eu peguei esse espelho em um baú no sótão, raios verdes começaram a voar para todos os lados e... — Ora — A mulher surgiu repentinamente em um vão de porta, escondida parcialmente pela parede e segurando um pano. — Minha filha, essas coisas pertenceram à sua bisavó, você sabe. Esse era seu livro preferido e esse, seu espelho de mão. Alguns objetos de estimação querida, só isso... Agora, acho que já estamos bem de leitura por hoje... — Christine tinha sempre essa estranha reação contra a leitura, como se a filha algum dia fosse ficar louca de tanto ler. — Mas mãe... — replicou com certa raiva... — Julliet, chega! — sua mãe disse assertivamente levando as mãos à cintura. A jovem subiu para o seu quarto a passos pesados percebendo que não conseguiria vencer. E passou o resto da noite pensando naquilo tudo que tinha acontecido, até que, exausta, acabou adormecendo. No dia seguinte, ela decidiu deixar de lado os últimos e estranhos acontecimentos para que sua mente descansasse. Como sempre, tomou seu café da manhã a contragosto e foi para a rua. Pouco tempo passou até que voltasse para casa. Estava completamente curiosa, determinada a descobrir o que ocorrera 20


dentro daquele sótão, e se havia uma coisa que Julliet não tinha o mínimo controle, era a própria curiosidade. Fechou a porta e avançou para o livro e o espelho em cima da mesa. Julliet lia, lia e lia cada vez mais o curioso livro prestando atenção em cada sílaba, cada palavra, parágrafo e página, mas nada encontrara. No dia seguinte, fez as mesmas coisas de sempre, tudo o que havia para se fazer em Charleir. Sua monótona rotina a irritava, mas agora levava o espelho e o livro junto de si para qualquer lugar. Chegando em casa depois do passeio, sentou-se à mesa e começou a ler o presente pela enésima vez enquanto Christine preparava o jantar. Algum tempo havia se passado até que elas ouviram um barulho estranho, um barulho que soava como pancadas em uma porta, e, infelizmente, era isso que estava acontecendo. Eram estrondos, cada batida mais forte que a anterior. — Mãe — a voz dela saiu desregulada de medo. — O que é isso? — Não sei minha filha... Não sei... Mas não é bom. Corra para o quarto, fiquemos lá. Se for alguém conhecido, irá perguntar por nós. Ela podia sentir o desespero crescendo na voz de sua mãe. Julliet pegou uma pequena bolsa, jogou o espelho nela e, apavorada, subiu as escadas correndo e levando a mãe para seu quarto. Ela não sabia por que estava tão desesperada, mas o pressentimento que tinha era tão terrível que não a deixava raciocinar. Sua mãe indicou para que se escondesse em algum lugar enquanto entrava no armário dizendo-lhe: — Não faça nenhum barulho. Julliet se jogou embaixo da cama com a maior rapidez que conseguiu enquanto tentava controlar a respiração ofegante. As batidas continuavam e, poucos segundos depois, perceberam que, com um baque mais forte, a porta havia sido arrombada. Ouviram pesados passos vasculhando a casa e subindo as escadas. Agora estavam em frente à porta do quarto. Com outro 21


baque irromperam pela passagem. Um dos seres foi em direção ao armário, enquanto o outro saqueava o criado-mudo. Finalmente, Julliet ouvira o berro de sua mãe e, furiosamente assustada, saiu da cama berrando sem pensar: — Larguem-na! Ela foi em direção aos soldados de armadura que seguravam sua mãe. Deu um soco na cabeça de um, fazendo com que caísse no chão com um barulho ensurdecedor de metal batendo em madeira. O terror subiu à cabeça da jovem quando viu que não havia nada dentro do elmo, a armadura estava oca. — Eles não! — Christine berrou em pânico. O soldado pegou a própria cabeça e levou a mulher para fora da casa enquanto o outro jogava Julliet contra a parede. — Não! Voltem aqui, devolvam minha mãe! — bradava a menina entre lágrimas de medo e dor. Julliet desceu as escadas correndo, uma vez que não havia sinal dos monstros no segundo andar, e quando chegou ao outro piso pôde ouvir barulhos peculiares. Quando olhou pelo vidro da janela, passou em seus olhos a imagem das armaduras jogando sua mãe em uma carruagem maltratada. A adolescente correu para o veículo silenciosamente, abriu seu pequeno compartimento para bagagens, e se jogou lá dentro antes que partisse. Não demorou muito para sentir que estava se movendo. Julliet ficou encolhida no estranho meio de locomoção apenas esperando que ele parasse. O tempo se passou, sempre sem diminuir a tensão que ela sentia, porém, cansando-a cada vez mais, de modo que adormecera. Quando o veículo já tinha andado vários quilômetros, um grande solavanco a fez acordar. Quando abriu os olhos, percorreu o seu pequeno esconderijo assustada, nada... Exceto Cindy. — Cindy?! — bradou sussurrante, uma Julliet assustada. — Como você entrou aqui? Eles também invadiram sua casa? Te machucaram? — É uma longa história... 22


Assim continuou a viagem, as duas de vez em quando conversavam sobre o que poderia estar acontecendo e o que fariam com elas. Era muito frio ali naquele pequenino local onde mal dava para esticarem as pernas e, além do mais, o escuro amedrontava Julliet. Algumas horas já se passaram e as condições dentro do porta-malas já eram insuportáveis quando mais um solavanco fez a adrenalina tomar conta. Por fim a carruagem deu uma parada brusca, haviam estacionado em frente a uma enorme ponte. Julliet ouviu as armaduras abrindo a porta e arrastando alguém, pensou que fosse sua mãe e saiu correndo cheia de esperança, confiante de que poderia fazer algo a respeito da situação. — Parem! Vocês não farão nada com ela! Os soldados olharam para a garota, soltaram um abafado riso de desdém e um deles correu em sua direção, desembainhando uma espada afiada que refletia frieza, dor e a luz do luar.

23


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.