Lucas Dilacerda Rodrigo Lopes (Orgs.)
imaginação e memória na arte contemporânea
Lucas Dilacerda Rodrigo Lopes (Orgs.)
imaginação e memória na arte contemporânea
FORTALEZA-CE 1ª EDIÇÃO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Séfora de Menezes Oliveira - Bibliotecária - CRB3 1197 I31
Imaginação e memória na arte contemporânea / Lucas Dilacerda; Rodrigo Lopes. (orgs.). - Fortaleza: IDM, 2021. 96p. : il. color. ; 11MB. [Formato digital] ISBN 978-65-993753-0-9 1. Arte contemporânea brasileira. 2. Memória. 3. Educação. 4. Filosofia. I. Dilacerda, Lucas; Lopes, Rodrigo. CDD 700.981
FICHA TÉCNICA
EQUIPE MAC DRAGÃO Cecília Bedê Chico Cavalcante Cris Soares Fernando Xavier Pedro Savir Rafael Escócio Séfora Menezes Socorro Leite TEXTOS Equipe MAC Dragão Lucas Dilacerda Rodrigo Lopes ORGANIZAÇÃO Lucas Dilacerda Rodrigo Lopes EDITORAÇÃO Lucas Dilacerda PROJETO GRÁFICO Rodrigo Lopes REVISÃO Wesley Viana
SUMÁRIO
Reverberações sobre imaginação e memória Equipe MAC Dragão
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Como imaginar o inimaginável? Lucas Dilacerda
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Como atravessar os abismos do tempo? Rodrigo Lopes
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Ka Jorge Silvestre Érica Vieira Levy Mel Andrade Lucas Dilacerda Carolina Vieira Rhachel Martins
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Caie Prado Júnior Foster Rodrigo Lopes Aires Levi Henrique Braga Vicente Jully Mathilde Ruth Aragão
64 66 68 70 74 78 80 84 86 90
REVERBERAÇÕES SOBRE IMAGINAÇÃO E MEMÓRIA Equipe MAC Dragão
O ano de 2020 foi, para nós, um ano de muita reviravolta e resiliência. O MAC Dragão, além de viver uma paralisação para reformas estruturais desde o início do ano, teve que restringir suas atividades ao plano virtual por conta da pandemia do novo Coronavírus, que atingiu todo o planeta. Em plena mudança de gestão, deparamo-nos com essa situação inusitada: realizar de forma virtual as ações museológicas e de formação, pensadas inicialmente para um plano do contato presencial. Olhamos para o nosso planejamento, tentando imaginar o transporte dessas ações para o meio
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digital, e o que aconteceu a partir daí foi algo surpreendente. Sim, todo o mundo teve que se reinventar, mas, para além disso, descobrimos possibilidades que já estavam ali, latentes e necessárias, que nos aproximaram de pessoas e de espaços outros e que, acima de tudo, nos fizeram (re)pensar as estruturas oficiais do acolhimento para ações artísticas e educativas. Pensamos em várias frentes de ações virtuais, nas quais as nossas plataformas de internet seriam espaços onde compartilharíamos nossos acervos, o histórico das nossas exposições, enfim, espaços de atuação para artistas, educadores, trabalhadores da arte e suas pesquisas, apresentando assim planos e realizações internos, que acontecem hoje. No dia 30 de junho, realizamos um encontro no formato “Live” intitulado: Arte Bicha e memória anticolonial, com as artistas e arte-educadoras Rodrigo Lopes e Pedra Silva, e mediado pelo
artista e filósofo Lucas Dilacerda. O evento foi transmitido ao vivo pelo canal do Centro Dragão do Mar, no YouTube. Após esse encontro, que foi muito forte e excitante para quem participou, surge o desejo de promover o aprofundamento do debate e de enfatizar a importância das experiências compartilhadas, além da urgência de tratarmos sobre a relação entre arte e memória, ancestralidade, raça, território, identidades e a força da criação para a desconstrução e reconstrução de realidades. Foi assim que surgiu o Seminário de Pesquisa Imaginação e Memória na Arte Contemporânea, organizado pelos artistas Lucas e Rodrigo, e cuja proposta imersiva em obras, teorias, textos críticos, artistas e experiências expositivas serviria como pontos de partida e de direção do olhar para pensarmos as diversas camadas às quais a experiência artística pode nos levar: a política, o corpo, a memória e a imaginação. Foram cinco dias de
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intensos encontros com um grupo formado por 25 participantes, vindos de diversos campos de atuação, todes em busca de ativar algo novo em sua forma de fazer/pensar/criar/entender seus cotidianos e o mundo. Ao nascer, já estamos criando memória e, através da imagin+ação, nos tornamos agentes no mundo. Durante o seminário, passeamos por questões da história humana, para entender onde acontecem os embustes, os apagamentos, as invisibilidades e as crises que impossibilitam a imaginação — que realiza e produz algo — de se manter em nosso cotidiano. Tivemos a imaginação sequestrada. O que nos joga no limbo da memória nostálgica e da imaginação ligada ao sonho irrealizável? Como a arte e os artistas formam e deformam esse campo de luta das identidades? Guiados pelas querides professoras, foi assim que ouvimos e falamos e viajamos longe, por estradas complexas e carregadas de impossibilidades, para
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“Tivemos a imaginação sequestrada. O que nos joga no limbo da memória nostálgica e da imaginação ligada ao sonho irrealizável?”
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assim enxergarmos lugares possíveis. No último dia, fomos também abrilhantados pela participação de Pedra Silva e Garu, que apresentaram o projeto Para a Terra Volta Toda Corpa Em Matéria, no qual e artiste Pedra Silva apresenta seu trabalho artístico, oriundo de pesquisas em seu quintal e em suas memórias¹. Como fechamento desse ciclo que segue a girar, recebemos das professoras o convite para compor, com todos os participantes do seminário, esta publicação, que contém os exercícios feitos durante o percurso e, também, a reunião de proposições livres que nos tocaram no decorrer do seminário. Acreditamos que a produção desta publicação representa muito mais que a materialização desses cinco dias de encontro, em meio a um tempo pandêmico com traços distópicos: participar/produzir uma publicação com trabalhos artísticos, textos, imagens afetivas e outras pesquisas é manter viva a esperança
de que podemos seguir juntes, vivos e pulsantes. Que nos encontremos em breve!
¹ SITE DO PROJETO. Disponível em: https:// paraaterra.hotglue.me. Acesso em jan. 2021.
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COMO IMAGINAR O INIMAGINÁVEL? Lucas Dilacerda
1. Como imaginar novos mundos possíveis? 2. A imaginação imagina memórias. Eu consigo imaginar uma maçã porque eu tenho uma memória de uma maçã. Eu consigo imaginar uma folha porque eu tenho uma memória de uma folha. Como imaginar aquilo que eu não tenho memória? 3. A memória é uma imagem da experiência. Eu tenho uma memória de uma maçã porque eu vi uma maçã. Eu tenho uma memória de uma folha porque eu vi uma folha. Entretanto, eu tenho uma memória de uma sereia e eu
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nunca vi uma sereia. Como eu consigo ter memória de coisas que eu nunca experimentei? 4. A imaginação combina memórias. Eu tenho uma memória de uma mulher porque eu já vi uma mulher. Eu tenho uma memória de um peixe porque eu já vi um peixe. Eu tenho uma memória de uma sereia porque a minha imaginação combina a minha memória de uma mulher com a minha memória de um peixe. A memória de uma sereia é a combinação da memória de uma mulher com a memória de um peixe. 5. A imaginação pode ser reprodutiva ou produtiva. 6. A imaginação reprodutiva imagina memórias de coisas que eu já experimentei. Ela imagina coisas que existem: uma maçã, uma folha, uma mulher, um peixe etc.
7. A imaginação produtiva imagina memórias de coisas que eu nunca experimentei. Ela imagina coisas que não existem: uma sereia, um monstro, um anjo, um híbrido etc. 8. Como imaginar coisas que não existem? 9. Como imaginar um mundo que ainda não existe? Mas que é possível existir. 10. O que é existir? 11. “A arte do Ser é a variedade infinita das suas maneiras de ser ou dos modos de existência [...] O modo de existência de Hamlet não é o mesmo de uma raiz quadrada, o modo de existência do elétron não é o mesmo de uma mesa etc. Todos existem, mas cada um ao seu modo. Reciprocamente, um ser não está predestinado a um único modo de existência, ele pode existir segundo vários modos”¹.
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12. As “coisas que não existem” existem. As “coisas que não existem” existem em um determinado modo de existência. Qual é o modo de existência das “coisas que não existem”? 13. As “coisas que não existem” existem no virtual. 14. A realidade é a própria multiplicidade. 15. A realidade tem sua parte atual (do modo de existência das “coisas que existem”) e a sua parte virtual (do modo de existência das “coisas que não existem”). 17. As “coisas que existem” são consideradas “possíveis”. 18. As “coisas que não existem” são consideradas “impossíveis”.
19. “Como é que a gente desarma um realismo político? [...] Como é que a gente desarma a armadilha do realismo político? [...] Como é que a gente consegue pensar na nossa situação sem ser engofada [...] pela narrativa sitiada do mundo? Como é que a gente elabora as nossas ficções sem que o nosso horizonte seja hiperdefinido pelos limites daquilo que a gente considera possível? Tendo em vista que o possível é uma ficção politicamente regulada, extremamente densa, extremamente vigiada, e aí é nesse lugar que a imaginação política, que a ficção visionária, que todas essas estratégias [...] é um trabalho voltado a produção de ferramentas políticas que não são do realismo político. Ferramentas políticas que nos permitem sair, imaginar outros mundos, para imaginar outras formas de resistir [...] outras formas de elaborar criticamente a nossa relação umas com as outras, com as coisas, com o mundo. [...] É sair. [...] Como a gente se libera dessa hipercircunscrição do realismo político?”².
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20. Quem tem o poder para controlar o modo de existência das “coisas que existem”, aquelas que são consideradas possíveis; e invisibilizar o modo de existências das “coisas que não existem”, aquelas que são consideradas impossíveis? 21. “Sejamos realistas e exijamos o impossível” (1968-2013-2020). 22. A imaginação alienígena imagina novos mundos possíveis e nos faz ver o impossível.
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“A imaginação alienígena imagina novos mundos possíveis e nos faz ver o impossível”
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Lucas Dilacerda é artista e filósofo. Graduado (Licenciatura e Bacharelado) em Filosofia, com distinção Summa Cum Laude, Especialista em Filosofia Clínica, e Mestrando em Filosofia na Universidade Federal do Ceará (UFC). Foi pesquisador do Núcleo de Pesquisa do Museu de Arte Contemporânea do Ceará (MAC) e integrante do Laboratório de Artes Visuais do Porto Iracema das Artes. Atualmente, é coordenador do Laboratório de Arte Contemporânea (LAC) e do Laboratório de Estética e Filosofia da Arte (LEFA). É membro do Laboratório de Artes e Micropolíticas Urbanas (LAMUR), do Programa de Pós-Graduação em Artes da UFC, integra o Conselho Educacional do Lux Espaço de Arte e coordena o Grupo de Estudos em Estética e Filosofia da Arte (GEEFA). Pesquisa nas áreas de Arte e Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: Ética, Estética, Filosofia da Arte, Cinema, Tempo, Imaginação, Corpo, Afeto, Vida e Arte Contemporânea. Foi curador das exposições “Soterramento”, “Arre_mate” e “Ant_Corpo”. Participou de diversas exposições e foi vencedor do 70º Salão de Abril. Instagram: @lucasdilacerda. E-mail: lucasdilacerda3@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5909467713679553.
¹ LAPOUJADE, David. As existências mínimas. São Paulo: n-1 edições, 2017, p. 13-14. ² MOMBAÇA, Jota. Refundar o Possível. In: Facas para uma travessia. Salvador: Grupo de pesquisa e extensão Áfricas nas Artes do Centro de Artes Humanidades e Letras (CAHL) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB); Conferência Ecos do Atlântico Sul; Instituto Goehte, 2018. Disponível em: https://youtu.be/p1krp7_bA20. Acesso em jan. 2021.
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COMO ATRAVESSAR OS ABISMOS DO TEMPO? Rodrigo Lopes
Investigar o álbum de família na Arte e na Educação tem sido um convite para sentir e refletir a memória tanto na sua dimensão material como ficcional. Acolher essa perspectiva envolve estar aberta a um conjunto imprevisível e em constante transformação de fragmentos de tempo. Fotografias de infância suturadas, esmaltes, poemas, impressos, dentes e a capa do livro Olhos d’água da Conceição Evaristo são uma pequena parte do que foi possível encontrar e reunir nesta publicação.
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Em casa, na escola ou na universidade, é comum ouvir sobre a importância de fazer perguntas. Perguntar algo a alguém. Se perguntar. Elaborar as próprias perguntas/ questões. Às vezes, são questões que podem nos acompanhar por toda a vida, mesmo que não permaneçam as mesmas. Às vezes, elas se transformam. Em outras, podem desaparecer apenas por um momento. Por exemplo, “Onde estão os seus álbuns de família?”, “De onde vem as/ os suas/seus familiares?” e “Onde estão as bichas?” foram algumas das questões que nos acompanharam durante a busca por esses fragmentos. Elas estão emaranhadas às noções de memória e arquivo que têm sido tensionadas pela produção artística contemporânea, realizada por artistas racializadas/es e/ ou dissidentes de gênero e sexualidade como Pedra Silva, Castiel Vitorino Brasileiro e Aline Motta¹. Pontes sobre Abismos é um projeto realizado pela artista visual Aline
“Por exemplo, ‘Onde estão seus álbuns de família?’, ‘De onde vem suas/seus familiares?’ e ‘Onde estão as bichas?’ foram algumas das que nos acompanharam durante a busca por esses fragmentos”
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Motta, em 2017, que nasce de uma investigação sobre as origens da sua família². O filme integra uma trilogia de vídeo-instalações junto de Se o mar tivesse varandas (2017) e Outros fundamentos (2019). Partindo da revelação de um segredo guardado pela avó, a pesquisa conduz a artista por perímetros urbanos e rurais do Brasil, Portugal e Serra Leoa. Segundo o curador e antropólogo Hélio Menezes (2018), a artista intenta montar uma possível genealogia familiar a partir de diferentes fontes como relatos orais, documentos, arquivos familiares e exames de DNA³. Ao destacar a inversão da rota do tráfico negreiro no trajeto da pesquisa, que parte do Rio de Janeiro em direção à Serra Leoa, em África, Hélio nos lembra a potência dessas estratégias na fabulação de laços afro-atlânticos de parentesco. Ao mapear e reunir vestígios do seu passado familiar, a artista cria uma contra-narrativa que desafia o modo como costuma
ser narrada a formação das famílias brasileiras, opondo-se à romantização do processo de miscigenação. Para a professora, crítica e curadora Kênia Freitas (2020), a ambivalência e a estrutura de colagem presentes no filme não se limitam a restituir uma história familiar através da recuperação de arquivos, pelo contrário: expandem 4 a história para fora de si mesma . Em diálogo com Tavia Nyong’o e Saiydia Hartman, Kênia reforça a potência da fabulação que, no filme, “redimensiona (para maior ou menor) a importância dos sujeitos históricos, invertendo a dominância do homem branco para as mulheres negras”, a partir dos próprios arquivos familiares. Talvez, Pontes sobre Abismos nos convide a um mergulho no passado sem se afogar. A atravessar um mar de memórias, tendo a incerteza como bússola. A refletir como os corpos, as corpas, as histórias, as memórias e as geografias atravessam e são atravessadas umas pelas outras. Se o
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abismo pode ser uma metáfora para os esquecimentos, as ausências e as violências que marcam as diásporas, o que precisamos lembrar para fazer a travessia?
Rodrigo Lopes é artista, arte-educador e designer. Graduado (Bacharelado) em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda na Universidade Federal do Ceará (UFC) e mestrando no Programa de PósGraduação em Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) com bolsa CAPES-DS. Atualmente, é coordenador do Laboratório de Arte Contemporânea (LAC). É membro do GPIHMAE - Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Imagem, História, Memória, Mediação, Arte e Educação e do Núcleo Negro para Pesquisa e Extensão Universitária (NUPE - IA/UNESP). Tem interesse de pesquisa nos seguintes temas: Álbum de Família, Fotografia, Arquivo, Memória, Educação e Arte Contemporânea. Foi curador no projeto “Para a Terra Volta Toda Corpa em Matéria” e participou de várias exposições como “Transbordar: transgressões do bordado na arte” com curadoria de Ana Paula Simoni e curadoria adjunta de Jordana Braz (SESC Pinheiros), “Dialogias de Resiliência” com curadoria de Ué Prazeres (MUSA - Museu de Arte da UFPR), “Território Somos Nós” com curadoria de Clébson Óscar e “Soterramento” com curadoria de Lucas Dilacerda. E-mail: rodrigolopesco@gmail.com
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¹ Aline Motta é artista visual, fotógrafa e cineasta. Nasceu em Niterói (RJ) e vive em São Paulo (SP). Informações reunidas no site da artista. Disponível em: <http://www. alinemotta.com/>. Acesso em jan. 2021. ² Pontes sobre abismos - Narração em Português (2017). Disponível em: <https://vimeo. com/284789268>. Acesso jan. 2021. ³ MENEZES, Hélio. O curador Hélio Menezes destaca obras fotográficas da exposição Histórias afro-atlânticas, em cartaz em São Paulo. Revista Zum, 2018. Disponível em: <https://revistazum.com.br/radar/ historias-afro-atlanticas/>. Acesso em jan. 2021. FREITAS, Kênia. Afrofabulações e opacidade: as estratégias de criação do documentário negro brasileiro contemporâneo. In: RICARDO, Laércio (org.). Pensar o documentário: textos para um debate. Recife: Ed. UFPE, 2020. Disponível em: <https://pt.scribd.com/ document/451453771/Pensar-o-Documentario>. Acesso em jan. 2021. 4
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FRAGMENTO ANOTAÇÃO DE SONHO 10/11/2020
uma flecha duas pontas
-início-fim-
se entrelaçam
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Essa atividade proposta durante o seminário já foi feita e refeita dezenas de vezes nos últimos 3 anos em que venho pesquisando com David Felicio. É da família dele inclusive a foto do meio, das crianças na estátua, e acho importante ela estar ali porque sem David, eu não teria ido de encontro aos álbuns, e não teria encontrado neles essa negritude familiar. Explico: meus avós e meus pais são separados, e os álbuns ficaram com as mulheres, que são brancas. Quando nasci, meu avô já era uma pessoa bem distante de todos, e só por meio das fotos consegui encontrá-lo perto. O mesmo com meu pai. Perceber todos esses traços e descobrir as histórias me fez mais negro, ativou sensações e me aproximou de memórias. Me fez criar a partir de tudo isso. Algo que comparo ao uso de serendipidade feito por Ana Maria Gonçalves nas primeiras paginas de
Um Defeito de Cor - aquela situação em que descobrimos ou encontramos alguma coisa enquanto estávamos procurando outra, mas para a qual já tínhamos que estar, digamos, preparados. Ou seja, precisamos ter pelo menos um pouco de conhecimento sobre o que descobrimos para que o feliz momento de serendipidade não passe por nós sem que sequer o notemos.
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CRIANÇAS PR CRIANÇAS PR CRIANÇAS PR CRIANÇAS PR CRIANÇAS PR CRIANÇAS PR CRIANÇAS PR
RETAS VIVAS RETAS VIVAS RETAS VIVAS RETAS VIVAS RETAS VIVAS RETAS VIVAS RETAS VIVAS
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lidar com a matéria e a memória parece um caminho que não tem fim. remexer arquivos, álbuns de fotografias, reler cartas e recados de tempos outros. olhar de frente, com o peito escancarado, aberto e sensível.
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qual é o segredo? o que está escondido porque se deve proteger? o patuá a cabaça o búzio a concha a cuscuzeira a casa fechada a memória
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Mamãe tem uma prática bem bonita. Ela gosta de recortar fotografias antigas e criar novas imagens. Um gesto delicado e simples mas que aos meus olhos são intensos e infinitos. Nas suas colagens, ela gosta de aproximar as pessoas que ela ama, como se coubesse tudo dentro do seu coração. Ela me enviou essa imagem para não me deixar esquecer que a vida e o tempo são gêmeos de uma mesma mãe.
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Interesso-me pelos sons, de ouvi-los e de inventá-los; gosto de imaginar suas histórias, de como emergem, de como cessam. Diariamente, dedico tempo a fruir com seus movimentos, timbres e intensidades. Constantemente questionava-me de onde emergia esse interesse. Ao investigar meus álbuns de infância, observei uma menina rodeada por aparelhos de reprodução de som, CD’s e instrumentos musicais. Hoje, em meu cotidiano, o caminhar com a cidade e a escuta atenta coengendram-se como possibilidades de subjetivação, experimentação e invenção de mundos.
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Abri o álbum da família em busca de companhia. Nenhuma lésbica, nenhuma bixa. Nenhuma trava, nenhuma bi. Vi homens da roça, com seus chapéus nas mãos. Vi mulheres fortes, com as mangas das blusas arreganhadas. Vi as crianças, vi minhas avós. Eu só não me reconheci em nenhum rosto dali.
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A família tentou conter a fecundidade, mas as florzinhas e frutinhas das plantinhas prosperaram... Maracujá afemia o homem!
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Meus álbuns de família estão na casa dos meus pais, na França, guardados em um gaveteiro na sala de estar. Sempre que vou lá eu os abro e levo algumas fotos para o Brasil. Aqui, eu as olho de vez em quando e as aperto no coração. Fico ressignificando-as, ano após ano. Na foto que escolhi, tem meu vó e meu irmão ao meu lado. Naquele dia subimos no teto da casa, incentivados pelo meu vó. Ele nos ensinava a não ter medo, a confiar no movimento do nosso corpo. Onde pisar, onde não pisar. Nos explicava como cair, caso caíssemos, e como levantar. Ele era professor e artista plástico. Nunca caímos (do teto). Cresci “muleka”, “criançapatão”. O tênis representa essa vontade de trilha e correr sem medo para todos os lugares, tentando entender onde pisar, onde não pisar. E não cair.
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