A CONTRADIÇÃO ENTRE O HOMEM E O CIDADÃO: CONSCIÊNCIA E POLÍTICA SEGUNDO J.-J. ROUSSEAU
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
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Humanitas FFLCH/USP – setembro 2001
ISBN 85-7506-009-0
NATALIA MARUYAMA
A CONTRADIÇÃO ENTRE O HOMEM E O CIDADÃO: CONSCIÊNCIA E POLÍTICA SEGUNDO J.-J. ROUSSEAU
2001
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
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M389
Maruyama, Natalia A contradição entre o homem e o cidadão: consciência e política segundo J.-J.Rousseau / Natalia Maruyama.—São Paulo : Humanitas: Fapesp, 2001. 176p. Originalmente apresentada como Dissertação (Mestrado – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1996), sob o título “A consciência e a política em Rousseau.
ISBN 85-7506-009-0 1. Filosofia francesa (Século XVIII) 2. Filosofia moderna (História) 3. Rousseau, Jean-Jacques, 1712-1778 4. Filosofia política I. Título
CDD 194.4
HUMANITAS FFLCH/USP e-mail: editflch@edu.usp.br Telefax: 3818-4593 Editor Responsável Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento Coordenação Editorial, Diagramação e Capa Mª Helena G. Rodrigues – MTb 28.840 Emendas Selma Mª Consoli Jacintho MTb 28.839 Revisão Kátia Rocini
SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ................................................................ 11 INTRODUÇÃO ................................................................... 17 CAP. 1 – A CONTRADIÇÃO ENTRE O HOMEM E O CIDADÃO ........ 21 Os Conceitos de Homem Natural e Homem Civil .................... 21 Emílio, o Homem Exemplar e o Cidadão Exemplar .................. 30 A Educação Doméstica e os Laços de Humanidade .................. 43
CAP. 2 – A TEORIA DA CONSCIÊNCIA E A SOCIABILIDADE .......... 55 O Primado do Sentimento da Consciência .............................. 55 O Princípio de Ordenação e a Verdadeira Felicidade. ............... 64 Felicidade e Sociabilidade ...................................................... 74
CAP. 3 – OS SENTIMENTOS MORAIS E A OBRIGAÇÃO ................. 85 A Lei Fundamental da Consciência ........................................ 85 O Problema da Obrigação .................................................... 101
CAP. 4 – A AFETIVIDADE NA TEORIA DA VONTADE GERAL ....... 117 A Consciência e a Vontade Geral ......................................... 117 A Unidade do Homem Cosmopolita e Patriota ...................... 143
ARTE DE GOVERNAR À GUISA DE CONCLUSÃO ........................ 161 BIBLIOGRAFIA ................................................................. 167
Esse trabalho se baseia em minha dissertação de mestrado, defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em julho de 1996, sob orientação da Profa. Dra. Maria das Graças de Souza, do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.
L’homme, cet être flexible, se pliant, dans la société, aux pensées et aux impressions des autres, est également capable de connoître sa propre nature lorsqu’on la lui montre, et d’en perdre jusqu’au sentiment lorsqu’on la lui dérobe. (Montesquieu, L’Esprit des lois)
Si j’extravague ici, c’est du moins bien completement, car j’avoue que je vois ma folie sous tous les traits de la raison. (Rousseau, Gouvernement de Pologne)
APRESENTAÇÃO
O pensamento de Rousseau se desenvolve a partir da oposição entre pares de conceitos, situados em registros distintos, próprios do estatuto que cada texto assume no conjunto de sua obra. O primeiro par, presente sobretudo no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, e, em certa medida, também no Contrato social, diz respeito à oposição entre natureza e artifício, ou, mais precisamente, entre o os conceitos de estado de natureza e estado civil. Como modelos ideais e distintos de perfeição, ou como idéias reguladoras, o primeiro, o estado de natureza, permite que possamos medir a distância que separa o homem civilizado de sua condição e liberdade originárias. O segundo, o estado civil tal como é descrito no Contrato social, permite que calculemos a distância que há entre nossas sociedades corrompidas e a república livre. A esta primeira oposição corresponde uma outra, entre o indivíduo e o cidadão. O primeiro, guiado por suas inclinações naturais, é uma unidade; o segundo, guiado pela lei, é uma fração do todo que é a sociedade. Ocorre que, para Rousseau, dentre nossos dons naturais está a consciência, capaz de nos fazer distinguir o bem e o mal e guiar nossa conduta com base nestes valores. Mas, no caso do cidadão, o guia da ação não pode ser a consciência individual, mas a lei, que é uma espécie de consciência pública.
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Natalia Maruyama, ao analisar neste livro o funcionamento destes conceitos opostos na obra de Rousseau, tem mérito de mostrar a sua compatibilidade, sem entretanto negar o seu caráter aporético, e centra sua argumentação sobre o lugar da noção de consciência moral na reflexão política rousseauniana. Toma a noção de consciência não apenas no seu sentido normativo, como guia para a conduta individual, mas sobretudo como uma capacidade de interiorização de normas e convenções, ou como a faculdade que permite o consentimento necessário para a aprovação de valores e normas de conduta reconhecidos na vida social, o que leva à noção de consciência pública. É a partir desta perspectiva que seu trabalho analisa a oposição entre o homem e o cidadão, apontada por Rousseau, que remete ao conflito possível entre a vontade particular e a vontade geral, e que, na verdade, na obra do autor, por assim dizer, se resolve, seja pela via da educação privada, por meio da qual o Emílio, homem raro, poderá ser bom cidadão em qualquer lugar, seja pela educação pública, propiciada pelo Estado, cuja função primordial é formar o coração do homem de tal modo que ele ame o bem público, a sua pátria e seus concidadãos em primeiro lugar. Para realizar esta trajetória, a autora passa pela análise da metafísica do vigário savoiano, exposta no livro IV do Emílio, na qual a evidência do sentimento interior da consciência assume um papel privilegiado em relação à razão, e que, como “voz da natureza”, ensina aos homens o que importa conhecer. Examina também os Devaneios de um caminhante solitário, procurando identificar, no pensamento de Rousseau, os estados de alma aos quais se pode chamar de “felizes”. A felicidade, na reflexão do cidadão de Genebra, é, em primeiro lugar, o senti-
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mento de posse de si mesmo, alcançada por um equilíbrio interior. Apreendendo sua unidade originária, o homem feliz se contrapõe ao homem civil corrompido, dividido entre suas inclinações e seus deveres. Mas a experiência da própria interioridade não exclui aquela da percepção de que faz parte de um todo maior, a ordem natural, que o transcende, mas também do mundo dos outros homens. Assim, para Rousseau, como mostra a autora, a felicidade individual é inseparável da felicidade geral, entendida como felicidade do gênero humano ou como felicidade de uma nação. Assim, Natalia Maruyama assinala a relação entre a consciência a sociabilidade na obra de Rousseau. Contudo, esta associação volta a colocar a aporia entre os conceitos de natureza e convenção. Pois o fundamento do estado civil é o pacto social, por meio do qual os homens alienam suas forças e direitos naturais em favor da coletividade, que passa a constituir um corpo moral artificial, dotado de uma vontade enquanto corpo coletivo, que é a vontade geral. A vontade geral passa a ser, assim, o guia da conduta pública dos cidadãos. Pelo pacto, o homem abandona o nível da natureza e cria a vida política. Se consideramos que a consciência moral, tal como é descrita no Emílio, é um sentimento natural, uma espécie de “voz da natureza” no homem, para usar as palavras de Rousseau, parece que, uma vez efetuado o pacto, não é mais esta voz que deve ser ouvida pelo homem, mas a voz da vontade geral, que não se situa mais no plano natural. É exatamente isto que a autora quer mostrar quando afirma que “do ponto de vista do direito político, Rousseau não reconhece nenhum tipo de recurso à consciência ou à razão individual. As leis positivas e o poder executivo não podem depender de caprichos individuais, não são estabelecidos tendo-se em vista as aspirações individuais, mas têm como única finalidade a manutenção do bem
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comum e a preservação do corpo político”. Instala-se assim, novamente, a oposição entre a consciência moral individual e a consciência pública. Ora, a originalidade do trabalho de Natalia Maruyama é precisamente a de atribuir à consciência moral uma função dentro da comunidade política. Não como fundamento das obrigações políticas, mas como uma instância que permite a sua manutenção. Em outras palavras: para a autora, a consciência moral do indivíduo é o que permite que ele seja capaz de impor a si mesmo as leis e obrigações da vida política, ou, por assim dizer, é a consciência moral que confere ao indivíduo que integra uma nação particular a responsabilidade política. Esta sua interpretação do papel da consciência moral no pensamento de Rousseau permitirá à autora efetuar a crítica de toda uma tradição de intérpretes que vêem no conceito rousseauísta de vontade geral o germe da tirania e dos regimes totalitários. Dentre esses intérpretes, destaca-se J. L. Talmon, com seu livro As origens da democracia totalitária. Considerando a vontade geral sob um ponto de vista abstrato, como uma “verdade matemática”, Talmon vê na teoria política de Rousseau uma aniquilação dos particulares, o que levaria ao que ele denomina “democracia totalitária”, que submete inteiramente os indivíduos à vontade coletiva. Ora, a autora mostra que, para Rousseau, os laços sociais garantem o cumprimento das cláusulas do contrato. A vontade geral, para se efetivar, supõe uma espécie de união afetiva entre os membros da comunidade. Esta esfera dos laços afetivos é precisamente a esfera da consciência, o plano dos hábitos e costumes que determinam a vontade dos homens. É por meio de sua consciência que o homem “se torna capaz de reconhecer no outro o seu semelhante, de generalizar seus interesses particulares e estender os objetos
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de sua vontade a todos os homens”, ou, mais particularmente, aos seus concidadãos. Esta simples apresentação, que procura apresentar ao leitor as linhas de força deste trabalho, não está à altura de sua qualidade nem dá conta de revelar os meandros pelos quais ele se desenvolveu, do rigor crítico, do respeito aos textos de fonte e do esforço de reflexão que o livro revela. Mas o leitor tem, certamente, em suas mãos, uma bela contribuição para a bibliografia brasileira sobre o pensamento político clássico em geral e sobre o de Rousseau em particular. São Paulo, 28 de junho de 2001. Maria das Graças de Souza Professora de Ética e Filosofia Política da USP
INTRODUÇÃO
“Conhecer o homem pela sociedade e a sociedade pelos homens”, idéia que encontramos no Emílio ou Da educação, pode ser considerada o leitmotiv do pensamento moral e político de J.-J. Rousseau. A teoria da consciência está inserida também nessa proposta mais geral. A consciência individual, para Rousseau, não nasce espontaneamente, mas para se desenvolver, depende das circunstâncias que favoreçam sua aplicação. Rousseau estava preocupado com os problemas de seu tempo. As polêmicas nas quais se envolvera no círculo dos philosophes franceses refletiam, sobretudo, seu entusiasmo em relação às questões morais: sobre o teatro e os costumes, sobre o progresso das ciências e das artes como fonte da degeneração da virtude, sobre o luxo nas cidades e sobre o distanciamento da simplicidade rústica. Pretendemos compreender, a partir dos textos de Rousseau, os problemas mais relevantes, não apenas em relação ao contexto em que foram escritos, mas que possam contribuir para a filosofia moral e política atual. A consciência não nos interessa apenas em seu aspecto normativo. Ela não deve ser compreendida apenas como um depósito de verdades morais, mas diz respeito também às respostas da natureza humana aos estímulos externos. É por meio dela que o homem afirma sua “capacidade de se aperfeiçoar”, a perfectibilité de Rousseau. A consciência absorve valores e con-
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venções sociais e estes seriam, no seu interior, reconhecidos, recombinados e autenticados, formando no indivíduo sua vida moral. A consciência é, do ponto de vista do indivíduo, o consentimento necessário para a aprovação de valores e normas de conduta enaltecidos em sua vida social, ou seja, aquilo que faz com que as regras e as obrigações sociais, morais ou políticas não lhe sejam estranhas. Ela é, nesse sentido, uma espécie de faculdade de interiorização de normas e convenções. Não somente aquelas normas e convenções explicitadas nas leis escritas, mas também as que se manifestam nos hábitos e costumes e, nestes, não apenas os mais visíveis mas também os mais imperceptíveis. A consciência é marcada, não somente pelos acontecimentos grandiosos, mas por aquela camada mais tênue e invisível da ação humana. Rousseau monta, a partir da teoria da consciência e da teoria da vontade geral, um modelo de ação política. Ele aponta as condições de movimento do corpo político e introduz nas astúcias dos agentes políticos a interiorização de normas e valores, o direcionamento das vontades, desejos e necessidades, a influência e o controle da opinião pública, os germes da propaganda totalitária, segundo alguns, a invasão da polícia na vida privada, segundo outros. Todas essas estratégias assumem, contudo, uma posição precisa no interior de sua obra. Se é preciso considerar os riscos de tirania ou totalitarismo, os quais não são afastados com a teoria da consciência, é preciso assumir que esses riscos e a vida política são coexistentes. Não são apenas fantasmas no encalço de teorias. É preciso considerar, por outro lado, que a atividade da consciência à qual Rousseau se refere não é mera interiorização
INTRODUÇÃO
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de não importa o quê, mas interiorização consentida e que, de algum modo, responde, no homem, a uma tendência em direção à unidade de si mesmo, à sua integridade enquanto sujeito moral. Assim como não seria possível, para pensar a política, supor uma política imaginária, sem conflitos de interesses, sem contradições, não é tampouco possível traçar estratégias, que afastem permanentemente, isto é, que não apresentem, ainda que a longo prazo ou apenas como possibilidade, resultados desagradáveis e inadequados para a convivência humana. Daí a necessidade da reflexão, sempre renovada, acerca dos fins e dos meios convenientes para a obtenção destes, e que leve em conta a realidade da natureza humana. O progresso da humanidade pode ser visto como melhoramento ou degradação, e percebê-lo talvez tenha sido a maior lucidez de Rousseau. Podese caminhar em direção da realização das mais nobres potencialidades humanas ou de sua ruína enquanto homem. “Ó homem, não desonres o homem!” (Emílio).
CAP. 1 – A CONTRADIÇÃO ENTRE O HOMEM E O CIDADÃO
OS CONCEITOS DE HOMEM NATURAL E HOMEM CIVIL É para o homem que falamos e é sobre os homens que pretendemos falar. Conhecer o homem, tarefa filosófica das mais espinhosas, é também, para Rousseau, a mais fundamental àquele que pretende compreender e colocar em seus devidos termos os problemas mais gerais a respeito da sociedade, da moral e da política. Desde o Discurso sobre a desigualdade até a Nova Heloisa, é sobre o homem que Rousseau pretende falar, mas é somente no Emílio ou Da educação que sua concepção de natureza humana aparece no mais alto grau de maturidade e acabamento. Por meio de uma figura imaginária, Rousseau mostra, no Emílio, a aquisição e o desenvolvimento dos sentimentos morais e das faculdades humanas de conhecimento. Como é anunciado logo no início, no momento em que apresenta seu personagem Emílio, as descrições e exemplos servem para auxiliá-lo na exposição das regras que presidem essas modificações na natureza humana e que não são por si mesmas evidentes. O percurso de Emílio, acompanhado pelo texto filosófico e que consiste, segundo Rousseau, em seguir a “marcha natural do
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coração humano” (E, I, Pl. 265)1, tem por finalidade, não apenas a defesa do que ele considera a melhor espécie de educação, a “educação da natureza”, mas, mais do que isso, o exame de um problema, para ele crucial, referente à contradição entre o homem e o cidadão. O Emílio não pode ser considerado somente como um tratado de educação, e sua importância reside muito além das preocupações pedagógicas de Rousseau. Trata-se de uma investigação filosófica a respeito da aporia que Rousseau percebe haver no cerne da ação humana e que se expressa fundamentalmente na oposição entre a inclinação natural do homem para agir de acordo consigo mesmo e os deveres exigidos no convívio social. É nesse sentido que podemos afirmar que a concepção de natureza humana de Rousseau ganha no Emílio uma complexidade que não existia em seus textos anteriores. A preocupação com o problema da antinomia entre as inclinações naturais ou disposições primitivas e os deveres sociais ou políticos está sempre presente nos textos de Rousseau. Num primeiro momento, essa contradição pode ser melhor compreendida à luz da oposição entre natureza e sociedade, estabelecida no Discurso sobre a desigualdade. Nesse texto, Rousseau trata do estado de natureza e do estado de sociedade como dois momentos da evolução do espírito humano que, se não são antagônicos, têm estatutos totalmente distintos. O estado de na1
Todas as referências à obra de J.-J. Rousseau, salvo indicações contrárias, seguem a paginação da edição francesa – Œuvres complètes de J.-J. Rousseau. Paris, Gallimard, Bibliothèque de La Pléiade – com a abreviação “Pl.” para indicar o número da página citada. As referências ao Emílio ou Da educação trazem a abreviação E, seguida do número do livro em algarismos romanos, da paginação “Pl.” e, por vezes, da paginação “p” da tradução de Sérgio Milliet da Difusão Européia do Livro.
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tureza é amoral, ahistórico e, ao contrário do estado de sociedade, não envolve nenhuma espécie de relação entre os homens. Os homens nesse estado primitivo vivem isolados, só se preocupam com as necessidades imediatas e com a preservação da própria vida. No estado de sociedade eles adquirem novas necessidades, que não dizem respeito somente à auto-conservação e ao bem-estar físico, mas refletem uma vida interior, um progresso do espírito, o desenvolvimento de novas faculdades e novos conhecimentos. Essa história hipotética, que vai do estado puro de natureza ao estado de sociedade, e que transcorre paralelamente à história do espírito, é apresentada no Discurso sobre a desigualdade como história de uma crise, de uma perversão da natureza humana. Nesse texto, Rousseau pretende mostrar que as desigualdades sociais, morais ou políticas – como, por exemplo, a desigualdade de riquezas ou a desigualdade de poder – não têm origem na natureza e que a maior parte de nossos infortúnios é obra nossa. Daí sua sugestão de que a perfectibilidade, enquanto capacidade de progredir, esteja na base da infelicidade humana2. As oposições entre os modos de vida no estado de natureza e no estado de sociedade mostram de modo indireto como o homem, através dos desenvolvimentos sucessivos de seu espírito, pôde abandonar a benevolência natural e se tornar mau. Rousseau descreve o processo de associação entre os homens,
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A degradação do homem no estado de sociedade, para Rousseau, dá-se tanto do ponto de vista físico como do ponto de vista moral. Cf. Discurso sobre a desigualdade, Pl. 139. A paginação “p” do Discurso sobre a desigualdade faz referência à tradução de Lourdes Santos Machado na coleção Os Pensadores, São Paulo, Ed. Abril Cultural.
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mostrando como estes, ao se tornarem sociáveis, além de enfraquecer o corpo, perdendo a robustez do homem selvagem, adquiriram, com o hábito de se comparar aos outros, vícios e paixões antes inexistentes, como por exemplo, a vaidade, a inveja ou o ciúme. O princípio da bondade natural, fundamental para Rousseau, permite então traçar a história da humanidade em termos de decadência e definir o “homem natural” e o “homem civil”. Ambos aparecem na nota IX do Discurso sobre a desigualdade como dois pólos de um processo de corrupção: “Os homens são maus – uma experiência triste e contínua dispensa provas; no entanto, o homem é naturalmente bom – creio tê-lo demonstrado; o que, pois, poderá tê-lo depravado a esse ponto senão as mudanças sobrevindas em sua constituição, os progressos que fez e os conhecimentos que adquiriu?” (Pl. 202, p. 297) “Comparai, sem prevenção, o estado do homem civil com o do homem selvagem e indagai, se puderdes, como, além de sua maldade, suas necessidades e misérias, o primeiro abriu novas portas à dor e à morte.” (Pl. 203, p. 298)
Com a caracterização do homem natural, como aquele que vive somente para si mesmo, e do homem civil, cuja existência passa a depender do concurso de seus semelhantes, Rousseau elabora um esboço que, se aplicado ao Emílio, torna mais compreensível o problema da contradição entre o homem e o cidadão. É possível, de acordo com o Discurso sobre a desigualdade, considerar o homem natural e o homem civil como conceitos opostos, tal como Rousseau nos dá a entender nessa passagem:
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“O homem selvagem e o homem policiado diferem de tal modo, tanto no fundo do coração quanto nas suas inclinações, que aquilo que determinaria a felicidade de um reduziria o outro ao desespero [...]. O selvagem vive em si mesmo; o homem sociável, sempre fora de si, só sabe viver baseando-se na opinião dos demais e chega ao sentimento de sua própria existência quase que somente pelo julgamento destes.” (Pl. 192-3, p. 287)
Essa diferença entre o “homem selvagem” e o “homem policiado” é análoga àquela que aparece no Emílio por meio dos pares de termos “unidade numérica” e “unidade fracionária”; “existência absoluta” e “existência relativa”, para caracterizar, respectivamente, o homem natural e o homem civil. De um lado, temos o homem natural, “unidade numérica” e “absoluto total”, “que não tem relação senão consigo mesmo ou com seu semelhante” e, de outro, o homem civil, “unidade fracionária”, cujo “eu” só pode ser entendido como parte da “unidade comum” e cujo valor reside em sua relação com o corpo social (E, I, Pl. 249). A contradição entre o homem e o cidadão, considerando essa oposição fundamental entre “homem natural” e “homem civil”, aparece sob a forma de uma divergência entre as inclinações naturais e os deveres. Daí a passagem do Emílio em que Rousseau observa: “Aquele que, na ordem civil, deseja conservar a primazia da natureza, não sabe o que quer. Sempre em contradição consigo mesmo, hesitando entre suas inclinações e seus deveres, nunca será nem homem nem cidadão; não será bom nem para si nem para outrem. Será um dos homens de nossos
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dias, um francês, um inglês, um burguês; não será nada.” (E, I, Pl. 249-50, p. 13)
As obrigações do homem civil ou do cidadão se opõem às inclinações naturais à medida que, de acordo com estas, ele não agiria visando nenhuma espécie de utilidade coletiva ou bem comum mas, antes, a satisfação de seus desejos, necessidades e interesses particulares. Do ponto de vista do homem natural, no qual podemos supor a ação das disposições mais primitivas, sem a elas misturar tudo o que só pôde ser adquirido em sociedade, as noções de obrigação ou dever, assim como as de utilidade pública ou comum, não têm nenhum sentido. O homem natural vive apenas para si mesmo, visando unicamente a satisfação de suas necessidades básicas e vitais, tendo, pois, como único ponto de referência aquilo que é seu primeiro e mais fundamental interesse particular, ou seja, a conservação de sua própria vida. Aquele que sofre tal contradição consigo mesmo, ou seja, que hesita entre os deveres e as inclinações não é, logicamente, o homem civil descrito como “unidade fracionária”. Este é apenas um modelo ou, se quisermos, um parâmetro para a análise de problemas concretos. Aquele que sofre a contradição é um homem real, um francês ou um inglês, como observa Rousseau, é quem não se decide entre ser como o homem natural ou como o homem civil. Essas duas definições de Rousseau – do “homem natural” e do “homem civil” – expressam dois princípios de conduta, o de agir de acordo consigo mesmo e o de agir de acordo com os outros. Aquele que se contradiz não determina sua ação unicamente por seus próprios interesses nem tampouco unicamente pelos interesses coletivos; não tem existência absoluta como o homem natural nem existência relativa como o homem
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civil, seu valor não reside nem em si mesmo enquanto unidade numérica nem tampouco em suas relações com o corpo social. Não sabendo como guiar sua conduta, ele age ora como homem natural, ora como homem civil, e se contradiz querendo ser ao mesmo tempo como um e outro. Nesse sentido, podemos dizer que homem e cidadão se opõem tanto quanto homem natural e homem civil. O homem observado por Rousseau, “um desses homens de nossos dias”, é levado pelas instituições humanas a contrariar suas disposições primitivas. Rousseau leva em consideração, ainda que não as desenvolva diretamente, as contradições sociais, que aparecem, por exemplo, no início do Emílio quando ele descreve o fato das instituições seguirem interesses antagônicos, ao invés de agirem de acordo com um princípio comum3. Daí as passagens em que o conflito entre o homem e o cidadão aparece em decorrência de uma crise institucional, mais particularmente da educação. Na falta de critérios que estabeleçam os princípios pedagógicos, cada instituição segue o que lhe convém, de modo que seríamos levados a afirmar que há tantos princípios quanto interesses particulares. Após enumerar os três tipos de educação – a “educação da natureza”, que diz respeito ao desenvolvimento das faculdades e dos órgãos humanos, a “educação dos homens”, que se refere ao uso que se
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John Spink, na “Introdução” ao Manuscrit favre, primeira versão do Emílio, na edição da Gallimard, Coleção da Pléiade, t. III, expõe muito bem os problemas concernentes à educação pública no século XVIII com os quais Rousseau devia ter alguma familiaridade. Dentre esses problemas podemos citar a oposição entre a realidade social e os valores dos educadores: “comment élever des enfants dans un pays où les préceptes des éducateurs sont toujours contredits par la conduite des hommes mûrs, où l’enfant devra oublier toutes les maximes de son maître s’il veut faire son chemin dans le monde...?” (p. L).
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faz dessas faculdades, e a educação das coisas, que se dá por meio da experiência adquirida pelos homens em sua relação com os objetos que o circundam, Rousseau conclui: “O aluno em quem as diversas lições desses mestres se contrariam é mal educado e nunca estará de acordo consigo mesmo.” (E, I, Pl. 247, p. 11) “É pois a essas disposições primitivas que tudo se deveria reportar; e isso seria possível se nossas três educações fossem tão somente diferentes: mas que fazer quando são opostas? Quando, ao invés de educar um homem para si mesmo, se quer educá-lo para os outros? Então o acerto se faz impossível. Forçado a combater a natureza ou as instituições, cumpre optar entre fazer um homem ou um cidadão, porquanto não se pode fazer um e outro ao mesmo tempo.” (E, I, Pl. 248, p. 12)
É como se os princípios da educação, do ponto de vista institucional, ou seja, relativo à “educação dos homens” e em certa medida à “educação das coisas”, pudessem ser tão opostos quanto o fossem os interesses em jogo, e só tivessem em comum o fato de contrariar as disposições primitivas. De modo que, ainda levando em consideração as oposições entre os princípios de conduta do homem natural e os do homem civil, fosse necessário optar entre educar um homem para si mesmo ou educálo para os outros. Como se fosse preciso escolher entre a “educação da natureza” e a das instituições sociais. É importante assinalar que a idéia de contradição entre o homem e o cidadão supõe também o conflito entre interesse público ou comum e interesse privado ou particular. O modelo de cidadão que Rousseau emprega no Emílio, não por acaso, é o
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do cidadão de Esparta, cujo primeiro interesse, segundo Rousseau, não diz respeito à vida privada, doméstica, mas à vida pública. Daí o exemplo da espartana que, com cinco filhos na guerra, não quer saber se eles estão vivos ou mortos, mas se Esparta alcançou ou não a vitória (E, I, Pl. 249). A ausência desse cidadão nas sociedades modernas culmina na falência da instituição pública, pois a idéia de pátria para Rousseau envolve uma espécie de devoção ao que é de utilidade pública e comum4. A nação mais perfeita é, desse ponto de vista, aquela cujos integrantes mais se aproximam do modelo ideal de cidadão. E a hesitação daquele que se contradiz é incompatível com tal modelo. A dificuldade em estabelecer um acordo entre interesses divergentes e fazer triunfar na ordem política a vontade geral – que é, por definição, sempre voltada à utilidade pública e ao bem comum – aponta para a tendência do corpo político à degeneração e para a impossibilidade de conter definitivamente os abusos dos particulares. Numa sociedade repleta de contradições sociais e onde os homens vivem, além disso, numa contradição interior, sem decidir entre agir cada qual de acordo consigo mesmo ou de acordo com os outros, hesitando entre as inclinações naturais e 4
Para Rousseau a defesa da pátria, por meio de guerras, por exemplo, não expressa essa devoção se tem, da parte do cidadão, apenas interesses econômicos. O corpo de cidadãos que deve lutar e morrer pela pátria não pode, portanto, ser formado apenas por mercenários. Ernst H. Kantorowicz aponta, sem esvaziar a ação pelo bem comum de seu conteúdo especificamente político, os aspectos religiosos da morte pela pátria (pro patria mori), ação comparável, segundo ele, com a defesa e proteção do solo sagrado da Terra Santa na época das cruzadas religiosas. Cf. KANTOROWICZ, E. H. Los dos cuerpos del rey. Un estudio de teología política medieval (The king’s two bodies – a study in medieval political theology. Princeton University Press, 1957). Madrid, Alianza Editorial, 1985, p. 223-39.
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os deveres, não é possível falar em cidadão, não há pátria, não há instituição pública. Examinar o problema da contradição entre o homem e o cidadão ganha, nesse sentido, importância fundamental. Para Rousseau, essa contradição é, ao mesmo tempo, o maior obstáculo para a felicidade humana e está intimamente vinculada aos problemas políticos. No fragmento Da felicidade pública, Rousseau caracteriza muito bem a relação entre a felicidade pública e a necessidade de unidade interior dos indivíduos: “O que faz a miséria humana é a contradição que se encontra entre nosso estado e nossos desejos, entre nossos deveres e nossas inclinações, entre a natureza e as instituições sociais, entre o homem e o cidadão; tornai o homem um e o fareis tão feliz quanto possa sê-lo. Entregai-lo todo inteiro ao estado ou o deixai todo inteiro a si mesmo, mas se dividirdes seu coração, vós o dilacerareis; e não vades imaginar que o estado possa ser feliz quando todos os seus membros padecem. Esse ser moral que chamais de felicidade pública é em si mesmo uma quimera: se o sentimento de bem-estar não se encontra em ninguém, ele não é nada e a família não floresce quando seus filhos não prosperam.” 5
EMÍLIO, O HOMEM EXEMPLAR E O CIDADÃO EXEMPLAR A oposição entre o homem natural e o homem civil, tal como foi estabelecida no Discurso sobre a desigualdade e re5
Fragmento “Du Bonheur Public”, em Œuvres complètes, Pléiade, t. III, Pl. 510.
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tomada no início do Emílio, torna, portanto, o problema da divergência entre as inclinações naturais e os deveres mais compreensível. No Emílio, Rousseau continua a afirmar aqueles princípios fundamentais da natureza humana, como os da bondade natural, do amor a si mesmo e o da piedade. Contudo, apesar da importância dos conceitos de “estado de natureza” e “estado de sociedade”, a oposição natureza-sociedade, quando considerada de modo puramente mecânico, em nada colabora para a compreensão do problema da contradição entre o homem e o cidadão. Em relação a essa oposição teríamos, do ponto de vista dos princípios morais e pedagógicos, apenas duas opções: escolher entre ser como o homem natural e agir de acordo consigo mesmo ou ser como o homem civil e agir de acordo com os outros. A primeira opção é absurda, visto que essa definição de “homem natural” supõe isolamento entre os indivíduos. Optar por agir apenas de acordo consigo mesmo torna, nesse sentido, a sociedade e a vida política impossíveis. A última lição do tutor do Emílio, quando este está prestes a abandonar sua nação de origem em nome da liberdade, refere-se às obrigações políticas: “onde está o homem de bem que nada deva a seu país?” (E, V, Pl. 858). A despeito das afirmações de Rousseau sobre Emílio ser um “homem da natureza” (E, IV, Pl. 549) e a despeito de seu método pedagógico pretender seguir a “educação da natureza”, Emílio não é educado para viver apenas de acordo consigo mesmo e seguir unicamente suas inclinações naturais. Saber viver com seus semelhantes é, segundo Rousseau, “a arte mais necessária ao homem e ao cidadão.” (E, IV, Pl. 655). Rousseau emprega o conceito de natureza para afirmar uma certa autonomia de seu aluno. Emílio deve pensar por si mesmo, “que veja com seus olhos, que sinta com seu coração,
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que nenhuma autoridade o governe a não ser sua própria razão” (E, IV, Pl. 551). Seguir a natureza, no Emílio, não significa, portanto, afirmar uma existência absoluta, independente das relações sociais, mas seguir o desenvolvimento das faculdades e dos órgãos humanos, isto é, seguir a “educação da natureza” e regrar, a partir dos princípios desta, a “educação dos homens” e a “educação das coisas”. Daí o lema do método negativo em educação poder ser resumido na seguinte afirmação de Rousseau: “cada idade, cada estágio da vida tem sua perfeição conveniente, sua espécie de maturidade que lhe é própria” (E, II, Pl. 418). Acompanhando os diversos estágios por que passa Emílio, instruindo-o com as lições convenientes ao momento em questão, sem nada adiantar àquilo que seus órgãos e faculdades lhe permitem sentir ou entender, Rousseau acredita seguir as regras convenientes para impedir a depravação da natureza humana, na medida em que fortalece Emílio e o faz fiel a si mesmo. É preciso cultivar a natureza e não depravá-la (E, IV, Pl. 549). Ainda do ponto de vista do Emílio, podemos considerar que, por outro lado, a opção por agir exclusivamente de acordo com os outros é ilegítima, no sentido de que supõe a negação das inclinações e sentimentos naturais. Na associação política – a forma mais acabada das associações civis enquanto produto de uma convenção –, a existência torna-se relativa, isto é, dependente do corpo social, e se faz, por definição, incompatível com as inclinações naturais, pois, em última instância, aquele que segue unicamente as inclinações naturais, ou seja, o homem natural, não tem nenhuma noção de dever ou obrigação. É por isso que Rousseau afirma que as boas instituições sociais são as que desnaturam o homem (E, I, Pl. 249). A idéia de cidadão, tributária dessa concepção de homem civil, é a que está
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implícita na parte mais teórica do Contrato social, cujos princípios decorrem dessa dupla relativização da existência e do “eu” individual. Daí a cláusula contratual para a formação do corpo político envolver a “alienação total de cada associado à comunidade toda”, pela qual cada contratante deixa de ser uma pessoa particular para se tornar parte integrante de um corpo moral e coletivo (CS, I, 6, Pl. 360-1)6. O cidadão do Contrato social é, de modo geral, como o homem civil definido no Emílio, uma “unidade fracionária”, “cujo valor está em relação com o todo”, e que “colocou o ‘eu’ na unidade comum” (E, I, Pl. 249)7. No Contrato social, Rousseau apresenta as bases legais sobre as quais deve se sustentar a concepção de cidadão, o qual, como modelo ideal, é aquele que abdica de seus interesses particulares em nome dos interesses coletivos. Está excluído do plano do direito político qualquer apelo às manifestações subjetivas e individuais como, por exemplo, o apelo à consciência individual ou à vontade particular. A partir dessa separação entre o “eu” subjetivo e individual de um lado e, de outro, o “eu” comum, relativo ao corpo político, podemos avaliar a interpretação de Robert Dérathé, segundo a qual a teoria da consciência do Emílio e a teoria da vontade geral do Contrato social seriam 6
As referências ao Contrato social apresentam a abreviação CS, seguida do número do livro em algarismos romanos, do número do capítulo em algarismos arábicos e da paginação. A tradução consultada é de Lourdes Santos Machado (Os Pensadores, Abril Cultural).
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O que não significa, contudo, que a idéia de cidadão do Contrato social não inclua a noção de autonomia. Como veremos mais adiante, a construção desse modelo de cidadão envolve, anteriormente, a teoria da vontade geral e a teoria da consciência.
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DÉRATHÉ, R. Jean-Jacques Rousseau et la science politique de son temps. Paris, PUF, 1950, p. 341-4.
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independentes e excludentes. Para Dérathé, Rousseau não resolve a antinomia entre o homem e o cidadão porque confere ao primeiro um instinto inato de justiça mas, ao mesmo tempo, afirma a supremacia das leis civis como regra do justo e do injusto8. A independência entre a teoria da consciência e a teoria da vontade geral leva Dérathé a afirmar que Rousseau chega a conclusões diferentes, conforme considera a esfera moral ou a política e, ainda, que não nos dá uma solução satisfatória ao problema das relações entre a consciência individual e a lei civil. Com efeito, para Rousseau, são as leis de convenção que devem decidir sobre o que é justo ou injusto, independentemente das inclinações e sentimentos naturais dos indivíduos. Do ponto de vista do direito político, que pertence à ordem da convenção, as manifestações individuais não devem ser levadas em consideração. Afirmar a supremacia da vontade geral, da lei civil e do “eu” do cidadão, que é sempre relativo ao corpo político, sobre a consciência individual e o “eu” subjetivo, pode parecer – e foi assim que muitos intérpretes viram na teoria política de Rousseau as bases para o autoritarismo – uma negação dos direitos individuais. Nas palavras de Lester G. Crocker, isso significa que o “homem”, o do “eu subjetivo”, o do “eu humano”, é extinto em nome do cidadão9. Para ele, como para Dérathé e Bertrand de Jouvenel, a educação do homem e a educação do cidadão são excludentes. Jouvenel observa que a solução apresentada no Contrato social diz respeito às nações que não estão totalmente corrompidas10. As sociedades totalmente corrompi9
CROCKER, Lester G. “Rousseau’s dilemma: man or citizen?”. In: Studies on Voltaire and the Eighteenth Century. v. 241, 1986, p. 271-84.
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JOUVENEL, Bertrand de. “Essai sur la politique de Rousseau”. Publicado na edição do Contrato social da Constant Bourquin, Genebra, 1947.
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das parecem, desse ponto de vista, não ter alternativas para a solução da crise política. Assim, Dérathé conclui, retomando os argumentos de Jouvenel, que a proposta de Rousseau no Emílio, obra dedicada, segundo ele, aos países de “velha civilização”, que estariam “definitivamente perdidos em relação à liberdade”, é salvar o que é possível, ou seja, o indivíduo11. Essas interpretações nos levam, contudo, a alguns problemas. Se enfatizássemos precipitadamente, como fazem esses autores, os aspectos abstratos do Contrato social, concluiríamos que Rousseau não deixara espaço para o homem mas apenas para o cidadão. Conclusão que parece ser uma implicação do fato dessa obra ter o objetivo central de formular os princípios do direito político. A ênfase recairia, tal como supõe Crocker, no “eu artificial” e não no “eu natural”. Somente enquanto parte de um todo maior, isto é, enquanto membro do corpo político – cujo princípio diretor é a vontade geral que, presume-se equivocadamente, excluiria tudo o que se refere às particularidades, à vida privada ou aos interesses individuais –, o cidadão poderia reivindicar seus direitos. É nesse sentido que se costuma entender a tarefa do legislador como uma desnaturação do homem. (CS, II, 7, Pl. 381-2). É preciso considerar, todavia, que há no Emílio um pressuposto que não aparece de modo significativo nas outras obras, o de que não é possível negar no homem real suas inclinações naturais. A idéia de uma desnaturação da natureza humana aparece também no Emílio, mas de modo muito diferente do que fora sugerido por Crocker, para quem a formação do cidadão de Rousseau implicaria, necessariamente, na extinção do homem. 11
Introdução ao Contrato social, na edição da Pléiade. In: Œuvres complètes. t. III, 1964.
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No Emílio torna-se evidente daí sua grande importância para que compreendamos plenamente o pensamento político de Rousseau que não há em sua obra uma opção pelo cidadão que exclua o homem. Não obstante a apresentação dessa alternativa – homem ou cidadão – que se refere mais à oposição conceitual entre “homem natural” e “homem civil”, naquilo que têm de excludente um ao outro, Rousseau pretende unir no Emílio, por meio de um método pedagógico, os dois princípios, de modo que ele seja ao mesmo tempo homem exemplar e cidadão exemplar. O que nos permite falar numa terceira opção12. Esse prodígio, cuja possibilidade de existência Rousseau nos mostra com o personagem Emílio, aparece primeiramente no mesmo momento em que o problema da contradição homem-cidadão é apresentado: “Para ser alguma coisa, para ser si mesmo e sempre um, é preciso agir como se fala; é preciso estar sempre decidido acerca do partido a tomar, tomá-lo com altivez e segui-lo sempre. Estou à espera de que me mostrem esse prodígio, a fim de saber se é homem ou cidadão, ou como se arranja para ser a um tempo um e outro.” (E, I, Pl. 250, p. 13-4)
12
BESSE, G. “Le sage et le citoyen selon Jean-Jacques Rousseau”. In: Révue de métaphysique et de morale. 78, n. 1, jan.-mar. 1973, p. 18-31. Guy Besse também considera haver uma terceira opção, além da figura do sábio e a do cidadão, envolvida no Emílio, que é a de Emílio educador. Sua tarefa consiste em denunciar o “jogo maligno dos interesses ocultos”, isto é, os interesses particulares que se fazem passar por interesses públicos. Para Besse, a consciência e a sabedoria do sábio, de um lado, e a lei civil com base na vontade geral, de outro, são duas linguagens que expressam uma mesma coisa, a Ordem, e, por isso, Emílio não poderia ser um “homem exemplar” sem ser também um “cidadão exemplar”.
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O homem que Rousseau constrói sob a figura de Emílio não é o homem natural vivendo no isolamento nem o cidadão despersonalizado, mas o homem natural que vive em sociedade (E, III, Pl. 484). O problema do conflito homem-cidadão nos remete ao desacordo entre vontade particular e vontade geral, problema que aparece no Contrato social. Nessa obra, contudo, a ênfase reside principalmente no plano jurídico; daí a afirmação de Rousseau de que a legislação perfeita é aquela que tem como única regra a vontade geral e na qual a vontade particular é nula (CS, III, 2, Pl. 401). No Emílio, que não é nem se pretende um tratado de direito político, tal problema aparece em outra perspectiva, na qual Rousseau mostra que há princípios anteriores e independentes da vontade e que, inclusive, servem para determiná-la. Se não é possível nem eficaz supor um acordo entre a vontade particular e a vontade geral que são, por definição, tal como podemos ver no Contrato social (CS, II, 1), incompatíveis e excludentes, é possível, entretanto, construir um método pedagógico a partir de princípios da natureza humana, os quais nos permitem falar numa tendência do homem à sociabilidade. Esses princípios, dados pela consciência moral, tornam-se condição para que os indivíduos, não obstante seus interesses particulares, ajam de acordo com valores comuns relativos à humanidade ou a um grupo ou nação particular. Desse ponto de vista, não é preciso optar entre ser homem ou ser cidadão. A possibilidade, ainda que longínqua, de se resolver tal conflito supõe como condição que o homem aja de acordo com os outros, como o homem civil, sem, contudo, deixar de agir de acordo consigo mesmo e, além disso, que ele saiba compartilhar os valores convencionais e comuns estabe-
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lecidos numa nação, ao mesmo tempo em que participa também da criação destes. Esses dois princípios de conduta, derivados da oposição entre homem natural e homem civil, devem se harmonizar na figura do Emílio de modo que ele seja, mesmo respeitando os valores convencionais de um corpo político particular, sempre fiel a si mesmo. No Emílio, Rousseau nega o homem natural enquanto indivíduo isolado, mas conserva de sua definição inicial o princípio de agir de acordo consigo mesmo, condição da autonomia que pretende garantir para Emílio. O conceito de natureza ganha dinamismo à medida que passa a se referir, não mais a um estado fixo, de dispersão e independência mútua, mas a uma natureza ou essência original que subsiste no homem que vive em sociedade e que é uma espécie de substrato às várias modificações nele ocorridas. Todo o percurso empreendido no Emílio, o de seguir a marcha natural do coração, supõe esse dinamismo da natureza humana que está sempre diante dos conflitos entre o que lhe é verdadeiramente essencial e o que é simples artifício ou ilusão, entre o ser e o parecer. A proposta de uma educação negativa aparece com o intuito de adiar ao máximo as aquisições artificiais, as lições tardias provenientes da opinião e dos costumes em sociedade, não para negá-las ou abafá-las, mas para aproveitar apenas aquilo que tenham de mais essencial e mais compatível com a felicidade humana. A distinção entre o que é natural e o que é artificial no Emílio, nesse sentido, não pode ser estabelecida sem a suposição de uma perfectibilidade humana, cuja ação não depende exclusivamente do eu subjetivo, da interioridade do indivíduo, mas também das relações objetivas estabelecidas com o mundo exterior. Uma investigação acerca da natureza humana deve considerar as situações concretas em que os
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homens se encontram. Ela deve dar conta da realidade da natureza humana, de suas modificações, cujas causas não residem unicamente nela mesma mas em sua conjunção com os acontecimentos externos. Os progressos da natureza humana supõem, além de suas faculdades, as relações estabelecidas entre os homens e entre estes e as coisas. Quando Rousseau afirma, no Discurso sobre a desigualdade, que o mal é obra do homem, não pretende, com isso, sugerir – como poderia parecer aos que não compreendessem sua idéia de perfectibilidade – que suas causas estejam na natureza humana, seja em sua capacidade de progredir, seja nas paixões ou na reflexão. O mal não tem sua justificação na natureza humana nem em Deus, mas é produto das relações entre os homens. Daí a história da humanidade ser a história da perversão da natureza humana, que em si mesma é boa mas que se corrompeu na medida em que o homem se tornou sociável. É também nesse sentido que Guy Besse – para quem há uma espécie de axioma não formulado no pensamento de Rousseau que diz que “uma mesma natureza produz efeitos diferentes segundo as relações em que está colocada” – considera que as contradições sofridas pelo homem têm como causa as condições de uma sociedade que é “confronto, ardil, combate pelo poder sobre o outro”13. É numa sociedade contraditória, e como conseqüência desta, que o homem se torna o lobo do homem. Não há perversidade natural no coração humano. Seus vícios e suas infelicidades decorrem de seu modo de vida, das situações em que se encontram.
13
BESSE, G. Jean-Jacques Rousseau. L’apprentissage de l’humanité. Paris, Messidor/Éditions Sociales, 1988, p. 92-5.
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Se Rousseau parece abrir mão, no Emílio, de uma solução pela via da instituição pública, é porque tudo o que esta pode fazer supõe o respeito às cláusulas do contrato social que, afinal, é o que dá sustentação à esfera pública de modo geral. Contudo, em se tratando de questões a respeito das condições de realização da sociedade justa e igualitária delineada no Contrato social, é preciso atentar para a esfera da vida privada, dos costumes e hábitos em sociedade. Com efeito, no Contrato social, Rousseau chama atenção para o que seria uma quarta espécie de lei, além das leis políticas, civis e criminais, e que seria a mais importante delas, “que não se grava nem no mármore, nem no bronze, mas nos corações dos cidadãos [...], e insensivelmente substitui a força da autoridade pela do hábito” (CS, II,12, Pl. 394). Trata-se dos costumes e da opinião, sobre os quais Rousseau afirma serem a chave indestrutível para a ação do homem político. O que não significa que não haja separação entre a vida privada e a vida pública, entre a moral e a política, mas esta separação só é eficaz do ponto de vista jurídico, para determinar o que faz parte do domínio público. A política, contudo, não se reduz aos aspectos jurídicos e legais mas deve ser entendida também em seus aspectos práticos e concretos, como arte de governar e arte de formar os cidadãos. Se é a vontade geral que determina as leis convencionais de uma nação, são as vontades particulares que determinam a ação política. Michel Launay enfatiza bem a relação entre a arte política e a ciência dos costumes. Segundo ele, Rousseau precisava, para concluir sua teoria das instituições políticas, passar pelo aspecto irracional da política, isto é, pela história dos sentimentos e dos costumes. O verdadeiro político pretende “transformar os costumes dos homens, melhorar a sociedade para me-
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lhorar o homem e forjar homens verdadeiros para construir uma sociedade mais justa” 14. A consideração dos costumes e opiniões sociais, no âmbito da vontade particular, assim como o estudo do homem, como é em sua essência e como se transforma historicamente, a partir de suas relações sociais, políticas e econômicas, é fundamental para Rousseau, não porque para ele o indivíduo deva decidir o que é justo, o que é bem comum, utilidade pública ou o que está de acordo com a vontade geral, mas porque permite, ao nos levar às bases das paixões e da vontade humana, pensar sobre as condições da ação política enquanto tal. A importância dessas considerações para a reflexão política está implícita nessa passagem do Contrato social: “Ora, quanto menos se relacionem as vontades particulares com a vontade geral, isto é, os costumes com as leis, tanto mais deverá a força repressora aumentar.” (CS, III, 1, Pl. 397, p. 82)
Esta afirmação que nos leva a concluir pela íntima relação entre o poder político, de um lado, e a vontade, assim como o modo de vida, dos particulares, de outro. 14
LAUNAY, M. Jean-Jacques Rousseau. Écrivain politique (1712-1762). Grenoble, ACER, 1971, p. 262. Michel Launay, nesse brilhante trabalho, mostra os aspectos concretos e históricos do Contrato social e sua relação com o Emílio. Rousseau trata dos costumes e da opinião pública nos capítulos do Contrato social sobre a censura (capítulos 6 e 7 do livro IV) e sobre a religião civil. Launay reforça a tese de que a proposta de Rousseau no Emílio é a formação do cidadão. O aspecto prático e concreto do pensamento político de Rousseau foi, de modo geral, ignorado por seus intérpretes que não viram sua coerência e a unidade de suas preocupações no Contrato social e no Emílio.
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No Discurso sobre a desigualdade, Rousseau também manifesta a preocupação em garantir que a subjetividade humana não interfira na política, tentando imaginar um modo de fazer com que os particulares não possam dispor das leis fundamentais do contrato social. É preciso conferir à autoridade soberana um “caráter sagrado e inviolável” (Pl. 186). O que não significa, contudo, nem que as leis de convenção estejam sempre de acordo com sua finalidade nem que sejam eficazes, em si mesmas, contra os abusos dos particulares. Daí seu reconhecimento a respeito da fragilidade das leis e da importância dos costumes na esfera política: “Salvo a exceção única de Esparta, onde a lei velava principalmente pela educação das crianças e onde Licurgo estabeleceu costumes que quase o dispensavam de acrescentar-lhes leis – as leis, menos fortes do que as paixões, contêm os homens sem mudá-los.” (Pl. 187-8, p. 283)
O Emílio e o Contrato social, embora possam ser sustentados independentemente, não são, contudo, como quer Dérathé, excludentes. O argumento principal de Dérathé a esse respeito é o de que os princípios políticos e o fortalecimento do Estado não deixam espaço no Contrato social para as manifestações individuais, afora o consentimento de todos os integrantes do corpo político no momento do contrato15. Não é permitido, no plano político, apelar para a consciência individual porque, em última instância, quem decide sobre o que é justo e
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DÉRATHÉ, R. Jean-Jacques Rousseau et la science politique de son temps. Op. cit., p. 341-4.
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bom é a lei. Contudo, para Rousseau, a eficácia do poder político supõe, como condição, uma reflexão prévia sobre o desenvolvimento das faculdades mentais do indivíduo e sobre a relação deste com o modo de vida e os costumes de uma sociedade particular. A importância da teoria da consciência, que pode ser considerada o alicerce da antropologia elaborada por Rousseau, tem sua justificação nessas preocupações políticas. A unidade da obra de Rousseau, problema tão discutido entre seus intérpretes, consiste na proposta de se conhecer o que é o homem. A afirmação inicial do Contrato social, de que é preciso considerar os homens como são e as leis como podem ser, não desmente essa intenção e a exposição detalhada da antropologia de Rousseau, indispensável tanto ao educador como ao legislador, está no Emílio.
A EDUCAÇÃO DOMÉSTICA E OS LAÇOS DE HUMANIDADE Vida pública e vida privada aparecem constantemente vinculadas no Emílio. Desde o livro I – em que há uma opção pela educação doméstica – até o livro V – em que se propõe ao discípulo imaginário as viagens pelo mundo, para que este conheça a diversidade dos costumes e observe os diferentes governos – Rousseau nos sugere que não há uma nítida separação entre os costumes particulares e a administração de um corpo político. Nesses dois domínios, o que está em jogo é a natureza humana que, embora se modifique conforme as circunstâncias, não deixa de ser essencialmente a mesma. Para Rousseau, tanto na esfera pública como na esfera privada, é preciso começar por examinar o homem para, a par-
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tir de uma concepção de natureza humana, derivarmos as máximas relativas à educação pública e à educação doméstica. É recorrente, entre os comentadores de Rousseau, a indagação a respeito de sua opção, no Emílio, pela educação doméstica, o que parece, segundo alguns, confirmar a idéia de que Rousseau teria, nessa obra, renunciado à formação do cidadão. Segundo Dérathé, por exemplo, a diferença entre o Contrato social e o Emílio se dá também nesse plano pedagógico. Enquanto, no primeiro, a única educação compatível com os princípios políticos seria a educação pública, com o objetivo de formar o cidadão, no segundo trata-se de educar a criança para ser homem. Contudo, a opção pela educação doméstica não implica que Rousseau tenha renunciado à formação do cidadão. Rousseau não anuncia no Emílio que pretende formar o homem e não o cidadão, embora deixe de lado a educação pública, que já havia sido tema de suas reflexões no verbete “Economia política” e nas Considerações sobre o governo da Polônia. A “instituição pública e comum” e a “intituição particular e doméstica” aparecem, no Emílio, como duas espécies de instituições tão opostas quanto as concepções de homem civil e homem natural, a cada uma das quais corresponde respectivamente um tipo de educação: “educação pública” e “educação doméstica ou da natureza”. A opção por esta última, Rousseau não a faz sem, antes, indagar sobre a validade de se educar um homem apenas para si mesmo, insinuando que pretende harmonizar ambos na figura do Emílio: “Resta enfim a educação doméstica ou a da natureza, mas que será para os outros um homem unicamente educado para si mesmo? Se o duplo objetivo que se propõe pudesse
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porventura reunir-se num só, eliminando as contradições do homem, eliminar-se-ia um grande obstáculo à sua felicidade. Para julgar, fora preciso vê-lo inteiramente formado; fora preciso ter observado suas tendências, visto seus progressos, acompanhado sua evolução.” (E, I, Pl. 251, p. 15)
É preciso harmonizar sob os mesmos princípios as várias espécies de educação16; do contrário, o homem estará sempre dividido e em contradição consigo mesmo (E, I, Pl. 247-8). Rousseau, de modo geral, emprega dois elementos da natureza humana para pensar as associações entre os homens: o interesse e a afeição. Mostrando, por um lado, no Discurso so16
Essa idéia, anunciada no Emílio, não aparece no verbete “Economia política”, no qual Rousseau trata da educação pública como único modo de formar o cidadão. É preciso, contudo, ressaltar que na “Economia política” Rousseau trata do problema da formação do patriotismo exclusivamente do ponto de vista da oposição homem-cidadão, de modo que a finalidade do método pedagógico é fazer com que todos “considerem sua individualidade por suas relações com o corpo do Estado e só percebam sua própria existência como parte da existência desse corpo”. Ou seja, para formar o cidadão é preciso que o homem seja completamente desnaturado. É preciso, contrariamente ao que é afirmado no Emílio, que a criança seja educada desde cedo para o exercício de seus deveres porque, de outro modo, não é possível mudar suas inclinações naturais: “il n’est plus tems de nous tirer hors de nous-mêmes, quand une fois le moi humain concentré dans nos cœur y a acquis cette méprisable activité qui absorbe toute vertu et fait la vie des petites ames” (Ed. da Pléiade, t. III, Pl. 260). Nas Considerações sobre o governo da Polônia, em que também se apresenta a preocupação com a formação do cidadão, Rousseau segue, como no Emílio, embora sem explicitá-la, a idéia de harmonização das instituições pedagógicas e, por isso, não exclui a educação doméstica. Os princípios comuns à educação pública e doméstica se referem a uma certa sociabilidade. Daí Rousseau afirmar que todas as crianças, mesmo aquelas que passam pela educação doméstica, devem participar dos “jogos públicos”, pois é preciso acostumá-las “à regra, à igualdade, à fraternidade, às competições, a viver sob os olhos de seus concidadãos e a desejar a aprovação pública” (Ed. da Pléiade, t. III, Pl. 968 e tradução de L. R. Salinas Fortes, São Paulo, Brasiliense, 1982).
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bre a desigualdade, que as primeiras associações entre os homens tinham por finalidade a conservação da vida de seus membros e, por outro lado, no Emílio, que a primeira idéia relativa à vida em sociedade, a idéia de propriedade, só tinha sentido para seu discípulo pela relação que mantinha com seus interesses imediatos, Rousseau explica as causas das associações sem a suposição de uma sociabilidade natural entre os homens ou de um amor natural pelo gênero humano. Como nos descreve no Discurso sobre a desigualdade, antes de qualquer afeição que pudesse haver entre os homens, eles foram levados pelas dificuldades em sua adaptação ao meio ambiente a se associarem provisoriamente. As primeiras comparações que fizeram entre si, induzindo que, se havia conformidades relativas ao modo de se conduzir em certas circunstâncias particulares, haveria também maneiras de pensar e sentir comuns, deram-lhes “idéias grosseiras de compromissos mútuos” (Pl. 166), pelas quais podiam viver sob um acordo tácito por tanto tempo quanto fosse conveniente. As primeiras afeições entre os homens, “os primeiros desenvolvimentos do coração”, surgem num estágio posterior ao dessas primeiras associações provisórias, quando aparecem as famílias, pequenas sociedades em que o modo de vida já se modificou e o hábito de viver reunidos em residências fixas faz nascer “os mais doces sentimentos conhecidos do homem: o amor conjugal e o amor paterno” (Pl. 168). No Emílio, paralelamente à introdução das primeiras idéias concernentes às relações sociais baseadas nos interesses particulares, como as idéias de propriedade, de troca e de trabalho, são criadas as condições para que nasçam as primeiras sementes de humanidade no coração de Emílio (E, IV, Pl. 502). Estas não nascem espontaneamente, mas dependem da conjunção de si-
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tuações próprias para despertar no Emílio as primeiras afeições por seus semelhantes, a começar por aqueles que estão mais próximos. A suposição – herdeira de um certo empirismo – de que são os hábitos e costumes que moldam a natureza humana conforme as situações em que os homens se encontram é, no Emílio, fundamental. Até mesmo o amor que a criança tem pelos pais é, nesse sentido, uma aquisição. Assim como, no Discurso sobre a desigualdade, os primeiros desenvolvimentos do coração são propiciados pelo hábito, no Emílio, as primeiras afeições da criança são consideradas como um “apego puramente maquinal”, “instinto cego”, que só se manifesta devido ao hábito de observar os outros agindo em função de seus cuidados e que tem como base unicamente o interesse, aliás instintivo, pela própria conservação (E, IV, Pl. 492). O amor que se desenvolve a partir desse hábito, mais adiante, deixa de ter como única base o princípio de conservação e se estende ao gênero humano. Tanto a esfera pública como as esferas privada e doméstica têm sua sustentação nesse amor à humanidade. Embora Rousseau não empregue esse sentimento como explicação da origem das associações entre os homens, confere-lhe tanta importância na vida pública quanto ao amor à pátria. Os homens se associam primeiramente por interesses comuns mas, à medida que suas relações se desenvolvem, não se pode mais deixar de supor a união pelas afeições e pelos costumes. É da união das diferentes famílias fixadas em uma mesma região que nascem as nações particulares, “unidas por costumes e caracteres, não por regulamentos e leis, mas pelo mesmo gênero de vida e de alimentos e pela influência comum do clima” (Discurso sobre a desigualdade, Pl. 169). O desenvolvimento das sociedades é narrado no Discurso sobre a desigualdade por meio da conjunção de, por um lado,
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aspectos relativos aos fenômenos naturais e ao modo de vida e de produção e, por outro, dos princípios da natureza humana e suas derivações a partir de novas relações sociais. Até se chegar às associações políticas, ocorreram várias mudanças no modo dos homens se relacionarem econômica e socialmente, a partir das quais novas aquisições foram feitas e incorporadas à natureza humana, como, por exemplo, aqueles doces sentimentos de amor entre os familiares. É importante destacar essa suposição de Rousseau de que há no início das sociedades uma formação, unida por costumes e laços afetivos, resultante do agrupamento de várias famílias. Apesar de reconhecer, desde o Discurso sobre a economia política, a clássica separação entre o poder político e o poder paterno, há para Rousseau uma ligação estreita entre a sociedade política e a família à medida que, em ambos os casos, guardadas as devidas proporções, trata-se de uma comunhão de certos valores e costumes, possibilitada não apenas por interesses comuns mas também pelos laços afetivos, já que são estes que sustentam os vínculos sociais17. A reunião entre os homens, baseada exclusivamente nos interesses e vantagens dos particulares, é precária. Do mesmo modo que um indivíduo aceita, por interesse próprio, participar de uma comunidade ou corpo político, ele pode romper o pacto quando lhe aprouver. Nesse caso, a sociedade que se estabelece 17
Pierre Burgelin observa que a família, para Rousseau, é o “primeiro modelo das sociedades políticas”. A cidade não é uma grande família, mas as leis sociológicas que se aplicam em ambas são as mesmas, a relação entre o indivíduo e a pátria é a mesma que a mantida entre ele e a família. Em ambos os casos o indivíduo experimenta um sentimento de comunidade, traduzido, segundo Burgelin, pelo termo “piedade”. Cf. BURGELIN, P. La philosophie de l’existence de J.-J. Rousseau. Paris, Presses Universitaires de France, 1952, p. 516-22.
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dificilmente será duradoura, permanecendo inteiramente ao dispor das vontades particulares. Os vínculos sociais para Rousseau são, com efeito, mais fortes quando baseados em laços afetivos. Para que se possa falar num acordo, qualquer que seja ele, entre os homens é preciso supor um princípio na natureza humana que possibilite que o indivíduo compartilhe com os outros – sejam estes considerados como seus compatriotas, seus vizinhos, seus familiares ou simplesmente como homens – sentimentos comuns. É somente a partir da identificação desses sentimentos nos outros que ele passa a considerá-los como seus semelhantes. É o princípio da piedade natural, definido no Discurso sobre a desigualdade como um sentimento natural que “moderando em cada indivíduo a ação do amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua de toda a espécie” (Pl. 156), que, nesse sentido, está na base dos sentimentos de amor ao outro e amor à humanidade, pois é a partir do desenvolvimento desse princípio que nasce a sensibilidade humana e, portanto, é a partir dele que se estabelece uma comunidade por afeições. A piedade é caracterizada no Emílio como “primeiro sentimento relativo” do homem (E, IV, Pl. 505) no sentido de que é o princípio que o torna sensível aos outros18. Embora Rousseau nos faça ver no Emílio que o aparecimento da piedade na criança não é espontâneo, mas que depende de circunstâncias favoráveis que lhe permitam conhecer e se identificar com seus semelhantes (E, IV, Pl. 505), a piedade 18
A piedade natural é um princípio da natureza humana a partir da qual se desenvolve a sociabilidade, o que não significa que o homem seja naturalmente sociável. Rousseau acredita na anterioridade dos sentimentos de humanidade e de benevolência em relação ao pacto social, mas nega a existência de uma “sociedade geral do gênero humano”, conforme podemos observar no Manuscrit de Genève, Livro I, Capítulo 2.
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é um princípio original da natureza humana e suas modificações no indivíduo, assim como na espécie humana, acompanham os vários tipos de relações sociais, desde a família até às associações políticas. É preciso diferenciar quando Rousseau usa o termo piedade para designar um princípio da natureza humana e quando se refere a ele como um sentimento psicológico. Antes das modificações ocorridas na vida social a piedade, enquanto princípio lógico, do ponto de vista do hipotético estado puro de natureza, é considerada por Rousseau como aquilo que estaria no lugar das leis, dos costumes e da virtude (Discurso sobre a desigualdade, Pl. 156). Ela é condição necessária da vida afetiva entre os homens e, portanto, do sentimento de humanidade. Mas, enquanto sentimento psicológico, a piedade supõe elementos adquiridos na vida social. Ela é, nesse sentido, o produto da sociedade e é posterior ao sentimento de humanidade. É preciso que o homem aprenda primeiramente a reconhecer o outro como seu semelhante para que possa se identificar com ele e ativar, através da imaginação, o sentimento de piedade. Do ponto de vista lógico, a concepção de piedade natural, paralelamente à da bondade natural, sustenta a tese de que o homem não é o “lobo do homem”, de que, não obstante o interesse particular que cada um tem por sua própria conservação, o indivíduo preserva sua espécie. Se o princípio da piedade natural não é uma causa direta das associações é, ao menos, o que permite falar numa comunidade afetiva. Por outro lado, a piedade, enquanto sentimento psicológico, depende, para se tornar ativa, de outras faculdades humanas, por exemplo da imaginação (E, IV, Pl. 504-6), e supõe uma comunidade compartilhando valores e costumes, condição real para a formação dos laços afetivos entre os indivíduos.
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A família, como é o primeiro tipo de associação em que os homens se fixam em habitações comuns, é o solo de onde nascem os costumes e as afeições recíprocas. O que supõe, por outro lado, não apenas uma união afetiva pensada do ponto de vista negativo, ou seja, como união pelas misérias comuns, gerada pelo sentimento de piedade, mas, mais do que isso, uma união afetiva baseada no sentimento de humanidade. A piedade sem o sentimento de humanidade é fraqueza (E, IV, Pl. 548), é impotente, na medida em que depende do fato de alguém reconhecer o outro como seu semelhante. Assim, para Rousseau, a família é e não é natural. Ela não é natural do ponto de vista de sua origem, pois os homens são independentes entre si19. Contudo, ela supõe um amor ao outro que não é apenas convencional, mas que pode ser deduzido do princípio da piedade natural. Nesse sentido, desde que é na vida familiar que o homem desenvolve sua sensibilidade natural, permanecida apenas como potência num estado puro e hipotético de natureza, quaisquer tipos de associações entre famílias, baseados ou não em laços convencionais, guardam certa analogia com esse tipo de relação estabelecida entre pais e filhos e entre os dois sexos à medida que necessita, não do ponto de vista da origem, mas do ponto de vista de seu funcionamento, de vínculos afetivos.
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É preciso diferenciar o “amor moral” do “amor físico”. No estado puro de natureza não havia nenhuma relação familiar entre os homens. O macho e a fêmea só se aproximavam por uma necessidade física, após a qual se separavam e nunca mais se viam. Os filhos só permaneciam com a mãe enquanto a necessidade física de alimentação o exigisse. A partir do momento em que aprendiam a procurar seus próprios alimentos, abandonavam-na. Cf. Discurso sobre a desigualdade, Pl. 146-7 (nota XII).
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A relação entre a associação política e a vida familiar e doméstica está implícita na crítica que Rousseau faz, no Emílio, à comunidade imaginada por Platão: “Tendo tirado de seu governo as famílias particulares [...] esse belo gênio tudo combinara, tudo previra: antecipava-se a uma pergunta que talvez ninguém tivesse pensado em fazer; mas resolveu mal o problema [...]. Falo dessa subversão dos mais doces sentimentos da natureza, imolados a um sentimento artificial que só por eles pode subsistir: como se não fosse preciso um laço natural para formar os laços de convenção! Como se o amor por seus parentes não fosse o princípio do que se deve ao Estado! Como se não fosse pela pequena pátria, que é a família, que o coração se apega à grande! Como se não fosse o bom filho, o bom marido, o bom pai que fazem o bom cidadão!” (E, V, Pl. 699-700, p. 430)
Mesmo negando, de certo modo, que a família seja uma associação natural, Rousseau vê nela a base do desenvolvimento de sentimentos naturais, que são como “sementes de humanidade”, que só esperam para crescer que sejam cultivadas. A opção pela educação doméstica decorre dessa preocupação de Rousseau em desenvolver no Emílio um amor pela humanidade, o que não contradiz sua intenção de fazer dele um cidadão exemplar. A educação do homem é uma espécie de pré-requisito para a educação do cidadão. Antes de ter um métier, uma ocupação, antes de se preocupar com seus negócios particulares e entrar ativamente na vida em sociedade, Emílio deve aprender a ser homem, vocação comum a todos com quem se relaciona e base primeira para qualquer atividade social que possa desempenhar.
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A idéia de que Rousseau estaria renunciando à formação do cidadão, por ter concluído que há uma crise na instituição pública, é insustentável. Assim como poderíamos concluir, tal como o fazem seus comentadores, que há uma desesperança de Rousseau em relação à vida política, a partir de sua afirmação no início do Emílio de que “onde não há pátria não pode haver cidadãos”, poderíamos também concluir, de modo igualmente apressado, que existiria uma desesperança de Rousseau em relação à vida doméstica, com base no que é afirmado no livro V: “Infelizmente não há mais educação particular nas grandes cidades. Nestas, a sociedade se mistura geralmente tanto, que não há mais lugar para retiro nem há intimidade. À força de viver com todo mundo, não se tem mais família; mal conhecem os pais, vêem-nos como estranhos; e a simplicidade dos costumes domésticos extingue-se juntamente com a doce familiaridade que lhe dava encanto.” (E, V, Pl. 739, p. 465)
De modo que poderíamos afirmar inadvertidamente, seguindo esse raciocínio, que Rousseau não opta nem pelo homem nem pelo cidadão. Nas sociedades mais desenvolvidas, em que há maior distância do ideal de simplicidade, nas sociedades menos jovens e mais corrompidas, nas quais os antagonismos são maiores e se vive em função do luxo, não somente há, para Rousseau, uma crise na instituição pública como também na instituição privada. Não se pode desvincular a opção metodológica concernente à educação de sua finalidade pedagógica – nesse sentido, a educação pública e a educação doméstica se diferenciam tanto quanto aos fins propostos como quanto ao método emprega-
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do –, mas é preciso compreender que tal oposição não diz respeito à oposição homem-cidadão. Não há simetria entre essas duas oposições: a educação pública não exclui o homem nem a educação doméstica exclui o cidadão. O método negativo exposto ao longo do Emílio, aplicado diretamente no indivíduo, tem por objetivo formar o “homem raro”, que seja ao mesmo tempo homem e cidadão. Daí a metáfora do navegador: “Para formar esse homem raro que devemos fazer? Muito, sem dúvida: impedir que nada seja feito. Quando não se trata senão de ir contra o vento, bordeja-se; mas se o mar está agitado e se quer não sair do lugar, cumpre lançar a âncora. Toma cuidado, jovem piloto, para que o cabo não se perca ou que tua âncora não se arraste, a fim de que o barco não derive antes que o perceba.” (E, I, Pl. 251, p. 15)
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CAP. 2 – A TEORIA DA CONSCIÊNCIA E A SOCIABILIDADE
O PRIMADO DO SENTIMENTO DA CONSCIÊNCIA Quando Rousseau busca entender o que é o homem está implícita a idéia de que a realização de suas potencialidades só pode ocorrer na esfera social e jamais no isolamento. Embora, como observa no Emílio, o homem não seja um ser sociável por natureza, foi feito para se tornar sociável (E, IV, Pl. 600). O que significa que ele é de tal modo constituído que somente através das relações sociais pode desenvolver todas as capacidades e faculdades das quais fora naturalmente dotado. A consciência, nesse sentido, depende das associações entre os homens. Para Rousseau é somente com o aparecimento das primeiras associações que se pode falar no desenvolvimento da linguagem e da razão humana, assim como da imaginação, da memória, da consciência, e de todas as potencialidades que não eram requeridas naquele modo de vida do estado puro de natureza, baseado exclusivamente no interesse pela sobrevivência20. Com as relações entre os homens se instaura também a esfera da afetividade, da moralidade e, claro, da política. 20
Vários são os intérpretes de Rousseau que pretendem derivar dessa suposição uma antropologia social, a começar por Claude Lévi-Strauss. Cf. LÉVISTRAUSS, C. “Jean-Jacques Rousseau, fundador de las ciencias del hombre” (Suíça, 1962). In: Presencia de Rousseau. Buenos Aires, Nueva Visión, 1972. Também MERCKEN-SPAAS, G. “The social anthropology of Rousseau’s
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Contudo, se consideramos o sentido inverso, não mais do ponto de vista cronológico, e sim do ponto de vista lógico, a afetividade, a consciência e a moralidade são anteriores às relações sociais. Nesse sentido, a moral do indivíduo, fundada nas evidências da consciência, que Rousseau apresenta na “Profissão de fé do vigário saboiano”, no Emílio, é fundamental para compreendermos o que ele entendia por sociabilidade humana. A teoria da consciência, associada de modo geral à moral do indivíduo, está no centro do problema, já que apresenta, através do critério de evidência e das concepções de ordem geral e felicidade, o fundamento metafísico das associações civis e políticas e as condições formais para a elaboração das esferas da afetividade e da moralidade. Não é possível falar em afeições entre os homens sem considerarmos a consciência, pois ela é um princípio anterior às afeições particulares. Por um lado, a consciência confere, às afirmações relativas à existência do “eu” e à identidade consigo mesmo, um princípio de evidência e, por outro, permite afirmar a existência do mundo exterior, o que inclui todos os outros homens, e estender, a partir dessa segunda evidência, a consciência, que primeiramente o homem tem de si mesmo, para os outros21. Esses dois aspectos, evidência da própria existência e
Émile”. In: Studies on Voltaire and the Eighteenth Century. v. 132, 1975 e MOSCONI, J. “Analyse et genèse: regards sur la théorie du devenir de l’entendement au XVIIIè. siècle (1)”. In: Cahiers pour l’analyse. n. 4, sept-oct. 1966. 21
O reconhecimento dos outros pela consciência é, como observa Richard Noble, condição para o desenvolvimento do homem em direção à sociabilidade, “the necessary cognitive condition of our subsequent progress into fully-fledged social beings”. A consciência de si é, para Rousseau, sempre anterior à consciência do outro. Para Pierre Burgelin, o sentimento de existência é insuficiente
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da existência dos outros, condições formais dos sentimentos de afeição entre os homens, têm também importância fundamental no interior da metafísica do vigário saboiano, à medida que permitem a dissolução da dúvida, gerada por aquele “obscurecimento da evidência dos princípios” (E, IV, Pl. 567), e a afirmação dos três dogmas ou artigos de fé22. O critério de evidência formulado na “Profissão de fé” é o sentimento interior. Rousseau afirma o sujeito moral e faz uma analogia com o cogito cartesiano23 mas, ao invés de partir do pensamento, parte do sentimento para afirmar a própria existência:
para a felicidade do indivíduo porque a grandeza do homem consiste nele saber unir o sentimento da existência comum ao da existência individual. Mas essa extensão da consciência de si ao outro nem sempre é espontânea; ela depende, no entender de Noble, das circunstâncias e não de uma intencionalidade da consciência. Cf. BURGELIN, P. “Expansion”. In: La philosophie de l’existence de J.-J. Rousseau. NOBLE, R. Language, subjectivity and freedom in Rousseau’s moral philosophy. New York, London, Garland Publishing, 1991, p. 74-94. 22
O primeiro dogma afirma que há uma vontade movendo o universo e animando a natureza, o segundo afirma que há uma inteligência ordenadora e o terceiro, que “o homem é livre em suas ações e, como tal, animado por uma substância imaterial”. (Cf. E, IV, Pl. 576-87).
23
Para Georges Beaulavon, que acredita que Rousseau jamais tenha abandonado o espírito cartesiano, sua originalidade em relação a Descartes consiste na separação entre sentimento e razão. A “Profissão de fé do vigário saboiano” além de ser, segundo ele, uma justificação do dualismo de Descartes, segue seu método, à medida que considera a evidência, a verdade objetiva – que o afasta do utilitarismo e do pragmatismo –, a dedução e a necessidade de justificar e provar suas crenças. Cf. BEAULAVON, G. “La philosophie de J.-J. Rousseau et l’Esprit Cartésien”. In: Révue de métaphysique et de morale. Année 44, 1937. Também GOUHIER, Henri. “Ce que le Vicaire doit à Descartes”. In: Les méditations métaphysiques de Jean-Jacques Rousseau. Paris, Vrin, 1984.
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“Existo e tenho sentidos pelos quais sou afetado. Eis a primeira verdade que me impressiona e que sou forçado a aceitar.” (E, IV, Pl. 570, p. 310) “Existir para nós é sentir. Nossa sensibilidade é incontestavelmente anterior a nossa inteligência, e tivemos sentimentos antes de idéias.” (E, IV, Pl. 600, p. 337)
Contra os materialistas de seu tempo, Rousseau pretendia mostrar o absurdo de se atribuir movimento à matéria e, contra os sensualistas, que há no espírito humano um princípio ativo irredutível aos órgãos sensoriais. A passagem em que afirma “comparar é julgar: julgar e sentir não são a mesma coisa” (E, IV, Pl. 571) é uma resposta direta à afirmação de Helvétius em Do espírito, “julgar é apenas sentir”24. Para Rousseau as sensações por si mesmas são incapazes de estabelecer relações. Elas só nos apresentam os objetos separadamente, enquanto a razão os compara e nos apresenta suas semelhanças e diferenças. A razão, para Rousseau, é entendida sob dois aspectos: enquanto capacidade de comparar as sensações, produzindo as idéias simples, e, de modo não muito diferente, enquanto capacidade de comparar as idéias simples e elaborar as idéias complexas. À primeira ele dá o nome de “razão sensitiva” e à segunda, “razão intelectual” (E, II, Pl. 417). Se podemos, apesar da semelhança entre sua concepção de razão e a que Locke apre24
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. De l’esprit (1758). Paris, Fayard, 1988. (Discurso I, Capítulo 1). Essa questão gerou uma grande discussão entre os dois filósofos. Rousseau afirma, contra Helvétius, que há um princípio ativo no espírito humano, sem o qual não haveria conhecimento. A própria capacidade de comparar sensações ou reuni-las no espírito, para formar a imagem de um objeto sensível particular, exige um princípio ativo, sem o qual nem seríamos capazes de produzir as idéias simples referentes a esses objetos.
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senta no Ensaio acerca do entendimento humano25, falar num racionalismo de Rousseau, do mesmo modo que se fala no racionalismo de Descartes, é porque ele transfere algumas características da razão cartesiana para o sentimento, tal como o critério de evidência. É o sentimento interior, sentimento da consciência, que detém no pensamento de Rousseau o privilégio de conferir unidade ao sujeito moral. A evidência da consciência relativa à existência de um “eu” que sente e que é o mesmo em todos os momentos, é o ponto de partida de todo o conhecimento humano26. Antes da razão fazer comparações, é preciso assegurar a existência de si mesmo que, como Rousseau nos leva a concluir, serve como ponto de referência para o conhecimento da ordem do universo: “Tendo-me, por assim dizer, assegurado de mim mesmo, começo a olhar para fora de mim e considero-me, com uma espécie de calafrio, jogado, perdido neste vasto universo e como que afogado na imensidade dos seres, sem nada saber do que são, nem entre si nem em relação a mim. Estudo-os, observo-os; e o primeiro objeto que se apresenta a mim para compará-los sou eu mesmo.” (E, IV, Pl. 573, p. 312) 25
LOCKE, John. An essay concerning human understanding. Livro II, cap. 1, §2, p. 121 (“All ideas come from sensation or reflection...”) e cap. 11 sobre as operações da mente (edição de A. Cambell Fraser publicada em Great books of the western world, v. 35. Chicago, Enciclopaedia Britannica, 1952). Cf. E, II, Pl. 370: “Comme tout ce qui entre dans l’entendement humain y vient par les sens [...]. Pour apprendre à penser il faut donc exercer nos membres, nos sens, nos organes, qui son les instrumens de nôtre intelligence...”. Também E, IV, Pl. 551-2.
26
O desenvolvimento da consciência de si no indivíduo marca, segundo Rousseau, o início do “ser moral”. Ela depende também da memória à medida que é esta que estende no tempo a “identidade do eu”. Cf. E, II, Pl. 301 e E, IV, Pl. 590-1.
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A razão, sem os princípios da consciência, é impotente. Tudo o que ela pode fazer a partir da observação do mecanismo da natureza é descrever algumas leis gerais. E, para Rousseau, as leis gerais formuladas pela tradição filosófica, seja a idealista ou a materialista, só dizem respeito aos efeitos e não às causas e “não bastam para explicar o sistema do mundo e a marcha do universo.” (E, IV, Pl. 575). A mais importante idéia abstrata, a que nos permite saltar do mundo dos objetos sensíveis para o dos objetos intelectuais e que, na cadeia dedutiva construída pelo vigário saboiano, assume o lugar de primeiro princípio, é a idéia de Deus27. É a consciência que permite à razão, a partir da observação da natureza, conceber uma inteligência ordenadora dando movimento à matéria e animando a natureza. Com o auxílio da consciência, a razão deixa de se limitar à mera descrição das leis da natureza, para postular uma ordem universal e inteligível, sem a qual não seria possível o conhecimento. Conhecer para Rousseau é ordenar. A inteligibilidade da natureza não pode consistir no caos, que é, segundo ele, “mais inconcebível do que a harmonia” (E, IV, Pl. 578), mas reside na unidade de uma causa primeira28. Daí a passagem da “Profissão de fé”: “Quanto mais eu observo a ação e a reação das forças da natureza agindo umas sobre as outras, mais acho que, de 27
Para Burgelin o “j’existe” é a idéia primeira segundo o método e a idéia de Deus é primeira segundo os princípios. Cf. nota ao Emílio, Pléiade, p. 1517-8.
28
Ezequiel de Olaso observa o fracasso de Rousseau em sua intenção de fundar uma metafísica como busca dos primeiros princípios e primeiras causas. A metafísica exposta na “Profissão de fé” é, para Olaso, uma “metafísica dialética”, que só alcança conclusões prováveis. Cf. OLASO, E. de. “Los dos escepticismos del vicario saboyano”. In: Manuscrito. v. III, n. 2, abril de 1980, p. 13.
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efeito em efeito, é sempre preciso remontar a alguma vontade como causa primeira; pois supor um progresso de causas ao infinito é não supor nenhum.” (E, IV, Pl. 576).
em que Rousseau afirma também a existência de uma “unidade de intenção que se manifesta nas relações de todas as partes do grande todo” (E, IV, Pl. 580) e que “tudo é um e anuncia uma inteligência única” (E, IV, Pl. 581). A unidade do homem, que aparece também como condição da verdadeira felicidade, é primeiramente experimentada pela consciência e não apreendida pela razão29. É graças à consciência, que Rousseau chama de “instinto divino” e sem a qual o homem se perde de erro em erro com um “entendimento sem regra” e uma “razão sem princípio” (E, IV, Pl. 600-1), que o homem se relaciona com as verdades eternas. A existência de Deus não pode, segundo ele, ser provada unicamente através da razão. Aliás, nem é preciso prová-la: basta experimentar em seus efeitos, através do sentimento interior, a soberana harmonia e a concordância do todo, para percebermos sua existência. A existência de Deus deve ser experimentada e não pensada. Daí a descrição do vigário saboiano de sua experiência religiosa: “percebo Deus por toda parte em suas obras; sinto-o em mim, vejo-o ao redor de mim.” (E, IV, Pl. 581). 29
Para Burgelin o dictamen da consciência assegura ao homem sua unidade, introduzindo-o num universo que a experiência dos sentidos é incapaz de revelar, e, por isso, permite a passagem da moral à metafísica, garantindo ao homem a unidade final do amor da ordem e do amor de si. É a consciência que estabelece, segundo ele, a ordem interior que conduz à felicidade e que introduz as condições de toda atividade racional. A subordinação da razão à consciência é, nesse sentido, absoluta. Cf. BURGELIN, P. La philosophie de l’existence de J.-J. Rousseau. Op. cit., cap. 3.
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A razão aparece no Emílio como uma faculdade descritiva incapaz de chegar às primeiras causas. Aliás, foi o reconhecimento da impotência da razão em relação aos princípios que resolveu o problema do vigário saboiano em relação à dúvida cética. Segundo Ezequiel de Olaso, para tratar da “enfermidade pirrônica” Rousseau faz uso de uma terapia nos moldes do “procedimento acadêmico”, fundado na idéia de “conhecimento provável”30, mas a solução que dá ao problema está na teoria da consciência. A consciência apresentada na “Profissão de fé”, segundo Olaso, apresenta a infalibilidade buscada pelo ceticismo pirrônico. Ela é “uma voz mágica que diz o mesmo na consciência de todos os homens e é uma voz imbatível que não é dogmática”31. 30
O “ceticismo acadêmico”, segundo Ezequiel de Olaso, mantém do ceticismo pirrônico a dúvida sobre o conhecimento dos primeiros princípios e o reconhecimento dos limites do espírito humano mas admite, ao menos, critérios razoáveis, substituindo o problema da verdade pelo da verossimilhança. Cf. OLASO, E. de. “Los dos escepticismos del vicario saboyano”. In: Manuscrito. Op. cit., p. 11-7. Também E, IV, Pl. 567-70 e Lettre à M. de Franquières, 15 jan. 1769, na edição da Gallimard, t. IV: “J’examinai tous les sistémes sur la formation de l’univers que j’avois pu connoitre, je méditai sur ceux que je pouvois imaginer. Je les comparai tous de mon mieux: et je me décidai, non pour celui qui ne m’offroit point de difficultés, car ils m’en offroient tous; mais pour celui qui me paroissoit en avoit le moins [...]. J’avois alors, je l’avoue, une confiance si temeraire, ou du moins une si forte persuasion, que j’aurois défié tout philosophe de proposer aucun autre sisteme intelligible sur la nature, auquel je n’eusse opposé des objections plus fortes, plus invincibles que celles qu’il pouvoit m’opposer sur le mien, et alors il falloit me resoudre à rester sans rien croire, comme vous faites, ce qui ne dépendoit pas de moi, ou mal raisonner, ou croire comme j’ai fait” (Pl. 1134-5).
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Cf. OLASO, E. de. “Los dos escepticismos del vicario saboyano”. In: Manuscrito. Op. cit., p. 21. Olaso observa que a finalidade do pirrônico é a prática: o saber que busca deve levá-lo à serenidade. Assim, embora encontre a variedade de opiniões no momento em que está em busca da physis e decida abster-se de julgar (epojé), jamais deixa de agir ou abole todas as suas crenças, continuando a aceitar os impulsos naturais (instintos, hábitos, sentimentos de piedade). “A descoberta pirrônica, observa Olaso, reside em haver advertido que, ao renunciar a conduzir sua vida segundo uma filosofia, possa guiá-la segundo a natureza” (p. 10-1).
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É somente com base no sentimento interior da consciência que a razão contribui para o conhecimento e para a ação humana. É a consciência, pela qual fala a “voz da natureza”, que, segundo Rousseau, revela aos homens “as verdades que importa conhecer” (E, IV, Pl. 569). As concepções de evidência apresentadas no Emílio, como tudo a que o sentimento interior é levado a dar consentimento e, de verdade, como o que se relaciona de modo necessário com aquela, isto é, como tudo o que pode ser deduzido racionalmente a partir da evidência do sentimento, conferem à consciência a primazia no conhecimento. Na “Carta a Franquières”, Rousseau afirma a relação entre o conhecimento do universo e o conhecimento de si mesmo, com base no dictamen da consciência, que equivaleria à “luz interior” do Emílio. Contra a desconfiança de Franquières em relação ao sentimento interior, Rousseau argumenta: “Esse sentimento interior é o da própria natureza; é um apelo de sua parte contra os sofismas da razão, e o que o prova é que ele jamais fala com tanto vigor do que quando nossa vontade cede com a maior complacência aos juízos que ele se obstina em rejeitar. Longe de acreditar que quem julga a partir dele esteja sujeito a se enganar, creio que ele jamais nos engana e que ele é a luz de nosso frágil entendimento, quando queremos ir mais longe daquilo que podemos conceber”32
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Cf. Lettre à M. de Franquières, 15 jan. 1769, publicada na edição da Pléiade, t. IV, Pl. 1138-9.
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O PRINCÍPIO DE ORDENAÇÃO E A VERDADEIRA FELICIDADE A reflexão sobre a moral do homem ou, se quisermos, a moral do indivíduo, envolve a teoria da consciência em dois aspectos. Primeiramente, a teoria da consciência, à medida que apresenta o pressuposto fundamental da ordenação, é também condição para a formação das idéias morais. Em segundo lugar, a noção de felicidade apresentada no Emílio pode ser explicada a partir da concepção de ordem geral da natureza à qual a consciência dá acesso. A felicidade do indivíduo envolve, por um lado, a posse de si mesmo e o equilíbrio interior e, por outro, do ponto de vista das relações entre os homens, a consideração da felicidade dos outros e é por meio da consciência que o homem sente, não somente a evidência de sua existência, mas também seu acordo com a ordem da natureza, o que lhe permite estender seu “eu” ao todo do qual faz parte. A primeira concepção de felicidade que Rousseau nos fornece, logo no livro II do Emílio, tem como referência os desejos, as faculdades, o poder (“puissance”) e a vontade (E, II, Pl. 303-4). O homem é infeliz porque estende seus desejos para além de suas faculdades, isto é, porque quer mais do que pode realizar, deseja aquilo que está além de suas potencialidades; seria feliz se pudesse equilibrar desejo e faculdade, poder e vontade. Não se trata de diminuir os desejos nem de aumentar as faculdades do espírito. O equilíbrio a que se refere consiste mais num equilíbrio qualitativo. Trata-se menos de aumentar ou diminuir cada um desses pólos, mas de mudá-los qualitativamente: mudar os objetos do desejo e da vontade e mudar o emprego das faculdades e potencialidades.
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A verdadeira felicidade, tal como aparece no livro IV, consiste primeiramente na posse de si mesmo e só pode ser alcançada pelo equilíbrio interior. Rousseau supõe a unidade original do homem, a qual contrapõe à fratura do homem civil, às contradições experimentadas pelo homem que vive em sociedade entre as inclinações e os deveres, entre os desejos do corpo e os da alma, entre seus interesses enquanto indivíduo e seus interesses enquanto membro de uma comunidade. A busca do homem pela felicidade pode ser explicada, de certo modo, pela nostalgia desse estado original no qual não havia tais contradições. O que não significa que a felicidade humana autêntica seja a do homem solitário, como pretende Raymond Polin33. O momento de verdadeira felicidade é aquele em que o homem, tal como no estado puro de natureza, vive o momento presente. É no sentimento do “eu”, presente a si mesmo no instante fugaz do sentimento de existência, que o homem experimenta a maior felicidade de que é capaz nessa vida. Trata-se do “eu” construído em analogia com a concepção de homem original que, segundo Burgelin, nos deixa a nostalgia de unidade que chamamos de felicidade34. 33
Polin exagera quando afirma a presença de uma nostalgia de solidão no pensamento político de Rousseau. Seria preciso, segundo ele, restaurar a felicidade do indivíduo solitário no seio da vida em comum, pois a solidão é, no seu entender, a “única expressão natural da liberdade”. Cf. POLIN, R. La politique de la solitude. Essai sur J.-J. Rousseau. Paris, Sirey, 1971, p. 5, 150 e 248.
34
Na introdução ao Emílio da edição da Pléiade, Burgelin se refere a essa felicidade como “primeira felicidade”, que estaria relacionada com o estado puro de natureza. Trata-se de uma felicidade, fornecida pela natureza, que não envolve reflexão, distinção do corpo e da alma, mas apenas o prazer. Ela significa simplesmente amar-se a si mesmo. O que não significa que a felicidade seja perderse no prazer, pois o amor a si mesmo envolve também a construção de si. A condição dessa felicidade é a adesão a si mesmo, sem contradição (p. CXLVII-
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N’Os devaneios do caminhante solitário, Rousseau descreve seus momentos de êxtase, de abandono ao puro sentimento de existência, como aqueles em que se esquece de si mesmo e da temporalidade, ou seja, da lembrança do passado e dos projetos para o futuro35. A felicidade perfeita não se confunde com os prazeres mas é plenitude, é o sentimento de que não há na alma nenhum vazio que se deva preencher. O sentimento de existência, fonte dessa perfeita e plena felicidade, é também um esquecimento das coisas exteriores ao sujeito que o experimenta: “de que desfrutamos numa tal situação? De nada exterior a nós, de nada a não ser de nós mesmos e de nossa própria existência” (“Quinta caminhada”). O que não significa que os sentimentos de existência e de felicidade independam das sensações provocadas pelo mundo exterior. Na “Segunda caminhada” fica clara a relação entre o sujeito que experimenta a felicidade no puro sentimento de existência e sua presença no mundo: CXLIX). Cf. também BURGELIN, P. La philosophie de l’existence de J.-J. Rousseau. Op. cit., cap. 7, onde afirma que a adesão imediata e total a si mesmo, que é a simples consciência de existir, não implica conhecimento nem esforço (p. 225). Não devemos entender o princípio de amor a si mesmo como uma diluição do “eu” nos prazeres nem pretender que seja condição suficiente para a felicidade. 35
Cf. Les rêveries du promeneur solitaire, edição da Pléiade, t. I, “Quinta caminhada”: “Mais s’il est un état où l’ame trouve une assiete assez solide pour s’y reposer tout entiére et rassembler là tout son être, sans avoir besoin de rappeller le passé ni d’enjamber sur l’avenir; où le tems ne soit rien pour elle, où le présent dure toujours sans neanmoins marquer sa durée et sans aucune trace de succession, sans aucun autre sentiment de privation ni de jouissance, de plaisir ni de peine, de desir ni de crainte que celui seul de notre existence, et que ce sentiment seul puisse la remplir tout entiere; tant que cet état dure celui qui s’y trouve peut s’appeller heureux, non d’un bonheur imparfait, pauvre et rélatif tel que celui qu’on trouve dans les plaisirs de la vie mais d’un bonheur suffisant, parfait et plein, qui ne laisse dans l’ame aucun vide qu’elle sente le besoin de remplir” (Pl. 1046).
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“Anoitecia. Percebi o céu, algumas estrelas e um pouco de verdura. Esta primeira sensação foi um momento delicioso. Era somente através dela que começava a sentir minha existência. Nascia nesse instante para a vida e parecia-me preencher, com minha leve existência, todos os objetos que percebia. Vivendo inteiramente o momento presente, de nada me lembrava; não tinha nenhuma noção distinta de minha própria pessoa, nem a menor idéia do que acabava de me acontecer; não sabia nem quem era nem onde estava; não sentia nem dor, nem medo, nem inquietude. Via correr meu sangue como teria visto correr um regato, sem mesmo pensar que esse sangue me pertencia de algum modo. Sentia, em todo o meu ser, uma calma maravilhosa à qual, cada vez que a relembro, nada encontro de comparável em toda a atividade dos prazeres conhecidos.” (Pl. 1005, p. 34)36
Trata-se de um momento de máxima interiorização, mas que supõe a idéia de que é também por essa interiorização que o homem se relaciona com a ordem universal da natureza. Assim, nesse momento, ele se separa de si mesmo, no sentido de se desligar de suas preocupações corriqueiras e de suas particularidades, para viver a máxima integração do “eu” com a ordem do universo: “Tenho êxtases, arroubos inexprimíveis a ponto de me fundir, por assim dizer, no conjunto dos seres, de me identificar com a natureza inteira” (“Sétima caminhada”). Rousseau supõe como primeira e mais importante condição de felicidade a unidade do homem – e não a solidão, pois esta é apenas circunstancial, não fazendo parte da essência do homem original, que se caracteriza fundamentalmente por sua 36
A tradução que empregamos é de Fúlvia Maria Luiza Moretto, Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1986.
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unidade – e afirma no Emílio a necessidade de uma espécie de auto-suficiência: “Aspiro ao momento em que, libertado das peias do corpo, serei eu sem contradições, sem partilha, e não precisarei senão de mim para ser feliz.” (E, IV, Pl. 604-5, p. 342). É preciso ressaltar que o equilíbrio interior envolve a “maîtrise de soi”, o controle do homem sobre todas as suas potencialidades e se confunde, nesse aspecto, com um dos sentidos mais significativos conferidos à liberdade humana no Emílio, que consiste no direito que todo homem tem sobre suas próprias forças37. O homem realmente livre é, como observa Rousseau, aquele que “só quer o que pode e faz o que lhe apraz”, 37
Bertrand de Jouvenel caracteriza a liberdade como “maîtrise de soi” e como responsabilidade por seu próprio destino. Essa liberdade se diferencia da liberdade política, na medida em que não implica numa participação na Soberania absoluta, mas é uma espécie de “soberania direta, imediata e concreta” do homem sobre si mesmo. A liberdade não é, nesse sentido, uma invenção moderna. Jouvenel observa que, apesar de ser difícil conceber uma sociedade em que cada um é seu próprio juiz e mestre de suas ações, Roma patriciana nos dá esse exemplo. A autonomia da vontade não causava desordem, segundo ele, por três motivos, relacionados à responsabilidade, às formas e aos costumes. O romano era livre para fazer o que quisesse desde que suportasse todas as conseqüências de suas ações. Eles eram levados à reflexão na medida em que cada ato se apresentava sob um aparato solene. As formas faziam os romanos sentirem que suas decisões, seus atos, tinham qualquer coisa de grave, de solene. Jouvenel cita L’esprit du droit romain, de Thering, para explicar as formas, que eram como freios da licenciosidade, escola da disciplina, da ordem e da liberdade: “Le peuple qui professe le vrai culte de la liberté comprend d’instinct la valeur de la forme, il sent qu’elle n’est pas un joug extérieur, mais le palladium de la liberté”. Todos os costumes impunham também ao homem livre um certo comportamento. Uma falha e a vergonha pública impunha as conseqüências. Cf. JOUVENEL, B. de Du pouvoir. Op. cit., p. 528. Paul Veyne também caracteriza essa “soberania sobre si mesmo”, distinguindo-a das virtudes cívicas, como finalidade individual, independente dos deveres do cidadão, e mostra como ela fazia parte, entre os romanos, de uma arte de bem viver. Cf. VEYNE, P. “O Império Romano”. In: História da vida privada I: do Império Romano ao Ano Mil. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 45-59, p. 201-23.
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é aquele que faz o que quer sem a necessidade dos outros e que “não tem necessidade, para fazê-lo, de pôr os braços de outro na ponta dos seus” (E, II, Pl. 309). A degradação e infelicidade do homem civil aparecem, desse ponto de vista, como perda da liberdade, porque o homem se enfraquece perdendo o direito sobre suas próprias forças, seja por tornar suas forças naturais insuficientes para a realização de suas necessidades e desejos, ou por alienar suas potencialidades e faculdades mentais. No estado de sociedade o homem perde a posse de si mesmo quando se torna dependente dos outros homens, de suas opiniões e de sua vontade. A proposta pedagógica no Emílio tem como ponto de partida essas exigências referentes à liberdade: controle de si mesmo e auto-suficiência. Daí o conselho: “Meçamos portanto o raio de nossa esfera e fiquemos no centro como o inseto no meio de sua teia; sempre nos bastaremos a nós mesmos e não teremos que nos queixar de nossa fraqueza, porquanto não a sentiremos nunca.” (E, II, Pl. 305, p. 63)
A criança deve aprender a se bastar a si mesma, isto é, a agir, produzir, ver, pensar e sentir por si mesma. Deve aprender também a fruir sua existência no momento presente. A previdência é, para Rousseau, uma espécie de distanciamento de si e, portanto, fonte de infelicidade (E, II, Pl. 307). Se ser feliz consiste na posse de si mesmo, no equilíbrio interior e na independência em relação aos outros, viver o momento presente é o coroamento dessas atitudes do “eu” em relação a si mesmo e fonte da maior das felicidades.
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Podemos dizer, nesse sentido, que no livro II do Emílio, embora seguindo ainda o método negativo, já se inicia a educação moral. Trata-se do momento em que a criança toma consciência de si mesma e se torna um ser moral: “É nesse segundo período que começa propriamente a vida do indivíduo; é então que a criança toma consciência de si mesma. A memória projeta o sentimento de sua identidade em todos os momentos de sua existência; ela torna-se verdadeiramente uma, e mesma, e por conseguinte já capaz de felicidade ou de miséria. Importa portanto começar a considerá-la um ser moral.” (E, II, Pl. 301, p. 60)
Mas essa primeira condição para o ingresso na vida moral, a consciência de si mesmo, momento em que o homem se percebe como um sujeito, um “eu”, ou, se quisermos, como o proprietário de seus atos, não é suficiente para a felicidade humana. A independência do sujeito moral, o bastar-se a si mesmo, exige, para se tornar efetiva e se fazer fonte de felicidade, a suposição de uma ordem; é o acordo do homem com essa ordem, mais do que a consciência de si, que caracteriza a verdadeira felicidade. É por isso que a evidência da existência de si mesmo é imediatamente acompanhada pela evidência da existência de um mundo exterior. O “sinto, logo existo” de Rousseau é a afirmação de uma existência ocasionada pelas sensações e, portanto, pelos objetos exteriores, que são as causas dessas sensações (E, IV, Pl. 570-1). Aquilo que nos assegura de nossa própria existência é o mesmo que nos assegura da existência do mundo exterior: o sentimento da consciência. A evidência desse sentimento per-
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mite ao homem perceber que ele faz parte de um todo maior que o transcende, assim como o leva também a sentir que todos os seus órgãos e faculdades fazem parte de um “eu” dotado de unidade e identidade. Sem esse princípio unificador, que relaciona as partes ao todo e que é dado pela consciência, não há sujeito moral porque não há unidade interior nem relação com a ordem dos valores. A referência à ordem é exigida também para pensarmos o controle de si mesmo, de todas as potencialidades e faculdades. Não são os instintos físicos ou os prazeres sensuais que devem governar o homem, mas o instinto moral, a consciência, e a razão, como para Platão as partes superiores da alma devem governar as partes inferiores38. Nessa ordenação interior está implícita a existência de uma hierarquia que independe do sujeito. Nesse sentido, Rousseau afirma, por meio de conjecturas, os modelos divinos e as verdades eternas e imutáveis, os quais são acessíveis ao homem pela consciência moral, e supõe também um mundo inteligível. A mudança dos objetos da vontade e dos desejos pode ser explicada pelo que Rousseau considera ser a passagem dos objetos sensíveis aos objetos intelectuais (E, III, Pl. 430; E, IV, Pl. 551). Se, no que diz respeito à infância, a ênfase de seu método pedagógico recai sobre a educação do corpo e dos sentidos, é porque o mundo físico, o mundo sensível, é tudo o que a criança pode perceber. Mas quando chega à idade da razão é preciso 38
Cf. PLATÃO. La republique. L. IV, 430e-432a. Platão define a temperança como “espécie de ordem e império sobre os prazeres e as paixões” (430e) e a capacidade de ser “mestre de si mesmo” como a que faz a “parte inferior” da alma se subordinar à “parte superior” (431a). A temperança é “o concerto e o acordo natural da parte inferior e da parte superior para decidir qual das duas deve comandar tanto no Estado como no indivíduo” (432a).
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que ela se eleve para esse mundo de idéias intelectuais e abstratas, cujos princípios são dados pela consciência. Somente assim ela pode alcançar a verdadeira felicidade. Se a felicidade depende da posse e do controle de si mesmo, ser feliz implica na suposição da ordem inteligível, pois é a partir desta que o homem se ordena interiormente e é juntamente com a consciência da existência dessa ordem que ele tem a consciência da própria existência. A suposição de que há uma ordem inteligível reinando no universo aparece em toda a “Profissão de fé” e também na carta endereçada a Voltaire sobre o desastre de Lisboa, na qual Rousseau trata da questão da teodicéia sobre a justificação do mal39. Afirmar uma liberdade no homem que seja compatível com a existência da ordem universal – superior às forças individuais e, portanto, inabalável pelas ações particulares – e fazendo da vontade humana uma vontade livre e não determinada, mas que seja responsável pelo mal, significa para Rousseau afirmar a moralidade e a dignidade de nossas ações. A liberdade, que supõe a independência em relação aos outros homens, tal como aquela liberdade do homem natural descrita no Discurso sobre a origem da desigualdade, nem por isso implica numa independência absoluta em relação à essa ordem superior, que é a ordem inteligível da natureza. Como observa Rousseau no Emílio, a “dependência dos homens” é desordenada e, por isso, gera vícios e problemas sociais (E, II, Pl. 311) enquanto que a “dependência das coisas” diz respeito às leis gerais da natureza. O homem livre, relembremos, não é so-
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Cf. Lettre de J.-J. Rousseau à Monsieur de Voltaire, 18 ago. 1756, edição da Gallimard, t. IV.
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mente aquele que faz o que lhe apraz, mas aquele que quer o que pode. Não é possível pensar a liberdade separadamente de uma ordem necessária. A idéia de felicidade apresentada no livro II, como equilíbrio entre poder e vontade, desejo e faculdade, ganha pleno sentido na metafísica do vigário saboiano, pela qual compreendemos em que sentido é preciso limitar as paixões e potencialidades humanas: dando a elas um objeto compatível com a ordem universal. Daí as passagens em que Rousseau associa a felicidade com a contemplação da ordem: “Ó meu filho, possais sentir um dia de que peso nos aliviamos quando, depois de termos extenuado a vaidade das opiniões humanas e experimentado a amargura das paixões, encontramos afinal tão perto de nós o caminho da sabedoria, o preço dos trabalhos desta vida e a fonte da felicidade que não mais esperávamos! [...]. Não sinto mais em mim senão a obra e o instrumento do grande Ser que quer o bem, que o faz, que fará o meu com a adesão de minhas vontades às dele e com o bom emprego de minha liberdade; aquiesço à ordem que Ele estabelece, certo de gozar eu mesmo um dia dessa ordem e de nela encontrar minha felicidade, pois que mais doce felicidade haverá senão a de se sentir ordenado dentro de um sistema em que tudo é bem?” (E, IV, Pl. 602-3, p. 340) “Para me elevar de antemão e quanto possível a esse estado de felicidade, de força e de liberdade exercito-me nas sublimes contemplações. Medito sobre a ordem do universo, não para explicá-la mediante vãos sistemas, mas para admirá-la sem cessar, para adorar o sábio autor que nela se faz sentir” (E, IV, Pl. 605, p. 342)
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Cf. Nouvelle Héloise, Parte I, Carta 12, edição da Pléiade, t. II, Pl. 59.
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Ernst Cassirer resume as consequências morais das concepções de Helvétius, para quem não existe nenhuma grandeza moral que se eleve acima do nível dos desejos e paixões, dos instintos fundamentais e elementares da natureza humana. Por mais altos que sejam os fins que a vontade se propõe e por mais extraterrenos os bens e suprassensíveis os fins que se figure, permanecemos sempre no círculo do egoísmo, da ambição e da vaidade. Para Cassirer o perigo
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o fato de que é a partir da suposição dessa ordem inteligível que podemos salvar os preceitos morais. Não podemos nos esquecer do contexto em que Emílio foi redigido e, particularmente, da polêmica que Rousseau sustentava contra Helvétius41. Se não há o bem em si mesmo e tudo é, em princípio, permitido, não há relações sociais e não há organização política possíveis. Para Rousseau, desde que o contrato social suponha um pacto, mas também uma promessa, suponha as leis civis, políticas e criminais, mas também o cumprimento destas, é preciso que haja um critério para as ações humanas, sem o qual ninguém é de fato obrigado a obedecer42. Não basta que haja uma ordem, é preciso que o homem a perceba e que adote os modelos ideais como critério de suas ações. Não somente a virtude, mas também os vícios e as más ações supõem alguma espécie de ordenação. O termo “homem mau” significa para Rousseau aquele que ordena o todo somente em função de si mesmo e de seus interesses particulares (E, IV, Pl. 602). Ao contrário, a ação boa e virtuosa supõe a nesse modo de pensar reside no nivelamento que faz dos conteúdos psíquicos, ameaçando a consciência na medida em que nega sua “viva plenitude” e que a considera como pura máscara. Qualquer escala de valores aparece, nesse sentido, como ilusão enganadora. Cf. CASSIRER, E. Filosofía de la ilustración. 2. ed., México, Fondo de Cultura Económica, 1950, p. 41-3. No final da Lettre à M. de Franquières, 15 jan. 1769, que nos chama atenção sobretudo pela crítica aos materialistas, Rousseau deixa claro que a suposição de uma “lei da necessidade” presidindo todos os acontecimentos do mundo e, inclusive, as ações, o pensamento e os sentimentos dos homens, sem a consideração da liberdade, tem como conseqüência o esvaziamento de todas as idéias morais (Pl. 1145). 42
Já no livro II de Emílio, Rousseau, antecipando o aparecimento da consciência moral, supõe esses critérios morais quando, em nota de rodapé, observa que o dever de cumprir seus compromissos é anterior às convenções. Assim como o cumprimento de uma promessa, trata-se de um princípio da consciência, “gravé dans nos coeurs par l’Auteur de toute justice” (E, II, Pl. 334).
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ordenação das partes em relação ao todo. É preciso que o homem dirija seus desejos e sua vontade para o bem de todos; somente assim ele age de acordo com a ordem geral e pode alcançar a verdadeira felicidade. É preciso que ele se perceba como parte de um todo maior que o transcende e que oriente suas ações de acordo com esse todo e não visando apenas seus interesses particulares. Aquele que só se prende às suas promessas pelos interesses e benefícios próprios não está de fato obrigado a cumpri-las. Ao contrário de Helvétius, para quem todas as ações humanas são explicadas pelo interesse, Rousseau coloca na base da conduta humana os sentimentos morais. É a existência desses sentimentos que explica a possível renúncia do homem de seus interesses egoístas. A passagem do Emílio a esse respeito é significativa: “Tudo nos é indiferente, dizem, à exceção de nosso interesse; mas, ao contrário, as doçuras da amizade, da humanidade, consolam-nos em nossas penas: e mesmo em nossos prazeres, nós nos sentiríamos demasiado sós, demasiado miseráveis se não tivéssemos com quem os partilhar. Se não há nada de moral no coração do homem, de onde lhe vêm esses transportes de admiração pelas ações heróicas, esses arroubos de amor pelas grandes almas?” (E, IV, Pl. 596, p. 333-4)
A idéia de Rousseau de estender à esfera da moralidade a necessidade das leis da natureza (E, V, Pl. 820) não significa, 43
A tentativa de transpor o método experimental de Newton para a ciência moral aparece no De l’esprit quando Helvétius afirma: “Si l’Univers physique est soumis aux loix du mouvement, l’Univers moral ne l’est pas moins à celles de l’intérêt” (Discurso II, capítulo 2). Também no Prefácio: “J’ai cru qu’on devoit traiter la Morale comme toutes les autres Sciences, et faire une Morale comme une Physique experimentale”.
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como para Helvétius, a reprodução do mundo físico no mundo moral43. A moralidade, para Rousseau, não se reduz aos jogos de interesses e paixões egoístas. Há um sentimento inato de justiça e de virtude, ao qual ele dá o nome de consciência (E, IV, Pl. 598) e que se distingue de nossa sensibilidade física. A apreensão dos valores morais, como o bem, o belo ou a justiça, só pode ser feita pela consciência; eles não são, para Rousseau, apenas abstrações da razão (E, IV, Pl. 522). As ações consideradas justas ou boas não resultam apenas de um cálculo da razão e não podem ser explicadas apenas pelos interesses. Sem o sentimento da consciência, a razão torna-se raciocinante, deixando de ser aquela faculdade que ordena todas as outras faculdades da alma, à qual Rousseau se refere nas Cartas morais44; ela deixa de ser a razão que, no início do Emílio, é caracterizada como “guia do amor próprio” (E, II, Pl. 322) e se torna joguete das paixões egoístas. Somente sob a condição da subordinação das partes ao todo podemos falar em ação moralmente boa. O homem é livre para escolher como agir, mas não é livre para escolher seu próprio mal e, como não há para ele maior bem do que concorrer para a felicidade geral à medida que isso significa regrar suas 44
Na “Segunda” das Lettres morales Rousseau diferencia a razão da “arte de raciocinar”. A primeira é definida como “la faculté d’ordonner toutes les facultés de notre ame convenablement à la nature des choses et à leurs raports avec nous” e a segunda, que geralmente é apenas um abuso da primeira, como “l’art de comparer les vérités connues pour en composer d’autres vérités qu’on ignoroit et que cet art nous fait découvrir”. O raciocínio (raisonnement) não nos leva ao conhecimento dos princípios. O problema surge quando, supondo conhecê-los, estendemos as idéias que temos a respeito de algo, tentando fazê-las valer universalmente. Para Rousseau, é por causa desse procedimento de generalizações, que parte de princípios desconhecidos como se fossem conhecidos, que o “espírito de sistema” mais se engana (edição da Pléiade, t. IV, Pl. 1090).
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ações em função do todo, da ordem universal e, portanto, do que é bom, a suprema felicidade só pode ser alcançada na boa ação. É preciso ceder à “tentação de fazer o bem”, observa Rousseau nas Cartas morais, pois sem a boa ação não há contentamento interior nem conhecimento de si mesmo: “Se existisse no mundo um ser tão miserável por nada ter feito ao longo de toda sua vida cuja lembrança pudesse lhe dar um contentamento interior e torná-lo satisfeito por ter vivido, esse ser tendo apenas sentimentos e idéias que o distanciariam de si seria incapaz de se conhecer, e por não saber em que consiste a bondade que convém à sua natureza ele permaneceria forçosamente mau e seria eternamente infeliz. Mas sustento que não há sobre a terra homem tão depravado que jamais tenha experimentado em seu coração a tentação de fazer o bem; essa tentação é tão natural e tão doce que é impossível resistir-lhe sempre, e é suficiente ceder a ela uma única vez para nunca mais esquecer a volúpia que saboreamos com ela.” (“Sexta carta”, Pl. 1115)
Rousseau inicia a “Segunda” das Cartas morais perguntando pelo modo de se chegar à felicidade. Deixando de lado as sutilezas metafísicas daqueles que pretendem mostrar o soberano bem por meio de raciocínios, Rousseau propõe a interiorização, no silêncio do gabinete, para conhecer a si mesmo e ouvir a “voz do coração” (Pl. 1087-8). Mas não podemos confundir a interiorização com uma suposta nostalgia ou desejo de solidão, a qual, nesse caso, pode ser considerarada apenas como um instrumento da primeira. Quando, na “Sexta carta”, Rousseau afirma que a consciência busca a solidão, não se refere a esta como fim em si mesmo, mas como estratégia para o distanciamento
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das opiniões dos outros e, o que é mais importante, para afirmação e conhecimento do “eu humano”45. Nessa carta, Rousseau não exalta o ideal de solidão afirmado por R. Polin46. Se Rousseau propõe uma espécie de isolamento à sua interlocutora, Mme. d’Houdetot, é por este aproximá-la, ao mesmo tempo, de si mesma e da humanidade, à medida que lhe dá condições para a manifestação da consciência. Podemos notar, a partir dessa passagem, que não é propriamente a solidão – esta é, antes, um aborrecimento – que Rousseau exalta mas, ao contrário, a possibilidade de uma sociedade de homens: “Quando se vive só ama-se melhor os homens, um terno interesse nos aproxima deles. A imaginação nos mostra a sociedade por seus encantos, e o próprio aborrecimento da solidão se transforma em benefício à humanidade.” (“Sexta carta”, Pl. 1114)
A felicidade individual, que é também liberdade, é, nesse sentido, inseparável da felicidade geral, seja esta entendida como felicidade de uma nação ou de toda a humanidade. A moral do indivíduo, tributária dessa concepção de felicidade, que supõe 45
Cf. Lettres morales, Pl. 1112-3: “Commençons par redevenir nous, par nous concentrer en nous [...] celui qui sait le mieux en quoi consiste le moi humain est le plus prés de la sagesse”.
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Polin considera que o controle de si reconstitui a existência livre e solitária. Quando ele afirma que o homem é perfeito na solidão, utiliza como ponto de referência a definição que Rousseau faz no Contrato social do termo indivíduo que “por si mesmo é um todo perfeito e solitário” (CS, II, 7, Pl. 381), e transpõe apressadamente tal definição para a de “homem original”. Mas o que caracteriza essencialmente o “homem original” de Rousseau não é o isolamento do homem que vive na floresta e sim a unidade interior e a harmonia com o todo. Cf. POLIN, R. La politique de la solitude. Op. cit., p. 4 e p. 171.
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a consciência de si e a consciência dos outros, não é, em princípio, incompatível com a moral do cidadão. É somente quando age com vistas na felicidade geral que o homem se encontra consigo mesmo e com a ordem reinante no universo. A ação má, baseada, segundo Rousseau, exclusivamente em interesses particulares e nas paixões e vícios dos homens em sociedade, distancia ainda mais o homem de sua essência original. Essa concepção de homem original não pode ser reduzida à concepção de homem natural que aparece no Discurso sobre a desigualdade. Se a felicidade humana tem como condição a independência natural que o homem, no estado de isolamento, experimenta em relação aos outros, é porque a liberdade, e não a aspiração à solidão, constitui parte essencial da natureza humana. É nesse sentido que a liberdade é considerada por Rousseau como uma qualidade inerente ao homem e, por isso, inalienável (CS, I, 4, Pl. 356). Como faz parte da natureza ou da essência humana a perfectibilidade, a capacidade para se desenvolver, não é necessário que o homem permaneça na solidão para exercer sua liberdade. Nesse sentido, a natureza do homem, como observa Burgelin, transcende as condições do estado de natureza47. Se Rousseau concebe a natureza humana como boa em si mesma é também porque supõe sua harmonia com o todo, que é, para ele, sempre bom. O homem é, antes de tudo, um indivíduo e possui o amor de si mesmo, mas é também um animal pertencente a uma espécie e possui o princípio de piedade. Tal é o que sugere essa passagem do Emílio: 47
Cf. BURGELIN, P. La philosophie de l’existence de J.-J. Rousseau. Op. cit., p. 220.
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“Estendamos o amor-próprio sobre os outros seres, nós o transformaremos em virtude, e não há coração humano em que esta virtude não tenha sua raiz [...]. Pouco importa a Emílio a quem caiba a maior parte da felicidade em partilha, desde que concorra para a maior felicidade de todos. Esse é o maior interesse do sábio depois do interesse particular; porque cada um é parte de sua espécie e não de outro indivíduo.” (E, IV, Pl. 547-8, p. 288)
Podemos considerar, ainda, que a extensão do amor de si aos outros e a generalização do interesse particular são uma espécie de destinação natural do homem. No estado puro de natureza descrito no Discurso sobre a desigualdade, os homens não reconhecem os outros como seus semelhantes, como pertencentes à mesma espécie. Dispersos, com poucas relações entre si, não têm nenhuma necessidade uns dos outros e só experimentam a dependência das coisas, isto é, a dependência que todo ser físico possui em relação às coisas que possam suprir suas necessidades básicas e vitais, como comer, beber e dormir sob a sombra das árvores. A felicidade que experimentam é espontânea, não exige nenhum esforço ou mediação. Como observa Rousseau no Emílio, a felicidade do homem natural “é tão simples quanto sua vida; ela consiste em não sofrer: a saúde, a liberdade, o necessário a constituem” (E, III, Pl. 444). Como os homens, nesse estado, vivem em meio à fartura da natureza e têm poucas necessidades, todos se mantêm em harmonia com a ordem geral. Não há, nesse estado, mal além dos males físicos e o que é bom para tais homens é o que supre suas necessidades vitais.
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A experiência que eles têm de felicidade é espontânea e diz respeito apenas à vida no momento presente. Eles nem têm consciência de si mesmos, não desenvolveram a imaginação e a memória e não experimentam as fraturas próprias ao homem civil. Não sentem oposição entre corpo e alma, entre interesse particular e interesse coletivo, mas usufruem de toda a sua existência no aqui e agora de modo integral, sem partilhas. Tratase, nas palavras de Burgelin, de uma total adesão do ser à ordem da natureza, na qual não é possível sentir miséria ou infelicidade. O equilíbrio entre a ordem geral e a existência no momento presente é a máxima felicidade que o homem pode experimentar48. O desenvolvimento da natureza humana e a formação das associações civis modificam a relação do homem com o meio em que vive e, conseqüentemente, a espécie de felicidade que ele pode experimentar. Distanciando-se do que Rousseau chama de felicidade absoluta, aquela que supõe a independência total em relação aos outros homens e que corresponde à “felicidade divina” (E, IV, Pl. 503), o homem de sociedade só pode ser feliz sob a condição de concorrer para a felicidade geral. A harmonia entre o homem e a ordem geral da natureza só pode ser
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Burgelin analisa a relação entre ordem e felicidade. A vida presente, segundo ele, consiste no equilíbrio, na unificação da ordem com a existência. “Uma me remete a um modesto lugar no todo, onde Deus reina ou na cidade onde reina a lei; a outra me coloca no centro. Uma orienta para a filosofia da razão, a outra para uma exploração do sentimento. A finalidade é conciliar: sou feito para ser feliz em um mundo em ordem”. Cf. BURGELIN, P. La philosophie de l’existence de J.-J. Rousseau. Op. cit., p. 570-2, passagem em que também nos lembra das seguintes palavras de Dostoievski, em Os possessos, sobre os cinco segundos de júbilo: “onde você sente de repente, de modo absoluto, a presença da eterna harmonia”.
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restabelecida através do convívio social, mais particularmente, através da boa ação. No lugar da fartura dos bens de subsistência, temos, nessa nova condição, a escassez e a pobreza e não é possível ao homem, dada sua natureza piedosa e benevolente, ser verdadeiramente feliz à custa da infelicidade alheia49. Esse pressuposto não explicitado do pensamento de Rousseau, de que a verdadeira felicidade do indivíduo consiste na harmonia com a felicidade geral dos homens, aparece de modo mais nítido n’Os devaneios do caminhante solitário, em que Rousseau justifica sua opção pela vida solitária. O refúgio do sábio na contemplação da natureza e seu distanciamento do mundo social é, antes, um consolo diante da impossibilidade de convivência harmoniosa com os homens, e não uma decisão de procurar a felicidade na solidão. Rousseau afirma na “Sexta caminhada”: “Sendo dono de realizar meus desejos, podendo tudo sem poder ser enganado por ninguém, que teria podido desejar mais tarde? Uma única coisa: ver todos os corações
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Nas Lettres morales Rousseau denuncia “le barbare bonheur” dos filósofos, que, enaltecendo os progressos possibilitados pela razão humana, só têm como valor o bem-estar, a comodidade e os prazeres. A razão dos filósofos não nos torna melhores ou mais sábios, não nos ajuda a traçar a rota para a felicidade e nada diz sobre os primeiros deveres e os verdadeiros bens da espécie humana.“Et de quel prix sont ces voluptés cruelles qu’achete le petit nombre aux dépends de la multitude. Le luxe des villes porte dans les campagnes la misére, la faim, le desespoir, si quelques hommes sont plus heureux le genre humain n’est que plus à plaindre. En multipliant les comodités de la vie pour quelques riches on n’a fait que forcer la pluspart des hommes à s’estimer misérables. Quel est ce barbare bonheur qu’on ne sent qu’aux dépends des autres? Ames sensibles, dites le moi, qu’est-ce qu’un bonheur qui s’achete à prix d’argent?” (“Segunda carta”, Pl. 1089).
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contentes. Somente o aspecto da felicidade pública teria podido tocar meu coração com um sentimento permanente, e o ardente desejo de concorrer para isso teria sido minha mais constante paixão.” (Pl. 1058, p. 87)
E na “Sétima caminhada”: “Enquanto os homens foram meus irmãos, fazia projetos de felicidade terrena; como esses projetos eram sempre relativos ao todo, somente podia ser feliz de uma felicidade pública e a idéia de uma felicidade particular somente tocou meu coração quando vi meus irmãos procurarem a sua apenas na minha infelicidade. Então, para não os odiar, foi realmente necessário fugir-lhes; então, refugiando-me na mãe comum, procurei em seus braços subtrair-me aos ataques de seus filhos, tornei-me solitário, ou, como dizem, insociável e misântropo, porque a mais selvagem solidão me parece preferível à companhia dos maus, que somente se alimentam de traições e de ódio.” (Pl. 1066, p. 95-6)
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CAP. 3 – OS SENTIMENTOS MORAIS E A OBRIGAÇÃO
A LEI FUNDAMENTAL DA CONSCIÊNCIA Os pressupostos metafísicos do vigário saboiano a respeito da ordem universal da natureza conferem à moralidade uma base mais sólida do que a das convenções sociais. A consciência, fundada em tais pressupostos, não impõe seus princípios arbitrariamente nem apenas como resposta às decisões dos homens em sociedade. Ela não depende dos caprichos pessoais do indivíduo, mas de sua capacidade de ordenar os objetos morais de acordo com a natureza das coisas. As idéias morais, para Rousseau, não são, nesse sentido, meras convenções sem fundamento mas possuem uma base na ordem universal da natureza. Rousseau transfere para a esfera moral uma necessidade análoga a das leis gerais da natureza, de modo que a consciência, ao nos dar acesso à ordem moral, torna-se imperativa, isto é, imponha suas regras e princípios com uma necessidade própria aos objetos morais. Os preceitos morais apresentados no Emílio, como por exemplo, os que dizem que “fazer o próprio bem à custa de outrem é agir mal” (E, IV, Pl. 594) ou que se deve “agir em relação ao outro como queremos que ajam em relação a nós” (E, IV, Pl. 523) têm um fundamento no sentimento da consciência e podem ser considerados, nesse sentido, como uma
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espécie de imperativo moral, sendo tão necessários quanto as leis da natureza à medida que, como estas, estão sustentados pela suposição da ordem divina50. O que, contudo, apresenta-se como um problema no conjunto da obra de Rousseau é a negação, em seus escritos políticos, particularmente no Manuscrito de Genebra, de um apelo ao sentimento nas questões relativas à justiça, ao mesmo tempo em que, como no Emílio, afirma a primazia da consciência moral como um “princípio inato de justiça e de virtude” (E, IV, Pl. 598). É a esse duplo aspecto do pensamento de Rousseau que R. Dérathé se refere quando afirma a incompatibilidade entre a teoria da consciência e a teoria da vontade geral51. Paul Bénichou também considera haver duas linhas no pensamento de Rousseau, uma das quais apareceria, segundo ele, sob uma “perspectiva radical”, calcada na idéia de que o homem não tem originariamente nenhuma experiência moral e que por isso a virtude só poderia ser alcançada de modo abrupto, e a outra sob a perspectiva de uma reforma ou regeneração contínua e progressiva, calcada na idéia de que o homem tem naturalmente idéias de justiça e que, portanto, bastaria confiar nos sentimentos naturais 52. 50
O que não significa que Rousseau utilize o universo natural para explicar a moralidade. Não podemos deixar de considerar a liberdade moral que dá dignidade às ações humanas. Os preceitos derivados da consciência são imperativos porque supõem princípios de conduta e envolvem uma sanção moral. É claro que a necessidade moral é distinta da necessidade das leis físicas da natureza, só possuindo em comum com esta o fato de ser sustentada pela suposição da ordem divina.
51
Cf. DÉRATHÉ, R. Jean-Jacques Rousseau et la science politique de son temps. Op. cit., p. 341-4.
52
A oposição entre essas duas linhas não fica muito clara no texto de Bénichou. Parece se tratar mais de uma diferença em relação aos, se assim podemos dizer,
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Importa-nos ressaltar que esses dois aspectos não implicam numa contradição interna na obra de Rousseau nem na existência de duas opções a respeito de estratégias para se alcançar a virtude mas, antes, expressam dois planos na reflexão política: o jurídico-abstrato que, nos textos de Rousseau, aparece quando ele trata do direito político e, por outro lado, o plano prático, relativo à ação política e à arte de governar. Do ponto de vista jurídico a teoria da vontade geral se sustenta independentemente da teoria da consciência. É sobretudo quando se trata de dar as bases para a ação política que a consciência adquire uma função diretriz, ao lado da vontade geral. Vejamos em que termos Rousseau distingue cada um desses planos e que relação pode ser estabelecida entre eles. No Manuscrito de Genebra há um capítulo em que é clara a posição de Rousseau a respeito da anterioridade das leis em relação à justiça53: “É assim que se formam em nós as primeiras noções distintas do justo e do injusto; pois a lei é anterior à justiça, e graus de otimismo e pessimismo de Rousseau, do que de uma verdadeira oposição, já que em ambas as propostas estaria em jogo, segundo Bénichou, uma única intenção e finalidade: a regeneração da humanidade. De acordo com sua interpretação, Rousseau aplica, para compreender a odisséia da humanidade, o modelo ternário da teologia cristã: paraíso, queda, redenção. Quando supõe a ruptura entre estado de natureza e estado de sociedade, ele estaria preparando as condições para uma reforma radical da sociedade e, por outro lado, quando admite um progresso contínuo entre esses dois estados, assume, segundo Bénichou, um tom menos indignado e apela para o “entusiasmo”, a “comunicação” e para o “feliz abandono ao sentimento natural”. Cf. BÉNICHOU, P. “Réflexions sur l’idée de nature chez Rousseau”. In: Pensée de Rousseau. Genebra, Seuil, 1984, p. 125-45. 53
O Manuscrit de Genève, versão anterior do Contrato social, está na edição da Pléiade, t. III.
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não a justiça à lei, e se a lei não pode ser injusta, não é porque a justiça esteja em sua base, o que nem sempre poderia ser verdadeiro; mas porque é contra a natureza que se queira prejudicar a si mesmo; e isso não tem exceção.” (MG, II, 4, Pl. 329)
As noções de justiça são, pois, formadas e não inatas no espírito humano54 e essa formação depende, de certo modo, da aplicação prática do que Rousseau considera ser a lei fundamental decorrente do pacto social (MG, II, 4, Pl. 328). A idéia do contrato social aparece no momento em que é preciso dar um fundamento não apenas ao direito positivo, mas também às noções de justiça e aos preceitos morais. Estes últimos não são evidentes, já que, para Rousseau, tampouco é evidente que as leis particulares do direito positivo estejam fundadas no direito natural. Noções de justiça e preceitos morais carecem de fundamentação. Na seqüência dessa passagem citada acima Rousseau continua: “É um belo e sublime preceito o de fazer ao outro como queremos que nos seja feito; mas não é evidente que, longe de servir de fundamento à justiça, ele mesmo precisa de fundamento; pois onde está a razão clara e sólida para eu me conduzir sendo eu, de acordo com a vontade que teria se fosse um outro?” (MG, II, 4, Pl. 329) 54
A definição de consciência como princípio de justiça levou Henri Gouhier à afirmação de que há um postulado em comum entre Rousseau e Platão, o de que a justiça habita a consciência, independentemente de uma mentalidade social determinada. Cf. GOUHIER, H. “Les tentations platoniciennes de J.-J. Rousseau”. In: Les méditations métaphysiques de Jean-Jacques Rousseau. Op. cit., p. 133-84.
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Se a natureza humana tem como primeiro princípio o amor de si, que é anterior ao desenvolvimento da razão e da consciência, os sentimentos de humanidade e de benevolência entre os homens e as noções de justiça, ainda que possam ser considerados princípios da razão – no sentido de que, do ponto de vista do raciocínio, localizam-se no início de uma cadeia dedutiva –, são, em relação ao amor de si, derivações. Na perspectiva do desenvolvimento das potencialidades da natureza humana, tais sentimentos são sempre posteriores ao amor de si, devendo ser explicados tendo em vista que a primeira preocupação do homem é consigo mesmo e não com os outros. Rousseau nos chama a atenção, no Manuscrito de Genebra, para a esterilidade dos preceitos morais, como esse de “fazer ao outro o que queremos que nos seja feito”. Assim como os sentimentos de humanidade, de benevolência e de justiça, tais preceitos não são anteriores ao pacto social mas decorrem dos desenvolvimentos possibilitados por este. O que significa que não podem ser deduzidos da concepção de estado puro de natureza e têm seus fundamentos numa outra espécie de ordem, instaurada no momento de associação entre os homens e distinta da ordem estritamente física cujo único princípio é a conservação ou amor de si. Segundo Bénichou, nesse sentido, Rousseau deduz a moralidade do estado político: a moral verdadeira só pode nascer de um contrato social legítimo55. Mas não é apenas nesse plano conceitual que podemos explicar sua desconfiança em relação à consciência moral. É preciso considerar as condições reais, sem as quais, segundo Rousseau, seria inútil falarmos em sentimentos de humanida55
Cf. BÉNICHOU, P. “Réflexions sur l’idée de nature chez Rousseau”. Op. cit., p. 141.
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de, em noções de justiça e de virtude ou, até mesmo, em amor à ordem. O problema referente ao que é anterior, a lei ou a justiça, emerge do problema relativo à aplicação de sentimentos e princípios morais aos casos particulares, problema que Rousseau nos indica na seguinte passagem do Manuscrito de Genebra: “Ainda que seus sentimentos e suas idéias pudessem se elevar ao amor da ordem e às noções sublimes da virtude, seria impossível fazer uma aplicação segura de seus princípios em um estado de coisas que não lhe permitisse discernir nem o bem nem o mal, nem o homem honesto nem o malfeitor.” (MG, I, 2, Pl. 282)
Se consideramos as sociedades que favorecem mais a concorrência do que algum tipo de cooperação e benevolência entre os homens e nas quais, segundo Rousseau, as paixões mais os distanciam do que suas necessidades os unem, não há maior sentido no apelo aos sentimentos morais do que na afirmação de que a sociedade, já que feita de homens, só pode ter como fundamento amor e benevolência. Como se a conseqüência natural das relações sociais em si mesmas pudesse ser a harmonia e o acordo mútuo, ainda que numa sociedade competitiva e marcada pelas desigualdades. Ora, a crítica que Rousseau faz do estado de sociedade, quando se refere às sociedades competitivas, é muito clara56. As 56
No Discurso sobre a origem da desigualdade Rousseau descreve o estado de guerra decorrente das desigualdades, das paixões desenfreadas, do abafamento da piedade e da voz de justiça (Pl. 176). No fragmento L’état de guerre ele descreve os horrores da guerra no estado de sociedade, num momento em que não é permitido ser homem e defender a “causa da humanidade”: “une foule affamée, accablée
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modificações da natureza humana podem caminhar em direção às desigualdades, à alienação da liberdade, à guerra de todos contra todos, se as condições sociais propiciarem o desenvolvimento das paixões egoístas – vaidade, orgulho, inveja, desejo de vingança, ciúmes – e não incentivarem, ao mesmo tempo, a virtude, seja esta na forma de amor à pátria ou amor à humanidade. Rousseau chama atenção para as hipocrisias moralizantes de sua época57. A própria idéia de uma “sociedade geral do gênero humano” é para ele um subterfúgio às obrigações morais e políticas. Os “pretensos cosmopolitas”, segundo ele, “justificam seu amor pela pátria por seu amor ao gênero humano e se vangloriam de amar todo mundo para ter direito de não amar ninguém” (MG, I, 2, Pl. 287). Todo o capítulo do Manuscrito de Genebra dedicado a essa questão, se é uma negação do sentimento natural de humanidade como fundamento das relações entre os homens, é também, muito mais do que isso, uma denúncia e uma crítica social e política. A desconfiança de Rousseau em relação aos preceitos morais e aos sentimentos de amor à humanidade tem sua justificação no plano político58. Para Rousseau, é preciso dar um de peine et de faim, dont le riche boit en paix le sang et les larmes” (edição da Pléiade, t. III, Pl. 609). 57
Michel Launay cita em Le neveu de rameau (Paris, Éd. Fabre, 1950) as passagens em que Diderot se manifesta contra a hipocrisia social, contra “os princípios gerais da moral que todos têm na boca mas que nenhum deles pratica”: p. 35-6, 67, 1034. Cf. LAUNAY, M. Jean-Jacques Rousseau. Écrivain politique. Op. cit., p. 218.
58
Launay localiza toda a problemática da obra de Rousseau no plano político. Embora o problema da desigualdade seja tratado por Rousseau, segundo ele, em uma progressão das causas morais – distinção dos talentos e aviltamento da virtude –, passando pelas causas sociais – desigualdade social e de riquezas –, às causas eco-
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fundamento mais sólido às associações políticas do que vagos sentimentos morais, os quais requerem, eles mesmos, fundamentação. Embora Rousseau acredite, tal como podemos ver na metafísica do vigário saboiano, na objetividade do sentimento de justiça, o que fundamenta o direito positivo e as leis particulares, não é propriamente a justiça que o homem é capaz de apreender, mas aquilo que Rousseau caracteriza como “lei fundamental que decorre imediatamente do pacto social” (MG, II, 4, Pl. 328). Tal fundamento, uma vez que é compatível com o amor de si, está muito mais em consonância com sua concepção de natureza humana do que estaria a suposição de que os sentimentos morais determinam, por si mesmos, a aproximação e a boa convivência entre os homens. Negar a preocupação que o homem tem consigo mesmo, que é anterior a quaisquer sentimentos de humanidade e benevolência, é, para Rousseau, ignorar as condições reais sob as quais os homens se encontram em sociedade e se relacionam mutuamente. Tais são as palavras de Rousseau para definir o que diz essa lei fundamental decorrente do pacto social: “que cada um prefira em todas as coisas o maior bem de todos” (MG, II, 4, Pl. 328). O pacto social não pode ser apenas um acordo verbal mas supõe o engajamento de todos os contratantes em torno de uma causa comum. O que dá fundamento a tal engajamento é a convenção, ainda que tácita, estabelecida entre os membros do corpo político no momento do contrato. Nas Cartas escritas da montanha há uma passagem clara a esse respeito: nômicas – o uso e o acúmulo do ouro – há uma crítica ao homem aeconomicus, que mostra a consciência de que considerar apenas, isoladamaente, esse aspecto da natureza humana é mera abstração e que a história concreta não é determinada pela economia mas pela política. Cf. id., ibid., p. 194-5 e 223.
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“O que dá unidade ao Estado?A união de seus membros. E de onde nasce a união de seus membros? Da obrigação que os vincula. Tudo está de acordo até aqui. Mas qual é o fundamento dessa obrigação? [...] a convenção de seus membros.” (“Sexta carta”, Pl. 806)
Essa “lei fundamental” garante, do ponto de vista conceitual, que o indivíduo contratante considere o “maior bem de todos”, o bem comum relativo ao corpo político, como critério para suas ações. Sua exclusão da versão definitiva do Contrato social não significa que seja um problema para Rousseau afirmar, ao mesmo tempo, a primazia do amor a si mesmo e a “preferência pelo maior bem de todos”. No Contrato social ele explica que o desejo que os indivíduos têm de que todos os outros sejam felizes decorre da preferência que cada um tem por si mesmo (CS, II, 4, Pl. 373)59. Se é assim, a consideração que o indivíduo faz do bem comum também não é incompatível com o princípio do amor a si mesmo mas, ao contrário, pode até mesmo ser uma decorrência dele.
59
Esse tipo de raciocínio apresenta uma dificuldade na medida em que não é possível afirmarmos o que é anterior, o que é causa de quê: a preferência pelo próprio bem ou a preferência pelo bem dos outros, o interesse particular ou o interesse coletivo. Desejamos o bem alheio porque desejamos nosso próprio bem ou o desejamos em si mesmo? Cf. GRAVE, S. A. “Some Eighteenth-Century attempts to use the notion of happiness”. In: Studies in the Eighteenth Century. Camberra, Australian National University Press, 1968, p. 158. De qualquer modo, a questão sobre se é ou não possível sustentar a “preferência pelo maior bem de todos” independentemente da preferência que se tem por si mesmo é, para nós, irrelevante.
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O que, em última instância, explica a preferência do indivíduo pelo bem comum é o amor a si mesmo60. A preservação do corpo coletivo e do bem comum é uma condição do pacto social, ao qual o homem se vê forçado a aderir para continuar a sobreviver (CS, I, 6, Pl. 360). Se querer o próprio bem é característica da vontade particular, preferir o maior bem de todos é a essência da vontade geral que nasce do pacto social. Em princípio o homem não aceita as cláusulas contratuais motivado por um amor pelos seus vizinhos, mas porque o contrato lhe é vantajoso. Embora Rousseau não faça nenhuma referência à essa lei fundamental no Contrato social, através dela podemos compreender plenamente a noção de vontade geral e, com esta, fundamentar o direito positivo61. É essa “lei fundamental” que permite explicarmos como pode o indivíduo possuir, além da vontade particular, uma vontade geral. Ela fundamenta os preceitos da consciência e explica como pode o indivíduo se conduzir “de acordo com uma vontade que teria se fosse um outro” (MG, II, 4, Pl. 329).
De acordo com a terminologia do Contrato social as leis positivas são “atos da vontade geral” (CS, II, 6, Pl. 379). É somente através da idéia de que a vontade geral é geral quanto a seu objeto e quanto à sua essência que se pode definir o direito
60
R. Dérathé considera que o único móvel da atividade humana, segundo Rousseau, é o amor de si. A piedade, a consciência, o amor à ordem e todos os outros sentimentos morais derivam, segundo ele, do amor a si mesmo. Cf. DÉRATHÉ, R. Le rationalisme de J.-J. Rousseau. Paris, PUF, 1948, p. 98-9.
61
Toda a esfera do direito tem por base essa lei fundamental do pacto social. No Contrato social Rousseau afirma, analogamente, a ordem social como “direito sagrado que serve de base a todos os outros” (CS, I, 1, Pl. 352).
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positivo. Se todos os direitos, dos indivíduos em relação ao Soberano e deste em relação aos indivíduos, são estabelecidos pelas leis é somente porque estas são expressões da vontade geral. Para Rousseau a lei é anterior à justiça, não propriamente porque ele considera a justiça como mera convenção, mas porque o direito positivo tem um fundamento mais sólido do que as noções e sentimentos dos indivíduos em relação ao que é justo ou injusto. Podemos considerar então como anterior à instauração da esfera do direito, assim como da moralidade, o pacto social, do qual decorre a lei do maior bem de todos. E com tal idéia, não apenas o direito positivo ganha fundamento, mas também o direito natural (MG, I, 2, Pl. 328). O que, contudo, nos permite falar, ainda no plano político, na primazia da consciência moral, a despeito das dificuldades quanto à aplicação de seus sentimentos, é o fato de que, para estabelecer legitimamente a associação política, Rousseau precisou considerar uma lei anterior ao próprio direito positivo e que, apesar de ser uma convenção, faz parte da natureza da associação62. Há, antes do pacto social, uma disposição do homem para tal acordo. Podemos afirmar, com Bénichou, que o que funda a autoridade do contrato é uma “liberdade de contratar anterior” que, por um “decreto da consciência moral”, torna-se a “condição de validade de todo engajamento”63.
62
Embora no momento do pacto social não haja um direito positivo, dele decorre imediatamente, pela natureza do ato, uma lei inviolável: a do maior bem de todos. Tal lei é dada pela consciência e obriga tanto quanto as leis civis, ainda que possa não ser explicitada.
63
Cf. BÉNICHOU, P. “Réflexions sur l’idée de nature chez Rousseau”. Op. cit., p. 144.
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Mesmo que não consideremos haver no homem natural, aquele que está prestes a assumir as cláusulas do contrato como obrigação política, sentimentos morais, é a partir de uma predisposição ao acordo com os outros homens que nasce o contrato. É nesse sentido que o ato de associação pode ser dito voluntário. Até mesmo o engodo do pacto proposto pelos mais ricos, no Discurso sobre a desigualdade, pelo qual “fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável” (Pl. 178), baseia-se na ação voluntária dos contratantes. Se no Manuscrito de Genebra, e indiretamente no Contrato social, os sentimentos da consciência são colocados em questão, só podendo ser fundamentados pelas regras do pacto social, a base última do próprio pacto reside na esfera da consciência. Por um lado, tal como fica claro no Emílio, existe uma ordem universal acessível à consciência, que nos dá os princípios relativos aos objetos morais, como o bem e a justiça. É a partir dessa concepção de consciência que Rousseau nos mostra a possibilidade do homem praticar a boa ação a despeito de seus interesses pessoais. Por outro lado, afirmar a relevância dos preceitos morais nos leva aos problemas apontados no Manuscrito de Genebra, relativos à aplicação dos princípios às situações particulares e à relação entre o amor pela humanidade e o amor pela pátria. Podemos mostrar, a partir da antropologia desenvolvida no Emílio e no Discurso sobre a desigualdade, que qualquer acordo ou obrigação estabelecida entre os indivíduos supõe um sen-
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timento de humanidade64. Nesse sentido, aqueles que negam a estreita relação entre amor à pátria e amor à humanidade não conseguiriam explicar porque é mais vantajoso contratar com homens e não com os outros animais. Sem o sentimento de humanidade, entendido também como princípio de identificação à espécie, não há engajamento possível. É somente depois de identificar os outros como seus semelhantes, como sendo capazes de pensar e sentir do mesmo modo em circunstâncias semelhantes, que o homem adquire as idéias de compromissos mútuos e percebe a vantagem de respeitá-los (Discurso sobre a desigualdade, Pl. 166). O que entra em ação no momento do pacto político, e que é anterior a este, é o que Richard Noble caracteriza como capacidade do homem de perceber o outro como sendo também um “eu” e como dotado também de valor e liberdade, e que poderíamos chamar de “consciência do outro”65. A aparente dicotomia entre a moral do homem e a moral do cidadão, que parece ser uma ressonância da discussão sobre a anterioridade da lei civil ou da lei natural66, pode ser melhor 64
O que não se confunde com a “identidade de natureza” afirmada por Samuel Pufendorf. Rousseau deixa de lado a suposição de uma sociedade geral do gênero humano pré-existente às sociedades particulares e, portanto, a idéia de que no estado de natureza haja uma identidade entre os homens fundando as relações entre eles. Cf. PUFENDORF, S. Le droit de la nature et des Gens. Trad. de Jean Barbeyrac, 4. ed., Université de Caen, Centre de Philosophie Politique et Juridique, 1987, t. I, livro I, cap. I, §7, p. 8.
65
R. Noble mostra como, a partir de duas tendências opostas – a do empirismo e a do racionalismo –, Rousseau elabora sua proposta de educação moral no Emílio e como a subjetividade construída por ele permite falar numa passagem da consciência de si mesmo para a consciência do outro, estabelecendo, com isso, uma relação intersubjetiva entre os homens. Cf. NOBLE, R. Language, subjectivity, and freedom in Rousseau’s moral philosohy. Op. cit., cap. 7.
66
A questão da primazia da lei civil ou da lei natural é, para Bénichou, “o ponto nevrálgico” do pensamento de Rousseau. Segundo ele, Rousseau afirma contra
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compreendida a partir da suposição de que há uma ruptura entre o estado de natureza e o estado de sociedade. Supondo que a esfera moral é posterior ao pacto de associação política e que o estado de natureza é absolutamente amoral – o que é, na verdade, reduzir a moralidade às noções que dela se possa ter –, conclui-se prontamente que as regras utilizadas pelos homens, antes do pacto social, contradizem as regras derivadas das cláusulas contratuais. A descontinuidade entre estado de natureza e estado de sociedade é, contudo, apenas conceitual. Ainda que a associação política instaure entre os homens novas regras e valores, há princípios derivados da natureza original do homem que continuam a valer no estado de sociedade67. Do ponto de vista prático, relativo à estratégia política, não é eficaz supor tal ruptura. Ao contrário, é acompanhando os progressos da natureza humana, as modificações das paixões e faculdades do espírito, tanto no indivíduo quanto na espécie, que se pode encontrar o melhor modo de conduzir a vida pública. Os interesses particulares e as paixões do indivíduo, que motivam a conduta do homem isolado do estado de natureza, não podem ser negligenciados, já que são também determinantes da conduta do homem na vida social, ainda que se manifestem, por vezes, contrários ditoriamente que é a partir da lei civil que temos noções de justiça e que a lei natural, garantida pela autoridade divina, é superior à lei civil. Cf. BÉNICHOU, P. “Réflexions sur l’idée de nature chez Rousseau”. Op. cit., p. 143. 67
Há uma passagem clara a esse respeito no fragmento L’état de guerre, em que depois de afirmar que o acordo artificial nos faz entrar em uma nova ordem de coisas Rousseau observa: “Ainsi toute la face de la terre est changée; par tout la nature a disparu; Par tout l’art humain a pris sa place l’independance et la liberté naturelle ont fait place aux loix et à l’esclavage il n’existe plus d’être libre; le philosophe cherche un homme et n’en trouve plus. Mais c’est en vain qu’on pense aneantir la nature elle renaît et se montre où l’on l’attendoit le moins” (Pl. 603-4).
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aos interesses do corpo coletivo. É também nesse ponto que a esfera pública e a esfera privada se encontram. É preciso observar, e essa é uma das grandes lições do Emílio, como os homens se conduzem em sociedade, para prever suas ações e reações, conhecer seus gostos, costumes e paixões. A vida privada dos membros do corpo político importa à medida que é também um alicerce da moralidade. Embora a condução do corpo político deva se referir, por princípio, à vontade geral e, por isso, só possa atuar nas questões relativas ao corpo todo, cabe às instituições fazer com que a vontade geral prevaleça sobre a vontade particular. A conduta dos homens em sua vida privada importa, para Rousseau, uma vez que reflete o estado moral em que se encontram. Seus vícios e virtudes enquanto indivíduo afetam a vida do todo68 e não podem, por isso, ser ignorados pelo poder público. Outro fator importante à vida pública, relativo à moral do indivíduo, é que quanto mais o interesse deste for generalizado e estendido a todos os outros, maior é, segundo Rousseau, a justiça e mais próximo se está do bem comum. Daí a importância da teoria da consciência para o pensamento político de Rousseau. A própria possibilidade de que todos terão essa mesma tendência de estender o amor de si aos outros nos é dada pela concepção de consciência, cujo princípio é sempre certo, justo e bom. Tal princípio é, segundo Rousseau, admitido e reconhecido por todo o gênero humano (E, IV, Pl. 600). Bondade,
68
Cf. fragmento Des moeurs: “Il en est de même dans l’ordre moral. Les vices et les vertus de chaque homme ne sont pas relatifs à lui seul. Leur plus grand raport est avec la société et c’est ce qu’ils sont à l’égard de l’ordre en général qui constituë leur essence et leur caractére” (edição da Pléiade, t. III, Pl. 554).
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amor à justiça e amor à humanidade, na terminologia do Emílio, são palavras equivalentes (E, IV, Pl. 492; E, IV, Pl. 547). As regras morais mais simples, a respeito do cumprimento dos deveres, promessas e quaisquer outros compromissos mútuos, são anteriores ao pacto social. Bénichou já previa o problema ao qual sua interpretação dos textos de Rousseau o levara: se a moral decorre da política, e se o contrato social é sempre particular, como pode haver moral universal?69 Não há, propriamente, duas linhas de pensamento na obra de Rousseau, mas apenas dois pontos de vista, conforme se considere o aspecto jurídico-abstrato ou o aspecto prático, relativo à ação política. Do ponto de vista legal, não é permitido apelar às consciências individuais, pois estas não nos dão idéias pré-concebidas de justiça. Entretanto, do ponto de vista da ação política, somente com o postulado de um princípio universal, o princípio da consciência, é possível tornar viável a vida pública, pois sem esta universalidade não há engajamento entre os homens. Michel Launay refere-se a esse problema quando afirma: “Independentemente de toda particularidade social, nacional ou histórica, há deveres de simples justiça, de igualdade de todos perante a lei moral que parecem emanar da pura consciência e ditar um certo comportamento social [...]. O respeito aos deveres elementares é um dos elementos de toda boa política, porque é a condição da ordem.”70
69
Cf. BÉNICHOU, P. “Réflexions sur l’idée de nature chez Rousseau”. Op. cit., p. 141-2.
70
Cf. LAUNAY, M. Jean-Jacques Rousseau. Écrivain politique. Op. cit., p. 302-3.
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A benevolência e a humanidade não são, segundo ele, simples predicações sentimentais, mas valores que justificam a existência humana. A despeito da negação dos sentimentos morais no Manuscrito de Genebra, é claro o apelo que Rousseau faz à universalidade da consciência, que, por um lado, torna a lei e a justiça algo objetivo e impessoal e, por outro, transfere para o corpo político o “eu” particular, dando ao indivíduo uma nova vontade, justa e geral: “É pois na Lei fundamental e universal do maior bem de todos e não nas relações particulares de homem a homem que é preciso procurar os verdadeiros princípios do justo e do injusto, e não há nenhuma regra particular de justiça que não possa ser facilmente deduzida dessa primeira lei [...]. Porque o eu particular estendido ao todo é o laço mais forte da sociedade geral, e porque o Estado tem o mais alto grau de força e de vida que pode ter quando todas as nossas paixões particulares se reúnem nele. Em uma palavra, há mil casos nos quais é um ato de justiça prejudicar seu próximo, ao passo que toda Ação justa tem necessariamente por regra a maior utilidade comum; e isso sem exceção.” (MG, II, 4, Pl. 329-330)
O PROBLEMA DA OBRIGAÇÃO A grande estratégia do tutor de Emílio para formá-lo como cidadão, fazendo com que o bem comum seja um motivo real para o cumprimento de seus deveres sociais e políticos, consiste no que poderíamos considerar uma movimentação do “eu” para dentro e para fora de si mesmo. Tal idéia é fundamental para a
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compreensão da relação entre o indivíduo e a comunidade. Com essa idéia, não é preciso supor um antagonismo entre esses dois elementos, pois a natureza do indivíduo possui como característica inerente a capacidade de interiorização e exteriorização, ou saída e retorno a si mesmo. É flagrante no Emílio tal movimentação. No livro II há várias passagens em que Rousseau apela para a interiorização do indivíduo, em oposição à influência dos preconceitos e opiniões dos homens em sociedade, com a finalidade de formar no espírito da criança a capacidade de pensar por si mesmo. Esse momento de auto-reflexão, que é fundamental para a liberdade e para a felicidade do indivíduo, aparece relacionado com os “primeiros deveres do homem”, relativos à sua própria conservação: “Ó homem! encerra tua existência dentro de ti e não serás mais miserável.” (E, II, Pl. 308, p. 66) “Nossos primeiros deveres são para conosco; nossos sentimentos primitivos concentram-se em nós mesmos; todos os nossos movimentos naturais dizem respeito inicialmente à nossa conservação e ao nosso bem-estar.” (E, II, Pl. 329, p. 84-85)
É com vistas na concepção de natureza como esfera do indivíduo isolado, bastando-se a si mesmo, guiado unicamente pelo instinto de sobrevivência, que Rousseau propõe essa interiorização, esse “voltar-se a si mesmo”, que é fundamental para que Emílio se distancie das opiniões e preconceitos de sociedade e atente para suas necessidades reais. Mas no momento em que Emílio atinge uma idade em que é preciso introduzi-lo nas
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relações sociais, Rousseau passa a destacar, ao contrário, sua capacidade de estender seu “eu” para fora de si mesmo, o que, para Burgelin, constitui a “sensibilidade moral” do homem71. O que nos chama a atenção é a introdução, no livro III, por meio da concepção de trabalho, da idéia de dever social (E, III, Pl. 470). A referência deixa de ser os interesses imediatos e particulares, como ocorria com a idéia de propriedade72, no livro II, e passa a incluir o interesse comum. Trata-se de um convite para que Emílio saia de dentro de si mesmo e ultrapasse a esfera do interesse particular. Ao lado dos deveres do homem relacionados à sua conservação, ele adquire idéias de obrigação e passa a considerar as necessidades mútuas dos homens com quem se relaciona (E, III, Pl. 466-7). É claro que a idéia de trabalho como dever social, já que ainda baseada na esfera do interesse, seja este comum ou individual, é insuficiente para falarmos nas obrigações civis e políticas. Para Rousseau o interesse jamais produz uma obrigação e, por isso, ele observa, a respeito do cumprimento das promessas, que “desde que um interesse faz prometer, um interesse maior pode fazer violar a promessa” (E, II, Pl. 334). E, além disso, é difícil, senão impossível, determinar quais dos interesses em jogo 71
Cf. BURGELIN, P. La philosophie de l’existence de J.-J. Rousseau. Op. cit., p.150-3. Para Burgelin há uma comunhão do indivíduo com o mundo e com os outros, pela qual a alma individual perde sua densidade, dissolve-se pouco a pouco nos outros.
72
Cf. E, II, Pl. 329-35; E, II, Pl. 421-2. Emílio só compreende, nesse momento, aquilo que se relaciona com seus interesses imediatos. A introdução da idéia de propriedade não se faz, portanto, de modo abstrato, não aparece como um direito formal, mas através do recurso à experiência e aos interesses imediatos de Emílio. As noções morais que vão sendo ensinadas se relacionam a seu estado atual e não ao estado relativo dos homens, pois Emílio não tem ainda nenhuma idéia das relações sociais.
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são mais importantes e também quando um indivíduo age em benefício próprio ou em função do interesse coletivo. A dificuldade em relação ao problema das obrigações sociais e políticas73, já notado por Hobbes quando enfatizava a necessidade de um poder coercitivo capaz de obrigar os homens ao cumprimento de seus pactos, remete-nos à questão da determinação das ações humanas pelo interesse coletivo ou pelo interesse próprio, na medida em que, tal como nesse problema, não é possível conhecer o conteúdo da consciência individual para concluir algo a respeito das obrigações que ela impõe. Tal é a desconfiança de Hobbes de que a consciência possa impor, de fato, uma obrigação, que considera que as leis de natureza que ela nos fornece não são propriamente leis mas apenas “qualidades que predispõem os homens para a paz e para a obediência”74. Afirmação que nos leva a concluir que a obrigatoriedade dos preceitos da consciência seria, de certo modo, condicional, seu conteúdo só se tornando efetivamente lei quando há um poder coercitivo que imponha seus preceitos. A lei de natureza, observa Hobbes no Do cidadão, “obriga em foro interno, ou na côrte da consciência, mas nem sempre em foro
73
Charles W. Haendel expõe de modo claro o problema da obrigação política e afirma que, para Rousseau, o único modo de resolvê-lo consistiria em começarmos a pensar que o povo possa obrigar-se a si mesmo. Tal idéia fundamenta-se, segundo ele, na suposição que faz Rousseau de que há uma espécie de “semente de governo” em cada indivíduo, a qual se desenvolveria plenamente com o pacto social. Cf. HAENDEL, C. W. Jean-Jacques Rousseau: moralist. New York, Bobbs-Merrell, 1934, cap. 6.
74
Embora, logo em seguida, Hobbes afirme que a lei natural e a lei civil são “diferentes partes da lei”. Cf. HOBBES, T. Leviathan: or, the matter, form, and power of a commonwealth, ecclesiastical and civil. Parte II, capítulo XXVI, p. 166 (edição de W. Molesworth, London, John Bohn, 1966, p. 253).
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externo, e neste apenas quando puder ser cumprida com segurança” 75. Há algo de inefável e muito vago nos sentimentos morais e Rousseau leva isso em consideração. Mas, ao afastar do plano político os sentimentos de benevolência universal e de amor à humanidade, ele não enfatiza, tanto quanto Hobbes, a função da força ou da coação exterior no cumprimento das obrigações sociais e políticas76. Ainda que não se possa apelar para sentimentos individuais, existe, para Rousseau, “uma grande diferença entre subjugar uma multidão e reger uma sociedade” (CS, I, 5, Pl. 359) e, por isso, a condução da vida pública está, para ele, muito além da imposição das leis pela força77. 75
Cf. HOBBES, T. De cive. Parte I, cap. III, §27. No Leviathan Hobbes afirma que as leis de natureza em si mesmas, porque, em certas condições, contrárias às paixões naturais, requerem a espada para ser respeitadas: “and covenants, without the sword, are but words, and of no strength to secure a man at all” (parte II, cap. XVII, 1966, p. 154).
76
Cf. HOBBES, T. Leviathan. Parte I, cap. XIII, 1966, p. 112: “men have no pleasure, but on contrary a great deal of grief, in keeping company, where there is no power able to over-awe them all”. Para Hobbes, se não houver um poder coercitivo para obrigar os membros contratantes a cumprir o contrato, este se torna nulo. O poder é necessário para garantir o respeito das obrigações porque não é possível confiar na força das palavras, cujos “vínculos são demasiado fracos para refrear a ambição, a avareza, a cólera e outras paixões dos homens”, nem na generosidade, “que é demasiado raro encontrar para se poder contar com ela, sobretudo entre aqueles que procuram a riqueza, a autoridade ou os prazeres sensuais, ou seja, a maior parte da humanidade”, mas apenas no medo: “os pactos aceitos por medo, na condição de simples natureza, são obrigatórios [...] porque tudo o que posso fazer legitimamente sem obrigação posso também compactuar legitimamente por medo, e o que eu compactuar legitimamente não posso legitimamente romper”. Cf. Leviathan. Parte I, cap. XIV, p. 87-8.
77
O que não significa que, para Hobbes, apenas a força seja suficiente para garantir o cumprimento da obrigação. Antes do contrato social, pelo qual se institui um poder comum, Hobbes reconhece uma obrigação em relação ao cumprimento de seus pactos, a qual seria, de acordo com o que escreve no Leviathan, a
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A despeito da consideração da força pública como garantia do cumprimento do pacto político e da concepção de soberania como poder absoluto e indivisível, Rousseau jamais deixou de lado a necessidade de fundar o poder político e a obrigação na natureza do indivíduo, considerado como sujeito livre e moral e que é capaz de impor leis a si mesmo. O problema político, para Rousseau, situa-se menos na questão da soberania, ou seja, na caracterização daquele que detém o poder soberano78, mas, sobretudo, na questão da obrigação. Não é suficiente supor que é o povo que detém a soberania. É preciso que ele tenha a capacidade de obrigar-se a si mesmo, ou seja, que saiba impor a si mesmo as leis, os princípios e as normas do corpo político como uma obrigação79.
terceira lei natural, fonte e origem da justiça. O pacto obriga porque é um ato racional e envolve justiça: tanto quando há um poder coercitivo para impô-la como quando um dos lados envolvidos já cumpriu sua parte, há uma obrigação racional. Cf. Leviathan. Parte I, cap. XV, p. 90-1. R. J. Ribeiro enfatiza no pensamento de Hobbes, em relação à natureza da obediência dos súditos para com o soberano, o caráter consentido e racional do ato de contratar, o que diferencia a relação propriamente política da relação entre o escravo e seu senhor, pois o escravo não contrata. Cf. RIBEIRO, R. J. Ao leitor sem medo. Hobbes escrevendo contra o seu tempo. São Paulo, Brasiliense, 1984, cap. 5. 78
A idéia de que o poder político emana do povo é aceita por todos os teóricos do direito natural. Como observa Dérathé, a novidade de Rousseau é tornar a soberania do povo inalienável. Daí a importância de se distinguir a base da soberania de seu exercício. Não há para Rousseau transferência do exercício da soberania. Esta deve ser sempre do povo. Cf. DÉRATHÉ, R. Jean-Jacques Rousseau et la science politique de son temps. Op. cit., p. 49.
79
Haendel observa que mesmo Bodin poderia conceder que o poder político pertence ao povo. O problema, contudo, reside na obrigação. O povo pode ser soberano, o que não implica que possa obrigar-se a si mesmo. Para Bodin, como para Hobbes, é preciso de um poder obrigatório menos vago para impor as leis. A lei depende de um soberano que possa obrigar todos os outros porque ela não poderia obrigar por si mesma. Nesse contexto a obrigação significaria, segundo
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A importância da consciência moral no pensamento político de Rousseau não reside somente no fato dela deter o privilégio de impor os princípios e valores universais, mas de tornar possível ao indivíduo – que, do ponto de vista do estado puro de natureza, é um ser isolado e auto-suficiente – a vida em grupo, à medida que confere necessidade ao cumprimento de suas promessas e deveres sociais e políticos. A consciência individual jamais é considerada por Rousseau como algo que fecha o indivíduo em si mesmo, mas, ao contrário, é o que nele expande seu ser e sua vontade para além de seus interesses imediatos e particulares e o permite considerar uma vontade impessoal, a vontade geral, como sendo a sua própria vontade. Nesse sentido podemos considerar, como Burgelin, que a consciência é sempre abertura 80. Os problemas referentes ao móvel último das ações humanas e à indeterminação do conteúdo da consciência deixam de nos ser relevantes porque não se trata de supor uma consciência já dada e pronta no espírito do indivíduo. Ainda que o indivíduo considere, em primeiro lugar, seus interesses particulares – e mesmo supondo que não haja sociabilidade natural entre os homens ou que o jogo político decorra apenas de um artifício –, ele não pode ser considerado como uma natureza fechada em si mesma. Ao contrário, a natureza humana, também porque é perfectível, está sempre aberta e com uma dispoHaendel, simplesmente obediência ao poder superior. A idéia de que a obrigação é uma coação externa ao indivíduo aparece também, segundo ele, na concepção de Pufendorf. O que causaria a obediência não seriam as razões das leis mas o poder que as executa. Cf. HAENDEL, C. W. Jean-Jacques Rousseau: moralist. Op. cit., p. 140-3. 80
Cf. BURGELIN, P. La philosophie de l’existence de J.-J. Rousseau. Op. cit., p. 152.
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sição, senão para manter um acordo perpétuo, ao menos para sustentar o diálogo e relacionar os homens entre si. A própria idéia de um sentimento concorrendo para a conservação da espécie, anterior à razão e que serve para equilibrar no indivíduo o instinto de sobrevivência, ou seja, a piedade natural, “primeiro sentimento relativo que toca o coração humano segundo a ordem da natureza” (E, IV, Pl. 505), nos indica que há no homem, no plano afetivo e não racional, um certo impulso para a vida em comunidade. Precisamos considerar as afeições sociais, cujo germe seria o sentimento de piedade e que parece favorecer a idéia de uma união natural e espontânea entre os homens, mas sem, contudo, deixar de lado a importância atribuída por Rousseau às situações concretas81. Apesar de jamais ter considerado que o homem é, por natureza, mau ou propenso àquela guerra generalizada suposta
81
É preciso levar em conta que a filosofia política de Rousseau que, de modo geral, refere-se mais a princípios abstratos do que a fatos, não negligencia os vários elementos que coexistem e compõem as situações concretas. Assim podemos entender como Rousseau, em certos momentos, desconfia dos sentimentos e dos preceitos da consciência, já que, para ele, de fato, não há ninguém que possa segui-los em sua pureza, sem a concorrência de várias outras paixões. Esse aspecto mais realista das reflexões de Rousseau aparece também quando ele considera o clima, a diversidade de costumes, as leis e os modos de governar, os quais caracterizam os povos e marcam suas diferenças. O que é, como sublinha Launay, que emprega os termos relativismo e realismo político para designar esse posicionamento, uma influência que Rousseau teve de Montesquieu. A consideração desses elementos, segundo Launay, não exclui a suposição de que existam leis gerais, “rapports nécessaires reliant les attitudes des individus aux formes des gouvernements sous lesquels ils vivent”. Cf. LAUNAY, M. JeanJacques Rousseau. Écrivain politique. Op. cit., p. 160.
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por Hobbes82, Rousseau tampouco aceitou a idéia de sociabilidade natural. Não existir, em princípio, uma confraternização universal entre os homens era, para ele, um fato inegável. Por um lado, no plano puramente conceitual, Rousseau admite que no estado puro de natureza o homem viva isolado sem nenhuma necessidade ou afeição pelos outros, o que já é uma negação da sociabilidade natural. Por outro lado, Rousseau observa que, no estado de sociedade, os homens são vaidosos, vingativos e capazes de sacrificar o bem e a felicidade de todos os outros por algo que favoreça sua ânsia de comodidade e bem-estar. Isso para Rousseau era um dado factual e que, além de apontar para as dificuldades de se afirmar a sociabilidade natural, pode até nos sugerir que sempre haverá, independentemente da diversidade dos povos, em qualquer época ou lugar, homens maus.
82
Sobre a guerra de todos contra todos, cf. HOBBES, T. Leviathan. Parte I, cap. XIII. Também De cive. Parte I, cap. I, §12. Sobre uma maldade natural na natureza humana, que Rousseau afirma equivocadamente ser também suposição de Hobbes, podemos nos remeter ao Prefácio – “Prefácio do autor ao leitor” – do De cive, no qual Hobbes afirma claramente que o mal não é efeito da natureza. Como no estado de natureza todos têm direito a tudo, é natural que possam fazer uso de suas próprias forças para possuir o que quiserem e para conservarem a si mesmos. O que não significa que sejam maus ou perversos. Hobbes exemplifica com as crianças que, mesmo sendo por vezes choronas, impertinentes ou que queiram bater em seus pais, disso não se segue que sejam más, pois elas estão isentas de todo dever. Somente depois que crescem, tornando-se capazes de causar danos, é que elas podem ser consideradas más. Assim, conclui Hobbes: “um homem perverso é quase a mesma coisa que uma criança que cresceu e ganhou em força e se tornou robusta” ou é como “um homem de disposição infantil”, ou seja, no qual falta a razão. Tal foi o impacto dessa afirmação sobre Rousseau, que ele a criticou no Discurso sobre a desigualdade (Pl. 153) e no Emílio (E, I, Pl. 288): a maldade não se relaciona com a força, mas com a fraqueza, nem se relaciona com o homem robusto da natureza, pois este é independente e não tem necessidade de fazer a guerra aos outros já que a natureza lhe oferece tudo de que necessita.
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Desse raciocínio não se pode concluir, contudo, que o homem seja mau por natureza. É preciso fazer a genealogia do mal. O homem nem sempre foi assim. Em uma nota do Discurso sobre a desigualdade, Rousseau afirma: “Os homens são maus – uma experiência triste e contínua dispensa provas; no entanto, o homem é naturalmente bom – creio tê-lo demonstrado; o que, pois, poderá tê-lo depravado a esse ponto senão as mudanças sobrevindas em sua constituição, os progressos que fez e os conhecimentos que adquiriu?[...] Que se poderá pensar de um comércio no qual a razão de cada particular lhe dita máximas diferentemente contrárias às que a razão pública prega ao corpo da sociedade e onde cada um encontra seu lucro na infelicidade de outrem? [...] Assim, encontramos nossos lucros no prejuízo de nossos semelhantes e a perda de um quase sempre determina a prosperidade de outro.” (nota IX, Pl. 202-3, p. 297)
A competição, a desconfiança e a glória, que são as três causas de discórdia afirmadas por Hobbes como pertencendo à natureza humana, são, para Rousseau, “obras da sociedade” e não fazem parte da natureza humana original83.
83
Cf. HOBBES, T. Leviathan. Parte I, cap. XIII. No Discurso sobre a desigualdade, Rousseau critica Hobbes por este ter incluído, na concepção de homem natural, necessidades e paixões que são “obra da sociedade” (Pl. 153). A crítica que Rousseau faz aos teóricos do direito natural é semelhante na medida em que, para ele, todos tomam os efeitos pelas causas. Cf. Pl. 132: “Enfin tous, parlant sans cesse de besoin, d’avidité, d’oppression, de desirs, et d’orgueil, ont transporté à l’état de Nature, des idées qu’ils avoient prises dans la société; Ils parloient de l’Homme Sauvage et ils peignoient l’homme Civil” .
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Afirmar os sentimentos morais não contradiz, para Rousseau, as observações das situações concretas. É possível sustentar, apesar de nossas observações dos fatos, não somente que há no homem uma disposição para a comunhão afetiva com os outros, mas também que é essa disposição que dá origem a todas as obrigações, inclusive a obrigação política. Tal disposição é sempre vaga e precária mas, embora assim o seja, é possível e vantajoso elaborar as estratégias políticas tendo em vista esses elementos da esfera afetiva. A consciência não se apresenta já dada e pronta. Não é preciso determinar seu conteúdo porque não é por meio deste que se especificarão as regras da vida pública. A obrigação política não se sustenta nos preceitos morais da consciência, mas na capacidade efetiva que confere ao indivíduo de estender seu “eu” para todos os outros e de impor a si mesmo uma lei impessoal. Esse aspecto do pensamento de Rousseau nos ajuda a entender sua crítica à razão, quando ele a considera exclusivamente em sua relação com os interesses particulares84. Os princípios que levam o indivíduo a agir em função do bem público ou comum não estão vinculados aos cálculos da razão. É inútil pretender convencer racionalmente os homens de suas obrigações políticas. Nesse sentido, Rousseau poderia convir que é necessário impor as leis aos homens, independentemente das boas razões. Ainda do mesmo ponto de vista, para Rousseau, mesmo que fosse possível convencê-lo racionalmente a respeito da necessidade do cumprimento de seus deveres, não seria a razão 84
Cf. E, IV, Pl. 602. Claro, não é ao conceito geral de razão que Rousseau se refere quando faz essa crítica. A razão em si mesma, simplesmente como uma faculdade do espírito, mantém sua função de guia moral.
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que o levaria a agir visando o bem público. O discurso do “homem independente” do Manuscrito de Genebra é, nesse sentido, esclarecedor: “Dai-me garantias contra todo empreendimento injusto, ou não espereis que, de minha parte, eu dele me abstenha [...]. Eu vejo bem, eu reconheço, a regra que posso consultar; mas ainda não vejo a razão que deve sujeitar-me a essa regra. Não se trata de me ensinar o que é a justiça; trata-se de mostrar-me qual interesse tenho em ser justo.” (MG, I, 2, Pl. 285-286)
O modo como esse “homem independente”85 raciocina parece ser, para Rousseau, comum à maior parte dos indivíduos – não é, certamente, o homem que Rousseau idealiza. Do ponto de vista do direito político, Rousseau não reconhece nenhum tipo de recurso à consciência ou à razão individual. As leis positivas e o poder executivo não podem depender de caprichos individuais, não são estabelecidos tendo-se em vista as aspirações individuais, mas têm como única finalidade a manutenção do bem comum e a preservação do corpo político. A principal função da teoria da consciência para a caracterização da obrigação política não reside na esfera dos princípios e abstrações relativos ao corpo político. A consciência individual, para Rousseau, está muito longe de servir como fundamento da associação política. Seus preceitos não são anterio-
85
Trata-se de uma alusão ao “raciocinador violento” de Diderot. Cf. DIDEROT, D. “Droit Naturel”. In: Œuvres complètes. t. VII, Paris, Hermann, 1976, p. 24-9.
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res à associação mas resultados dela. Do ponto de vista teórico, a lei fundamental do maior bem de todos é uma conseqüência direta do tipo de pacto que lhe dá origem, ou seja, um acordo baseado na vontade livre de todos os contratantes. A originalidade da teoria da consciência de Rousseau é concebê-la, não apenas como um substrato da ordem universal, ou como um “instinto divino”86, mas como base da obrigação, na medida em que, ao estender os interesses do indivíduo à utilidade e ao bem público, embora não seja causa da associação política, é o que a conserva. Mesmo afirmando o inatismo dos sentimentos da consciência, Rousseau confere a ela, e é isso que a torna compatível com seu pensamento político, uma certa dependência em relação aos hábitos e costumes, sejam estes privados ou públicos. É a consciência que, segundo Rousseau, confere ao indivíduo a capacidade de obrigar-se a si mesmo, de impor-se as leis e as obrigações morais e políticas. É na esfera da consciência, dos hábitos e costumes, que as obrigações são fixadas e respeitadas. Daí a eficácia da consciência do ponto de vista da ação política: ela não serve como fundamento às regras da vida pública, mas permite sua manutenção. O que não ocorre simplesmente pela suposição de uma consciência acabada, formada, mas de uma consciência que estaria sempre por ser construída, através da disciplina e da educação.
86
Para Alexis Philonenko não há originalidade na teoria da consciência de Rousseau porque esta se manteria fiel, na medida em que considera a consciência como instinto divino, à tradição calvinista. A consciência seria, como para Calvino, apenas um “princípio unificador” que torna o homem semelhante a Deus. Cf. PHILONENKO, A. Jean-Jacques Rousseau et la pensée du malheur. Paris, Vrin, 1984, t. II, p. 271-3.
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As sementes de sociabilidade, humanidade e auto-governo da consciência dependem, para se desenvolver plenamente, de estímulos externos ao indivíduo. Trata-se de uma tendência à sociabilidade, mas que só se manifesta a partir de condições reais e concretas que propiciem o desenvolvimento e a formação da consciência nesse sentido. A teoria da consciência poderia servir como um subterfúgio para a manutenção de uma dominação dos mais fortes ou mais ricos se desviasse a atenção dos problemas reais ou apenas propusesse o recurso à objeção da consciência individual, deslocando problemas de natureza política para a esfera moral87. No pensamento de Rousseau ela serve, ao contrário, para a afirmação da plena soberania do povo, conferindo aos indivíduos que integram uma nação particular a responsabilidade política e permitindo aos governantes depositar a confiança em sua capacidade de obrigar-se a si mesmo, independentemente da força pública. Trata-se da arte de governar, que está muito além da simples imposição das leis pela força, e que ganha tanto mais solidez quanto mais consegue atingir essa “face oculta” da natureza humana. Por mais vagos que sejam os sentimentos da consciência, e mesmo constituindo-se como uma espécie de “ato de fé” 87
Parece ser muito diferente afirmar um direito à participação na vida política e afirmar um direito de recusar obediência quando aquilo que se ordena é “contra a consciência moral”. O direito à objeção de consciência, sem o princípio de que o homem é capaz de obrigar-se a si mesmo, não garante ao indivíduo autonomia e responsabilidade política mas apenas moral. O indivíduo pode ter liberdade para pensar e crer em que quiser, desde que obedeça. A objeção de consciência é reconhecida pelos teóricos do direito natural e, no entanto, como mostra Haendel, eles não incentivavam, do ponto de vista político, a ação popular. Para Haendel o simples apelo a obrigações morais não garantiam os direitos políticos dos súditos. Cf. HAENDEL, C. W. Jean-Jacques Rousseau: moralist. Op. cit., cap. 6.
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essa confiança que o governante deposita nos indivíduos, tal suposição em nada fere a confiabilidade das regras e princípios políticos em questão, porque não se pretende, com isso, afirmar a supremacia da consciência em relação às leis civis ou em relação à vontade geral. Ao contrário, a concepção de consciência de Rousseau, se bem aplicada, serviria como reforço à manutenção da ordem pública, entendida sob o princípio da vontade geral e do bem comum. Rousseau não nega a primazia, do ponto de vista do indivíduo, dos interesses particulares e, por isso, não dilui o eu individual no eu comum do corpo político. A tensão entre o indivíduo e a comunidade permanece e, assim como os conflitos entre interesses divergentes, não desaparece simplesmente através de preceitos morais. A teoria da consciência não enfraquece o governo político ou o torna mais flexível. Sua contribuição para a teoria política residiria, sobretudo, no fortalecimento da idéia de obrigação, que dela tira sua solidez. Nas Cartas escritas da montanha, após afirmar que o fundamento da obrigação e do corpo político reside na convenção de seus membros, Rousseau observa: “Independentemente da verdade desse princípio, ele é melhor do que todos os outros pela solidez do fundamento que estabelece; pois que fundamento mais seguro pode ter a obrigação entre os homens do que o livre engajamento daquele que se obriga? Pode-se disputar qualquer outro princípio, não esse.” (“Sexta carta”, Pl. 806-7)
CAP. 4 – A AFETIVIDADE NA TEORIA DA VONTADE GERAL
A CONSCIÊNCIA E A VONTADE GERAL Aqueles que criticam Rousseau, por julgar que seu pensamento político encerra elementos favoráveis à tirania, ao despotismo ou ao totalitarismo, parecem tomar como principal ponto de referência sua concepção de vontade geral. Tal é o caso de J. L. Talmon, que acredita encontrar no pensamento de Rousseau os germes da “democracia totalitária”. Sua interpretação da teoria da vontade geral considera apenas seus aspectos abstratos: a vontade geral de Rousseau é, para ele, uma “verdade matemática”, semelhante à idéia platônica, e é caracterizada como uma espécie de “vontade pré-ordenada”, sem a qual não se pode afirmar de um indivíduo que pertence à espécie humana88. Os grandes riscos de tirania, em relação à concepção de vontade geral, devidos principalmente à dificuldade de realizá-la concretamente na vida política sem que seja falseada ou iludida pelas vontades particulares e parciais, são reconheci-
88
Cf. TALMON, J. L. Los origines de la democracia totalitaria. México, Aguilar, 1956, p. 45 e 53.
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dos por vários intérpretes, mesmo por aqueles que não pretendem associar a Rousseau alguma espécie de autoritarismo político. A dificuldade de transpor para o plano concreto um princípio teórico e abstrato, como esse da vontade geral, enquanto base das leis e justificação da soberania do poder político, não é totalmente ignorada por Rousseau, o que podemos notar a partir da conflituosa relação entre vontade geral e força pública, tal como aparece no Manuscrito de Genebra: “Como na constituição do homem a ação da alma sobre o corpo é o abismo da filosofia, a ação da vontade geral sobre a força pública é o abismo da política na constituição do Estado. Foi nesse ponto que todos os legisladores se perderam.” (MG, I, 4, Pl. 296)
Para Rousseau, o governo, o qual só assume o poder executivo por consignação, tem a obrigação de realizar concretamente, através de atos particulares, a vontade geral. Ele deve “colocar em ação a força pública segundo as diretrizes da vontade geral” e “fazer na pessoa pública o que faz no homem a união da alma e do corpo” (CS, III, 1, Pl. 396). Esse abismo da filosofia política não parece ter sido a principal preocupação de Rousseau que, embora a leve em consideração e limite o poder executivo à proteção dos direitos estabelecidos pelo princípio da vontade geral, não trata detalhadamente das condições concretas em que tal poder deva ser exercido89. 89
Harold J. Laski afirma que, para realizar qualquer sistema de direitos, é preciso tratar das condições sob as quais a autoridade do Estado é exercida. Para ele, o poder do Estado tem uma função como qualquer outra associação. Trata-se de uma tese comum às teorias liberais. Cf. LASKI, H. J. A grammar of
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Talvez tenha sido em virtude da ausência de planos de ação, em suas obras políticas, a respeito da atuação do poder executivo, que mostrassem mais claramente o funcionamento da aparelhagem governamental, tal como ele a concebia, que muitos inquisidores de sua obra tenham vinculado a seus princípios políticos essa nódoa contra a liberdade individual. Benjamin Constant, para quem o Contrato social é “o mais terrível auxiliar de todos os gêneros de despotismo”, fazendo concessão às boas intenções de Rousseau, por ter sido este, segundo ele, “o primeiro que tornou popular o sentimento de nossos direitos”, sendo responsável pelo “despertar dos corações generosos, das almas independentes”, afirma, ao mesmo tempo: “mas o que ele sentia com vigor, não soube definir com precisão”90. É atribuída a Rousseau a responsabilidade, por causa de suas concepções de vontade geral e de soberania, pelo poder despótico, que aparece, de modo manifesto para alguns, no terror revolucionário dos jacobinos91. E como mostra Alfred politics. 5. ed. London, George Allen & Unwin, 1967, p. 131-4. Também FAGUET, É. Dix-huitième siècle. Études littéraires. 43. ed. Paris, s.d., p. 409: “L’idée libérale a été très lente à naître en Europe. Elle est essentiellement moderne; elle est d’hier. Elle consiste à croire qu’il n’y a pas de souveraineté; qu’il y a un aménagement social qui établie une autorité, laquelle n’est qu’une fonction sociale comme une autre, et qui, pour qu’elle ne soit qu’une fonction, doit être limitée, contrôlée, divisée, toutes choses aussi difficiles, du reste, à réaliser, qu’elles sont nécessaires”. 90
CONSTANT, B. Cours de politique constitutionelle (1818-20). 1861, i, 276n.
91
Charles Edwin Vaughan considera que a fase mais terrível da Revolução Francesa viu o triunfo da idéia do Contrato social, pela qual, segundo ele, o “indivíduo deixa de ser seu próprio mestre” e perde “seu valor independente enquanto unidade” para se tornar uma “mera fração cujo valor é determinado somente por sua relação com o todo”. Cf. VAUGHAN, C. E. “Introduction: Rousseau as political philosopher”. In: ROUSSEAU, J.-J. The political writings of JeanJacques Rousseau. Oxford, Basil Blackwell, 1962, v. I, p. 21-2.
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Cobban, as críticas a Rousseau não páram aí; algumas têm por origem as teses liberais; outras, as teses socialistas. Segundo Cobban, tanto aqueles que defendiam a independência do indivíduo em relação à comunidade, como os que conferiam ao Estado prioridade sobre o indivíduo, consideravam Rousseau como uma espécie de “profeta do totalitarismo”, para quem o “indivíduo não é nada e o Estado é tudo”92. Dérathé e Cobban já mostraram que as críticas voltadas à teoria da vontade geral, ao associá-la à uma negação dos direitos do indivíduo, encerram um equívoco. Para Cobban, a teoria da vontade geral é o único modo de conciliar o poder soberano com a liberdade individual. A soberania da vontade geral não somente serve como base para as leis, pelas quais deve ser orientado o poder executivo, mas também envolve a participação ativa de todos os indivíduos-cidadãos na vida do Estado93. Para Dérathé, a limitação do poder soberano à generalidade das leis, na medida em que tem como garantia a igualdade e a reciprocidade, protege os direitos individuais94. Vaughan, para sustentar a tese de que Rousseau é “inimigo jurado do individualismo e da individualidade”, enfatiza os
92
Cf. COBBAN, A. Rousseau and the modern state. Op. cit., p. 20-31. Para P.-J. Proudhon, o Contrato social de Rousseau não difere da prática do despotismo e deixa pouco espaço para a liberdade do indivíduo: “il est vrai que son contrat social laisse peu de place à la liberté de l’individu, que du moins l’État, dirigé par la volonté générale, est seul juge de la part de liberté qu’il laisse à chacun”. Cf. PROUDHON, P.-J. “De la justice dans la Révolution et dans l’Église”. In: Œuvres complètes de P.-J. Proudhon. Paris, Marcel Rivière, 1931, v. II, p. 184.
93
Cf. COBBAN, A. Rousseau and the modern state. Op. cit., p. 71-81 e p. 16470.
94
Cf. DÉRATHÉ, R. J.-J. Rousseau et la science politique de son temps. Op. cit., p. 344-64.
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aspectos abstratos do Contrato social e, mesmo considerando haver também um aspecto concreto, para ele, este não passa de atenuação ao coletivismo exposto em sua parte mais teórica, referente à idéia de alienação total de todos os membros ao corpo político. A teoria da vontade geral, para Vaughan, faria parte dessas atenuações95. Ora, como defende Dérathé, contra a tese de Vaughan, a teoria da vontade geral não pode ser entendida como mero apêndice à teoria abstrata do contrato social96. A vontade geral deve ser compreendida como base formal do direito instaurado pelo pacto social e única condição do corpo político legítimo. Daí ela estar no centro, e não na periferia, da teoria do contrato social. Tal vinculação da concepção de vontade geral às abstrações jurídicas, utilizada por Dérathé e por Cobban para refutar os argumentos a favor do despotismo ou do totalitarismo no pensamento político de Rousseau97 serve, por outro lado, também para enfatizar seus aspectos niveladores e autoritários. E é isso que faz Georges Gurvitch, para quem o “individualismo abstrato e jurídico” de Rousseau, e também de Kant, teria como conseqüência a destruição da “personalidade individual”. A 95
Cf. VAUGHAN, C. E. “Introduction: Rousseau as political philosopher”. In: ROUSSEAU, J.-J. The political writings of Jean-Jacques Rousseau. Op. cit., v. I, p. 61-71. Utilizamos o termo “atenuação” seguindo a tradução de R. Dérathé do termo qualification.
96
Cf. DÉRATHÉ, R. J.-J. Rousseau et la science politique de son temps. Op. cit., p. 344-64.
97
Cassirer explora a relação lei-liberdade. Embora haja no pensamento político de Rousseau uma submissão do indivíduo ao Estado, é este que lhe garante a liberdade. A liberdade individual se realiza na vontade geral, vontade do Estado, em função da igualdade jurídica e da idéia de dever do sujeito moral autônomo que impõe a lei a si mesmo. Cf. CASSIRER, E. Le problème Jean-Jacques Rousseau. Paris, Hachette, 1987, p. 32-7.
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idealização do indivíduo enquanto pessoa moral, valor em si, cuja “encarnação jurídica” seria a vontade geral, e a negação de uma sociedade natural e involuntária são procedimentos, segundo Gurvitch, acompanhados pelo desprezo da totalidade concreta. Os indivíduos seriam então, nessa perspectiva, isolados e nivelados diante de um Estado centralizado, já que este é, para ele, concebido como única expressão da vontade geral e da relação social legítima98. Se, do ponto de vista formal, a vontade geral garante os direitos individuais, ao mesmo tempo em que confere a todos e, portanto, a cada um dos membros do corpo político o poder soberano, do ponto de vista concreto, é preciso que o poder executivo seja exercido por um grupo ou por uma pessoa. O problema reside, não tanto no aparato jurídico da teoria política de Rousseau, mas na exigência de realização da vontade geral. E isso está implícito na tese de Gurvitch, que vê no indivíduo idealizado de Rousseau – e que por direito é autônomo – apenas um “exemplar uniforme da pálida abstração do homem em geral”, já que, segundo ele, é o Estado que centraliza o poder efetivo de realizar a vontade geral e de ser sua expressão99.
98
Cf. GURVITCH, G. L’idée du Droit social. Notion et système du Droit social. Histoire doctrinale depuis le XVIIe. siècle jusqu’à la fin du XIXe. siècle. Paris, Librairie du Recueil Sirey, 1932, p. 260-79: “la poussière d’individus disjoints et nivelés, placés devant l’unité de l’État centralisé, réalisant la volonté générale identique et immanente à tous ses membres, telle est la conclusion logique de cet individualisme” (p. 269).
99
Cf. id., ibid. Talmon também ressalta o problema do poder soberano ser exercido por um grupo, “o partido de vanguarda”, que, segundo ele, pode governar sem fazer referência à vontade real do povo. Cf. TALMON, J. L. Los origines de la democracia totalitaria. Op. cit., p. 53.
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Para que se possa afirmar que a teoria da vontade geral não tem como conseqüência o despotismo, o totalitarismo, o nivelamento ou o aniquilamento dos indivíduos, ela deve garantir, não apenas no plano abstrato, mas também concretamente, a liberdade e os direitos de cada membro do corpo político. É preciso que haja, nas palavras de Dérathé, uma “garantia real e não puramente teórica” de que os direitos do indivíduo serão assegurados100. Essa exigência é o que caracteriza o universo político em si mesmo. Não basta tratar de problemas teóricos e abstratos, mas é preciso assegurar a possibilidade de aplicação dos princípios. Nenhum pensamento político, ainda que metafísico e abstrato, está dissociado da ação e da prática política, do mesmo modo que, segundo Cobban, tampouco o está do fato concreto101. Embora Rousseau não nos deixe um manual prático de condução do corpo político, aponta para as condições reais em que seus princípios podem ser realizados. E é sobretudo nesse aspecto que a teoria da vontade geral está intimamente ligada à teoria da consciência. Muito se enfatizou os aspectos abstratos da vontade geral e pouca atenção se deu ao caráter concreto de tal concepção. A vontade geral não é apenas uma “verdade matemática”, como
100
Cf. DÉRATHÉ, R. J.-J. Rousseau et la science politique de son temps. Op. cit., p. 358-9.
101
Cf. COBBAN, A. Rousseau and the modern state. Op. cit., p. 99: “Political theory, even at its most metaphysical, can never be entirely divorced from practical politics [...]. The very raison d’être of political theory is to find which political facts to justify and which to condemn”.
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quer Talmon, como não é apenas um ideal racional102. As condições para sua realização são apontadas por Rousseau no Contrato social, de modo abrangente, quando relaciona os laços sociais com o bem comum: 102
Vários são os intérpretes que associam a concepção de vontade geral de Rousseau ao ideal racional ou, mais particularmente, à razão pura prática de Kant. Cf. GURVITCH, G. L’idée du Droit social. Notion et système du Droit social. Histoire doctrinale depuis le XVII e. siècle jusqu’à la fin du XIX e. siècle. Op. cit., que utiliza tais expressões para definir a vontade geral de Rousseau: “l’incarnation spécifiquement juridique de cette dignité morale de chaque personne-valeur en soi”, “raison juridique idéelle immanente à chaque conscience personnelle”, “l’incarnation de l’essence abstraite et extra-temporelle de chaque personne dans son aspect juridique” (p. 264) e “raison juridique autonome” (p. 265). Também WEIL, Éric. “Rousseau et sa politique”. In: Pensée de Rousseau. Op. cit., p. 9-39. É. Weil parece mais preocupado em manifestar seu entusiasmo com o sujeito moral autônomo e com a razão prática de Kant do que em compreender a teoria da vontade geral de Rousseau. Para ele, “era preciso Kant para pensar os pensamentos de Rousseau” (p. 18). O indivíduo deve buscar a vontade geral só consigo mesmo, abrindo-se à voz da razão porque, enquanto indivíduo racional, ele é em si mesmo universal e “sua vontade livre não pode diferir quanto a seu conteúdo da vontade de não importa qual outro indivíduo igualmente racional” (p. 33). A partir dessa interpretação, Weil observa a inaptidão de Rousseau para a ação: “le mystère commence dès qu’il est question de réalisation. Rousseau s’est rendu la tâche facile, et, après avoir établi la mesure des actions politiques, ni les instituitions ni les lois concrètes ne l’intéressent plus” (p. 33-4). O homem que quer agir, observa Weil, “não pode permanecer fiel a Rousseau” (p. 28). Para A. Cobban a vontade geral de Rousseau é também um ideal racional, daí ela ser sempre constante, inalterável e pura. Ela é, como para Malebranche, a “vontade de Deus” e, por isso, Rousseau fundaria, segundo Cobban, sua crença na soberania popular na idéia de que a vontade do povo é incorruptível (“unperverted”). Cobban afirma também que Rousseau, embora reconhecesse o poder da soberania da vontade geral, era relutante na aceitação do exercício desse poder. Cf. COBBAN, A. Rousseau and the modern state. Op. cit., p. 93-5, e p. 162. Cf. também CASSIRER, Ernst. Le problème Jean-Jacques Rousseau. Op. cit., p. 81-2: “La morale de Rousseau n’est pas une éthique du sentiment, elle est la forme la plus radicale de la pure éthique de la loi qu’on ait élaborée avant Kant” e “L’unité dans l’oeuvre de Rousseau”. In: Pensée de Rousseau. Op. cit., p. 61, em que Cassirer afirma que a verdadeira universalidade só pode ser alcançada quando cada um encontrar em seu próprio juízo a solidariedade entre sua vontade e a vontade geral.
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“Enquanto muitos homens reunidos se consideram um único corpo, eles não têm senão uma única vontade que se liga à conservação comum e ao bem-estar geral. Então, todos os expedientes do Estado são vigorosos e simples, suas máximas claras e luminosas; absolutamente não há qualquer interesse confuso, contraditório; o bem comum se mostra em todos os lugares com evidência e só exige bom senso para ser percebido [...]” (CS, IV,1, Pl. 437, p. 123) “Quando porém o liame social começa a afrouxar e o Estado a enfraquecer, quando os interesses particulares passam a se fazer sentir e as pequenas sociedades a influir na grande, o interesse comum se altera e encontra opositores, a unanimidade não mais reina nos votos, a vontade geral não é mais a vontade de todos, surgem contradições e debates, e o melhor parecer não é aprovado sem disputas. Enfim, quando o Estado, próximo da ruína, só subsiste por uma forma ilusória e vã, quando se rompeu em todos os corações o liame social, quando o interesse mais vil se pavoneia atrevidamente com o nome sagrado do bem público, então a vontade geral emudece – todos, guiados por motivos secretos, já não opinam como cidadãos, tal como se o Estado jamais tivesse existido, e fazem-se passar fraudulentamente, sob o nome de Leis, decretos iníquos cujo único objetivo é o interesse particular.” (CS, IV,1, Pl. 438, p. 124)
Para Rousseau, se os laços sociais são enfraquecidos, o bem comum, elo entre os membros do corpo político enquanto finalidade do Estado, deixa de se apresentar com evidência e é obscurecido pelos interesses parciais. Sua preocupação com a possibilidade da expressão “bem público” servir, de fato, como pretexto para a manutenção de privilégios e desigualdades aparece também no verbete “Economia política” quando ele se re-
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fere ao bem público como “o mais perigoso açoite do povo” (Pl. 258)103. São os laços sociais, o “espírito social” ao qual Rousseau se refere no Contrato social (CS, II,7, Pl. 383), que, nesse sentido, garantem efetivamente o cumprimento das cláusulas do pacto político, já que este envolve a consideração da vontade geral para se estabelecer efetivamente o bem público e o interesse comum. A vontade geral, para ser realizada, supõe a união afetiva entre os membros do corpo político e, nesse sentido, ela não se funda somente na razão. Tanto L. R. Salinas Fortes, quando aponta para a exigência de realização da vontade geral, que só se dá, segundo ele, numa realidade de ordem afetiva, como B. de Jouvenel, para quem a vontade geral de Rousseau é um imperativo afetivo e não racional, revelam esse aspecto emocional da esfera política104.
103
Essa preocupação de Rousseau com o “jogo maligno dos interesses ocultos” (expressão empregada em Les confessions, I, 2, Ed. da Pléiade, t. I, Pl. 82), produzido por uma aparência de ordem, reforça a tese de G. Besse, segundo a qual não é possível a Emílio ser um “homem exemplar” sem ser também um “cidadão exemplar”. Cf. BESSE, G. “Le sage et le citoyen selon Jean-Jacques Rousseau”. In: Révue de métaphysique et de morale. Op cit., p. 28: “Si la pire violence n’est pas dans le règne brut de la particularité qui s’avoue, mais dans la ruse qui dissimule cette violence sous le faux semblant des principes, alors la logique de celui qui aime et qui veut la vérité ne sera-t-elle pas de payer d’exemple pour que la cité ne se laisse plus confisquer, pour qu’elle ne se prête plus au détournement et ne consente plus aux leurres, pour qu’elle s’oblige à n’exister que dans la fidélité à soi-même?”.
104
Cf. FORTES, Luís Roberto Salinas. Rousseau: da teoria à prática. São Paulo, Ática, 1976, p. 90. Também p. 80 em que Salinas Fortes observa que não basta legitimar o contrato social e a vontade geral. O legislador não pode tratar apenas de uma moral pura, mas deve levar em conta as exigências do real empírico. A conservação do corpo político depende da fixação da vontade geral e da definição concreta do bem comum. Cf. JOUVENEL, Bertrand de. “Essai sur la
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A teoria da vontade geral não supõe uma moral pura. Sua base na natureza humana não reside na razão pura105, mas na concepção de consciência, tal como Rousseau a desenvolve ao longo dos cinco livros do Emílio. A formação de Emílio não visa somente o desenvolvimento da razão mas – por meio de suas relações afetivas com aqueles que lhe estão mais próximos, primeiramente, e depois com seus concidadãos – pretende-se desenvolver uma sensibilidade própria ao sujeito moral, a qual Rousseau chama de consciência. Daí a afirmação de Rousseau de que o impulso da consciência nasce de uma “dupla relação: consigo mesmo e com seus semelhantes” (E, IV, Pl. 600) e de que é “dos primeiros movimentos do coração que se elevam as primeiras vozes da consciência” (E, IV, Pl. 522). politique de Rousseau”. In: ROUSSEAU, J.-J. Du Contrat social. Op. cit., p. 112-5. Se a vontade geral fosse racional ela se referiria, segundo Jouvenel, a uma lei natural para toda a humanidade e não, como ocorre no pensamento de Rousseau, à “lei de conservação” de um corpo político particular. Renato Janine Ribeiro desloca o problema referente à realização da vontade geral da questão da generalidade da vontade para a questão da vontade das três pessoas do discurso político, chamando atenção para as assembléias propostas por Rousseau no Contrato social. A assembléia é o local por excelência do discurso político e da prática política democrática, e a condição de realização da vontade geral é a perfeita coincidência entre as pessoas do discurso no diálogo político: “que nós todos (primeira pessoa) falemos a todos (segunda pessoa) a propósito de todos (terceira pessoa)”. Cf. RIBEIRO, R. J. “Volonté générale et vérité du cœur chez Rousseau”, texto proferido no dia 28 de setembro de 1995 no II Colloque International de Montmorency, France: “J.-J. Rousseau. Politique et Nation”, organizado pelo Musée Jean-Jacques Rousseau. 105
A exposição de sua concepção de razão ao longo do livro IV do Émile é curiosa. No início a razão aparece como uma faculdade falível, incapaz de dirigir o homem do ponto de vista moral e, depois da exposição da teoria da consciência, em que Rousseau mostra sua relação com a razão, esta ganha a função de guia moral. Tal mudança de perspectiva em relação à razão pode ser explicada pelo desenvolvimento da consciência, capaz de fornecer critérios morais, valores e princípios. Cf. E, III, Pl. 481; E, IV, 522-3; E, IV, Pl. 594-5; E, IV, Pl. 600; E, IV, Pl. 602; E, IV, Pl. 605; E, IV, Pl. 652.
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Desde o amor que a criança adquire pela mãe que lhe dedica seus cuidados (E, IV, Pl. 492), até o momento da escolha do país no qual se pretende morar (E, V, Pl. 831), a educação se faz por meio da experiência efetiva do indivíduo em suas relações com os outros. No livro V, em que Emílio viaja pelo mundo para conhecer os diversos povos, é por seu envolvimento com diferentes hábitos e costumes, que descobre o que convém ao homem em geral (E, IV, Pl. 671) e o que constitui os verdadeiros laços de sociabilidade106. O desenvolvimento real da consciência tem também como condição as circunstâncias em que o homem está colocado e é, de certo modo, produto de hábitos e costumes. Não obstante Rousseau negue essa dependência, afirmando ser a consciência um princípio inato, independente da razão ou de qualquer fato empírico, há um processo descrito no Emílio que diz respeito ao desenvolvimento da natureza humana, com todas as suas faculdades e potencialidades, e sem o qual não é possível a Rousseau construir a teoria da consciência. Antes mesmo do aparecimento da consciência, e como condição para seu desenvolvimento, Emílio deve se relacionar com as coisas que “fazem agir a força expansiva de seu coração”, que ajudam a “excitar sua sensibilidade nascente”, que o levam à bondade, à humanidade, à comiseração e à benevolência (E, IV, Pl. 506).
106
Há, para Rousseau, uma relação entre os hábitos e costumes comuns e a sociabilidade humana, relação que aparece também no Discurso sobre a desigualdade, na passagem em que Rousseau descreve o estágio da humanidade mais feliz e duradouro, a “verdadeira juventude do mundo”, na qual o homem parece ter sido feito para permanecer, e que corresponde ao momento de formação da “nação particular, unida por costumes e caracteres, não por regulamentos e leis, mas pelo mesmo gênero de vida e de alimentos e pela influência comum do clima” (Pl. 169-70).
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Do mesmo modo que Rousseau afirma a independência da consciência em relação à razão e ao mesmo tempo em que reconhece que são as idéias da razão que se tornam objetos dos sentimentos da consciência – sem as quais esta seria vazia e inativa107 – a consciência depende e não depende dos hábitos e costumes. Ela é formada por eles, para se desenvolver depende das situações em que está colocada108, das relações do homem consigo mesmo e com os outros, mas é também o que os dirige. Qualquer ação política que se pretenda efetiva na condução do corpo político, com vistas na realização da vontade geral, deve atentar para a esfera da consciência, que é a dos laços afetivos, dos hábitos e costumes e dos princípios mais elementares que determinam a direção da vontade e da conduta dos homens. A consciência pode ser entendida também como um prolongamento daqueles dois princípios anteriores à razão, ex-
107
Cf. E, I, Pl. 288; E, IV, Pl. 600. A exposição que Dérathé faz dessa questão, no intuito de mostrar as bases intelectuais da consciência e, conseqüentemente, o racionalismo de Rousseau, é precisa. O desenvolvimento da consciência e sua atividade dependem da razão. Cf. DÉRATHÉ, R. Le rationalisme de J.-J. Rousseau. Op. cit., p. 107-12: “La conscience chez Rousseau n’est nullement destinée à remplacer la raison, puisque celle-ci est la condition même de son activité. La conscience serait sans objet chez un être privé de raison et par là même incapable d’acquérir la connaissance du bien” (p. 112). Também DÉRATHÉ, R. “La problematique du sentiment chez Rousseau”. In: Annales de la société J.-J. Rousseau. t. XXXVII, 1966-1968, p. 7-17.
108
Lembremos da passagem em Les confessions, quando Rousseau observa a respeito da “sensibilidade do coração”: “Quoique cette sensibilité de cœur qui nous fait vraiment jouir de nous soit l’ouvrage de la nature et peut être un produit de l’organisation, elle a besoin de situations qui la développent. Sans ces causes occasionnelles un homme né très sensible ne sentiroit rien, et mourroit sans avoir connu son être” (I, 3, Pl. 104).
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postos no Discurso sobre a desigualdade109, o amor de si e a piedade, pelos quais age o homem natural antes do aparecimento da razão e das paixões fictícias, como o amor próprio, a vaidade ou o desejo de se distinguir. Na perspectiva do Emílio, se a sociedade corrompe o amor de si e a piedade, colocando o homem fora da natureza e em contradição consigo mesmo (E, IV, Pl. 491; E, IV, Pl. 494; E, IV. Pl. 548), Rousseau afirma um princípio infalível, que não existia no estado puro de natureza descrito no Discurso sobre a desigualdade, mas que é também voz da natureza, anterior aos artifícios e convenções sociais e pelo qual julgamos sobre a justiça, a virtude e a bondade das ações humanas: “Dizem-nos que a consciência é obra dos preconceitos; entretanto, sei por minha experiência que ela se obstina em seguir a ordem da natureza contra todas as leis dos homens.” (E, IV, Pl. 566, p. 305) “Basta consultar-me acerca do que quero fazer: tudo o que sinto ser bem é bem, tudo o que sinto ser mal é mal: o melhor de todos os casuístas é a consciência.” (E, IV, Pl. 594, p. 332) “Há portanto no fundo das almas um princípio inato de justiça e de virtude de acordo com o qual, apesar de nossas próprias máximas, julgamos boas ou más nossas ações e as alheias e é a esse princípio que chamo consciência” (E, IV, Pl. 598, p. 335)
109
Cf. DI, Pl. 126; DI, Pl. 154-6 e nota XV; DI, Pl. 170-1; DI, Pl. 178. Também DÉRATHÉ, R. Le rationalisme de J.-J. Rousseau. Op. cit., p. 97-107 e POLIN, Raymond. La politique de la solitude. Essai sur J.-J. Rousseau. Paris, Sirey, 1971, p. 61-3.
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É nesse sentido que Rousseau afirma que bondade e justiça não são apenas palavras abstratas, mas prolongamentos de nossas afeições primitivas (E, IV, Pl. 522-3). Os principais elementos da política de Rousseau fazem referência à sua concepção da natureza humana original. Afirmar preceitos morais e políticos ignorando, por exemplo, os instintos de sobrevivência, princípio primeiro na conduta de todos os homens, é para Rousseau emitir palavras vazias, é cair nas “sutilezas metafísicas” a que se refere na Cartas morais (“Segunda carta”, Pl. 1087). Não é possível fundar as associações humanas sem os princípios de piedade e de amor a si mesmo que, do ponto de vista dos desenvolvimentos da natureza humana, são os sentimentos da consciência. A consciência é também uma espécie de paixão110, um sentimento do coração, e o que a difere das outras paixões é esse caráter expansivo que dá à alma111. Por meio de seus princípios o homem se torna capaz de reconhecer o outro como seu semelhante, de generalizar seus interesses particulares e de estender os objetos de sua vontade a todos os homens.
110
Não há no pensamento de Rousseau uma negação das paixões, mas é preciso que se saiba governá-las. Várias são as passagens em que Rousseau enfatiza, no Emílio, a importância do controle das paixões, chegando a propor a separação de Emílio e Sofia, como última lição de auto-governo. Cf. E, IV, Pl. 543; E, IV, Pl. 594; E, IV, Pl. 604; E, V, Pl. 781-2; E, V, Pl. 817 e, finalmente, E, V, Pl. 819, onde Rousseau afirma sobre as paixões que “toutes sont bonnes quand on en reste le maitre, toutes sont mauvaises quand on s’y laisse assujetir”.
111
Além disso são os sentimentos da consciência que, juntamente com a razão, aparecem no Emílio para reter as paixões. Cf. E, IV, Pl. 548; E, IV, Pl. 587. Analogamente ao Legislador do Contrato social, que deve ver todas as paixões dos homens (CS, II, 7, Pl. 381), Emílio deve conhecer as paixões para saber governá-las.
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Para Dérathé só podemos falar na continuidade entre o amor de si e os sentimentos da consciência se consideramos um certo platonismo em Rousseau. Há, para ele, uma dualidade da natureza humana que nos permite falar na existência de dois princípios relativos ao amor de si: um que se refere ao bem-estar material e outro ao bem estar da alma – que consiste no amor à ordem ou ao belo moral. Com tal suposição é possível explicar, segundo Dérathé, como pode o homem cuidar dos “interesses de sua alma” às expensas dos interesses materiais. Fazer o bem seria, nessa perspectiva, apenas uma tendência da natureza humana ditada pelo impulso da consciência, que nada mais é do que um prolongamento do amor de si em sua versão espiritualista112. Contudo, embora Rousseau afirme o amor à ordem e o caracterize na “Carta a Beaumont” como um sentimento relativo ao bem-estar da alma, ao que, na “Carta a Offreville”, de 4 de outubro de 1761, ele chama de “bem-estar absoluto”, ou “interesse espiritual”113, há uma relação íntima entre os sentimentos da consciência e o instinto de conservação que não reside somente nesse aspecto espiritual. A consciência pode ser considerada como um prolongamento do amor de si, independentemente dessa distinção entre os interesses físicos e os interesses espirituais. Após afirmar na “Carta a Beaumont” essa dualidade da natureza humana, Rousseau observa a respeito da consciência:
112
Cf. DÉRATHÉ, R. Le rationalisme de J.-J. Rousseau. Op. cit., p. 100-7. Cf. também “Lettre à C. de Beaumont”, edição da Pléiade, t. IV, Pl. 936.
113
Cf. “Lettre à M. d’Offreville”. 4 oct. 1761. In: Correspondance générale de J.-J. Rousseau, t. VI, Paris, Armand Colin, 1926, p. 224.
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“O apetite dos sentidos tende ao bem-estar do corpo, e o amor da ordem ao da alma. Esse último amor desenvolvido e tornado ativo tem o nome de consciência; mas a consciência só se desenvolve e só age com as luzes do homem. É somente por essas luzes que ele chega a conhecer a ordem; e é somente quando ele a conhece que sua consciência o leva a amá-la. A consciência é pois nula no homem que não comparou nada, e que não viu suas relações.” (Pl. 936)
Não podemos ignorar a descrição que Rousseau faz da formação da consciência no Emílio. Embora no livro IV estejam condensados os pressupostos metafísicos da teoria da consciência, sua formação já se inicia desde o livro I. Fica clara, nos três primeiros livros, a importância que Rousseau confere à educação do corpo e dos sentidos. Não é preciso negar os interesses palpáveis, os interesses materiais do homem, para formar o sujeito moral ou o cidadão. Tais interesses, relativos à conservação da vida, fazem parte da natureza humana como seu primeiro e mais fundamental dever. Daí a observação de Rousseau de que a educação significa primeiramente “alimentação” (nourriture). Educar o indivíduo é ensiná-lo a viver e a ser homem, atentando primeiramente para o desenvolvimento dos órgãos e dos sentidos114. Não se pode ignorar as necessidades e os interesses físicos porque, de certo modo, é a partir destes que surgem as noções morais. Não é por acaso que Rousseau-tutor introduz no espírito de Emílio a idéia de propriedade a partir de sua experiência 114
Cf. E, I, Pl. 253: “Vivre, ce n’est pas respirer, c’est agir; c’est faire usage de nos organes, de nos sens, de nos facultés, de toutes les parties de nous-mêmes qui nous donnent le sentiment de nôtre existence”.
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com o jardineiro Robert. Os deveres só podem nascer das relações reais, palpáveis ou afetivas, do indivíduo com as coisas ou com os outros homens. É essa idéia que justifica o método pedagógico do Emílio. As razões dos deveres são inacessíveis à criança115. É preciso sensibilizá-la, mostrando-lhe através de exemplos e a partir de sua própria experiência, os deveres que deve cumprir. Não é somente nesse plano pedagógico que Rousseau estabelece a relação entre a consciência e o amor de si. A consciência pode ser considerada um prolongamento desse impulso natural de auto-conservação, mesmo com referência à conservação física, porque só pode ser exercida a partir das idéias da razão. Seus preceitos morais mais sublimes, e até mesmo o amor a Deus, dependem também de uma atividade da razão e esta só se faz, segundo Rousseau, a partir das comparações entre as sensações. O sentimento da existência de uma divindade criadora só aparece efetivamente depois que o indivíduo comparou diversos objetos particulares até chegar à conclusão, através de generalizações, de que há uma ordem inteligível na natureza. Apesar da crítica que Rousseau faz aos materialistas de sua época, ele jamais deixou de considerar a importância dos sentidos, que são como janelas da alma e nos são dados para
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Cf. E, II, Pl. 318-19. Para Rousseau não é eficaz nem tentar convencer o indivíduo acerca de seus deveres nem impor estes de modo muito severo. Daí sua crítica ao método cristão, pelo qual “à força de exagerar todos os deveres os torna impraticáveis e vãos” (E, V, Pl. 716). É preciso dar lições de moral com a isca do prazer e da vaidade (E, V, Pl. 720). Cf. também E, V, Pl. 818 em que Rousseau afirma que, no lugar de impor a Emílio deveres penosos, é preciso garantí-lo contra os vícios que tornam esses deveres penosos e E, V, Pl. 744 onde afirma: “quanto maiores e mais penosos os deveres, mais as razões em que se assentam devem ser sensíveis e fortes”.
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nossa conservação (Cartas morais, “Terceira carta”, Pl. 1092). Assim como o amor de si, a consciência serve como princípio de conduta que relaciona tudo ao indivíduo. Mesmo a interiorização proposta por Rousseau a Sophie d’Houdetot para se ouvir a voz da natureza não implica numa recusa dos interesses materiais, não é uma opção por alguma espécie de salvação espiritual como negação do bem-estar físico, mas uma estratégia para alcançar aquilo que caracteriza a natureza humana original: a unidade entre os interesses do corpo e os da alma, entre as inclinações e os deveres, entre o homem e o cidadão. Rousseau afirma que Emílio sabe que “seu primeiro dever é para consigo mesmo”, o que não significa que só agirá em benefício próprio. Daí o exemplo dos jovens romanos, que “perseguiam o crime e defendiam a inocência somente com o interesse de servir à justiça e proteger os bons costumes” (E, IV, Pl. 544). É preciso fazer com que Emílio saiba seguir as leis e o bem comum, deixando de lado os caprichos pessoais. Sua introdução no universo social do trabalho, que parte do princípio da conservação de si, exige, por outro lado, a consideração das necessidades mútuas e, nesse sentido, é também um convite para que Emílio saia de dentro de si mesmo e ultrapasse a esfera do interesse particular. Rousseau observa que aquele que se pretende um ser isolado, que nada deve a ninguém e basta-se a si mesmo, ou seja, que age, tal como o homem natural, apenas de acordo consigo mesmo, só pode ser um miserável. É impossível que sobreviva e, por isso, age contra a primeira lei da natureza, que é a de se conservar (E, III, Pl. 466-7). A maior manifestação de unidade do sujeito moral reside nessa integração entre a ação voltada para si mesmo, baseada no princípio de conservação de si, e a ação que tem em vista o
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bem comum ou a vontade geral. O que significa também que ele deve saber se comportar, ao mesmo tempo, como homem e como cidadão, ou seja, de acordo consigo mesmo e de acordo com os outros. A maior sabedoria política, para Rousseau, não consiste na elaboração de leis particulares, que podem, segundo ele, variar de um lugar para outro, mas na capacidade de armar circunstâncias para que elas sejam respeitadas. O que nos permite fazer uma analogia com a sabedoria humana em geral: o que depende da arte humana não é tanto ser bom ou mau, mas criar condições para que se possa exercer a benevolência (E, IV, Pl. 604)116. Nesse mesmo sentido, afirmar a generalidade dos objetos da vontade, fazer com que a vontade do indivíduo faça referência à vontade geral e com que seu interesse englobe o interesse comum de toda a comunidade, é também uma arte. A teoria da vontade geral, assim como a da consciência, não exige a negação do amor de si, entendido como princípio de auto-conservação do indivíduo, mas supõe que se possa estendê-lo aos outros. Sem esse aspecto afetivo da consciência não há virtude política porque não há como considerar a vontade geral como sendo também a vontade do indivíduo. É a consciência que dá a possibilidade de síntese entre o homem e o cidadão. Se a virtude consiste, tal como é afirmado no verbete “Economia política”, na conformação da vontade particular à vontade geral117, ela
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Essa idéia aparece também em Les confessions quando Rousseau afirma a “grande máxima de moral”: “la seule peut-être d’usage dans la pratique, d’éviter les situations qui mettent nos devoirs en opposition avec nos intérets, et qui nous montrent nôtre bien dans le mal d’autrui” (I, 2, Pl. 56).
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No Contrato social Rousseau afirma a impossibilidade, por definição, de um acordo entre a vontade particular e a vontade geral. Cf. CS, II, 1, Pl. 368: “la
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depende também da extensão da consciência de si aos outros, pois nesta se sustenta o plano das afeições que Rousseau emprega para definir o homem virtuoso: “Todo homem é virtuoso quando sua vontade particular em tudo se conforma com a vontade geral, e nós queremos de bom grado o que querem aqueles que amamos.” (Pl. 254)
Sem a teoria da consciência não há ação política, como não há moral ou educação possíveis. A ênfase de Rousseau na educação pública, principalmente nos projetos pedagógicos que servem a fins políticos e patrióticos, como nas Considerações sobre o governo da Polônia ou no verbete “Economia política”, tem sua justificação no Contrato social, na teoria da vontade geral, e sua fundamentação no Emílio, na teoria da consciência. Se é necessária a educação pública, é para manter a integridade do corpo político e para assegurar que a vontade geral será consultada não apenas pelo governante, que só age legitimamente quando se submete às leis, mas também por todos os integrantes da nação. O que, contudo, possibilita teoricamente tal projeto é a suposição de uma natureza humana perfectível, isto é, sempre capaz de se modificar e de se adaptar às circunstâncias. Torna-se possível, a partir desse pressuposto, fazer do volonté particulier tend par sa nature aux préférences, et la volonté générale à l’égalité”. Seria mais preciso, de nossa parte, referirmo-nos à vontade do indivíduo e não à vontade particular para caracterizar a virtude política, pois afirmar que a vontade geral é, por sua natureza e por seu objeto, oposta à vontade particular, não implica na afirmação de que ela é sempre contrária à vontade do indivíduo. De qualquer modo, essa distinção não existia no verbete “Economia política”.
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indivíduo, originariamente isolado, um ser social. Launay considera ser essa a grande idéia e a intenção fundamental de Rousseau: modificar a natureza humana118. Nisso reside a habilidade do Legislador para instituir um povo. A possibilidade do homem, que do ponto de vista da natureza é auto-suficiente, tornar-se um ser sociável e político, uma parte indivisível do todo coletivo do qual faz parte, só pode ser assegurada pela idéia de perfectibilidade humana e pela consciência, pois é através desta que o homem se relaciona com o mundo exterior e com os outros. A educação pública só é viável porque há um princípio na natureza humana que permite as relações afetivas. É o coração do indivíduo que ela deve atingir porque é nele que residem os sentimentos da consciência, dos quais resultam o amor pelas leis, pela pátria ou pela virtude. A caracterização da autoridade pública, no verbete “Economia política”, como aquela que é mais absoluta quando “penetra até o interior do indivíduo” (Pl. 251), anuncia a teoria da consciência em sua instrumentalidade para a ação política. Aqueles que acusam Rousseau de totalitarismo não estariam totalmente equivocados se se limitassem a observar a relevância, para Rousseau, do direcionamento da esfera afetiva, dos hábitos e costumes, para a condução do corpo político119. Questão que precisaria ainda ser discutida.
118
Cf. LAUNAY, M. Jean-Jacques Rousseau. Écrivain politique. Op. cit., cap. 6.
119
Gérard Lebrun enfatiza o caráter absoluto da autoridade que penetra no interior do homem e deixa de ser apenas uma instância de sanção exterior ao indivíduo. Cf. LEBRUN, G. “Contrat social ou Marché de Dupes?”. In: Manuscrito. v. III, n. 2, abr. 1980, p. 25-34.
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Nas Considerações sobre o governo da Polônia, obra cuja finalidade é prática em comparação ao Contrato social e na qual Rousseau enfatiza a importância do controle dos costumes para a formação da “alma nacional”, a autoridade pública, que no verbete “Economia política” atinge o coração dos indivíduos, ganha, ainda, uma nova estratégia: o policiamento completo das ações dos cidadãos. Nesse texto Rousseau anuncia o meio mais forte e eficaz para manter no coração dos indivíduos o patriotismo: “É de fazer de sorte que todos os cidadãos se sintam incessantemente sob os olhos do público, que nenhum avance e não triunfe a não ser pelo favor público, que nenhum posto, nenhum emprego seja preenchido a não ser pelo voto da nação e que, afinal, desde o último nobre, desde mesmo o último campônio, até o rei, se possível, todos dependam de tal maneira da estima pública que não se possa nada fazer, nada adquirir, triunfar sobre nada, sem ela.” (Pl. 1019, p. 89)
O equívoco, que essa passagem poderia reforçar, consiste menos em atribuir a Rousseau uma antecipação das propagandas ideológicas e do policiamento da vida privada, o que seria também muito discutível, mas sobretudo no fato de se ignorar a aproximação da teoria da vontade geral à teoria da consciência. Pela consciência não é possível impor ao indivíduo nenhuma conduta e nenhum pensamento que já não figure como uma tendência da natureza humana; e é por isso que ela é considerada por Rousseau como guia seguro e infalível que jamais engana (E, IV, Pl. 595). Não há, como conseqüência de seu pensamento político, nenhuma espécie de homogeneização ou de negação da identi-
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dade do indivíduo. Se a vontade geral pode ser considerada como princípio político que emana da consciência individual, não é porque impõe ao indivíduo seus preceitos, aniquilando a esfera pessoal e íntima, e em função da qual o cidadão aniquilaria o homem120. A teoria da vontade geral, com base na teoria da consciência, aponta para a possibilidade de solução da contradição homem-cidadão porque permite ao indivíduo amar à pátria, seus concidadãos, perseguir o bem comum e trabalhar pelo interesse coletivo, sem deixar de lado a felicidade individual, seus interesses pessoais ou o amor por si mesmo. Ora, quais as condições formais para a verdadeira felicidade do indivíduo? A autonomia, a liberdade, o encontro do homem consigo mesmo e seu acordo com a ordem geral do universo. Se a finalidade do governo não reside na felicidade individual mas na felicidade pública121, é contudo somente na vida política que o indivíduo produz as condições reais para sua felicidade. Se no estado idealizado de natureza o homem pode fruir espontaneamente de sua independência em relação aos outros 120
Para L. G. Crocker a formação do cidadão de Rousseau significa uma transformação e tem como conseqüência a negação do homem. Cf. CROCKER, L. G. “Rousseau’s dilemma: man or citizen?”. In: Studies on Voltaire and the Eighteenth Century. Op. cit., p. 271-84. Para J. L. Talmon, Rousseau não previa que a “total absorção emotiva no esforço político coletivo pudesse ser empregada conscientemente para matar todo o pessoal e o íntimo”. Cf. TALMON, J. L. Los origines de la democracia totalitaria. Op. cit., p. 51.
121
Cf. fragmento Du bonheur public: “Où est l’homme heureux, s’il existe? Qui le sait? Le bonheur n’est pas le plaisir; il ne consiste pas dans une modification passagère de l’ame, mais dans un sentiment permanent et tout intérieur dont nul ne peut juger que celui qui l’éprouve; nul ne peut donc decider avec certitude qu’un autre est heureux ni par consequent établir les signes certains du bonheur des individus” (Pl. 510). “Ce n’est donc pas par le sentiment que les Citoyens ont de leur bonheur ni par consequent par leur bonheur même qu’il faut juger de la prospérité de l’Etat” (Pl. 513).
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e da harmonia com a ordem geral da natureza, no estado de sociedade é somente através de um acordo político que se poderia garantir sua liberdade enquanto indivíduo. Nesse sentido, a liberdade política é sempre anterior à liberdade individual122. O que não nos leva à conclusão de que a relação entre a esfera moral e a política só possa ser estabelecida com a idéia do direito, como parece considerar Paul Janet123, que não consegue entender a cláusula contratual referente à “alienação total de cada associado à comunidade toda” (CS, I, 6, Pl. 360). A liberdade política só serve como garantia das outras liberdades quando se refere à ação e à participação efetiva dos membros do corpo político na vida pública. Para Rousseau, não é somente um direito individual e formal que é garantido pelo pacto social. Também a ação política de cada associado deve ser assegurada – e não podemos deixar de lado, quanto a essa questão, o caráter inalienável do poder soberano – pois é o que garante que a integridade do corpo político, enquanto unidade de hábitos, crenças e costumes, não irá ferir as aspirações individuais. É um modo de cuidar, através da participação na vida pública, para que a administração do corpo político só tenha como base a vontade geral, isto é, aquela vontade que diz respeito e que é comum a todos os indivíduos. É nesse sentido, e não apenas no plano do direito, que devemos entender a alienação total dos membros da associação po-
122
Cf. COBBAN, A. Rousseau and the modern state. Op. cit., p. 66: “Because political power was now the basis of all power, Rousseau was right in holding that political liberty was the basis of all other liberties”.
123
Cf. JANET, P. Histoire de la science politique dans ses rapports avec la morale. Paris, Felix Alcan, s/d, v. I. Introdução à Primeira Edição e p. 41836.
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lítica, que não é senão um outro modo de dizer: “cada um, unindo-se a todos, só obedecerá a si mesmo” (CS, I, 6, Pl. 360). Se a felicidade do indivíduo depende do Estado é sobretudo porque este lhe garante a independência em relação aos outros homens e não porque haja subtração da vida privada pela vida pública. A idéia da alienação total pelo pacto social garante a reciprocidade requerida pelos indivíduos como condição para sua submissão a regras e valores. Se há reciprocidade entre os cidadãos, no sentido de que todos respeitem e se conduzam de acordo com as normas estabelecidas, cada membro da associação garante para si mesmo, através da ação, que o que foi instituído como pertencendo à vontade geral, como se referindo de algum modo ao bem comum, é também, ao mesmo tempo, aquilo que ele efetivamente quer. Ou seja, a vontade geral, que possui enquanto cidadão, corresponde de fato, e não somente de direito, à sua vontade enquanto homem e indivíduo. Tal é o sentido da passagem do Contrato social que parece fazer referência direta ao problema exposto pelo homem independente, no Manuscrito de Genebra (MG, I, 2, Pl. 285), enquanto aguarda ser convencido das vantagens do pacto político: “Os compromissos que nos ligam ao corpo social só são obrigatórios por serem mútuos, e tal é a sua natureza, que, ao cumpri-los, não se pode trabalhar por outrem sem também trabalhar para si mesmo. Por que é sempre certa a vontade geral e por que desejam todos constantemente a felicidade de cada um, senão por não haver ninguém que não se aproprie da expressão cada um e não pense em si mesmo ao votar por todos?” (CS, II, 4, Pl. 373, p. 55)
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A UNIDADE DO HOMEM COSMOPOLITA E PATRIOTA A consideração da anterioridade das leis civis em relação à justiça e a utilização do conceito de vontade geral, não apenas no contexto da humanidade em geral, mas em relação ao corpo político particular, seguem no pensamento de Rousseau um percurso paralelo ao da descoberta da especificidade do mundo político. A vontade geral, não sendo entendida como uma entidade puramente abstrata ou como um princípio que decorra imediatamente da vontade divina, mas como resultado, sempre renovável, do pacto de submissão às leis civis, confere à teoria política de Rousseau um certo grau de autonomia e independência em relação à esfera da moralidade. São as leis positivas que determinam o que é justo e bom no interior de um Estado e é a força pública que lhes deve assegurar o respeito por parte dos membros do corpo político. Nesse sentido, sobretudo no Contrato social, mais do que em seus primeiros escritos, Rousseau se aproximaria de Hobbes, já que emprega também a idéia de que é o Soberano que determina o que está ou não de acordo com a justiça e o que pode tornar-se, de fato, lei124. Rousseau deixa de lado, tal como Hobbes, o pressuposto da sociabilidade natural do homem. É principalmente em virtude da negação desta que a crítica aos teóricos do direito natural é desenvolvida no Discurso sobre a desigualdade. Para Rous-
124
Cf. HOBBES, T. Leviathan, parte II, cap. 26. Sobre as influências de Hobbes e dos teóricos do direito natural no pensamento político de Rousseau cf. DÉRATHÉ, R. Jean-Jacques Rousseau et la science politique de son temps. Op. cit. Para Dérathé a principal influência de Hobbes sobre Rousseau reside na concepção de Soberania como poder absoluto e indivisível (p. 100-13, p. 307-41).
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seau trata-se de um erro considerar que o homem no estado de natureza, sem nenhuma relação com seus semelhantes, possa fazer uso da linguagem, de sua capacidade racional ou que seja sociável. Não há para Rousseau, do ponto de vista da origem das associações civis, nenhuma espécie de identidade entre os homens. Não há identidade de natureza entre homens que pouco se encontram e para os quais não há necessidade de nenhum socorro alheio. Eles só percebem que há homens semelhantes a eles mesmos depois que se tornam capazes de fazer comparações, o que para Rousseau só acontece tardiamente, quando já existe algum tipo de relação entre eles. O sentimento da identidade de natureza não é anterior às sociedades e o mesmo pode ser afirmado, segundo Rousseau, a respeito da linguagem e da racionalidade, que só se desenvolvem quando os homens adquirem hábitos comuns, quando percebem que procedem semelhantemente em circunstâncias semelhantes. No Ensaio sobre a origem das línguas, em que Rousseau também considera a anterioridade das primeiras comparações em relação às afeições sociais, há uma passagem em que o papel do hábito fica claro: “A visão das chamas, que faz os animais fugirem, atrai o homem. Reúnem-se em torno de uma fogueira comum, aí se fazem festins, aí se dança. Os agradáveis laços do hábito aí aproximam, insensivelmente, o homem de seus semelhantes e, nessa fogueira rústica, queima o fogo sagrado que leva ao fundo dos corações o primeiro sentimento de humanidade.” (Pl. 403, p. 187)125
125
Tradução de L. S. Machado, São Paulo, Abril Cultural, 1973.
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Samuel Pufendorf, representante expressivo da teoria do direito natural e muito apreciado por Rousseau, ao descrever o estado de natureza, embora considere não haver nesse estado dependência recíproca, afirma a semelhança de natureza como base das relações entre os homens. A idéia de uma sociabilidade natural no homem é comum entre os teóricos do direito natural. Nos Elementos do direito natural, de J.-J. Burlamaqui, podemos encontrar passagens a esse respeito: “o estado de natureza dos homens entre eles é um estado de sociedade” ou “ser sociável é uma característica essencial à humanidade”. A sociabilidade aparece como uma disposição natural que leva o homem ao cumprimento de seus deveres sociais, que o faz “contribuir com todo seu poder para a conservação e para o aperfeiçoamento da sociedade” (Parte II, cap. VIII). Ou, nas palavras de Pufendorf, como “um puro efeito da Vontade Divina”126. As disposições do homem para a vida em sociedade, que o levam a cuidar da conservação mútua e a se interessar por tudo o que diz respeito a seus semelhantes, uma disposição natural que independe das leis civis e das promessas e acordos mútuos, fazem parte do que os defensores da teoria do direito natural chamam de lei natural 127. A recusa de Rousseau de uma
126
Cf. PUFENDORF, S. Le droit de la nature et des gens. Op. cit. (L. I, cap. I, §7; L. I, cap. II, §6) e BURLAMAQUI, Jean-Jacques. Éléments du droit naturel. Paris, Vrin, 1981 (parte II, cap. VIII).
127
Cf. PUFENDORF, S. Le droit de la nature et des gens. L. I, cap. II, §6: “En effet d’où vient que l’Envie, et la Joie Maligne des disgraces d’autrui, sont mises au rang des Passions vicieuses, si ce n’est parce que, selon les maximes de la Loi Naturelle, les Hommes doivent s’intéresser à tout ce qui regarde leurs semblables”. Cf. também BURLAMAQUI, J.-J. Éléments du droit naturel. Op. cit., parte I, cap. V, no qual a sociabilidade ou o amor pelos outros homens aparece como um dos princípios das leis naturais.
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sociabilidade humana original coloca em jogo essa noção de lei natural, o que parece à primeira vista deixar a idéia de contrato social sem fundamentos. Não somente a sociabilidade faz parte da lei natural, mas também a obrigação de respeitar as promessas, os acordos e pactos firmados entre os homens. Sem essa obrigação, comandada pela natureza humana, o contrato social é nulo pois, desde que seja permitido aos homens infringir ou desconsiderar as promessas e engajamentos assumidos voluntariamente, cada um se torna seu próprio juíz e pode romper o acordo político a seu bel prazer. O que significa que não poderia haver nenhum tipo de sanção legítima para aqueles que rompem o pacto, desrespeitam as leis ou menosprezam o bem comum e que, portanto, o contrato social seria apenas um formulário vão (CS, I, 7, Pl. 364). Apesar da crítica aos teóricos do direito natural no Discurso sobre a desigualdade e à idéia de sociedade geral do gênero humano no Manuscrito de Genebra, não há propriamente uma recusa das leis naturais por parte de Rousseau. O problema fica mais claro no Emílio quando compreendemos que sua crítica não diz respeito tanto à existência das leis naturais, mas à faculdade humana que lhes confere autoridade e que, para Rousseau, não é a recta ratio da tradição do direito natural (E, IV, Pl. 523)128. Rousseau examina a concepção de vontade geral de Diderot e conclui que esta não pode ser apenas um chamado do 128
A lei natural, de que faz uso toda a tradição do direito natural, tem seu fundamento na natureza humana e sua autoridade, segundo R. Dérathé, sustenta-se na idéia de uma reta razão. Ela é anterior a todas as leis civis e convenções humanas e se aplica a todo o gênero humano. Cf. DÉRATHÉ, R. Jean-Jacques Rousseau et la science politique de son temps. Op. cit., p. 151-71.
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entendimento “no silêncio das paixões”, mas que é preciso considerar os interesses reais do indivíduo, pois como pode o homem “separar-se assim de si mesmo” e “impor-se deveres dos quais ele não vê nenhuma ligação com sua constituição particular?” (MG, II, 2, Pl. 286). Em nota de rodapé no Emílio, Rousseau indaga sobre a existência de razões para que o homem aja sendo ele mesmo como se fosse um outro e conclui que somente pela razão, sem a consciência e o amor de si, não há como fundar solidamente a lei natural e a justiça humana (E, IV, Pl. 523). A negação de uma sociedade natural entre os homens não implica na negação das leis naturais129. Para Rousseau não há sociedade no estado puro de natureza. Trata-se de um estado de dispersão e independência absoluta e não, como para Locke, de um estado de “assistência mútua”130. Rousseau recu129
Podemos nos referir, sobre essa questão, à discussão entre, por um lado, R. Dérathé e Franz Haymann, para os quais não há no pensamento de Rousseau a negação das leis naturais e, por outro, A. Cobban e C. E. Vaughan, que afirmam tal negação. Cf. DÉRATHÉ, R. J.-J. Rousseau et la science politique de son temps. Op. cit., p. 151-71. HAYMANN, F. “La loi naturelle dans la philosophie politique de J.-J. Rousseau”. In: Annales de la Société Jean-Jacques Rousseau, t. XXX, 1943-1945, p. 65-109. VAUGHAN, C. E. The political writings of Jean-Jacques Rousseau. v. I. Op. cit., “Introdução”. Cf. também COBBAN, A. Rousseau and the modern state. Op. cit., p. 76-7, p. 160, onde, fazendo uma comparação com o lugar da concepção de estado de natureza no pensamento de Locke, ele afirma sobre Rousseau: “if he begins by asserting the principle of natural rights, it is only to alienate them the more completely once the social contract has been concluded” e p. 168-9, em que afirma os aspectos idealistas de sua concepção de vontade geral: “it can be said that by way of the conception of the general will Rousseau steps out of the intellectual sphere of the Natural Law jurists and becomes the spiritual precursor of the Idealist philosopher”.
130
Cf. LOCKE, J. The second treatise of government. Cap. III, §19 (London, J. M. Dent, 1993, p. 124): “And here we have the plain difference between the state of nature, and the state of war, which however some men have confounded, are as far distant, as a state of peace, good will, mutual assistance, and preservation, and a state of enmity, malice, violence, and mutual destruction are one from another”.
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sa a idéia de que uma sociedade englobando todo o gênero humano tenha existido antes das sociedades particulares. Nesse sentido, ele critica também os cosmopolitas e afasta os sentimentos naturais como garantia de que a vontade geral será sempre consultada. No Manuscrito de Genebra Rousseau observa: “A primeira dificuldade retorna sempre, e é somente a partir da ordem social estabelecida entre nós que temos as idéias daquela que imaginamos. Concebemos a sociedade geral a partir de nossas sociedades particulares, o estabelecimento das pequenas Repúblicas nos faz pensar na grande, e só começamos propriamente a nos tornar homens após ter sido Cidadãos. De onde se vê o que é preciso pensar desses pretensos Cosmopolitas, que justificam seu amor pela pátria por seu amor ao gênero humano e se vangloriam de amar todo o mundo para ter direito de não amar ninguém.” (MG, I, 2, Pl. 287)
Essa passagem, bastante esclarecedora, aponta para o estatuto artificial do corpo político. O ato de associação produz uma nova pessoa, formada da união dos particulares contratantes, mas diferente destes, e que possui sua própria unidade, seu próprio “eu”, sua vida e sua vontade (CS, I, 6, Pl. 361). Devemos compreender a relação entre a moral e a política no pensamento de Rousseau à luz dessas considerações. Quando Rousseau recusa o direito natural baseado na voz interior e afirma a anterioridade do cidadão em relação ao homem, no Manuscrito de Genebra, conferindo posteriormente, no Contrato social, ao corpo político uma vontade própria, independente das particularidades, e cujo maior cuidado é o de sua própria conservação (CS, II, 4, Pl. 372), indica a especifici-
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dade da esfera política. Desse ponto de vista, a felicidade e o bem dos indivíduos não fazem parte da finalidade do Estado, a qual só diz respeito ao corpo coletivo, à utilidade e ao bem comum. Se a vontade geral incidir sobre objetos particulares ou fizer referência a indivíduos, deixa imediatamente de ser geral e o contrato social é abolido. A vontade geral não apenas ligitima o pacto de associação, mas também conserva, por meio de leis e dos laços sociais, o corpo político que dele se origina (CS, II, 6, Pl. 378; CS, IV, 1, Pl. 437). No Contrato social, a concepção de vontade geral ganha um caráter político que não aparece no verbete “Economia política”, em que Rousseau reconhece uma vontade geral oriunda da grande cidade do mundo e que nada mais é do que a lei natural, aplicável a todas as nações e aos diversos povos (Pl. 245). A vontade geral, no “Economia política”, é relativizada: ela é sempre geral em relação a um ponto de vista específico ao qual ela diz respeito diretamente, mas particular quando vista de um ponto de vista mais abrangente do que o primeiro. Nesse sentido, quanto mais ela se referir aos direitos e interesses de toda a humanidade mais justa será, pois “a vontade mais geral é também sempre a mais justa” (Pl. 246). Se essa noção de vontade geral ganha em dinamismo e extensão perde, contudo, seu estatuto político. Quando aplicada a todo o gênero humano, a vontade geral é esvaziada de sua função específica, fundamental do ponto de vista do Contrato social, que é a de assegurar a integridade de um corpo político e, portanto, a conservação deste131. 131
Victor Goldschmidt, em “Individu et communauté chez Rousseau”. In: Pensée de Rousseau. Op. cit., p. 147-61, chama atenção para o problema das relações internacionais. A contradição entre o homem e o cidadão é vista como resultado da anarquia entre as nações e do prolongamento do estado de natureza pelas guerras entre elas. O homem experimenta essa contradição na medida em que
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A vontade geral diz respeito ao corpo político instaurado pelo pacto social e, nesse sentido, é produto da convenção entre seus membros, não podendo ser atribuída a um mero agregado de indivíduos isolados e dispersos. É por isso que a concepção de vontade geral se aplica, não à humanidade em geral, mas a uma associação política ou nação particular. Não obstante o que é afirmado no verbete “Economia política”, não há para Rousseau uma vontade geral englobando todos os povos. Apesar do projeto de paz perpétua entre as nações, não há vontade geral fora dos limites de um corpo político particular. Entre as nações particulares temos um prolongamento do estado de natureza, quando muito um somatório de vontades particulares ou, na pior das hipóteses, o estado de guerra. A relação entre a vontade geral e a consciência não se estabelece no universo abstrato de uma humanidade em geral, mas se refere a uma união real – que é afetiva – entre os homens. Rousseau nega a existência de uma sociedade geral do gênero humano e não reconhece nela senão uma abstração filosófica. Para Rousseau, contudo, não há um sentimento no indivíduo que o faça reconhecer prontamente a vontade geral. Nesse sentido, Rousseau afasta da reflexão política tanto os sentimendeve ser cidadão, mas apenas nos limites das fronteiras nacionais, além das quais ele sente a limitação do movimento de civilização e é recolocado no estado de natureza, deixando subsistir em si mesmo o homem em suas relações com todos que não são seus concidadãos. Para Goldschmidt, há ainda no Contrato social uma pretensão de conciliar nacionalismo e universalismo, o que se pode observar, segundo ele, na idéia de uma religião civil e no esboço final de um projeto que compreendesse as relações exteriores. Somente nas Considerações sobre o governo da Polônia e no Projeto de constituição para a Córsega aparecem as indicações de que Rousseau não supunha mais a possibilidade de um direito internacional e que, ao contrário, era preciso considerar a insegurança perpétua a que estão submetidos os povos (p. 150-4).
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tos como a razão individuais132. Não faz tanta diferença saber o que no indivíduo é mais forte: o amor por si mesmo ou o amor pelos outros, as paixões egoístas ou o interesse pelo bem comum. Os sentimentos individuais e o modo de raciocinar de cada membro do corpo político não devem ser considerados, assim como não o são as paixões, desejos e prazeres individuais. Independentemente desses elementos, é preciso que haja leis, força pública e quaisquer outros dispositivos que estimulem o espírito social, pois este é sempre obra da instituição e jamais sua causa. Daí Rousseau comparar a instituição de um povo com um milagre que somente os deuses poderiam empreender (CS, II,7). Mas a filosofia política supõe a unidade original do homem, a qual existe independentemente de sentimentos psicológicos, é anterior a qualquer associação particular e está na base de qualquer modificação que se pretenda fazer nos modos de conduta humana. Nesse sentido, a consciência moral, pela qual o homem experimenta essa unidade original, integra o indivíduo, ao mesmo tempo, à ordem universal da natureza e à ordem das instituições humanas. É sobretudo a idéia abstrata de humanidade, “que não supõe nenhuma união real entre os indivíduos que a consti-
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Cf. MG, I, 2, Pl. 287, em que Rousseau busca um modo de garantir que não haja erro na aplicação do princípio da vontade geral aos casos particulares: “Que ferat-il donc pour se garantir de l’erreur? Ecoutera-t-il la voix intérieure? Mais cette voix n’est, dit-on, formée que par l’habitude de juger et de sentir dans le sein de la société et selos ses loix, elle ne peut donc servir à les établir...”. Cf. também CS, II, 6, Pl. 378, quando Rousseau afirma a necessidade das leis positivas: “Sans doute il est une justice universelle émanée de la raison seule; mais cette justice pour être admise entre nous doit être réciproque [...]. Il faut donc des conventions et des loix pour unir les droits aux devoirs et ramener la justice à son objet”.
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tuem” (MG, II, 2, Pl. 284), que Rousseau nega no Manuscrito de Genebra, e não a existência de um direito natural. Rousseau fala de um “direito natural raciocinado”, mas que não é produto exclusivo da razão humana e sim da conjunção desta com a consciência. No Discurso sobre a desigualdade, de modo análogo, Rousseau critica as definições de lei natural que a associam à razão e afirma, ao mesmo tempo, a anterioridade do amor de si e da piedade, estes sim, para Rousseau, base do direito natural (Pl. 124-5). Não é preciso supor muitas reviravoltas em seu pensamento para associar essas “leis naturais” – a piedade e o amor de si – ao direito natural e derivar delas os sentimentos da consciência. Do ponto de vista do estado puro de natureza, em que a consciência é apenas virtual, são esses dois princípios que determinam a conduta humana, sem a necessidade de se supor a sociabilidade ou qualquer sentimento de amor entre os homens. Mas, assim que o homem passa a viver em sociedade, a consciência se desenvolve e assume o papel das afeições primitivas, tornando-se um guia moral e uma faculdade pela qual são afirmados no indivíduo a benevolência e a humanidade. Se a piedade, no Discurso sobre a desigualdade, é o que, no estado de natureza, “está no lugar das Leis, dos costumes e da virtude, com a vantagem de que ninguém é tentado a desobedecer sua doce voz” (Pl. 156), no Emílio, é pela consciência que o homem se relaciona com as leis, os costumes e a virtude. É a consciência, mais do que a piedade, o impulso da natureza que o homem é levado a seguir na vida em sociedade, pois ela é “voz da alma”, “jamais engana” e é “instinto moral” (E, IV, Pl. 594-5; E, IV, Pl. 598).
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Se, após o contrato social, o homem ganha dignidade e moralidade à medida que desenvolve todas as suas faculdades e exerce sua vontade livre e, se o contrato social é afirmado por Rousseau como sendo uma convenção, nem por isso deixam de valer, na associação política instaurada, as regras e princípios pertinentes ao estado de natureza, aos quais podemos chamar de leis naturais133. A lei natural, que no estado de natureza só existe para o homem como afeição primitiva, tem sua extensão nos preceitos da consciência (E, IV, Pl. 523). Ela deixa de ser pura espontaneidade para se tornar produto da arte humana, uma vez que só aparece no estado de sociedade se houver o desenvolvimento da razão e da consciência moral. Daí a ambiguidade da concepção de Rousseau de direito natural, cuja relação conflituosa com as leis civis é observada no Emílio: “Se bastasse atentar para as inclinações e seguir as indicações isso não teria dificuldades; mas há tantas contradições entre os direitos da natureza e nossas leis sociais, que, para conciliá-las, é preciso tergiversar sem cessar: é preciso empregar muita arte para impedir o homem social de ser inteiramente artificial.” (E, IV, 640, p. 375)
O contrato social não rompe totalmente a relação do homem com as regras da natureza. As leis da natureza, para Rousseau, existem e são eternas. Podemos afirmar que tanto a 133
Cf. Lettres écrites de la montagne, “Sexta carta”, Pl. 807: “il n’est pas plus permis d’enfreindre les Loix naturelles par le Contract social, qu’il n’est permis d’enfreindre les Loix positives par les Constracts des particuliers, et ce n’est que par ces Loix-mêmes qu’existe la liberté qui donne force à l’engagement”.
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reciprocidade necessária para o engajamento no pacto político, como o próprio engajamento, decorrem das leis naturais. Também a liberdade, direito humano fundamental e inalienável, embora se modifique no estado de sociedade, tornando-se uma liberdade regrada ao invés da independência absoluta do homem natural, não deixa de existir na vida em sociedade134. O homem, nessas condições, não é absolutamente independente dos outros, pois, pelo próprio fato de viver com eles, compartilha valores, espaço físico, bens materiais etc.; mas é preciso se aproximar desse ideal de independência e resgatar, por meio do poder soberano da vontade geral, o momento em que o homem só vivia na dependência das coisas, ou seja, da natureza. A reciprocidade pode também ser considerada uma decorrência das leis naturais, não por ser experimentada pelo homem original, já que este, vivendo isolado nas florestas, não tinha necessidade dela, mas por fazer parte do direito do homem enquanto ser afetivo. Aquele que é capaz de amar e travar relações de amizade com os outros sente a necessidade de ser correspondido. Nesse sentido, amor e amizade devem ser recíprocos (E, IV, Pl. 494). Como Rousseau observa no Emílio, a amizade é uma troca, um “contrato como os outros” (E, IV, Pl. 520). Faz parte da natureza de qualquer ato de contratar a reci134
Como observa Guy Besse, a desnaturação que ocorre no estado de sociedade não é uma “mutação de essência”. Cf. BESSE, G. “Le sage et le citoyen selon Jean-Jacques Rousseau”. In: Révue de métaphysique et de morale. Op. cit., p.30: “La dénaturation n’est pas, dans la pensée de Rousseau, mutation d’essence. L’essence humaine étant liberté, quelle société aurait pouvoir de détruire cette liberté constituante? Émile éducateur va réveiller en l’homme civil l’ineffaçable humanité. Sa lutte pour le bon contrat ne peut être qu’un appel aux droits du peuple souverain, et elle suppose que soit expérimentée la découverte faite jadis à Venise par Rousseau: les hommes ne peuvent se transformer s’ils ne transforment pas leurs institutions” (referência a Les confessions, Pl. 404).
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procidade. As partes contratantes devem obedecer igual e reciprocamente às cláusulas do acordo e esta é a condição de sua legitimidade. O engajamento assumido no momento do pacto político, e que deve ser mantido enquanto existir corpo político legítimo, é também um dos modos como é exercida no estado de sociedade a lei natural, sem a qual não há promessa válida. É por isso que, para Rousseau, a primeira de todas as leis é a lei segundo a qual deve-se respeitar leis. A obrigatoriedade do respeito às leis, cuja imposição se dá por parte da consciência, enunciada no Emílio desde o livro II (E, II, Pl. 334), e não por uma instância de controle externa ao indivíduo, é o que caracteriza essencialmente as relações sociais, tal como Rousseau as concebe. Não somente ela é necessária ao pacto político, às relações políticas em particular, mas a qualquer relação social em geral. Na Nova Heloísa, Rousseau afirma também a sacralidade do pacto firmado no casamento: “O laço conjugal não é o mais livre e também o mais sagrado dos engajamentos? Sim, todas as leis que o contrariam são injustas; todos os pais que ousam discipliná-lo ou violá-lo são tiranos. Esse laço casto da natureza não está submetido nem ao poder soberano nem à autoridade paterna, mas somente à autoridade do pai comum que sabe comandar os corações, e que ordenando-lhes a união, pode obrigá-los a se amarem.” (NH, II, 2, Pl. 193-4)
Trata-se de uma espécie de vinculação entre os homens comandada pela natureza. Essa passagem nos ajuda a compreender que alguns elementos que Rousseau nega existir no esta-
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do puro de natureza, como por exemplo o amor conjugal, podem assumir na vida social um caráter de obrigação de consciência ou, se quisermos, de lei natural. Como é observado no Emílio, “não se pode confundir o que é natural no estado selvagem com o que é natural no estado civil” (E, V, Pl. 764). Não há nenhuma espécie de relação entre aqueles seres isolados do estado de natureza descrito no Discurso sobre a desigualdade e, no entanto, podemos falar de laços conjugais como laços da natureza. Analogamente, a negação da sociedade geral do gênero humano, ou seja, de uma sociedade fundada na identidade de natureza entre os homens e que é anterior a qualquer associação particular, não implica na negação dos laços sociais como laços naturais. As relações sociais, que são primeiramente relações afetivas, já que se impõem, se assim podemos dizer, ao indivíduo por meio da consciência, refletem uma concordância entre a ordem humana e a ordem da natureza. Não é contranatureza associar-se aos outros homens; ao contrário, parece ser uma obrigação imposta pela natureza das coisas ou pela lei natural. A lei fundamental do maior bem de todos, decorrente do pacto social, aponta também para as condições de realização e manutenção de tal engajamento. Por um lado, ela dá origem ao direito positivo, pelo qual se especifica através de leis particulares quais são as ações que contribuem para esse bem comum e, por outro lado, nos casos não especificados pelas leis civis, ela funda o “direito natural raciocinado” (MG, II, 4, Pl. 328-9). A diferença entre o direito natural delineado por Rousseau e o da tradição filosófica reside no fato de que, para Rousseau, tal direito não existe no estado de natureza. Ele serve de base para o contrato social e para o direito positivo, não por estar na origem
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das sociedades, idéia com a qual Rousseau não concorda, mas por estar fundada na lei natural segundo a qual se deve cumprir os engajamentos e cuidar da conservação da espécie. São os “atos de civilidade e de benevolência”, que estão fora do domínio do direito positivo, os verdadeiros elos das sociedades humanas e não os pretensos sentimentos originais de humanidade, pois estes decorrem daqueles. Apesar de negar aquela sociedade geral do gênero humano, pensada abstratamente pelos filósofos, e apesar das críticas aos cosmopolitas, Rousseau indica, nesses termos, a possibilidade de uma sociedade geral. Contudo, essa sociedade geral não se funda em sentimentos naturais, originais e anteriores às associações particulares mas, ao contrário, devem às associações particulares a experiência que os homens têm das relações afetivas. O amor pelo gênero humano só pode surgir depois que o indivíduo experimentou a doçura das relações sociais, e não antes. É primeiramente convivendo com seus vizinhos, amigos e familiares que o indivíduo conhece e sente os laços afetivos e exercita a benevolência e a civilidade. A oposição entre cosmopolitismo e patriotismo, entre a sociedade geral do gênero humano e as sociedades particulares, várias vezes indicada por Rousseau, deve ser examinada no contexto dessa discussão. Sua desconfiança a respeito de uma República Cristã englobando todo o gênero humano, manifesta na “Carta a Ustéri”, de 18 de julho de 1763, deve-se à falsa suposição, daqueles que defendem essa grande cidade, de uma sociedade sem homens injustos. Nesse sentido, Rousseau afirma que a sociedade geral, fundada na humanidade e na benevolência universal, difere da sociedade particular em seu princípio, pois esta é, não apenas estabelecida, mas também conser-
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vada, pelas paixões humanas e pelos interesses particulares. Assim, o Cristianismo, à medida que procura nos desprender destes, estaria enfraquecendo o laço civil 135. Também na Primeira das Cartas escritas da montanha, Rousseau afirma, em nota de rodapé, a oposição entre patriotismo e humanidade, que seriam duas virtudes incompatíveis, e nega categoricamente a possibilidade de tal acordo (Pl. 706). O que ressalta de nosso exame é que a incompatibilidade entre esses dois princípios, o de humanidade e o do patriotismo, explica-se sobretudo pelo fato deles serem opostos em relação à base que conferem às sociedades civis. Em se tratando da conservação e da unidade do corpo político, é o espírito do Cristianismo, que pretende fundar as sociedades humanas numa suposta caridade e irmandade entre os homens, e não o espírito patriótico, que deveria ser relegado. Esse modo cristão – baseado numa moral pura – de fundar as relações entre os homens não dá conta da esfera afetiva que Rousseau pretende estabelecer como fundamento das sociedades humanas. Também o patriotismo, do qual Rousseau faz diversas vezes apologia, só tem sentido por decorrer diretamente da experiência afetiva do indivíduo. A nação que deve ser amada não é uma nação abstrata, sem vínculos reais entre seus membros, mas aquela na qual se nasce, se vive e pela qual se deve morrer. Entre a nação particular e a sociedade geral do gênero humano 135
Cf. “Lettre à Usteri”, de 18 de julho de 1763, publicada em ROUSSEAU, J.-J. The political writings of Jean-Jacques Rousseau, v. II, p. 166-8. Cf. também Lettre à Usteri, de 30 de abril de 1763, publicada nessa mesma edição: “l’esprit patriotique est un esprit exclusif qui nous fait regarder comme étranger et presque comme ennemi tout autre que nos concitoyens [...]. L’esprit du Christianisme au contraire nous fait regarder tous les hommes comme nos frères, comme les enfants de Dieu” (p. 166).
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há uma diferença de graus cuja escala é dada pela relação entre indivíduo e comunidade136. Ambas têm como direção a movimentação do “eu” individual, já que só se tornam de fato aquilo que são através da experiência real e efetiva do indivíduo no seio da comunidade. A crítica dessa moral pura baseada na idéia de uma identidade de natureza entre os homens não envolve no pensamento político de Rousseau uma negação do eu individual, do moi humain. Ao contrário, sem este nem seria possível pensar a pátria. A apologia do patriotismo nos textos de Rousseau pode ser explicada pelo fato de que, para ele, é somente na vida pública, pela participação na vida coletiva, que o homem afirmaria sua identidade e individualidade, pois a pátria expressa aquilo que ele é essencialmente: um ser capaz de se expandir, para o qual a maior manifestação de identidade e unidade é saber viver com os outros. Daí a observação de Rousseau, no texto em que melhor exprime sua exaltação da pátria, as Considerações sobre o governo da Polônia, sobre a “embriaguez patriótica” (“cette ivresse patriotique”), após ter afirmado que todos devem se sentir sempre “sob os olhos do público”: “Da efervescência excitada por esta comum emulação nascerá esta embriaguez patriótica que somente é capaz
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Para R. D. Miller, cosmopolitismo e patriotismo não se opõem no pensamento de Rousseau, mas são dois pólos do movimento de expansão da alma. Rousseau abandona, segundo ele, o cosmopolitismo abstrato, através do patriotismo, e afirma o amor à humanidade como dever de todo homem. Cf. MILLER, R. D. The changing face of nature in Rousseau’s political writings. Harrogate, The Duchy Press, 1983, cap. 3.
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de elevar os homens acima de si mesmos e sem a qual a liberdade não é mais do que um vão nome e a legislação não passa de uma quimera.” (Pl. 1019, p . 89)
Tal passagem deve ser compreendida como um convite, não ao exercício de um poder totalitário, mas à arte que mais aproxima o homem de si mesmo, garantindo-lhe a liberdade e dando-lhe condições para que exerça sua capacidade expansiva: a arte de governar.
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ARTE DE GOVERNAR À GUISA DE CONCLUSÃO Desconsiderar, numa leitura de Rousseau, seus esboços de um plano de ação política, e enfatizar somente o aspecto abstrato do Contrato social, a face jurídica da teoria da vontade geral, não nos ajuda a compreender seu projeto como um todo. É manifesta a tentativa de Rousseau de construir um modelo que pudesse ser empregado por todos os governos futuros e que incluiria, além das leis gerais que regem, no interior de um corpo político, a relação entre os cidadãos, o poder soberano e o Estado, também as que norteiam as relações internacionais. Rousseau não faz abstração da política. Seu projeto das “Instituições políticas”, da qual faria parte o Contrato social, supõe também uma análise das circunstâncias particulares137. Sua atenção à política concreta aparece, sobretudo, nas passagens de seus escritos em que considera, ao lado dos princípios teóricos, as condições de aplicação destes, os mecanismos de governo ou as ações públicas – por exemplo, no Contrato social, quando trata da censura, das assembléias populares e da religião civil; também quando se refere às festas, aos jogos e a outras cerimônias públicas no verbete “Economia política” e 137
Como podemos observar no final do Contrato social, quando Rousseau anuncia tal projeto, para discorrer sobre as relações internacionais seria preciso examinar, não somente o “direito das gentes”, o “direito da guerra e das conquistas” e o “direito público”, mas também o “comércio”, as “ligas”, as “negociações” e os “tratados”.
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nas Considerações sobre o governo da Polônia. Podemos entender ainda, nesse sentido, porque mesmo idealizando a legislação como expressão da vontade geral, há tanta desconfiança, por parte de Rousseau, em relação à eficácia da aparelhagem legislativa. À dificuldade na elaboração das leis, que não pode ser feita arbitrariamente, mas com base nos princípios derivados da natureza das coisas138, somam-se os abusos cometidos pelos particulares em relação a essas mesmas leis139. Governar não pode ser, por isso, apenas uma aplicação da legislação, mas também a direção da vontade e dos costumes dos povos140. Rousseau não faz certamente uma análise empírica dos fenômenos políticos nem pretende fazer, da política, mera questão técnica. O que, contudo, não significa que se mantenha no plano estritamente abstrato. A dedução do direito político dos princípios de igualdade e liberdade, no Contrato social, é um procedimento que não pode ser inteiramente compreendido senão como parte de uma proposta teórica mais ampla. Como seria essa proposta, que nos limitamos apenas a apontar, a par138
No capítulo “Dos diversos sistemas de legislação”, livro II do Contrato social, Rousseau observa: “Mais si le Législateur, se trompant dans son objet, prend un principe différent de celui qui nait de la nature des choses [...] on verra les loix s’affoiblir insensiblement, la constitution s’altérer, et l’Etat ne cessera d’être agité jusqu’à ce qu’il soit détruit ou changé, et que l’invincible nature ait repris son empire”.
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Nas Considerações sobre o governo da Polônia, Rousseau comenta tais dificuldades: “Qu’il soit aisé, si l’on veut, de faire de meilleures loix. Il est impossible d’en faire dont les passions des hommes n’abusent pas, comme ils ont abusé des prémiéres. Prevoir et peser tous ces abus à venir est peut-être une chose impossible à l’homme d’Etat le plus consommé. Mettre la loi au-dessus de l’homme est un problème en politique, que je compare à celui de la quadrature du cercle en géométrie”.
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“La loi n’agit qu’en dehors et ne règle que les actions; les moeurs seules pénétrent intérieurement et dirigent les volontés” (fragmento Des mœurs, Pl. 555).
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tir da relação entre a teoria da vontade geral e a teoria da consciência, é uma questão ainda por ser resolvida. O que já nos é perceptível, a partir de uma observação geral de sua obra política, é a proposta central de condução dos corpos políticos particulares. Mesmo quando, em seu plano das “Instituições políticas”, afirma a necessidade de investigar as relações internacionais, não é com a possibilidade de uma grande cidade, cosmopolita e global, que estaria preocupado. São, ainda, as nações, os povos e os Estados particulares que formam o ponto central de suas investigações. Por isso, no final do Contrato social, Rousseau afirma que, após ter fundado o Estado sobre sua base, “restaria ampará-lo por suas relações externas”. Um modelo que pudesse ser aplicado na condução de vários povos deveria considerar a influência da diversidade de costumes, tradições, valores e manifestações culturais, além da diferença de solo, clima e localização geográfica. Rousseau não se abstém de afirmar a importância do respeito às características próprias de cada povo ou nação. A unidade que dá vigor ao Estado não é imposição, não é exigida por força de lei, mas deve nascer da convivência entre seus membros, da vida pública. Os mecanismos que propiciam essa união variam em função de cada caso específico e formam o que, em seu conjunto, Rousseau designaria como “ciência de governo”. Na Carta a Mirabeau, de 26 de julho de 1767, Rousseau a caracteriza como “ciência de combinações, aplicações e exceções, segundo os tempos, os lugares, as circunstâncias”141. A vida pública não é o lugar de evidências e certezas, ela é menos regida pela força da razão do que pelos sentimentos e paixões. Esse conjunto de es141
Em The political writings of Jean-Jacques Rousseau, v. II, p. 159.
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tratégias, que seria a “ciência do governo”, caracteriza-se menos como técnica de obtenção da ordem pública, mas mais como uma arte. Como observa Michel Launay, a política é também uma “arte de sondar os costumes trabalhando para os formar” e que se constrói pela prática e pela experiência no seio da vida política e social142. A ênfase nessa experiência, particular a cada povo e da qual se deve tirar as máximas de governo, aparece de modo explícito no Projeto de Constituição para a Córsega143. Nesse texto, como nas Considerações sobre o governo da Polônia, Rousseau afirma a necessidade de unidade e de concórdia interna, que depende menos das leis do que da vida pública. É pela participação de todos os cidadãos nos jogos, nos ritos e nas festas cívicas que se poderia manter as características de cada povo, o “caráter nacional”, aquilo que une todos os homens em torno de costumes comuns, gostos e paixões. Rousseau não se limita à colocação dos princípios pertinentes e, para ele, fundamentais da esfera política, não permanece apenas nesse nível normativo da política, mas mostra em que condições tais princípios poderiam ser realizados. Nesse sentido, importa a Rousseau a conduta efetiva dos agentes políticos, o modo como uma nação é dirigida e, à medida que tais agentes projetam suas ações tendo em vista a opinião pública e comum, seria fundamental analisar o modo como os homens agem e manifestam suas vontades. Quando Rousseau observa, 142
Cf. LAUNAY, M. Jean-Jacques Rousseau. Écrivain politique. Op. cit., p. 266.
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No início do Projeto de constituição para a Córsega, Rousseau observa: “Il ne faut point conclure des autres nations à la vôtre. Les maximes tirées de vôtre propre expérience sont les meilleures sur lesquelles vous puissiez vous gouverner” (Pl. 903).
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já no verbete “Economia política”, que o único modo de conformar as vontades particulares à vontade geral é fazer com que todos amem a pátria, refere-se ao modo como os homens efetivamente se comportam na vida pública, ou seja, por meio de sentimentos e paixões. Restaria, ainda, mostrar em seus detalhes esse projeto de governo esboçado por Rousseau. Como da idéia de que, para compreender o homem, seria preciso vê-lo agindo em sociedade, Rousseau constrói uma antropologia e, a partir desta, aponta as condições em que uma nação poderia ser efetivamente conduzida pelas intituições públicas. Que não seja apenas um esboço da grande instituição, que é o Estado, mas também daquelas mais imperceptíveis e difusas no corpo do povo, como aquelas das Considerações sobre o governo da Polônia – os jogos infantis, por exemplo –, instituições ociosas e frívolas “aos olhos dos homens superficiais”, mas que formam os hábitos “afetuosos” e os laços “invencíveis”.
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Ficha técnica Mancha 10,5 x 18,5 cm Formato 14 x 21 cm Tipologia Goudy Old Style 12/16 Papel miolo: off-set 75 g/m2 capa: supremo 250 g/m2 Impressão e acabamento GRÁFICA PROVO Número de páginas 176 Tiragem 500
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