Degusta Caçada nas Trevas

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Não estão atrás de poder material.

^ Cronicas Enoquianas

O foco da guerra é a Magia.

Caçada nas trevas

O mundo está em guerra velada.

A mais valiosa moeda de troca, o mais poderoso trunfo e a verdadeira arma da ganância, é a Energia capaz de manipular a realidade.

Solitário, Ariel sobrevive com a ajuda de seu dom em um mundo que está mergulhado em guerras por controle e poder.

Até quando seremos peões nesse jogo de xadrez espiritual? Nado Lima

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O livro conta a história de Ariel, um jovem sofrido que tenta escapar da implacável perseguição de sociedades secretas que desejam se aproveitar de sua habilidade de ver os mundos invisíveis. Esse dom lhe foi dado pelos pais, que descobriram uma forma de conceder às pessoas a habilidade de “enxergar” as energias ocultas que preenchem o mundo, mas acabaram mortos por não revelarem seu segredo.

Religiões, seitas e sociedades secretas disputam esse poder em todos os mundos.

978-85-98792-26-2

Nado Lima

A trama apresenta uma ferrenha luta oculta aos olhos da sociedade, em que religiões, seitas e sociedades secretas buscam acumular forças mágicas para que seus líderes se tornem deuses vivos.




As descobertas de um homem caรงado por causa de suas habilidades, imerso em uma trama global por poderes ocultos.

Nado Lima


Copyright © 2012 by Nado Lima Todos os direitos desta edição reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida por qualquer processo eletrônico ou mecânico, fotocopiada ou gravada sem autorização expressa do autor.

Todos os direitos reservados ao autor Biblioteca Nacional – EDA Registro Nº 418.910

ISBN: 978-85-98792-26-2

Revisão: Bramasole Editora Ltda. Cássia Pires Camargo Aped - Apoio e Produção Editora Ltda. Editoração eletrônica e capa: Nado Lima

Aped - Apoio & Produção Editora Ltda. Rua Sylvio da Rocha Pollis, 201 - bl. 04 - 1106 Barra da Tijuca - Rio de Janeiro - RJ - 22793-395 Tel.: (21) 3183-0849/ 2498-8483 www.apededitora.com.br aped@wnetrj.com.br


Dedicatória

Gostaria de dedicar essa obra à minha mãe e à minha irmã, que são mulheres de grande importância em minha vida. Dedicar ao meu irmão que está morando longe. Dedicar ao meu amigo, Rodrigo Ottero, como incentivo a ele não desistir do ato de escrever. Aos meus amigos, Márcio Luciano e Eduardo Ribas, que não deixem de lutar por suas vidas e não aceitem pouco como recompensa. Dedico carinhosamente aos amigos Hermínio Figueiredo, Carlos Dantas, Valflan Carvalho, Walace Antônio, Elaine Pereira, aos quais amo, mas tenho estado um pouco afastado. E dedico também grandemente a Jorge Ponte, que vem me acompanhando nessa complicada trajetória.



Agradecimentos

Eu gostaria de agradecer a todas as pessoas que me ajudaram a terminar esse trabalho. Agradeço a Rodrigo Ottero pela longa jornada que tivemos por esses caminhos obscuros que me levaram a escrever esse romance. Agradeço a Juka Goulart pelo incentivo e pelos toques sobre a maneira como eu escrevo. Agradeço a Jorge Ponte pela importante ajuda e por ter feito o desenho da capa para a arte final. E agradeço principalmente ao escritor Roberto Laaf pelo seu fundamental apoio, pelo seu trabalho em prol da obra e pela ajuda com sua experiência de publicação, sem o qual esta obra não estaria terminada.



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Prólogo da Concepção Hera, como era chamada ali, estava quase totalmente fora de si. Mantinha pouco da consciência ainda funcionando. Era como se estivesse drogada, não sentia o corpo e a visão estava turva. Podia sentir o poder correr por seu corpo como o vento acariciando a pele nua. As energias, ao seu comando, percorriam-na por dentro e por fora. Sua parca consciência as mantinham agrupadas e organizadas, enquanto o transe lhe dava mais poder. Ela seria mãe do homem-deus. Meses de preparação, anos de treinamento, uma década de estudos dos tratados de J. Dee, famoso mago e astrólogo da Rainha Elizabeth I, reunia-os naquela hora sagrada. Utilizavam a magia enochiana, a língua dos anjos descoberta por Dee e o vidente Edward Kelly, para convocar as forças necessárias à conclusão de seu intento. Era tudo extremamente arriscado e ninguém sabia quais seriam as consequências daquele experimento tão visionário. Seria o grande divisor de águas em todo o mundo da magia e os colocaria acima das guerras de poder. Era chegada a hora. Ansiosamente, ela esperava o momento em pé na frente de uma grande entrada fechada por duas pesadas portas muito bem esculpidas em carvalho. Podia sentir o cheiro da madeira misturada com o incenso de rosa musgosa que vinha da sala à sua frente. Então, parou por alguns instantes para sentir bem aquele odor que lhe dava tanto prazer. Sentia-se como se estivesse dentro da água, sendo jogada de um lado para o outro pela maré. As portas se abriram. A brisa perfumada passou por ela como um orgasmo. Seu corpo nu pedia pelos anseios dos prazeres carnais. Um estranho vento circundava o seu corpo e aquilo era como as carícias de um amante. Seus lábios contraíam-se e sua vulva úmida clamava pelo amor. Mas hoje o amor seria para aqueles que nunca o sentiram, era a oferenda do homem aos deuses.


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A bruxuleante luz amarelada das velas que iluminavam o local ajudava todos a entrarem no estado correto. Havia uma brisa que ia e vinha (já que o salão era fechado e ficava no subsolo), alcançando todo o lugar e o deixava ligeiramente frio. As grandes portas abriam no meio de um grande templo, onde estavam pessoas vestidas com mantos e fitas laranja sobre seus ombros, entoando cânticos enochianos, que penetravam a mente e a alma. Acima do portal por onde passava havia um homem nu usando uma máscara branca que entoava outros cânticos de proteção para o grande salão perfeitamente quadrado. Hera andava lentamente em direção ao altar no centro do salão, onde seria realizada a maior operação de sua ordem até aquele momento. À sua frente, no canto oposto, um homem nu vinha em sua direção atravessando outro portal idêntico ao que passara. Seu pênis ereto, seus loiros cabelos balançando ao vento e um par de olhos azuis com uma expressão inumana aumentavam a sua excitação. Os quatro cantos do templo eram iguais, mas acima do portal à sua frente havia um outro homem nu, usando uma máscara de águia. O seu consorte, que andava lentamente, estava possuído por algo que ela conhecia, e não era deste mundo. Deitou-se sobre o altar, abaixo dos olhos de uma dezena de magos que a circundavam naquele grande ritual. Abriu as pernas como uma oferenda aos deuses. Segurava a ansiedade de seu espírito que desejava desesperadamente pelo toque. Sua pele estava quente a ponto do frio templo não a incomodar. À sua direita e à sua esquerda, acima das duas grandes escadarias laterais, estavam mais dois homens nus que fechavam o quadrado de simetria, cada um com uma máscara de touro e leão, respectivamente. Os quatro mascarados cantavam em uníssono seus mágicos cânticos de proteção. Muitos desenhos mágicos se espalhavam por aquele inigualável templo feito na obscuridade. Todos voltados para o grande objetivo. Quando ele atravessou o círculo marrom de sangue coagulado que circundava o altar, ela sentiu o poder da criatura aumentar enormemente, mas não tinha volta agora. Se parasse, todos ali


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correriam risco de vida, sanidade ou algo pior. Mas Hera não tinha nenhuma intenção de parar nada, ansiava por aquilo, como o lobo por carne fresca. Ele se aproximou dela e olhou aquele corpo que reclamava seu toque. Sua mão tocou a pele quente e macia da coxa de Hera. Era um anjo de Enoch que sentia pela primeira vez os prazeres da carne. Ventos começaram a soprar poeira e cinzas de incenso para todos os lados como em resposta. Mordeu a parte interna da coxa como se saboreasse uma suculenta maçã. Hera se contorceu de prazer e gritou de tesão. Seu próprio poder cresceu e aumentou, assim tinha que ser, pois germinaria uma divindade. Seus gritos e gemidos atingiam como flechas os espíritos de todos que ali estavam presentes, colocando todos em transe como num grande orgasmo naquele ritual orgiástico. Seus órgãos genitais se umedeciam e excitavam, e o poder ali no templo crescia e se expandia até ninguém mais pôde sentir seus próprios corpos. Suas mentes agora estavam livres do tempo e do espaço. A boca de seu consorte lambeu e sugou a vagina como uma criança que experimenta o manjar dos deuses pela primeira vez. Ele começou a tremer como um adolescente em seu primeiro contato. Ela respondeu-lhe com pequenos espasmos que eletrificavam seu corpo. Ele foi subindo pelo seu corpo em direção ao seio. Os ventos agora ficaram mais fortes e brilhantes como se carregassem uma poeira cor de néon azul. As velas se apagaram. O lugar agora era iluminado somente por uma luminosidade espectral. Todos mantinham a concentração apesar de perplexos com a grandiosidade dos efeitos que estavam acontecendo. Em tempo algum, nenhum deles tinha visto tão grandiosa exibição de poder real e concreto no mundo físico. Ele mordeu o seio de Hera até o ponto de uma minúscula gota de sangue escorrer e sujar o seu lábio. Subiu até a boca e a olhou nos olhos profundamente; penetrou seu membro nela na consumação de seu prazer e desejo. Os gritos de Hera agora eram a expressão máxima do gozo e poder. Os ventos agora se tornaram violentos. Todos tentavam ao máximo manter a concentração e a posição em que estavam. Qualquer um que fraquejasse poderia


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colocar tudo a perder; era a vida e sanidade de todos que estava em jogo ali. Um vento pesado rasteiro e frio fazia linhas de gelo nas partes baixas do chão do templo. Os magos em pé nas escadas começaram a se segurar uns nos outros ou da forma como podiam. Ninguém estava esperando que efeitos físicos pudessem acontecer e muito menos naquela magnitude. Mas a cada violenta estocada dos amantes os ventos se intensificavam. Os quatro magos nus nos topos das escadarias resistiam ao frio que se formava, valendo-se da força de suas treinadas mentes. A situação começava a ficar mais complicada. Alguns magos já não conseguiam ficar em pé sem se segurarem em algo. Todos ali sabiam que aquela quebra na formação poderia ser muito perigosa. Não temiam somente por suas vidas, pois havia coisas piores que poderiam acontecer com eles. Aos poucos a formação foi sendo quebrada e os riscos aumentavam. Hera começou a ver que os frisos de gelo romperam o círculo. Os magos ali presentes não mais podiam ajudá-la. Uma mulher sempre pode dominar o homem em um ritual de magia sexual. Mas será que ela, mesmo com todo o seu grande poder, conseguiria subjugar um deus? Os olhos azuis agora eram aterradores, quase fazendo com que perdesse a concentração. Se isso acontecesse, era certo de ser destruída pelo desejo descomunal daquela criatura que agora habitava o corpo de Minus. Começou a perceber quão tola ela fora de achar que poderia fazer aquilo impunemente. De segurar dentro de si o desejo de uma força daquela magnitude. Não tinha mais como voltar atrás. Ela tinha que prosseguir até o final e esperar que tudo desse certo. Estava só agora; os quatro sacerdotes tentavam se proteger da grande ventania que ali soprava em resposta ao gozo daquele ser angélico. Era uma entidade do ar que nunca tinha experimentado o poder do sexo, isso era um dom apenas dos mortais. Os poderes ali circulantes aumentavam a cada instante. Hera, jogada entre o transe mágico, o prazer incalculável e o medo


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aterrador perdia as forças aos poucos. Não tinha mais alternativas: ou ia morrer ou ia ficar louca, mas cumpriria o seu papel com honra. Era cada vez mais difícil manter a concentração. No momento que falhasse ela seria destroçada pelo imenso poder que a invadia. Sua alma aos poucos também era invadida por aquele ser que não mais se contentava com o espírito de Minus, que agora não mais habitava o seu corpo. Torcia ela para que também sua alma não tivesse sido destruída no processo. Podia sentir o demônio respirando o prazer junto com ela, em seu corpo, em seu sexo; como se quisesse sentir o mesmo em ambos os lados. A criatura não sabia o que era aquilo e agora queria tudo o que pudesse, sem saber que aquela força descomunal poderia destruí-la também. Já estava pronta para ser sacrificada naquele altar aos deuses quando sentiu algo a fortalecendo novamente. Havia uma esperança, alguém tinha retomado algum controle. Era Gopala, que vestia uma máscara de touro, tinha conseguido se ancorar no canto da sala de forma que os ventos não o perturbassem. Aos poucos os outros sacerdotes fizeram o mesmo. Era a única esperança para Hera. Sua consciência voltou um pouco, mas era difícil mantêla. Uma dor lancinante começou a cortar seu corpo. A criatura estava prestes a sentir pela primeira vez o gozo. Era o momento mais crítico. Se isso acontecesse e ela sobrevivesse, estariam todos salvos. Usou todos os anos de treinamento para suportar a dor que a rasgava da vulva à testa. Se não fosse tão bem treinada já teria desmaiado com tamanho sofrimento. Por um pequeno instante tudo pareceu parar. O tempo parecia estar preso naquele ínfimo segundo, que parecia durar horas. Sua respiração parecia ter parado junto com seu coração. Sua mente não era mais sua, era todo o universo, vagando por dimensões tortuosas. Ela sabia que era a calmaria antes da tempestade. Uma onda de dor e prazer impronunciáveis começou a subir de sua vulva e ânus. Não sabia se era lento ou rápido, pois o tempo não mais obedecia a sua consciência. Aquele era o momento final, era o gozo dos deuses. A grande concepção do homem-Deus


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estava no limiar de acontecer. Sentiu seu útero se preencher de algo frio como o gelo que a queimava. Nesse instante as mentes de todos os que estavam ali se apagaram como se seus cérebros tivessem sido removidos de seus crânios. Era o grande pulso de ar em todos os planos. Uma onda de choque saída do altar atingiu a todos fortemente. Arremessou para trás todos aqueles que não estavam muito bem presos. Arrancou e arremessou tudo o que podia, que acabava atingindo alguém em seu curso. A força do ar era como uma parede de pedra sendo arremessada contra todos. Sangue, barulho de ossos quebrando, barulho de coisas partindo e pessoas sendo arremessadas para trás. O orgasmo divino subiu aterradoramente até sua testa possuindo-a. Hera tentava desesperadamente manter o controle, mas aquilo era além de qualquer força além de qualquer treinamento. Sua força de vontade treinada como o aço não foi suficiente e ela perdeu a consciência naquele instante. O grande ritual estava terminado. Era o fim daquele evento tão arriscado. Um homem, que chamavam de Zeus, olhava o cenário que parecia de guerra enquanto segurava o próprio braço quebrado. Alguns vivos, alguns mortos, muitos precisando de atendimento médico urgente. Muitos não voltariam à consciência nunca mais, pois suas mentes havian sido lavadas. — Afrodite, ligue rapidamente para nossos contatos com o hospital e diga o que aconteceu. Precisamos de atendimento médico urgente. — Isso foi uma catástrofe, mas pode ser que tenhamos conseguido o nosso intuito. Hera ainda está viva. Só não sei se a mente dela ainda existe. — Vamos nos preocupar com isso mais tarde. Mas espero realmente que tenhamos conseguido o que queríamos e perseguimos com todos esses anos de estudo e preparação. Todo o nosso sacrifício não pode ter sido em vão.


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Primeira visita Mais um dia terminava e um sentimento de solidão lhe assolava. O que antes tinha sido uma maldição do destino agora era uma escolha própria. Tinha medo de trabalhar com outros magos, pois poderia ser traído, mas também tinha medo de conviver com pessoas comuns, pois iriam se assustar com ele. Essa condição lhe confinava em um eterno isolamento e lhe garantia uma tristeza que lhe apertava o peito constantemente. O que mais lhe custava não era a sua existência anômala, mas ser caçado como um prêmio, um animal raro, um tesouro. A noite estava mais gelada do que de costume com uma brisa fria que entrava pela janela e caía sobre a cama. Onde quer que estivesse sempre colocava a cama embaixo da janela para poder ver as estrelas antes de dormir. De alguma forma aquilo lhe trazia prazer, confortava e aquecia um pouco o seu coração à noite, que era a hora mais triste. Tinha nascido para ser grande, mas no final das contas ele não era nada. Um pária, um leproso entre os homens. Não acreditava em predestinação, apesar dela sempre bater na sua porta. Era um presente deixado por seus pais que se transformara em uma maldição, mas não conseguia odiá-los por isso. Eles não sabiam o que estavam fazendo. Quiseram fazer o melhor que podiam, mas o tiro saiu pela culatra. E pagaram com a vida por isso. Deitou-se olhando para o céu para contemplar um pouco as estrelas. Gostava de ficar meditando antes de dormir, assim conseguia acalmar o espírito. Puxou um lençol para cobrir o corpo e proteger-se da brisa, porque não queria fechar a janela. Sentiu um aperto no coração seguido de uma lágrima que caiu enquanto tentava dormir. Já não entendia mais os seus sentimentos; já não sabia mais que dor era aquela que pressionava o seu peito.


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Seus cabelos lisos e negros caiam pelo rosto enquanto os seus olhos escuros como obsidiana refletiam a luz da lua cheia que entrava pela janela. Os cílios eram tão densos que pareciam uma linha negra desenhada na pele branca. Limpou a mente e deixou que os sentimentos confusos caminhassem livremente enquanto tentava dormir, mas demorou um pouco até pegar no sono. Começou a ter um sonho estranho. Sentia-se voando livremente como um pássaro por entre as nuvens. Repentinamente raízes saíram do chão logo abaixo e enrolaram-se em seu corpo o amarrando completamente e o puxando para baixo. Uma fenda no chão se abriu de onde as raízes partiram e para onde ele estava sendo tragado agora. Mal chegou ao chão e a fenda se fechou sobre ele o enterrando vivo. O interior era uma câmara escura que parecia feita de carne como um útero materno. A sensação de pânico o fez despertar a consciência dentro do sonho, mas não quis acordar, queria ver o que ia acontecer, pois tinha algo de errado naquele sonho — não parecia ser seu. Afastou a consciência para ver os fatos de fora. Era mesmo um útero. E uma figura metade homem metade águia, nu, com uma espada na mão é quem estava lá dentro. Algo estranho estava acontecendo, pois sentia que aquela criatura tinha sentimentos parecidos com os seus. Certa hora o útero se abre e uma gigantesca mão o arrasta para fora e muito sangue jorra para todos os lados. Palavras em uma língua estranha eram ganidas pelo ser que inutilmente se esforçava para não sair. O sonho se desfez e Ariel acordou extremamente desconfortável. Uma agonia lhe pesava o peito e um frio percorria a sua coluna. Não era um sonho, era uma comunicação telepática de algum tipo que ele nunca tinha sentido. Era comum a magos projetar imagens em comunicações, mas nada se comparava àquilo. A comunicação mágica era muito sutil, mas aquilo era quase um universo paralelo. Sua consciência em peso tinha sido transportada para aquela imagem.


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Ao abrir os olhos pôde ver toda a energia utilizada ainda pairando pelo quarto. Entrou em pânico, toda aquela energia poderia chamar a atenção de seus inimigos, e ele não estava preparado para um ataque àquela hora. Levantou apressadamente e fez a limpeza do ambiente para retirar toda aquela força que impregnava o quarto. Se fosse localizado teria de travar uma batalha e estava despreparado, não estava totalmente recuperado da última. Ficou totalmente intrigado com o acontecimento não conseguindo dormir novamente. Tinha que descobrir quem ou o que tinha feito aquele pedido de socorro. Ele não tinha um espírito muito altruísta, mas se reconhecera de alguma maneira naquela comunicação o que deve ter facilitado a abertura do canal. A agonia e o desespero tinham desaparecido junto com o sonho. Não conseguia imaginar que atrocidades podem ter acontecido para alguém ter tanto sofrimento guardado. Sem perceber, tinha esquecido um pouco os seus problemas. Talvez ajudando quem lhe pedia socorro, estaria se ajudando de alguma forma. Resolveu fechar a janela. O quarto estava gelado. Parecia que o inverno do sul tinha chegado ao Rio de Janeiro e se estabelecido dentro da sua casa. O cheiro de mofo que saía do armário envelhecido e úmido tinha aumentado e se espalhado por todos os cantos. Ariel dormia em um lugar totalmente improvisado. Era uma construção feita no quintal do seu Humberto, um homem simples que morava nos arredores do Estácio, bairro pobre, mas perto do centro da cidade. Consistia de um quarto quadrado de quatro paredes de cinco metros cada. O chão era de cimento e a pintura já descascando mofada pela umidade. Havia um pequeno banheiro com um chuveiro elétrico cujos fios eram amarrados com fita isolante, e uma pequena cozinha improvisada em um corredor de saída, onde estavam uma antiga geladeira azul de maçaneta em forma de gancho


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e um fogareiro de duas bocas em cima de uma pequena pia que mal cabia o pequeno enxugador de pratos. O lugar era bom para os seus objetivos, pois não havia nenhum contrato e nenhum registro, tudo era de boca com o senhor Humberto, um homem já idoso e que não recebia muitos familiares. A porta de saída dava para uma ruela não muito frequentada. Quanto menos pessoas o vissem melhor. Quanto mais pobres elas forem, menor a chance dele ser reconhecido, pois era com os ricos e bem apessoados que tinha que se preocupar. Não se incomodava com a pobreza apesar de ter vivido toda a infância no luxo, mas sua vida posterior foi uma total miséria. Não tinha feito votos de pobreza, pois não acreditava nisso, mas essa condição o fazia ser quase imperceptível. Aprendera a não confiar em ninguém e era melhor assim. Fora traído diversas vezes no passado. Resolveu não esperar o dia amanhecer para sair de casa, pois faltavam muitas horas para isso. Já tinha perdido as esperanças de conseguir voltar a dormir. Colocou uma blusa de manga e uma calça jeans. Ao abrir a porta percebeu que somente dentro da sua casa estava frio, que a temperatura externa estava bem mais quente, forçando-o a colocar uma blusa mais apropriada. Logo ao sair, percebeu que poderia seguir o rastro da energia, que lhe era visível. Seria difícil ou impossível para qualquer pessoa no mundo seguir aquela trilha. Mas para ele era como seguir uma trilha de néon pela cidade. Era um brilho azulado, meio frio e acompanhado de uma aura de pesar. Foi limpando aquelas marcas, pois apesar de nenhum humano poder segui-lo, existiam entidades que eram capazes, e que poderiam ser utilizadas para isso por quem pudesse comandá-las ou barganhar com elas. Foi caminhando por várias ruas por dentro da cidade em direção ao centro. Foi andando com muita cautela — ser abordado por bandidos não seria muito útil para ele porque o forçaria a gastar o precioso poder que estava guardando tão arduamente. O


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cenário era de prédios antigos e mal conservados, mendigos dormindo nas ruas. Um cheiro de urina em vários lugares por onde passava. Sujeira e pobreza eram a marca daquela região. Ariel pôde perceber um homem sentado no chão fumando em um canto deixando um cheiro forte de maconha no ar. Percebeu que a aura dele estava muito estranha, mas provavelmente era um efeito da droga que alterara os seus padrões mentais. Podia ver outras coisas que viviam naquele ambiente decadente. Invisíveis aos olhos humanos, os diversos seres que se alimentavam das forças latentes do local ou das energias deixadas por humanos. Algumas sobreviviam vampirizando pessoas desprotegidas e de frequência baixa. Chegou a um prédio do governo, de arquitetura característica da época do Brasil Império, na Rua Primeiro de Março. A construção era toda feita com grandes blocos de pedra, acinzentados pela poeira negra do asfalto e da poluição dos carros. Era o Museu do Tribunal de Justiça que ainda estava plena reforma da fechada, com andaimes montados e cortinas de proteção. Poderia entrar durante o dia para averiguar o terreno, estava muito ansioso para saber o que havia lá dentro. Resolveu dar uma volta no prédio para tentar descobrir o que pudesse. Andando na direção contrária aos carros sob a calçada de pedra suja e mal conservada, que somente resistia por causa da qualidade do material. Os grandes blocos de pedra vindos de Portugal tinham uma energia diferente dos outros objetos dali. Papel amassado, pontas de cigarro e lixo completavam o cenário junto com as sombras e larvas astrais que rastejavam pelos cantos em busca de sentimentos e pensamentos degenerados. Viu uma coisa que o interessou. Há escombros de um antigo hotel que desabou há anos, no outro lado da rua. Além dos escombros existiam fortes energias permeando toda aquela área. Eram fluxos com características poderosos marcados com um grande componente erótico. Certamente não era somente de origem sexual, para ser tão forte assim era porque magias poderosas tinham sido executadas naquela área.


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O desabamento do prédio poderia ter alguma relação com todo aquele poder estagnado. Resolveu capturar toda aquela força para ele próprio, convertendo tudo em energia pura, o que era extremamente exaustivo. Anos de treinamento com o mestre Hamasaki deram a ele essa habilidade. Ao terminar o trabalho, que tinha levado algum tempo, o local tinha ficado magicamente estéril. Ainda podia ver as entidades indo embora após a limpeza, pois o lugar não mais atraía a atenção do astral por falta de alimento. Mesmo com a prática aquelas energias traziam sensações estranhas. Prazer, medo, inspiração, solidão. Várias sensações juntas se alternando o que fazia todo o processo um trabalho nada indolor. Tinha ficado cansado depois de tanto esforço, resolvendo ir descansar. Ao caminhar para casa, viu um panfleto no chão. Era da Igreja Universal, indicando que haveria uma congregação na Quinta da Boa Vista. Certamente haveria uma multidão de fanáticos liberando energias de suas crenças. As pessoas costumavam embebedar as suas mentes até quase atingir um estado de transe, o que liberava muito poder. Mas dessa vez ele estaria lá para tirar algum proveito.


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