DIREITOS HUMANOS E GLOBALIZAÇÃO FUNDAMENTOS E POSSIBILIDADES DESDE A TEORIA CRÍTICA Anuário Ibero-americano de Direitos Humanos (2003/2004)
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Chanceler: Dom Dadeus Grings Reitor: Joaquim Clotet Vice-Reitor: Evilázio Teixeira Conselho Editorial: Antônio Carlos Hohlfeldt Elaine Turk Faria Gilberto Keller de Andrade Helenita Rosa Franco Jaderson Costa da Costa Jane Rita Caetano da Silveira Jerônimo Carlos Santos Braga Jorge Campos da Costa Jorge Luis Nicolas Audy (Presidente) José Antônio Poli de Figueiredo Jussara Maria Rosa Mendes Lauro Kopper Filho Maria Eunice Moreira Maria Lúcia Tiellet Nunes Marília Costa Morosini Ney Laert Vilar Calazans René Ernaini Gertz Ricardo Timm de Souza Ruth Maria Chittó Gauer
EDIPUCRS: Jerônimo Carlos Santos Braga – Diretor Jorge Campos da Costa – Editor-chefe
David Sánchez Rúbio Joaquín Herrera Flores Salo de Carvalho (Organizadores)
DIREITOS HUMANOS E GLOBALIZAÇÃO FUNDAMENTOS E POSSIBILIDADES DESDE A TEORIA CRÍTICA Anuário Ibero-americano de Direitos Humanos (2003/2004)
2ª edição em Homenagem a Joaquín Herrera Flores (in memoriam)
Porto Alegre 2010
© EDIPUCRS, 2010 1ª edição: 2004 (Lumen Juris) Capa: Deborah Cattani Preparação de originais: Rafael Saraiva Revisão: dos Autores Diagramação: Deborah Cattani e Gabriela Viale Pereira
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) D598 Direitos humanos e globalização [recurso eletrônico] : fundamentos e possibilidades desde a teoria crítica / org. David Sánchez Rúbio, Joaquín Herrera Flores, Salo de Carvalho. – 2. ed. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2010. 578 p. Modo de Acesso: World Wide Web: <http://www.pucrs.br/orgaos/edipucrs/> A obra corresponde ao Anuário Ibero-Americano de Direitos Humanos 2003-2004). Homenagem a Joaquín Herrera Flores (in memoriam). ISBN 978-85-7430-946-0 1. Direitos Humanos. 2. Direitos Humanos – Anuários. 3. Globalização. I. Sánchez Rúbio, David. II. Herrera Flores, Joaquín. III. Carvalho, Salo de. CDD 341.27
Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS
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AUTORES
Antonio Carlos Wolkmer – Professor Titular de História das Instituições Jurídicas dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFSC. Doutor em Direito e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (RJ). Norman José Solórzano Alfaro – Doutor em Derechos Humanos y Desarrollo (UPO/ESP) e professor na Universidad de Costa Rica e na Universidad Nacional, também na Costa Rica. Helio Gallardo – Professor de Filosofia Social e Política na Universidad de Costa Rica. Joaquín Herrera Flores – Professor de Filosofia do Direito e Teoria da Cultura e coordenador do Programa de Doutorado em Derechos Humanos y Desarrollo da Universidad Pablo de Olavide/ESP. Presidente da Fundación Iberoamericana de Derechos Humanos (FIDH). Agostinho Ramalho Marques Neto – Psicanalista. Professor universitário, nas áreas de Filosofia do Direito e Filosofia Política. Vice-Diretor Geral da Faculdade São Luís. José Luis Bolzan de Morais – Procurador do Estado do Rio Grande do Sul; Mestre e Doutor em Direito do Estado; Professor e Coordenador Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS/RS e Professor da UNISC/RS. José María Seco Martínez – Professor de Filosofía del Derecho, na Universidad Pablo de Olavide. Alejandro Medici – Professor de Direito Político na Universidad Nacional de La Plata. Doutor em Derechos Humanos y Desarrollo (UPO/ESP). Mestre em Teorías Críticas del Derecho y la Democracia (UPO/ESP). David Sánchez Rubio – Professor de Filosofia do Direito na Universidad de Sevilla/ESP. Codiretor do Programa de Doutorado em Derechos Humanos y Desarrollo da UPO/ESP. Asier Martínez de Bringas – Doutor em Direito. Pesquisador no Instituto de Direitos Humanos da Universidad de Deusto/ESP. Ielbo Marcus Lobo de Souza – PhD na University of London. Professor de Direito Internacional na UNISINOS.
Luís Roberto Barroso – Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito pela Yale University. Lenio Luiz Streck – Procurador de Justiça-RS; Pós-Doutor em Direito Constitucional e Hermenêutica (Universidade de Lisboa); Doutor em Direito do Estado (UFSC); Coordenador Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da Unisinos/RS. Luciano Oliveira – Doutor em Sociologia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris); Professor do Mestrado em Ciência Política e da PósGraduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (Brasil). Luis Prieto Sanchís – Professor de Filosofoa do Direito na Universidad de Castilla-La Mancha. Antonio Manuel Peña Freire – Professor de Filosofia do Direito na Universidad de Granada. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho – Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR), Mestre (UFPR), Doutor (Università degli Studi di Roma “La Sapienza”). Coordenador eleito do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR. Rodrigo Stumpf González – Professor da UNISINOS e UNILASALLE. Doutor em Ciência Política pela UFRGS. Gilberto Bercovici – Professor Doutor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Luís Fernando Massonetto – Doutorando em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Jesús Antonio de la Torre Rangel – Advogado. Mestre em Direito pela Universidad Iberoamericana. Professor/pesquisador do Departamento de Direito da Universidad Autónoma de Aguascaliente. Professor convidado na Universidad Internacional de Andalucía/ESP. Vera Regina Pereira de Andrade – Doutora em Direito pelo Curso de PósGraduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Professora nos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Salo de Carvalho – Advogado. Mestre (UFSC) e Doutor (UFPR) em Direito. Professor do Programa de Pós-Graduação da PUCRS.
SUMÁRIO
Homenagem a Joaquín Herrera Flores (In Memoriam) ..................................... 9 I. TEORIA CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS E GLOBALIZAÇÃO Novos Pressupostos para a Temática dos Direitos Humanos ........................13 Antonio Carlos Wolkmer Derecho Moderno e Inversión Ideológica: Una mirada desde los Derechos Humanos ..............................................................................................................30 Norman José Solórzano Alfaro Derechos Discriminados y Olvidados ...............................................................55 Helio Gallardo Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización: Tres Precisiones Conceptuales .......................................................................................................72 Joaquín Herrera Flores Neoliberalismo: O Declínio do Direito .............................................................110 Agostinho Ramalho Marques Neto Direitos Humanos, Estado e Globalização ......................................................125 José Luis Bolzan de Morais Globalización: El Nirvana del Viejo Orden Burgués .......................................150 José María Seco Martínez La Globalización como Trama Jerárquica: ¿“Gobernancia” sin Gobierno o Hegemonía? El Nuevo Contexto de los Derechos Humanos ........................168 Alejandro Medici II. DIREITOS HUMANOS E INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos ...........................................................................................209 David Sánchez Rubio Los Derechos Humanos como Núcleo Fundante de la Acción Humanitaria........................................................................................................257 Asier Martínez de Bringas A Intervenção Armada por Razões Humanitárias e a Questão de Kosovo: Lições e Paradigmas .........................................................................................280 Ielbo Marcus Lobo de Souza
III. DIREITOS HUMANOS, INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO E GARANTISMO O Começo da História: A Nova Interpretação Constitucional e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro ........................................................................298 Luís Roberto Barroso A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição: Breve Balanço Crítico nos quinze anos da Constituição Brasileira .....................................................................................341 Lenio Luiz Streck Pluralismo Jurídico e Direito Alternativo no Brasil. Notas para um Balanço ..............................................................................................................374 Luciano Oliveira Neoconstitucionalismo y Ponderación Judicial .............................................400 Luis Prieto Sanchís Constitucionalismo Garantista y Democracia ................................................436 Antonio Manuel Peña Freire Segurança Pública e o Direito das Vítimas .....................................................479 Jacinto Nelson de Miranda Coutinho IV. PERSPECTIVA HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS Direitos Humanos na América Latina: Transições Inconclusas e a Herança das Novas Gerações .........................................................................................494 Rodrigo Stumpf González Os Direitos Sociais e as Constituições Democráticas Brasileiras: Breve Ensaio Histórico ................................................................................................510 Gilberto Bercovici e Luís Fernando Massonetto Algunas Expresiones Normativas de la Tradición Hispanoamericana de los Derechos Humanos ...........................................................................................529 Jesús Antonio de la Torre Rangel V. MEMÓRIA Fragmentos de uma Grandiosa Narrativa: Homenagem ao Peregrino do Humanismo, Alessandro Baratta .....................................................................555 Vera Regina Pereira de Andrade
Homenagem a Joaquín Herrera Flores (In Memoriam)
Há muito tempo ouvia falar dos teóricos de Sevilha, de Joaquín Herrera Flores e de David Sanchez Rúbio, pelo Amilton (Bueno de Carvalho), meu pai. Em alguns momentos a impressão que eu tinha era de que constituíam uma só pessoa, pois sempre o nome de um vinha associado ao do outro. A imagem dos pensadores da Andaluzia, do Master em Teorias Críticas do Direito em La Rábida, e a amizade de Joaquín e David com o pai, foram constantes na minha vida afetiva e acadêmica. Nas aulas do mestrado, na UFSC, na redação da dissertação e na elaboração da tese, na UFPR, os escritos de Joaquín e David, sobretudo aqueles sobre Direito Alternativo, estiveram presentes, sempre disponibilizados pelos meus queridos professores Antônio Carlos Wolkmer, Edmundo Lima de Arruda Júnior, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e, logicamente, pelo pai. O velho Amilton, durante o biênio letivo de 1994 e 1995 – enquanto eu cursava o mestrado em Florianópolis –, esteve em La Rábida, Huelva, fazendo o Master com Joaquín e David. E o material trazido foi distribuído e vorazmente estudado por estudantes e professores de pós-graduação alinhados ao Movimento do Direito Alternativo. Somente conheci pessoalmente Joaquín em Curitiba, em novembro de 2000, no II Congresso de Direito e Psicanálise – A Lei e a lei. Havia defendido minha tese de doutorado naquele ano, na UFPR. Joaquín, ao saber do recente doutoramento, fez o convite para que eu apresentasse seminário sobre Garantismo e Direitos Humanos, na primeira edição do curso de Doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento, na Universidade Pablo de Olavide (UPO), em Sevilha. Curiosamente, esse curso era fruto da semente plantada em La Rábida. O convite foi imediatamente aceito. Após a primeira experiência docente em janeiro de 2001 – quando conheci pessoalmente David –, fui convidado para lecionar nas edições posteriores do Curso. Assim, pude desfrutar do convívio com Joaquín, com os professores e com a série de alunos que vinham de inúmeras partes do mundo aprender. Com o Curso, Sevilha havia se tornado referência na Teoria Crítica dos Direitos Humanos.
A partir dessa primeira experiência conquistei novos amigos, novos irmãos de caminhada. E projetos foram imaginados e colocados em marcha. Juntos – eu, Joaquín e David – organizamos a série Anuários Iberoamericanos de Direitos Humanos, publicação coletiva fruto das pesquisas realizadas no Doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Universidade Pablo de Olavide, no Doutorado em Direito da Universidade de Sevilha e do Doutorado em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Ao todo foram publicados três volumes, dois pela Editora Lumen Juris, do Rio de Janeiro, e o último, de 2008, pela EDIPUCRS. Nossa vontade, porém, desde há tempos, era que o material fosse disponibilizado gratuitamente, para todos os pesquisadores que se interessam pelo tema dos Direitos Humanos e pelas Teorias Críticas. Assim, iniciamos tratativa com as editoras para que a EDIPUCRS reeditasse os volumes 1 e 2, esgotados, e disponibilizasse o terceiro, todos em ebook, com acesso livre pela web. Durante a preparação da publicação desta segunda edição do segundo volume do Anuário, intitulado Direitos Humanos e Globalização: fundamentos e possibilidades desde a teoria crítica, recebemos a notícia da morte de Joaquín. Não tenho (não temos) palavras para dimensionar a perda. Resta-nos apenas a certeza de que seus escritos seguem sendo estudados, que seus livros habitam as prateleiras das livrarias e das bibliotecas, que sua risada ecoa pelos corredores das Universidades e pelas ruas de Sevilla, o que faz com que siga vivo e muito presente em nós. Recentemente a editora Lumen Juris publicou a tradução de sua obra Teoria Crítica dos Direitos Humanos: os Direitos Humanos como produtos culturais. Das últimas páginas retiro pequeno fragmento que representa a luta cotidiana de Joaquín que segue viva nesta publicação:
Dizia Celaya [Gabriel Celaya, poeta espanhol]: 'Maldigo la poesía concebida como un lujo/ cultural pero neutral/ que, lavándose las manos se desentienden y evaden. Maldigo la poesía de quien no toma partido hasta marcharse’. Substituamos poesia por teoria e nos aproximaremos do princípio de dignidade que está latente nas páginas deste livro. Substituamos poesia por teoria e compreenderemos a profundidade dos versos de Celaya: versos escritos a partir da
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Salo de Carvalho
indignação e da vontade de encontros de todos os que resistem a assumir o mundo como dado de uma vez por todas. Substituamos poesia por teoria e teremos um argumento a mais para a luta social contra a injustiça e a opressão. (...) Afirmemos a potência de nossa inteligência e de nossa capacidade de criar sentidos novos ao mundo. Enfim, redobremos a potência do constituinte, do ser humano, de tudo aquilo que o coloca em tensão em direção a um novo acontecimento, em direção a um tipo de ação, em direção a um mundo possível e melhor.
Joaquín morreu. [silêncio] Viva Joaquín! [aplausos]
Salo de Carvalho, outubro de 2009.
Homenagem a Joaquín Herrera Flores (In Memoriam)
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I. TEORIA CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS E GLOBALIZAÇÃO
Novos Pressupostos para a Temática dos Direitos Humanos*
Antonio Carlos Wolkmer
Sumário: Introdução. 1. Dimensão dos Direitos Civis e Políticos. 2. Dimensão dos Direitos Sociais e Econômicos. 3. Dimensão dos Direitos Coletivos e Difusos. 4. Dimensão de Direitos da Bioética. 5. Dimensão de Direitos Virtuais. 6. Fundamentos dos Direitos Humanos Emergentes. Conclusão. Referências Bibliográficas.
Introdução O processo de reconhecimento e afirmação dos chamados direitos humanos constituiu uma verdadeira conquista da sociedade moderna ocidental. Esse processo do nascimento de direitos como expressão da natureza humana, ainda que favorecido pelos ideais da cultura liberal-burguesa e pela doutrina do jusracionalismo, deve-se em grande parte, como assinala Norberto Bobbio, à estreita
conexão
com
as
transformações
da
sociedade 1.
Assim,
o
desenvolvimento e a mudança social estão diretamente vinculados com o nascimento, a ampliação e universalização dos ‘novos’ direitos. Essa multiplicação histórica dos ‘novos’ direitos processou-se, no dizer de Bobbio, por três razões: a) aumentou a ‘quantidade de bens considerados merecedores de tutela’; b) estendeu-se ‘a titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do homem’; c) o homem não é mais concebido como ser genérico, abstrato, ‘(...) mas é visto na especificidade ou na concreticidade de suas diversas maneiras de ser em sociedade, como criança, velho, doente etc. 2
Por certo que, nos marcos de um cenário globalizado, os direitos humanos em emergência materializam exigências reais da própria sociedade diante das condições emergentes da vida e das crescentes prioridades determinadas socialmente. *
Uma primeira versão deste texto foi publicada na Revista Direito em Debate. Ijuí, nos 16/17, jan./jun. 2002. 1 Cf. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 73. 2 BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 68.
Em face da mundialização e da ampliação dos chamados “novos” direitos de natureza humana, objetivando precisar seu conteúdo, titularidade, efetivação e sistematização, os doutrinadores têm consagrado uma evolução linear e acumulativa de “gerações” sucessivas de direitos. Tal reflexão compreende várias tipologias (três, quatro ou cinco “gerações” de direitos), desde a clássica de T. H. Marshall até alcançar as formulações de Norberto Bobbio, C. B. Macpherson, Maria de Lourdes M. Covre, Celso Lafer, Paulo Bonavides, Gilmar A. Bedin, Ingo W. Sarlet, José Alcebíades de Oliveira Jr. e outros3. Possivelmente, a classificação dos direitos civis, políticos e sociais feita por T. H. Marshall, em sua obra Cidadania, Classe Social e Status, tornou-se referencial paradigmático enquanto processo evolutivo de fases históricas dos direitos no Ocidente. Essa periodização foi e tem sido utilizada por muitos outros autores, seja reproduzindo integralmente, seja atualizando e ampliando as gerações de direitos. Desse modo, segundo T. H. Marshall, o cenário europeu (particularmente o inglês) do século XVIII favoreceu o surgimento dos direitos civis, enquanto o século XIX consagrou os direitos políticos, e a primeira metade do século XX consolidou as reivindicações de direitos sociais e econômicos. Cabe mencionar os questionamentos que vêm sendo feitos por autores nacionais (Paulo Bonavides, Ingo Sarlet e Paulo de T. Brandão) 4 com relação ao uso técnico da expressão “gerações” de direitos, que induz o equívoco de um processo substitutivo, compartimentado e estanque. Com efeito, assinala Bonavides que
força é dirimir, a esta altura, um eventual equívoco de linguagem: o vocábulo ‘dimensão’ substitui, com vantagem lógica e qualitativa, o termo ‘geração’, caso este último venha a induzir 3
Cf. MARSHAL, T. H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976. p. 57-114; BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 6, 67-83; MACPHERSON, C. B. Ascensão e queda da Justiça Econômica e outros ensaios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 37-52; COVRE, Maria de Lourdes M. O que é Cidadania. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 11-15; LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 125-133; BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 514528; BEDIN, Gilmar A. Os Direitos do Homem e o Neoliberalismo. 2ª. ed. Ijuí: UNIJUÍ, 1998. p. 3978; SARLET, Ingo W. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 1998. p. 46-58; OLIVEIRA JÚNIOR, José A. de. Teoria Jurídica e Novos Direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p. 83-96. 4 Cf. BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 525; SARLET, Ingo. Op. cit., p. 47; BRANDÃO, Paulo de T. A Tutela Judicial dos “novos” Direitos: em busca de uma efetividade para os direitos típicos da cidadania. Florianópolis: CPGD, 2000. p. 121-122. [Tese de Doutorado em Direito].
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Antonio Carlos Wolkmer
apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das gerações antecedentes, o que não é verdade 5.
Tendo em vista a compreensão atual do fenômeno dos “novos” direitos, farse-á uma digressão histórica dos direitos humanos (também cunhados de direitos do homem ou fundamentais) no que se refere ao seu conteúdo, contextualização de época, importância e fontes legais institucionalizadas. Compartilhando as interpretações de Bonavides e de Sarlet, substituem-se os termos “gerações”, “eras” ou “fases” por “dimensões”, porquanto esses direitos não são substituídos ou alterados de tempo em tempo, mas resultam num processo de fazer-se e de complementaridade permanente 6. Isso claro e levando em conta as tipologias de Marshall, Bobbio, Sarlet e principalmente a de Oliveira Jr. (a mais completa até o presente momento) 7, propõe-se, na esteira do último autor, a ordenação histórica dos direitos de natureza humana em cinco grandes “dimensões”.
1. Dimensão dos Direitos Civis e Políticos Os direitos civis e políticos referem-se aos direitos individuais vinculados à liberdade, à igualdade, à propriedade, à segurança e à resistência às diversas formas de opressão. Direitos inerentes à individualidade, tidos como atributos naturais, inalienáveis e imprescritíveis, que, por serem de defesa e serem estabelecidos contra o Estado, têm especificidade de direitos “negativos”. Esses direitos de “primeira dimensão”, fundamentais para a tradição das instituições político-jurídicas da modernidade ocidental, apareceram ao longo dos séculos XVIII e XIX como expressão de um cenário histórico marcado pelo ideário do jusnaturalismo secularizado, do racionalismo iluminista, do contratualismo societário, do liberalismo individualista e do capitalismo concorrencial. Socialmente o período consolida a hegemonia da classe burguesa, que alcança o poder através das chamadas revoluções norte-americana (1776) e francesa (1789). Esses direitos 5
BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 525. Cf. SARLET, Ingo W. Op. cit., p. 47. 7 Em seu livro Teoria Jurídica e Novos Direitos (p. 85-86, 99-100), influenciado pelas “fases evolutivas” do Direito moderno de N. Bobbio, o professor José Alcebíades de Oliveira Jr. avança e acrescenta mais duas etapas, ou seja, trabalha com uma tipologia de cinco grandes “gerações” de direitos. Sobre a classificação de Norberto Bobbio, examinar obra já citada desse autor: p. 06. 6
Novos Pressupostos para a Temática dos Direitos Humanos
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individuais, civis e políticos, surgem no contexto da formação do constitucionalismo político clássico que sintetiza as teses do Estado democrático de Direito, da teoria da tripartição dos poderes, do princípio da soberania popular e da doutrina da universalidade dos direitos e garantias fundamentais 8.
Quanto às fontes legais institucionalizadas, os direitos civis clássicos de “primeira dimensão” surgiram e foram proclamados nas célebres declarações de direitos de Virgínia (1776) e da França (1789). Da mesma forma, tais direitos e garantias são positivados, incorporados e consagrados pela Constituição Americana de 1787 e pelas Constituições Francesas de 1791 e 1793. Por fim, recorda-se que o mais importante código privado dessa época – fiel tradução do espírito liberal-individual – foi o Código Napoleônico de 1804.
2. Dimensão dos Direitos Sociais e Econômicos Os direitos sociais, econômicos e culturais são direitos fundados nos princípios da igualdade e com alcance positivo, pois não são contra o Estado, mas ensejam a garantia e a concessão a todos os indivíduos por parte do poder público. Esses direitos são, como assevera Celso Lafer, direitos de crédito do indivíduo em relação à coletividade. Tais direitos – como o direito ao trabalho, à saúde, à educação – têm como sujeito passivo o Estado, porque (...) foi a coletividade que assumiu a responsabilidade de atendê-los. O titular desse direito, no entanto, continua sendo, como nos direitos de primeira geração, o homem na sua individualidade 9.
Na contextualização histórica dos direitos de “segunda dimensão”, estão mais do que nunca presentes o surto do processo de industrialização e os graves impasses socioeconômicos que varreram a sociedade ocidental entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX. O capitalismo concorrencial evolui para a dinâmica financeira e monopolista, e a crise do modelo liberal de Estado possibilita o nascimento do Estado do Bem-Estar Social, que passa a arbitrar as relações entre o capital e o
8
Consultar, a propósito: SARLET, Ingo W. Op. cit., p. 48-49; BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 516518; LAFER, Celso. Op. cit., p. 126-127; BEDIN, Gilmar A. Op. cit., p. 43-61. 9 LAFER, Celso. Op. cit., p. 127.
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Antonio Carlos Wolkmer
trabalho. O período ainda registra o desenvolvimento das correntes socialistas, anarquistas e reformistas. Não menos importantes para os avanços sociais são: a posição da Igreja Católica com sua doutrina social (a Encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, 1891); os efeitos políticos das Revoluções Mexicana (1911) e Russa (1917); os impactos econômicos do keynesianismo e o intervencionismo estatal do New Deal. Cria-se a Organização Internacional do Trabalho (1919); o movimento sindical ganha força internacional; a socialização alcança a política e o Direito (nascem o Direito do Trabalho e o Direito Sindical) 10. As principais fontes legais institucionalizadas estão positivadas na Constituição Mexicana de 1917, na Constituição Alemã de Weimar de 1919, na Constituição Espanhola de 1931 e no Texto Constitucional de 1934 do Brasil.
3. Dimensão dos Direitos Coletivos e Difusos Os direitos coletivos e difusos se referem aos direitos metaindividuais, direitos de solidariedade. A nota caracterizadora desses direitos “novos” é a de que seu titular não é mais o homem individual (tampouco regulam as relações entre os indivíduos e o Estado), mas agora dizem respeito à proteção de categorias ou grupos de pessoas (família, povo, nação), não se enquadrando nem no público nem no privado. Ao reconhecer os direitos de terceira dimensão, é possível perceber duas posições entre os doutrinadores nacionais: a) Interpretação abrangente acerca dos direitos de solidariedade ou fraternidade (Lafer, Bonavides, Bedin, Sarlet)11: incluem-se aqui os direitos relacionados ao desenvolvimento, à paz, à autodeterminação dos povos, ao meio ambiente sadio, à qualidade de vida, o direito de comunicação etc.; b) Interpretação específica acerca de direitos transindividuais (Oliveira Jr.) 12: aglutinam-se os direitos de titularidade coletiva e difusa, adquirindo crescente importância o Direito ambiental e o Direito do consumidor. 10
Observar: BEDIN, Gilmar A. Op. cit., p. 61-72; WOLKMER, Antonio Carlos. Constitucionalismo e Direitos Sociais no Brasil. São Paulo: Acadêmica, 1989. 11 Ver: LAFER, Celso. Op. cit., p. 131-133; BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 522-524; BEDIN, Gilmar A. Op. cit., p. 73-78; SARLET, Ingo W. Op. cit., p. 50-52. 12 Ver: OLIVEIRA JR., José A. Op. cit., p. 86 e 100.
Novos Pressupostos para a Temática dos Direitos Humanos
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Avançando na perspectiva da segunda interpretação, ensinam Sauwen e Hryniewicz que: Os direitos meta-individuais, sob o ponto de vista subjetivo (ou seja, quanto a sua titularidade), se caracterizam pela indeterminação dos titulares dos interesses, indeterminação (um grupo mais ou menos indeterminado de indivíduos). Do ponto de vista objetivo, tais direitos se caracterizam pela sua indivisibilidade, ou seja, a satisfação ou lesão do interesse não se pode dar de modo fracionado para um ou para alguns dos interessados e não para outros (...) 13.
Aspecto nuclear dos direitos metaindividuais, a distinção entre direitos difusos e coletivos nem sempre fica muito clara, podendo-se dizer que o critério subjetivo diferencia-os (maior ou menor indeterminação dos titulares do Direito). Os direitos difusos centram-se em realidades fáticas, “genéricas e contingentes, acidentais e mutáveis” que engendram satisfação comum a todos (pessoas anônimas envolvidas, mas que gastam produtos similares, moram na mesma localidade, etc.), enquanto os direitos coletivos envolvem interesses comuns no interior de organizações sociais, de sindicatos, de associações profissionais etc. 14 Na particularização desses “novos” direitos transindividuais, importa lembrar que os chamados direitos relacionados à proteção do meio ambiente e do consumidor começaram a ganhar impulso no período pós-segunda Guerra Mundial. A explosão das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, a mutilação e o extermínio de vidas humanas, a destruição ambiental e os danos causados à natureza pelo desenvolvimento tecnológico desencadearam a criação de instrumentos normativos no âmbito internacional. Igualmente, uma política governamental em defesa dos consumidores foi sendo estabelecida nas décadas de 70 e 80 nos Estados Unidos e na Europa 15. Como recorda o Prof. José Rubens M. Leite, os primeiros estudos no Brasil sobre a necessidade de instrumentos
jurisdicionais
para
regulamentar
interesses
metaindividuais
aparecem no final dos anos 70 (os trabalhos de José Carlos Barbosa Moreira e Ada Pellegrini Grinover). O coroamento de toda discussão foi a aprovação a Lei 13
SAUWEN, Regina F.; HRYNIEWICZ, Severo. O Direito “in Vitro”. Da Bioética ao Biodireito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997. p. 53-54. 14 Cf. SAUWEN, Regina F.; HRYNIEWICZ, Severo. Op. cit., p. 54. 15 Consultar: CÁCERES, Eliana. “Os Direitos básicos do Consumidor – uma contribuição”. In: Revista Direito do Consumidor. São Paulo, nº 10, abr./jun. 1994.
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Antonio Carlos Wolkmer
da Ação Civil Pública (n° 7.347/85), que disciplina e protege o meio ambiente, o consumidor, os bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico 16. Transformações sociais ocorridas nas últimas décadas, a amplitude dos sujeitos coletivos, as formas novas e específicas de subjetividades e a diversidade na maneira de ser em sociedade têm projetado e intensificado outros direitos que podem ser inseridos na “terceira dimensão”, como os direitos de gênero (dignidade da mulher, subjetividade feminina) 17, direitos da criança 18, direitos do idoso (Terceira Idade)19, os direitos dos deficientes físicos e mentais, os direitos das minorias (étnicas, religiosas, sexuais) 20 e novos direitos da personalidade (à intimidade, à honra, à imagem). Por fim, interessa apontar as fontes na legislação nacional em que são contemplados, direta ou indiretamente, alguns dos principais direitos “novos” de “terceira dimensão.” A fundamentação é encontrada na Lei da Ação Civil Pública (n° 7.347/85), na Constituição Brasileira de 1988 (direitos não expressos ou atípicos, art. 5°, § 2°), no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/90) e no Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078, de 11/09/1990).
4. Dimensão de Direitos da Bioética Os direitos da Bioética tratam dos direitos referentes à biotecnologia, à bioética e à regulação da engenharia genética. Trata dos direitos que têm vinculação direta com a vida humana, como a reprodução humana assistida (inseminação artificial), aborto, eutanásia, cirurgias intrauterinas, transplantes de órgãos, engenharia genética (“clonagem”), contracepção e outros. Tais direitos de natureza polêmica, complexa e interdisciplinar vêm 16
Cf. LEITE, José Rubens M. “Interesses Meta-individuais: conceitos – fundamentações e possibilidade de tutela”. In: OLIVEIRA JR., José de A. de; LEITE, José R. M. (Orgs.). Cidadania Coletiva. Florianópolis: CPGD/Paralelo 27, 1996. p. 30-31. 17 Consultar: BRUSCHINI, Cristina; HOLLANDA, Heloisa B. de (Orgs.) Horizontes Plurais. Novos estudos de gênero no Brasil. São Paulo: Editora 34/Fundação Carlos Chagas, 1998. 18 Ver: VERONESE, Josiane Rose P. Interesses Difusos e Direitos da Criança e do Adolescente. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. 19 Examinar: HADDAD, Eneida G. de Macedo. O Direito à Velhice. São Paulo: Cortez, 1993. 20 O reconhecimento e a problematização dos direitos das minorias (coletividades étnicas, raciais, religiosas, sexuais e outras) veja-se em: KYMLICKA, Will. Ciudadanía Multicultural: una teoría liberal de los derechos de las minorías. Barcelona: Paidós, 1996.
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merecendo a atenção de médicos, juristas, biólogos, filósofos, teólogos, psicólogos, sociólogos e de uma gama de humanistas e profissionais da saúde. Reconhece Norberto Bobbio serem direitos de “quarta geração”, espelhando os “efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo” 21. Portanto, esses direitos emergiram no final do século XX e projetam grandes e desafiadoras discussões nos primórdios do novo milênio. Tal fato explica o descompasso e os limites da Ciência Jurídica convencional para regulamentar e proteger com efetividade esses procedimentos. Daí a prioridade de se redefinirem as regras, os limites e as formas de controle que conduzam a uma prática normativa objetivada para o bem-estar e não a ameaça ao ser humano. Essas questões preocupantes para toda a humanidade reforçam a necessidade imperativa de uma legislação internacional. Nesse sentido, comenta Regina Sauwen,
os conflitos advindos (...) da sofisticação das técnicas de procriação assistida, do tráfico de embriões e de órgãos, da produção de armas bioquímicas, da prática de controle da natalidade, da clonagem e de outros ‘possíveis’ à Engenharia Genética só poderão ser adequadamente resolvidos por meio de acordos internacionais 22.
Cumpre esclarecer que o progresso das ciências biomédicas e as verdadeiras revoluções tecnológicas no campo da saúde humana projetaram preocupações sobre a regulamentação ética, envolvendo as relações entre a biologia, medicina e a vida humana. Daí o surgimento, nos anos 70, da reflexão bioética, que, tendo sido até então uma mera reflexão deontológica no âmbito da ética médica, vem lançando-se “a propósitos muito mais amplos”23. Naturalmente, a bioética ganha importância por revelar-se instrumental interdisciplinar de base ética que visa a pesquisar, na esfera da saúde, os meios necessários para gerenciar, com responsabilidade, a vida humana em geral. Pela necessária normalização das novas exigências valorativas e pela normatização das formas de controle, incorpora-se a Bioética, o que se pode designar de Biodireito.
21
BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 06. SAUWEN, Regina F.; HRYNIEWICZ, Severo. Op. cit., p. 57. 23 SILVA, Reinaldo Pereira e. Análise Bioética das Técnicas de Procriação Assistida. In: Ética & Bioética. Novo Direito e ciências médicas. Florianópolis: Terceiro Milênio, 1998. p. 119-120. 22
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Ainda que o termo bioética tenha surgido em 1971 nos Estados Unidos (Universidade de Wisconsin) com Van Rensselaer Potter, a breve história da Bioética (do grego: “bíos” = vida + “éthiké” – ética) está associada a alguns fatos relevantes: a) as experiências dos médicos nazistas na II Guerra Mundial (Mengele) geram a primeira declaração de “regras bioéticas” em 1947, com o Código de Nuremberg (revisto posteriormente com a Declaração de Helsinque, em 1964); b) as pesquisas e o desenvolvimento das tecnologias no campo biomédico, principalmente com a procriação assistida (congelamento de esperma ou de embriões, “mães de aluguel”) ao longo dos anos 70 e 80; c) as conquistas da engenharia genética através da “clonagem” (cópia genética idêntica) da ovelha Dolly, em fevereiro de 1997, na Escócia 24. Resta observar que esses direitos reconhecidos como “novos”, advindos da biotecnologia e da engenharia genética, necessitam prontamente de uma legislação regulamentadora e de uma teoria jurídica (quer no que tange à aceitação de novas fontes, quer no que se refere às novas interpretações e às novas práticas processuais) capaz de captar as novidades e assegurar a proteção à vida humana. Por fim, alguns subsídios legais que podem viabilizar fundamentos para os “novos” direitos da bioética: Código de Nuremberg (1947), Declaração de Helsinque (1964), Lei Brasileira da Biossegurança (n° 8.974), de 05/01/1995, e Lei de Doação de Órgãos (n° 9.434), de 04/02/1997. Existem vários projetos de lei tramitando no Congresso Nacional sobre clonagem, reprodução humana assistida e eutanásia 25.
5. Dimensão de Direitos Virtuais Os direitos virtuais são os direitos advindos das tecnologias de informação (Internet), do ciberespaço e da realidade virtual em geral. 24
Cf. SAUWEN, R. F.; HRYNIEWICZ, S. Op. cit., p. 11, 89 e 141; LEITE, Eduardo de O. Da Bioética ao Biodireito: reflexões sobre a necessidade e emergência de uma legislação. In: SILVA, Reinaldo Pereira e (Org.). Direitos Humanos como Educação para a Justiça. São Paulo: LTr, 1998. p. 107-109. 25 Consultar: SAUWEN, R. F; HRYNIEWICZ, S. Op. cit., p. 141-211. Para aprofundamento nas questões da bioética, examinar: PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas Atuais de Bioética. 4ª. ed. São Paulo: Loyola, 1998. Sobre a questão do biodireito, ver: DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001.
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A passagem do século XX para o novo milênio reflete uma transição paradigmática da sociedade industrial para a sociedade da era virtual. É extraordinário o impacto do desenvolvimento da cibernética, das redes de computadores, do comércio eletrônico, das possibilidades da inteligência artificial e da vertiginosa difusão da internet sobre o campo do Direito, sobre a sociedade mundial e sobre os bens culturais do potencial massificador do espaço digital. Observa Luiz Carlos C. Olivo que as mudanças substantivas confirmam que estamos na Era Digital, um novo período histórico não mais (...) baseado em bits, mas em átomos ou em coisas corpóreas. Esta é, então, a época do computador, do celular, do conhecimento, da informação, da realidade virtual, do ciberespaço, do silício, dos chips e microchips, da inteligência artificial, das conexões via cabo, satélite ou rádio, da Internet e da intranet, enfim, da arquitetura em rede 26.
Frente à contínua e progressiva evolução da tecnologia de informação, essencialmente da utilização da Internet, torna-se fundamental definir uma legislação que venha regulamentar, controlar e proteger os provedores e os usuários dos meios de comunicação eletrônica de massa. O debate sobre a informatização do universo jurídico divide os “internautas” entre os que se opõem à incidência do Direito na realidade virtual e os que proclamam a aplicação da lei e da jurisprudência no âmbito do ciberespaço. Este universo em expansão constituído de redes de computadores e meios de transmissão abre a perspectiva para o surgimento de “novos” direitos concentrados, como escreve Daniela Beppler, em um Direito Civil da Informática e um Direito Penal da Informática. O primeiro englobaria relações privadas e que envolvem a utilização da informática, como por exemplo, programas, sistemas, direitos autorais, transações comerciais, entre outros. O segundo, o Direito Penal da Informática (...) diz respeito às formas preventivas e repressivas, destinadas ao bom e regular uso da informática no cotidiano 27.
26
OLIVO, Luís Carlos Cancellier de. Aspectos Jurídicos do Comércio Eletrônico. In: ROVER, Aires José (Org.). Direito, Sociedade e Informática. Limites e perspectivas da vida digital. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2000. p. 60. 27 BEPPLER, Daniela. Internet e Informatização: implicações no universo jurídico. In: ROVER, Aires J. (Org.). Op. cit., p. 121. A mesma preocupação é tratada em: OLIVO, Luís Carlos C. Direito e Internet. A regulamentação do ciberespaço. Florianópolis: UFSC/CIASC, 1998. p. 43-56.
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Urge, pois, que o Direito se apresse a regulamentar a ciência da informática, o direito à privacidade e à informação e o controle dos crimes via rede, ou seja, a incitação de crimes, uso de droga, racismo, abuso e exploração de menores, pirataria, roubo de direitos autorais, ameaça e calúnia de pessoas, e tantos outros 28. Em síntese, o debate sobre as fronteiras do Direito e o controle jurisdicional do espaço virtual da informática é extremamente atual, pois, como lembra Luís Carlos C. Olivo, enquanto o termo “ciberespaço”, utilizado por Willian Gibson (1984), enunciava o universo “dos computadores e a sociedade que os rodeia”, a expressão internet difundiu-se nos anos 89/90, a partir da criação da WWW, desenvolvida pelo pesquisador Tim Berners – Lee, do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares, em Londres 29. As fontes legislativas sobre o tema são escassas, destacando-se a existência de inúmeros projetos de leis que estão tramitando no Congresso Nacional, principalmente sobre a punição à pornografia e à violência através de mensagens eletrônicas e da internet 30.
6. Fundamentos dos Direitos Humanos Emergentes Preliminarmente, importa questionar a natureza dos “novos” direitos humanos enquanto necessidades básicas: são produtos de “gerações”, de uma evolução histórica (sucessão linear, gradual e cumulativa) ou são resultantes de um processo de permanente gestação, provocados por reivindicações e conflitos? A problematização da questão permite flexibilizar a concepção de que em cada época há direitos absolutos e específicos, impondo-se a ideia de direitos relativos e que nascem em qualquer momento enquanto necessidades ou exigências valorativas. É preciso ter claro que a realidade contemporânea tem viabilizado constantemente direitos humanos de natureza individual, social e metaindividuais. Até certo ponto, pode-se concordar com Norberto Bobbio de que
28
Observar neste sentido: OLIVO, Luís Carlos C. Direito e Internet. Op. cit., p. 43-70. OLIVO, Ibidem. p. 01. 30 Para o exame mais pormenorizado do Direito com a internet, o ciberespaço e o mundo virtual, pesquisar em: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coords.). Direito & Internet – Aspectos Jurídicos Relevantes. Bauru: EDIPRO, 2000. 29
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os direitos do homem (...) são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. (...). Nascem quando devem ou podem nascer 31.
Ora, se o esquema evolutivo da passagem dos direitos de liberdade para os direitos sociais até a metade do século XX é aceito como correto, a mesma compartimentação, na advertência do Prof. Paulo de T. Brandão, não pode ser aplicada aos “novos” direitos de terceira, quarta e quinta dimensões. Os direitos civis, políticos e sociais que se constituem presentemente não possuem o mesmo conteúdo ou significado histórico de quando foram reconhecidos e positivados nos séculos XVIII, XIX e nas primeiras décadas do século XX 32. A
propósito
e
de
forma
esclarecedora,
veja-se
como
leciona
apropriadamente Paulo de T. Brandão: (...) as gerações de direitos terminam por induzir o errôneo entendimento de que a evolução se dá sempre no sentido da coletivização do exercício dos direitos, o que não corresponde à realidade, (...), o espaço dos direitos de cunho individual continua a existir plenamente, evoluem e até se ampliam, como ocorreu com a tutela da intimidade (...) 33.
Em sua tese do doutorado, o autor entende que o enquadramento dos “novos” direitos em “eras” ou “períodos” não contribui para maior clareza na enunciação dos direitos de quarta e quinta gerações, uma vez que estes contemplam direitos que se inserem entre os direitos tipicamente individuais, sociais e transindividuais. Os direitos decorrentes da biotecnologia e da bioengenharia geram direitos sociais, que podem dizer respeito ao consumidor quando se trata de alimentos modificados (...) 34.
E podem fazer alusão ao meio ambiente, quando determinadas experiências geram desequilíbrio ao ecossistema ou mesmo daqueles direitos que não deixam de ser, sob certo aspecto, de natureza individual, como a eutanásia, o transplante de órgãos ou a conservação artificial da vida 35. Também outro não é o entendimento de Brandão com referência aos “novos” direitos 31
BOBBIO, Norberto. Op. cit. Cf. BRANDÃO, Paulo de Tarso. Op. cit., p. 123-124. 33 BRANDÃO, Paulo de T. Op. cit., p. 126. 34 Idem. 35 Ibidem, p. 126-127. 32
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provenientes da realidade virtual, pois a ação danosa da inserção de vírus no computador de alguém “pode gerar um interesse de cunho meramente individual (...); ou um interesse de ordem coletiva e até mesmo transnacional” 36. Posta a problematização, passa-se, agora, para algumas asserções sobre a fundamentação desses “novos” direitos de natureza humana nos marcos de um cenário globalizado. A tradição linear e evolutiva da afirmação e conquista de direitos não tem deixado de realçar o valor atribuído às “necessidades” essenciais de cada época. Assim se explica a razão da priorização de “necessidades” por liberdade individual, na Europa Ocidental do século XVIII; de “necessidades” por participação política no século XIX; e por maior igualdade econômica e qualidade de vida no século XX. A proposição nuclear aqui é considerar os “novos” direitos como afirmação de necessidades históricas na relatividade e na pluralidade dos agentes sociais que hegemonizam uma dada formação societária. Nesse sentido, como já foi descrito em outro contexto 37, importa assinalar que mesmo inserindo as chamadas necessidades em grande parte nas condições de qualidade de vida, bem-estar e materialidade social, não se pode desconsiderar as determinantes individuais, políticas, religiosas, psicológicas, biológicas e culturais. A estrutura das necessidades humanas que permeia o indivíduo e a coletividade refere-se tanto a um processo de subjetividade, modos de vida, desejos e valores, quanto à constante “ausência” ou “vazio” de algo almejado e nem sempre realizável. Por serem inesgotáveis e ilimitadas no tempo e no espaço, as necessidades humanas estão em permanente redefinição e criação 38. Por consequência, a situação de necessidades e carências constitui a razão motivadora e a condição de possibilidade do aparecimento de “novos” direitos. As mudanças e o desenvolvimento no modo de viver, produzir, consumir e relacionar-se, de indivíduos, grupos e classes podem perfeitamente determinar anseios, desejos e interesses que transcendem os limites e as possibilidades do sistema globalizado, propiciando situações de necessidade, carência e exclusão. Uma projeção para espaços periféricos como o brasileiro demonstra que as 36
BRANDÃO, Ibidem, p. 127. Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. Sobre a Teoria das Necessidades: a condição dos ‘novos’ direitos. In: Alter Ágora. Revista do Curso de Direito da UFSC. Florianópolis, no 01, p. 42-47. Maio/94. 38 Cf. WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 43. 37
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reivindicações e as demandas, legitimadas por sujeitos sociais emergentes, incidem, prioritariamente, em direitos à vida, ou seja, direitos básicos de existência e de vivência com dignidade 39. Claro está, portanto, que o surgimento e a existência de direitos humanos recentes são exigências contínuas da própria coletividade frente às novas condições de vida e às crescentes prioridades impostas socialmente. Enfim, o processo histórico de criação ininterrupta dos “novos” direitos fundamenta-se na afirmação permanente das necessidades humanas e na legitimidade de ação de novos atores sociais. Conclusão O clássico modelo jurídico liberal-individualista tem sido pouco eficaz para recepcionar e instrumentalizar as novas demandas sociais, portadoras de direitos humanos referentes a dimensões individuais, coletivas, metaindividuais, bioéticas e virtuais. Tal situação estimula e determina o esforço de propor novos instrumentos jurídicos mais flexíveis e mais abrangentes, capazes de regular situações complexas e fenômenos novos. É necessário, portanto, transpor o modelo jurídico individualista, formal e dogmático, adequando conceitos, institutos e instrumentos processuais no sentido de contemplar, garantir e materializar os “novos” direitos de natureza humana. Por essa razão, começaram a surgir no ordenamento jurídico nacional novas figuras e novos instrumentos objetivando defender a coletividade, instaurando a tutela de interesses metaindividuais específicos, como são os casos da Lei n° 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), Lei n° 7.853/89 (Proteção às Pessoas Portadoras de Deficiência), Lei n° 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), Lei n° 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) e novos dispositivos sobre os direitos da personalidade introduzidos pela Constituição Brasileira de 1988 (Título II, capítulo I, art. 5°, incisos 5, 9, 10, 14, 25, 27 e 28)40. Certamente, cabe explorar as possibilidades do Direito positivo nacional que, inovadoramente, em sua dogmática constitucional, enuncia e propõe que, 39
WOLKMER, Ibidem, p. 46. Ver: BITTAR, Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. p. 56-57. 40
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além dos direitos e garantias fundamentais claramente expressos no texto (art. 5°, § 2°), não se excluem outros direitos decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Tal reconhecimento do legislador permite compreender a relevância da existência de uma múltipla gama de direitos emergenciais. Em síntese, além das diretrizes abertas pela ordem constitucional (art. 5°, § 2°), cabe buscar não só instrumentos flexíveis advindos de um “novo” direito processual de ação e de uma nova postura dos operadores jurídicos, mas também direcionar a cultura jurídica para as práticas extrajudiciais de resolução dos conflitos e para a pluralidade de produção legal comunitário participativa. Referências Bibliográficas ALDUNATE, José (Coord.). Direitos Humanos, Direitos dos Pobres. São Paulo: Vozes, 1991. p. 191. BEDIN, Gilmar A. Os Direitos do Homem e o Neoliberalismo. 2ª. ed. Ijuí: UNIJUÍ, 1998. p. 3978. BITTAR, Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 73. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 514-528. BRANDÃO, Paulo de T. Ação Civil Pública. Florianópolis: Obra Jurídica, 1996. p. 105. ______. A Tutela Judicial dos “Novos” Direitos: em busca de uma efetividade para os direitos típicos da cidadania. Florianópolis: CPGD, 2000. p. 121-122. [Tese de Doutorado em Direito]. BRUSCHINI, Cristina; HOLLANDA, Heloisa B. de (Orgs.) Horizontes Plurais. Novos estudos de gênero no Brasil. São Paulo: Editora 34/Fundação Carlos Chagas, 1998. CÁCERES, Eliana. Os Direitos básicos do Consumidor – uma contribuição. In: Revista Direito do Consumidor. São Paulo, n. 10, abr./jun. 1994.
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Derecho Moderno e Inversión Ideológica: Una mirada desde los Derechos Humanos *
Norman José Solórzano Alfaro
Sumario: Advertencia Previa. I. Algunos Acercamientos Preliminares a la Inversión Ideológica. II. De la Formación del Discurso en la Modernidad. III. De lo que Ocurre en Sede Axiológica Cuando se Establecen unas Tablas de Valores: el Principio de Jerarquización. IV. De Porqué es Relevante Elucidar la Inversión ideológica de los Derechos Humanos.
La inversión es reducida aquí a la más concisa de todas las fórmulas y engarzada en la imagen de la carne. Yo lo como a él: a mí él. La segunda parte, la consecuencia de aquello que yo he hecho, es entonces precisamente la palabra que designa la carne. El animal que uno ha comido recuerda quién lo comió. La muerte no acabó con este animal. Su alma sigue viviendo y en el más allá se hace hombre. Éste espera paciente la muerte de su devorador. Apenas este último muere y llega al más allá, la situación primitiva se invierte en su contraria. La víctima encuentra a su devorador, lo atrapa, lo corta y se lo come. (Elías CANETI, Masa y poder)
Advertencia Previa El intento por ex-poner a la mirada plural las siguientes reflexiones se hace cargo de su estado fragmentario, parcial y solo provisional, pues la pretensión es tan solo mostrar algunos núcleos problemáticos en el proceso de constitución (de los discursos) del derecho moderno -en el presente texto, visto sobre todo en su momento actual y desde una perspectiva filosófica-. Por eso mismo, los vacíos que quedan evidenciados también son un terreno propicio y una invitación sincera para el diálogo y la convergencia.
*
Síntesis: En el marco de la formación del derecho moderno como discurso, se revisa la lógica de articulación del discurso de los derechos humanos, para localizar en ese proceso la inversión ideológica de la cual son objeto y que atraviesa todo el diseño jurídico moderno.
I. Algunos Acercamientos Preliminares a la Inversión Ideológica La inversión ideológica 1 no es un concepto o noción dogmática, no se desprende del mero análisis de la legislación, según un método de exégesis positiva y sincrónica. Tampoco es una categoría en el sentido aristotélico, pues no alude a ninguna cualidad del ser, por más que el objetivismo de que hacen gala los/las juristas tienda a reificar los conceptos y tratarlos como cosas, como objetos. Tampoco es una categoría en sentido kantiano, pues no se trata de ninguna de las formas del pensamiento o del acto cognoscitivo. En cambio, en términos epistemológicos, adquiere un perfil más preciso 2 en la medida que la vemos referida a una condición de la categorización misma, por cuya virtud ésta última aparece interrumpida o distorsionada; en esa línea, su ocultamiento y los efectos que produce son un real “obstáculo epistemológico” en el sentido de Bachelard 3. También, podemos verla instalada dentro de la teoría de la verdad como una distorsión del “reflejo” (teoría especular modificada 4) entre pensamiento y realidad. Ergo, podemos apostar (en el sentido de Pascal 5) que se trata de una forma adecuada de explicar la dinámica de los procesos sociales en el tiempo (por eso diacrónica), pues hasta el momento es la forma que mejor explica cómo se van asentando, anquilosando, en el proceso de normalización las instituciones, valores, normas, etc. Pero, ¿no viene a explicar lo mismo que, por ejemplo, la noción de “institucionalización”? Consideramos que con la noción de “inversión ideológica” se dice algo más que con la de “institucionalización”, ya que esta última sólo da 1
Esta es la noción que Franz J. HINKELAMMERT ha utilizado para abordar el problema de la realización frustrada o de la perversión que se esconde en los discursos y las prácticas hegemónicos; asimismo, es la visión que pretendemos introducir en la reflexión jurídica. Por otra parte, Hinkelammert elabora esta perspectiva a partir de sus análisis de la teoría económica, los diálogos economía – teología, y la reflexión filosófica en la más genuina línea de la razón crítica, y con ella ha puesto en evidencia la inversión ideológica operada al interior del discurso de los derechos humanos. 2 Siempre es sinuosa, huidiza como su padre discurso y su madre ideología. 3 Al respecto véanse BACHELARD, Gastón (1972), La formación del espíritu científico (título original La formation de l´esprit scientifique, traducción de José Babini), Siglo XXI, Buenos Aires; (1973), Epistemología (título original Epistémologie, textos escogidos por Dominique Lecourt y trad. de Elena Posa), Anagrama, Barcelona. 4 Al respecto véase SCHAFF, Adam (1995), Historia y verdad, Grijalbo, México. 5 Al respecto véase Agnes HELLER (1999), Una Filosofía de la historia en fragmentos (título original A Philosophy of History in Fragments, Blackwell Publishers, Oxford, trad. de Marcelo Mendoza Hurtado), Gedisa, Barcelona, p. 27 ss.
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cuenta, o bien del hecho sincrónico, de la permanencia de una mediación o concreción histórica, o bien del camino que lleva a la sedimentación o normalización, pero, de alguna forma, abandona o suspende el análisis y no sigue a esa mediación o concreción histórica normalizada en su proceso de absolutización y de proscripción de otras alternativas posibles. De otra manera: con institucionalización sólo captamos el proceso que lleva hasta la normalización (la historia previa a), y no contiene un elemento crítico (re-visión) que provea a su evaluación permanente (particularmente que se haga cargo de la historia posterior a). En cambio, con la noción de “inversión ideológica” (y la exigencia de su elucidación) captamos ambos momentos, o, lo que es lo mismo, se capta el momento de normalización y se activa el elemento crítico (autopolémica Bachelard) frente a su absolutización. Por otra parte, otros antes que nosotros han captado la inversión ideológica en el derecho 6, pero no ha sido ampliamente desarrollada. En la medida que esta noción de inversión ideológica es parte del instrumental teórico complejo, diverso y amplio de un pensamiento alternativo (el pensamiento de liberación), y habida cuenta de que no puede haber ciencia del derecho sin historia (ambas forman parte de una y la misma cosa), intentamos o ensayamos hacer una traducción de la noción “inversión ideológica” (en cuanto idea del pensamiento de liberación y vinculada a la historicidad de las producciones humanas) al campo jurídico, como forma de (aporte o insumo para) superar la crisis del derecho y de la razón jurídica 7. Asimismo, porque no nos satisfacen los modelos sistémicos, autopoiéticos, funcionalistas y afines, para dar cuenta de nuestro objeto y función en cuanto juristas 8; en fin, porque en el caso particular de nuestra adscripción a los postulados del pensamiento garantista, consideramos que un enraizamiento (exclusivamente) analítico y aspiración sistemática de dicha perspectiva puede 6
Por ejemplo, Riccardo ORESTANO (1997, Introducción al estudio del derecho romano -trad. y notas de Manuel Abellán Velasco-, Universidad Carlos III de Madrid-BOE, Madrid, p. 350) refiriéndose a “una “inversión” de la relación entre “derecho subjetivo” y “derecho objetivo”” como parte de una “gran transformación de fondo entre 1800 y 1900”; o el mismo Kelsen, aunque sin verla. No obstante esos antecedentes, la lectura que hacemos aquí es más amplia y su procedencia es desde los márgenes. 7 Sobre esta cuestión de la “crisis de la razón jurídica”, véase Luigi FERRAJOLI (1999), Derechos y garantías. La ley del más débil, Trotta, Madrid. 8 No es sólo cuestión de preferencia, teórica en este caso, sino de pertinencia. No obstante, esto no nos inhibe de utilizar, en algunos casos, elementos de los modelos criticados, pero siempre bajo sospecha y de manera provisional.
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operar como una camisa de fuerza, por lo cual es oportuno establecer una vigilia teórica permanente. 9 De esta forma, elucidar la inversión ideológica resalta como: 1) elemento hermenéutico: hay que cerrar la cisura entre teoría y práctica. Este esfuerzo tiene antecedentes en la tradición jurídica occidental, como la que discurre por la vía de los antiguos romanos, que con el término ars, con el cual calificaban el derecho (ius), traducían los términos griegos tecné y theoría; 2) factor crítico: en tanto las exigencias para la superación de la crisis del derecho y de la razón jurídica pasan por la superación (superación no significa abandono o desecho, sino reutilización, reubicación a partir de...) de los métodos positivistas (exegéticos y dogmáticos). 3) Además, se puede llegar a una mejor comprensión de los problemas reales o la condición misma del derecho, que es su “reversibilidad” (Gallardo) o condición paradojal. De forma que el momento de elucidar la inversión ideológica debería ser incorporado, en términos estrictamente teóricos, en el mismo acto de categorización de la “experiencia jurídica” (Capograssi, Orestano), en cuanto que es el material base de toda la reflexión jurídica. Para las consideraciones que aquí se hacen, el ocultamiento o invisibilización de la inversión ideológica resulta un “obstáculo epistemológico” (Bachelard), pues es cerrarse a la “paradoja de la contingencia” (Heller), siendo la contingencia la condición moderna, por ende, la condición del derecho y su ciencia. Por eso insistimos en la incorporación de este momento de elucidación o discernimiento, como dispositivo crítico-evaluativo, ya no sólo como mirada externa, sino como re-visión al interior del derecho mismo. En fin, si categorizamos los derechos humanos (todo derecho) como experiencia jurídica, la inversión ideológica aparece cuando se articula un espacio o “campo” 10 de 9
Mantener activa dicha vigilia teórica en ningún caso es garantía de que no se incurrirá en los defectos criticados, pero al menos es una muestra de honestidad y humildad intelectual, que permite reconocer la propia contingencia del pensar y de lo pensado. 10 La noción de “campo” es debida a Pierre BOURDIEU, para quién “... el campo es la sede de un régimen de racionalidad instituido en forma de disposiciones racionales que, objetivadas y manifestadas en una estructura determinada del intercambio social, suscitan la complicidad inmediata de las disposiciones que los investigadores han adquirido, en gran parte, gracias a la experiencia de las disciplinas de la comunidad científica. Estas disposiciones los sitúan en estado de construir el espacio de los posibles específicos implícitos en el campo (la problemática) en forma de un estado de la discusión, de la cuestión, del saber, encarnado a su vez por agentes e instituciones, figuras destacadas, conceptos terminados en –ismo, etcétera. Estas disposiciones
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intereses y luchas, que recién cuando se normalizan tienden a absolutizarse sobre la base de la exclusión de cualquier otra alternativa posible; por tanto, supuesto el carácter democrático de la experiencia jurídica y en virtud del principio de secularización, ésta debe ser permanentemente interpelada y en ella elucidada su potencial inversión ideológica con lo cual, a la vez, se logra abrir el campo a la pluralidad de alternativas posibles 11. Nuestra propuesta Si categorizamos experiencia jurídica, los derechos la inversión ideológica humanos como un espacio O campo de intereses y luchas que recién normalizadas tienden a absolutizarse, por eso conforme al carácter democrático de dicha experiencia jurídica y en virtud del principio de secularización, tiene que ser permanentemente interpelada
Los referentes teóricos Capograssi; Orestano Hinkelammert
aparece recién cuando se articula
Bourdieu Milton Santos, Herrera Flores Nuestra denuncia de la absolutización de la contingencia normalizada Capella; Barcellona Ferrajoli Crítica de la ley sobre la base de una subjetividad libre, de Hinkelammert
Esquema I II. De la Formación del Discurso en la Modernidad Continuando con esta esquemática revisión de la idea de inversión ideológica, surgen más preguntas: ¿cómo opera esa inversión ideológica? ¿cómo la podemos reconocer? ¿dónde aparece? Para intentar responder debemos revisar la forma en la cual se articulan los discursos en esta modernidad occidental capitalista. En la perspectiva de M. Foucault 12, la modernidad ha instaurado una serie de procedimientos de control y delimitación del discurso, algunos externos (como la exclusión) y otros internos (como las reglas). les permiten hacer que funcione el sistema simbólico propuesto por el campo de conformidad con las reglas que lo definen, las cuales se les imponen con toda la fuerza de una imposición a la vez lógica y social” (cfr. (1999), Meditaciones pascalianas (título original Méditations pascaliennes, Éditions du Seuil, París, 1997, trad. de Thomas Kauf), Anagrama, Barcelona, p. 150-151 –las cursivas son del original). 11 Al respecto véase GARCIA INDA, Andrés (1997), La violencia de las formas jurídicas. La sociología del poder y el derecho de Pierre Bourdieu, Cedecs, Barcelona, p.151. 12 Al respecto véase de FOUCAULT, Michel (1999), El orden del discurso, Tusquets, Barcelona; asimismo véanse (1984), La verdad y las formas jurídicas, Gedisa, México; (1988), Un diálogo sobre el poder y otras conversaciones, Madrid, Alianza; (1996), Las palabras y las cosas. Una arqueología de las ciencias humanas, (título original Les mots et les choses, une archéologie des sciences humaines, Gallimard, 1966, trad. de Elsa Cecilia Frost), Siglo XXI Editores, México.
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Aparecen, entonces, “lo prohibido” (ej., la veda de la sexualidad y de la palabra en la política; el poder decir no es sólo la narración de las luchas o los sistemas de dominación, sino el medio y la finalidad de esa lucha), “lo separado” (ej., la diferencia y oposición entre la razón y la locura, con el consiguiente rechazo de esta última) y “lo opuesto” (ej., entre lo verdadero y lo falso; se establece una nueva voluntad de saber en cuanto voluntad de verdad, que trasciende el ejercicio del poder y deviene discurso científico), entre los primeros. De esta forma, no hay una gratuidad en el carácter oposicional y posicional de los discursos de la modernidad. Más adelante, Foucault discierne las “nociones reguladoras” de la formación del discurso: “el acontecimiento”, “la serie”, “la regularidad” y “la condición de posibilidad”. Basten, por ahora, estas breves referencias. Por otra parte, Franz J. HINKELAMMERT 13 ha señalado como el poder, a través de la recuperación funcional del discurso de los derechos humanos, que en principio son postulados y reclamados por los movimientos de emancipación (siglos XIX-XX), ha desplegado un potencial de muerte nunca antes alcanzado. Diciendo vida, democracia, libertad, etc., el poder (hoy de carácter imperial) produce muerte, exclusión y dominación. Esta inversión ideológica se hace a través de la “abstracción trascendental” de las demandas de los sujetos concretos que las postulan y reclaman, y la absolutización de las concreciones históricas en que encarnan esos reclamos. Ahora bien, teóricamente hablando, en la medida que la inversión ideológica es una condición de los hechos del poder, esta debe ser explicada 14. Siguiendo una metáfora cibernética, ella es la trama que une unos dispositivos discursivos o claves de lectura (hermenéutica), que están instalados en el imaginario y se activan, particularmente, en contextos de absolutización ideológica. En la línea de Foucault (en compañía de Bourdieu), podríamos decir que se trata de la textura del “campo” (contextualidad) donde se despliegan unas “nociones reguladoras” del discurso, por ende, de las prácticas que promueven 13
Al respecto véanse del mismo autor, entre otros, las siguientes obras: (I-1990), Crítica a la razón utópica, DEI, San José, 275 págs. (de esta obra hay una reciente edición para el público español: (2002), Crítica de la razón utópica, Desclée de Brouwer, Bilbao, ed. rev. y ampl., 404 págs.; pero aquí utilizamos la edición original); (II-1990), Democracia y totalitarismo, DEI, San José, 2ª ed., 273 págs.; (1991), La fe de Abraham y el edipo occidental, DEI, San José, 2ª ed., 120 págs.; (1995), Cultura de la esperanza y sociedad sin exclusión, DEI, San José, 387 págs. 14 Con el sintagma “inversión ideológica” también describimos los efectos de una forma de ejercicio del poder.
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esos discursos que, a la vez, lo sostienen. En el “campo” donde se despliega el discurso jurídico podemos encontrar operantes u operativas esas “nociones reguladoras”; así:
Noción reguladora el acontecimiento
Discurso jurídico El “hecho jurídico” producto de un “efecto”; el “acto administrativo”; la “sentencia”. La enunciación secuenciada de los “hechos fuentes” o “fuentes normativas”: constitución, tratados internacionales, leyes ordinarias, costumbre, jurisprudencia, doctrina y principios generales; también la serie en la construcción dogmática: término → noción o concepto → instituto → principio general. Típicamente la norma jurídica. Validez – vigencia; legitimidad – eficacia.
la serie
la regularidad la condición de posibilidad
Esquema II Nótese, por ejemplo, la conformación binaria de las nociones reguladoras del discurso jurídico; ello responde a la racionalidad dominante en la modernidad capitalista que, particularmente a partir de la instauración del mecanicismo y la visión causalista respecto de la naturaleza (causa – efecto), y ya en el siglo XIX con el instrumentalismo del cientificismo en auge, tendió a reducir la realidad y la complejidad de la acción a términos de medio – fin, cuyo remate será dado por la epistemología
de
M.
Weber.
Asimismo,
es
el
lenguaje
que
asumen,
finisecularmente (siglo XX), las tecnologías cibernéticas (ej., informática, inteligencia artificial, algunas versiones del análisis sistémico, etc.) y las propuestas sobre la realidad virtual. Ahora bien, en contextos de absolutización ideológica, en virtud de la inversión ideológica se activan unos dispositivos 15 (del imaginario pre-moderno) que a nivel de la teoría general se pueden percibir ya en el predominio cuasi absoluto del normativismo formalista. He dicho absolutización ideológica, y considero que esta es una constatación que obtenemos con sólo dar una mirada alrededor y escuchar como se repite que “ya no estamos en tiempos de los grandes relatos”, pues se ha decretado “el final de las ideologías”, 15
Lo más importante es que estos dispositivos corresponden a una visión mítica o mitologizada pre-moderna, por ende, no secularizados. Hay que distinguir entre el mito como mistificación absolutizadora (no secularizado) y el mito como pasaje de traducción para la diversidad de experiencias posibles. La secularización reubica y encuentra la utilidad del mito, cuya potencia se puede verificar, entre otros asuntos, en el diálogo intercultural.
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etc. Pero es lo cierto que, frente a esa contestación de las ideologías (en realidad sólo de algunas ideologías), se pretende imponer un discurso aún más avasallador, a saber, que ya no hay ideologías, lo cual es una ideología única que niega su carácter como tal, y esto sólo ocurre cuando se pierde el horizonte histórico y la noción de contexto que llevan a un estadio de absolutización (la Historia es rica en ejemplos al respecto). Cuando el poder vive la ilusión de su absolutización es cuando, paradójicamente, se vuelve más realista, pues ya no tiene que ocultar su carácter opresivo-agresor. Es sólo en ese momento cuando recién puede decir lo que realmente hace; así, puede dejar su tono utópico (estamos construyendo el único mundo posible...) y adquiere un talante antiutópico (quien pretende construir el cielo en la tierra, construye infiernos...). Mas también es cierto que el antiutopismo es un utopismo no reflexivo, incapaz de asumir su respectividad, de hacerse cargo de sí -en el sentido de Ellacuría-. Por eso hace su aparición el discurso cínico 16, que al no ser un discurso tradicionalmente ideológico, también resiste la crítica ideológica tradicional y ante el cual sólo cabe enfrentarlo (Hinkelammert), no sólo denunciando su destructividad, sino postulando un principio distinto a aquel que defiende (por ejemplo, frente al principio de eficiencia empresarial postular los principios de solidaridad, de vida digna...).
Volviendo a las relaciones de nuestro Esquema II, nos encontramos con que si establecemos las correspondencias de las nociones reguladoras en el discurso jurídico con sus formas invertidas ideológicamente, nos topamos con la situación siguiente:
Noción reguladora el acontecimiento
Discurso jurídico el hecho jurídico la sentencia
el acto administrativo la sentencia
Inversión ideológica en el discurso jurídico Fixismo (ej. la crítica de 17 Fachin a la construcción del hecho jurídico en el derecho privado) El acto supremo, la burocratización ¿La incuestionabilidad absoluta de la cosa juzgada?
16
Por ejemplo, discurso cínico es el que dice “los derechos humanos son un postulado del Estado de derecho que, a su vez, no los puede realizar; entonces, bastaría con que no los postule para que no incurra en su incumplimiento”, o también cuando se afirma que “la economía es, en realidad, un campo de batalla, y no hay batallas en las que algunos no mueran”. 17 Cfr. FACHIN, Luiz Edson (1988), “O “aggiornamento” do Direito Civil Brasileiro e a confiança negocial” en FACHIN, Luiz Edson coord. (1998), Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporaneo, Renovar, Rio de Janeiro, p. 115-149; (2000), Teoria crítica do Direito Civil, Renovar, Rio de Janeiro, 355 págs.
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Noción reguladora la serie
Discurso jurídico
Inversión ideológica en el discurso jurídico la enunciación secuenciada La “mesa patas arriba” de las “fuentes normativas” (Fix Zamudio) o el estado decretal (Zaffaroni) la serie en la construcción Conceptualismo dogmática: término – dogmático o normativismo noción o concepto – instituto - principio la regularidad típicamente la norma Aquí se instalan jurídica (hecho – efecto) secuencias tales como: crimen – castigo (que interfiere en la interpretación de las normas particulares, principalmente en el derecho penal, pero no sólo en este); amigo – enemigo (clave de lectura de los derechos humanos por parte de los poderes que enuncian derechos); vida – muerte (ambos extremos son sacados del círculo natural de la vida, y se reprocha como fatalidad de la dinámica de las emancipaciones) la condición de Validez Formalismo logicista posibilidad Límite de lo que se puede (principio de legalidad paleopositivista) Estatal
Vigencia
Legitimidad Eficacia
Eficientismo (el reclamo del análisis econométrico/cuantitativo del derecho)
Esquema III Evidentemente, sin obviar lo que hemos sostenido sobre la necesidad de estar atentos/as permanentemente a las condiciones históricas en las que la imaginación jurídica elabora sus constructos teóricos (ej., “norma”, “hecho jurídico”, “fuente normativa”, etc.), lo que aquí se quiere enfatizar es que, si además de olvidar esa condición nos ubicamos en contextos de absolutización ideológica (como el que vivimos en este final de siglo XX y principio de siglo XXI), nos encontraremos esos constructos en su forma invertida (generalmente identificadas como –ismos diría BOURDIEU– cfr. (1999), p. 150-151). De esta manera, no solo resultan estériles respecto de su utilidad y función práctica (recordemos, con Orestano, que las elaboraciones jurídicas son para operar); 38
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luego, tampoco pueden dar cuenta de las innovaciones del/en el mundo, sino por el contrario, tienden a imponerse como formas cuasi-sacralizadas e irrecusables (naturalismo), que pesan como loza sobre cualquier pretensión de satisfacción de necesidades concretas (peor si éstas se entienden como contrarias al status quo) y operan como obstáculo al cambio societal.
III. De lo que Ocurre en Sede Axiológica Cuando se Establecen unas Tablas de Valores: El Principio de Jerarquización. Dadas las obvias limitaciones de espacio y oportunidad, y admitiendo la diversidad de planos que podemos distinguir analíticamente en el discurso jurídico (o bien, los distintos discursos sobre lo jurídico), en lo que sigue nos centraremos en el plano axiológico 18. En este registro, es menester revisar, aunque sea rápidamente, un aspecto en el cual convergen las diversas corrientes doctrinales sobre el fenómeno axiológico, y es que todas (o casi todas) se plantean el asunto de las escalas o tablas en que aparece dispuesto el conjunto de los valores (orden jerárquico). Ese conjunto de valores “[h]abitualmente, están unidos en “tablas” o “escalas” de valores y existen situaciones en que los valores concretos pueden ser los mismos, idénticos, pero dispuestos de manera diferente –gradualmente- en cada “tabla”, por lo que sucede que, desde su posición relativa, unos adquieren relieve respecto a otros” (ORESTANO, p. 458 –los entrecomillados son del origina). Esto puede ser recibido sin mayor problema; pero se complica cuando, con una visión exclusivamente oposicional (que oculte su contraparte posicional) y desde la perspectiva de una racionalidad instrumental, se considera la relación entre los valores exclusivamente según el esquema medio – fin. También aparece oscurecida la cuestión cuando se habla de una supuesta contradicción entre valores, en virtud de la cual un valor (considerado absoluto) debe ceder excluyentemente frente a otro (igualmente considerado absoluto). Sin embargo, para todos los efectos: (1) que orden jerárquico de los valores y contradicción de valores sean cuestiones análogas tiene un efecto eminentemente ideológico (en sentido de falsificador y oscurecedor), pues la contradicción entre valores se da, si y solo si, se los toma en ese presunto “carácter absoluto”, y, (2) siempre que bordeamos el terreno de lo “absoluto” (ej., “valor absoluto”; “igualdad absoluta”; 18
“[S]e sabe muy bien, pero muchos siguen sin oír por este oído- ha prevalecido la tendencia a considerar (o hacer ademán de considerar) la cuestión de los valores como extraña al interés del jurista, de aquel que quiera ser “verdadero” jurista, en una concepción cada vez más inhibida e inhibidora de sus tareas” ORESTANO, p. 458 –el entrecomillado es del original).
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“paz absoluta”; “libertad absoluta”; “justicia absoluta”, etc.), y lo vemos o asumimos como aspiración a realizar, estamos en el ámbito del idealismo, aunque ello no se quiera reconocer y se pretenda ocultarlo de mil formas. De ahí que, por nuestra parte, desde una perspectiva de la realidad histórica, no nos ocupamos de esas cuestiones.
La cuestión radica en la disposición (jerarquía) de los valores en el universo axiológico. En todo caso, si se lo quiere ver desde la óptica de la relación medio – fin, si un valor deviene medio para alcanzar otro valor, éste último se constituye como fin y, por tanto, en valor superior respecto del primero; pero ambos valores ocuparán siempre un lugar en esa disposición jerárquica. Además, sucesivamente se podrá establecer unas cadenas medio – fin más o menos largas, más o menos complejas, en las cuales unas veces un valor aparecerá como medio y otras como fin y, por ende, como superior respecto de aquel que le sirve de medio, todo de conformidad con cada corriente doctrinal. Esto es así aún cuando cada corriente doctrinal, a su vez, considere superior uno u otro valor. Esta relación de mutua dependencia y alternancia entre unos valores y otros está dada por la insuprimible respectividad de cada valor y de todos entre sí, de modo que aún desde la perspectiva medio – fin, para que haya un valor superior debe haber un valor subordinado y a la inversa; por eso mismo, en términos de escala jerárquica, no puede haber valores excluidos (podrán ser desplazados, postergados, minusvalorados, etc., pero no eliminados: exclusión hoy día, cuando ya no hay un afuera del sistema, significa eliminación), sino que todos deben tener una posición, de lo contrario el sistema deviene absurdo: un valor exclusivo, único, que haga caso omiso de su respectividad (lo que de todos modos es irrelevante para que sea igualmente en respectividad), no es valor sino prepotencia.
De esta forma, si nos atenemos a las opiniones doctrinarias mayoritarias, se establece siempre una jerarquización (tablas de valor) entre los diversos valores en juego; jerarquización que –esto no es menos importante- siempre es convencional y funcional al contexto en que se inscribe la doctrina o tendencia en cuestión 19, y cuyo principio ordenador (juicio normativo: conforme al cual...) se establece a partir de una decisión 20 sobre cuál es el valor fundamental. Luego, 19
Esto es cierto inclusive para las tendencias objetivistas, dentro de las cuales unas priman unos valores frente a otros, y todas alegando que son valores en sí, ontológicamente consistentes, pero cada una con su propia tabla de valores. 20 No se trata de un decisionismo cognitivo-individualista, por el cual los individuos conocen y deciden; se trata más de un accionar moral (universal) en tanto que dato incorporado en los sujetos por el contexto socio-cultural histórico.
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éste valor fundamental es el que opera como principio de jerarquización 21; a partir y en función de éste principio de jerarquización todos los demás valores, subordinados y en distinto grado de cercanía a él, adquieren validez. En el ámbito pragmático, la misma vigencia de los valores individualizados o específicos (ej., igualdad, belleza, libertad, honestidad, solidaridad, eficiencia, etc.) estará dada por la coherencia y funcionalidad respecto a la manutención del valor fundamental cualquiera que éste sea. Así,
por
ejemplo,
respecto
a
la
argumentación
kelseniana 22,
específicamente vista, podemos arriesgar la consideración de que, por una pretensión (no menos válida por excesiva) analítica y antimetafísica, no sólo asume los valores en su aspecto semántico y meramente conceptual, sino que desplaza la discusión axiológica del punto de mira teórico, obviando el contexto de producción de la misma teoría, por tanto, obvia el problema del fundamento de los valores, del derecho objetivo o positivo, de los derechos humanos, etc. De esta forma, la teoría deviene infundada, pero no por faltarle un fundamento teológico, metafísico o racional (un prius, como era la pretensión de los iusnaturalismos escolástico, metafísico o racionalista), sino porque tiene los pies de barro; es decir, porque se construye en abstracto (que es distinto a construir abstractamente a partir de), con aparente 23 prescindencia de una praxis, que es su punto de partida (como realidad que le trasciende), su camino y su punto de llegada (como empiría en cuanto realidad trascendente a que se accede mediante 21
La intuición de este principio de jerarquización rompe con las tesis sustancialistas u ontologicistas, pues evidencia que cada orden jerárquico, cada tabla de valores, no es ontológicamente fija, inmutable, sino que también proceden de una acción humana, uma convención (como convención es el lenguaje que se utiliza para referirse a ella y para expresarla). 22 Es llamativo el hecho de que, por ejemplo, Kelsen aplica dos raseros distintos para los valores. Respecto de los valores de justicia admite que hay una contradicción entre unos y otros; pero respecto de los denominados por él valores objetivos o juicios de valor jurídico, aquellos que expresan la relación entre una conducta y una norma general, aún cuando sostiene su jerarquización, no detecta ninguna contradicción. “Los juicios de valor jurídicos presentan una estratificación que corresponde a la de las normas jurídicas. Dado que cualquier juicio de valor jurídico expresa una relación entre una conducta humana y una norma jurídica, estos juicios forman un sistema que presenta la misma estructura que el sistema de normas jurídicas” (cfr. KELSEN, Hans (1991), ¿Qué es justicia? (título original What is Justice? Justice, Law, and Politics in the mirror of Science, University of California Press, Berkeley, 1971, trad. de Albert Calsamiglia), Ariel, Barcelona p. 141). Lo cierto es que aun cuando él ve una jerarquización, se ciega al principio que la opera y la ve como un automatismo reflejo; eso sí, a cuenta de no admitir la absolutización de los valores jurídicos, pero sí los de justicia, cosa que no termina por explicar adecuadamente. 23 Decimos aparente, porque ni aún cuando ingenuamente se pretenda hacerlo así, opera de esa forma, por lo cual su pureza y asepsia valorativa deviene en ideología, en ocultamiento de la realidad y falseamiento de la teoría misma.
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conceptos universales, para actuar). Consiguientemente, procediendo de esa forma: 1. se llega a despojar a los derechos humanos de su condición de modos de vida (dimensión práctica en la que adquieren pertinencia los valores) y se los reduce a meras cuestiones valóricas; 2. se transforman las diferencias entre un valor y otro en oposiciones irreductibles 24 según el esquematismo bien – mal 25, 3. que se traduce en la secuencia amigo – enemigo como estrategia de la inversión ideológica de los derechos humanos. ***
Volviendo a un registro más amplio, ubicarnos en esta dimensión axiológica, como lugar privilegiado (pero no exclusivo ni suficiente), para afrontar el problema de los derechos humanos, resulta útil no sólo porque facilita la comprensión de derechos humanos como horizonte utópico, lo cual apunta al corazón del derecho como valor, sino porque nos revela el mecanismo que activa su inversión ideológica. En ese sentido, si trasladamos el esquema que traza el principio de jerarquización en el conjunto de los valores al campo de los (discursos sobre) derechos humanos tenemos que las opiniones más consolidadas sostienen que las normas conforme a modelos [valores: NJSA] de Justicia varían entre los individuos y a menudo son mutuamente irreconciliables (KELSEN (1991), p. 149), o bien, que los “derechos del hombre” en la medida que encarnan valores antinómicos no pueden realizarse todos a la misma vez, sino que [p]ara realizarlos se necesitan concesiones entre las partes (BOBBIO (1991), p.56). Asimismo, el hecho de que coexistan valores distintos y contrapuestos, hace que aparezcan los sistemas de valores. 24
El mismo Norberto BOBBIO lo confirma: “Los valores últimos, además, son antinómicos, no pueden realizarse todos a la vez” (cfr. (1991), El tiempo de los derechos, Sistema, Madrid, p. 56). 25 Podemos decir que esta inversión ya la veía BOBBIO cuando afirmaba: “El fundamento último no es ulteriormente discutible, así como el poder último debe ser obedecido sin discusión. Quienes resisten al primero se colocan fuera de la comunidad de las personas racionales, y los que se rebelan frente al segundo se colocan fuera de la comunidad de las personas justas o buenas” ((1991), p. 54); pero lo cierto es que tampoco llevó ese argumento a su misma reflexión y, de alguna manera, terminó deslizándose por el antiutopismo irreflexivo.
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Cualquier sistema de valores, especialmente un sistema de valores morales y la idea central de Justicia que lo caracteriza, es un fenómeno social que resulta de una sociedad y, por tanto, difiere según la naturaleza de la sociedad en que se presenta (KELSEN (1991), p. 42).
Por consiguiente, todo sistema de valores tiene una “idea central (...) que lo caracteriza”; un valor supremo que le da sentido y orden; este es su principio de jerarquización que, tratándose de derechos ‘conforme a modelos de Justicia’” (Kelsen), se constituye entonces en el derecho fundamental a partir del cual se establecen todos los demás derechos 26. En esa medida, como cada derecho humano específicamente considerado adquiere validez y significación según su posición respecto del derecho fundamental, su propia realización está determinada por su funcionalidad respecto a la realización y preservación de ese derecho fundamental. Luego, es posible que la realización de (acciones conforme a) unos derechos humanos se vean postergados frente a otros, inclusive la realización de todos ellos frente al derecho fundamental, toda vez que la realización de aquellos derechos humanos contraríe o ponga en peligro (en realidad, que cuestione) el derecho fundamental establecido. Por ejemplo, si admitiéramos que el valor fundamental en una determinada sociedad es el orden y la paz sociales (lo cual sólo ocurre en los modelos abstractos, como suelen ser los jurídicos), entonces, frente a una situación de inestabilidad política y desorden social, se privilegiarán los valores de seguridad frente a – digamos- los de libertad. En este punto, donde se puede postergar unos derechos humanos frente a otros y todos frente al derecho fundamental, que es su principio de jerarquización, es donde se instala y opera la inversión ideológica de los derechos humanos: en tanto que hay unos derechos humanos que pueden ser relegados, hasta su negación, si su realización atenta contra el derecho fundamental que, en última
26
Adviértase que la expresión “derecho fundamental” no está calcada del uso común en el campo jurídico, como aquel valor positivamente plasmado en un texto formal (legislativo, constitucional, internacional); tampoco es directamente equiparable al sentido que le da Ferrajoli a ese término (cfr. FERRAJOLI (1999) y et al. (2001), Los fundamentos de los derechos fundamentales, Trotta, Madrid). Mas bien, “derecho fundamental” aquí aparece referido al valor-interés que prima sobre todos los otros, les da consistencia y opera como su principio de jerarquización; en la medida que esta primacía no es natural, sino histórica, aparece la exigencia de elucidar constantemente cuál sea el valor-interés fundamental en cada formación socio-cultural conforme a derecho.
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instancia, es el que les da sentido y validez 27. Llevemos eso al plano pragmático. Así, tenemos que cualquier decisión sobre cuál ha de ser el derecho fundamental siempre aparece circunscrita y vinculada a un determinado contexto social, político, económico, cultural, en fin, histórico. Aún más, esa decisión-elección no sólo está vinculada a un determinado modo de organización de la vida social, es decir, a un determinado orden de relaciones de producción y reproducción sociales, sino que las condiciones de factibilidad para la realización de los derechos humanos están dadas por la medida del producto social, por la riqueza social real generada por/en ese orden de relaciones de producción. Por consiguiente, la contingencia de esa decisión (referida tanto a la elección del derecho fundamental, cuanto al modo de satisfacción-realización de éste) afecta igualmente a todos los derechos humanos que dependen de aquel derecho fundamental. Asimismo, el derecho fundamental que en definitiva habrá que proteger, inclusive como garantía de validez y realización de todos los demás derechos humanos, será aquello que garantice la realización de (acciones conforme a) derechos humanos. En el modelo abstracto –insisto en este carácter de abstracto– del ejemplo anterior, sería el orden y la paz sociales como posibilidad y garantía de las libertades individuales y sociales; en el plano real, más bien se trata del orden de relaciones de producción y reproducción que generan aquel producto social. Por
consiguiente,
en
la
medida
que
las
llamadas
“democracias
occidentales” están vinculadas a un sistema económico específico 28, entonces podemos ver cual es el valor-interés fundamental que pretende 29 garantizar todos los derechos humanos: las relaciones capitalistas de producción y, en último término, el mercado capitalista. Esto lo dice tanto la teoría económica cuanto la teoría jurídica que con su construcción de la idea del “sujeto de derecho” o 27
Definitivamente, es una forma diferente y novedosa de intentar responder a la pregunta de por qué no se ha configurado un sistema de garantías efectivas para la realización de los derechos sociales o colectivos, como sí se ha hecho respecto de los derechos individuales. 28 Finisecularmente se trata del capitalismo financiero y de consumo de masas. 29 Debemos tener en cuenta que esta pretensión no es sólo la de arrogarse la condición de garantía de los derechos humanos, sino que alcanza a la propia definición y elección de lo que se considera derechos humanos. Luego, también podemos entender como, en la arrogancia de las ilusiones del poder neoimperialista, por ejemplo, son derechos humanos los intereses de las compañías petroleras afines a ese poder neoimperial implicadas en las zonas del Golfo Pérsico y del Mar Caspio, no así las personas humanas que puedan ser masacradas con tal de asegurar la libertad (de acción) de tales empresas en esas regiones.
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“persona jurídica” ha hecho un desplazamiento del cuerpo humano viviente y con necesidades, hacia la idea de un sujeto abstracto, con abstracta igualdad, es decir, sin necesidades por satisfacer. Esta subjetividad (sin sujeto) plasma adecuadamente, para la teoría económica imperante o neoliberal, en la idea del individuo consumidor, y para la teoría jurídica en el cuerpo de la empresa (capitalista) moderna. *** Por otra parte, hay una tendencia muy humana de pretender fijar de una vez y para siempre las diversas concreciones históricas (normas, instituciones, costumbres, formas de organización, etc.). En lo que llevamos visto, esa tendencia trataría de fijar de forma permanente los particulares órdenes de las relaciones sociales de producción y reproducción de la vida, aún a cuenta de descontextualizarlas; esto deriva en la pretensión de absolutizar los resultados de la acción (humana), que es siempre coyuntural, contextual. Por consiguiente, la inversión ideológica aparece como producto de la contingencia histórica, o bien, de una manera más radical, la inversión es la forma que adquiere la contingencia histórica cuando una de las concreciones o realizaciones de la acción humana se ha estabilizado o institucionalizado y tiende a absolutizarse frente a otras posibles concreciones a las cuales declara inválidas o, más radicalmente, imposibles (cfr. HINKELAMMERT (I-1990), p. 27). No obstante, esto no significa que esa inversión sea necesaria, pues esto ya supondría una apuesta, una toma de posición, en fin, una valoración. Es decir, la inversión ideológica aparece, si y solo si, se pretende absolutizar una concreción histórica específica de la acción humana (también específicamente orientada). Por eso, en la medida que se puedan interpelar, revisar, criticar, denunciar, y, en definitiva, superar las concreciones históricas, del tipo que sean (instituciones, normas, etc.), es que recién podemos enfrentar esa inversión ideológica. Esto es, actuar conforme a los principios de secularización (contingencia) y democrático (la duda). Todavía más, en el intersticio que abre esta posibilidad se instala un espacio para la libertad 30.
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En un sentido similar, cfr. BOURDIEU (1999), p. 309-312.
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IV. De Porqué es Relevante Elucidar la Inversión Ideológica de los Derechos Humanos. Antes de continuar debo hacer dos advertencias: la primera es que “derechos humanos”, en cuanto núcleo axiológico que atienda a la producción, reproducción y desarrollo de la vida (dignificación), puede ser rastreado en múltiples tradiciones culturales, incluso aquellas que no hayan adoptado o producido la forma jurídica (derecho), cosa de gran relevancia a ser tenida en cuenta en el diálogo intercultural. Sin embargo, aquí dirigimos la mirada hacia las tradiciones jurídicas que han venido a darle una forma jurídica a dicho núcleo axiológico, y que actualmente comprendemos de manera amplia con el sintagma “derechos humanos”; así, en los siglos XVII-XVIII adquiría la forma de derechos naturales; posterior a las revoluciones burguesas fueron teorizados jurídicamente como derechos individuales inalienables e imprescriptibles, y actualmente se presentan objetiva o positivamente como derechos fundamentales universales e indisponibles.
La segunda advertencia trata de nuestra separación de la mayoría de las consideraciones contemporáneas predominantes sobre la democracia, que son fundamentalmente de corte instrumental o procedimental. Esas teorías contemporáneas ven la democracia casi exclusivamente como “... un método de decisión (...) basado en la representación y el sufragio universal” 31.
Por nuestra parte, nos inclinamos por una consideración de la democracia con contenido o material, del tipo de las teorías clásicas (Locke; Rousseau; MarxLenin), todas las cuales
... tienen en común el hecho de que no discuten acerca de mecanismos electorales, aunque todas suponen su existencia. Ninguna declara la decisión mayoritaria, ni siquiera la decisión unánime, como legítima de por sí. Todas se dedican más bien a la elaboración de criterios que permitan juzgar las decisiones democráticas en cuanto a sus resultados, estableciendo, por tanto, elementos de juicio para determinar hasta qué grado las decisiones mayoritarias son efectivamente decisiones válidas o descartables (HINKELAMMERT (II-1990), p. 134). 31
PINTORE, Ana (2001), “Derechos insaciables” en supra citado FERRAJOLI et al. (2001), Los fundamentos de los derechos fundamentales, Trotta, Madrid, p. 247; en adelante sólo se hará la referencia de la autora.
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Por otra parte, posiciones como la que adopta Ana PINTORE en la polémica con Ferrajoli, no sólo admiten sino que enfatizan ese sentido instrumental, sobre el reclamo de que
... el significado léxico de la expresión “democracia” (...), históricamente, siempre ha incorporado una referencia al “quién” y al “cómo” decidir, por encima del “qué” decidir. En definitiva, más a la idea del self-government que al contenido del government (p. 248 –las cursivas y los entrecomillados son del original).
Asimismo, la discusión sobre
... la tensión entre los dos elementos que coexisten en nuestras democracias constitucionales: de un lado la presencia de un núcleo de contenidos “indisponibles”, formulado en términos de derechos fundamentales, y, de otro, la adopción de un método de decisión (en lo que se refiere a las decisiones políticas generales) basado en la representación y el sufragio universal (PINTORE, p. 247),
no es un producto original del estadio actual de esas “democracias constitucionales”, sino que es el retorno de lo reprimido en la consideración de la democracia dominante en el siglo XX, que desde Schumpeter (Capitalism, Socialism and Democracy, 1943) la ha visto sólo, o preponderantemente, como método de decisión, escamoteando de su genealogía y proceso de construcción el elemento material o sustancial que le daba sentido (cfr. HINKELAMMERT (II1990), p. 134, en particular la nota 1). Advertido lo anterior, en perspectiva filosófico-política y ético-política, según esas teorías clásicas de la democracia (Hinkelammert), derechos humanos, en cuanto horizonte utópico 32 de los procesos de lucha por la emancipación, que plasman en medios (discursivos, expresivos, normativos) 33, son el núcleo 32
Lo que puede ser pensado o imaginado (utopía), siempre deseado nunca realizado, y que atraviesa transversalmente las realizaciones o concreciones históricas específicas. Por eso mismo es, epistemológica y práxicamente hablando, principio de imposibilidad de la acción humana, que en la elucidación de sus límites (lo que no puede ser hecho o realizado) descubre sus posibilidades (lo que si puede ser hecho). 33 Para J. Herrera Flores “los derechos humanos deben ser definidos (...) como sistemas de objetos (valores, normas instituciones) y sistema de acciones (prácticas sociales) que posibilitan la apertura y la consolidación de espacios de lucha por la dignidad humana. Es decir, marcos de relación que posibilitan alternativas y tienden a garantizar posibilidades de acción amplias en el tiempo y en el espacio en aras de la consecución de los valores de la vida, de la libertad y de la igualdad” (p. 52-53 –las cursivas son del original). Y más adelante concluye: “Los derechos
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axiológico básico del pacto democrático. No obstante, en las “democracias avanzadas” (Ferrajoli) de la modernidad occidental capitalista, estos derechos humanos han derivado en discurso de legitimación 34; en esa medida legitiman unas determinadas relaciones sociales de producción y el orden socio-político que, derivado de ellas, se auto-constituye en el garante de tales derechos humanos (Hinkelammert). Eso ocurre cuando se pasa de la consideración de derechos humanos como medios a derechos humanos como fines, y estos como “fines absolutos”; por esa vía siempre se llega a la ilusión de que se están protegiendo o realizando tales fines. Es ilusión porque “fines absolutos” no se pueden realizar, pero si se actúa con la creencia de que se está realizando “fines absolutos” ello bien puede suponer o admitir que se desvirtúen y abuse de tales medios, en cuyo caso estaríamos ante la violación hasta el aniquilamiento de los sujetos vivos respecto de los cuales los derechos humanos son medios; pero llegados a este punto se habrán convertido en fines que desplazan al (a los) sujeto(s) vivo(s). Por eso sostenemos que tanto los derechos humanos como (los procedimientos formales que constituyen) el orden socio-político que legitiman, están sometidos a la contingencia histórica. En esa medida, derechos humanos siguen la suerte de la conditio humana, por ende, no deben absolutizarse, pues si hubiera algo absoluto lo sería, en todo caso, su necesidad de satisfacción 35, pero el modo de realizarlos humanos son los medios discursivos, expresivos y normativos que pugnan por reinsertar a los seres humanos en el circuito de [producción –NJSA] reproducción y mantenimiento de la vida, permitiéndonos abrir espacios de lucha y de reivindicación” (HERRERA FLORES (2000), “Hacia una visión compleja de los derechos humanos” en HERRERA FLORES, Joaquín ed., El vuelo de Anteo. Derechos humanos y crítica de la razón liberal, Desclée de Brouwer, Bilbao, p. 78). 34 Sobre la ideología de aceptación, véase CAPELLA, Juan Ramón (1999), Fruta prohibida, Trotta, Madrid, p. 46-47. Me apresuro a advertir que no por el hecho de que los poderes instituidos hayan forzado hacia esta deriva legitimista –por llamarla de algún modo- vamos a desconocer el otro hecho de que fuera del espacio colonizado por esos poderes, inclusive respecto de ellos mismos, los derechos humanos son una fuerza reivindicativa y emancipadora, que guía muchas luchas y, en general, al menos en estas democracias occidentales –que son las que conozco- marcan un avance significativo en términos de dignificación de la vida, participación democrática, limitación de la arbitrariedad, etc. Por eso, por cuenta y no a pesar de este lado emancipador, es que hay que denunciar su inversión ideológica. 35 Esta necesidad de satisfacción está vinculada constitutivamente a la condición humana, que es siempre una finitud que descubre su infinitud. Por eso, necesidad vinculada a la condición humana no declara necesidades específicas, menos medios de satisfacción, sino que abre el espacio de la vida y la acción a la contingencia, a su incompletitud que enfrenta imposibilidades, y recién a partir de éstas puede descubrir y construir sus posibilidades infinitas. Es evidente que esta perspectiva se aparta de las concepciones tradicionales, fragmentarias casi todas, que declaran necesidades y establecen un catálogo: así, por ejemplo, hablan de necesidades básicas o primarias referidas a las de tipo más estrictamente biologicista (las que mantienen la vida de los sujetos para que sigan
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es siempre contingente. En ese sentido, derechos humanos son siempre horizonte utópico, por ende, no debemos derivar (a) la ilusión de creer que realizamos derechos humanos 36. Derechos humanos guían la acción humana, pero lo que realmente hacemos son acciones concretas, específicas y múltiples, las cuales deben ser juzgadas conforme a derechos humanos, pues ellas en sí no son derechos humanos. Actuar bajo la ilusión de que nuestras acciones son o realizan derechos humanos es coartar o inhibir la potencia re-flexiva o crítica que tienen los derechos humanos; este es el pasaje para su absolutización, presto a ser convertido vanamente por el poder en discurso de su propia legitimación. En dicho pasaje está la inversión ideológica de los derechos humanos. La acción humana en tanto que guiada por (realizada 37 conforme a) derechos humanos se enfrenta a su principio de imposibilidad (la finitud de la conditio humana), recién en ese momento es que tiene que atender a sus condiciones de posibilidad (tecnológica) y de factibilidad (material, económica)38. En consecuencia, se establece una relación transversal entre ese horizonte utópico y la realización histórica de la acción. Esta es la conditio a que está sometida la acción, y, si se quiere, también es su fuente de dinamicidad. No obstante, esta relación transversal aparece negada, por ejemplo, por esa especie de naturalismo que subyace en lo que FERRAJOLI ha denominado “falacia
siendo productivos) y necesidades secundarias (aquellas que elevan la condición de vida, dignificándola, pero que se asumen, desde la perspectiva capitalista, como superfluas). Este tipo tradicional de abordaje de las necesidades está muy presente en la discusión contemporánea por derechos humanos, pero es algo que hay que superar so pena de tener siempre la visión muy enturbiada y, en definitiva, opera como un obstáculo epistemológico para la imaginación de alternativas. 36 Si aceptáramos que con unas determinadas acciones realizamos (unos) derechos humanos, tendríamos que admitir que tales derechos humanos están acabados, son parte del pasado pues ya están realizados y, cuando mucho, sólo cabría tratar de preservar las particulares formas o concreciones producidas en ese realizar. En tal caso, por la primera parte, tendríamos que admitir una inconsistencia en la postulación y reclamo constante por derechos humanos, pues éstos aparecerían como ya realizados; esta es la puerta para la intolerancia y la agresividad que se genera en nombre de los derechos humanos por parte de los poderes constituidos. Por la segunda parte, sólo nos quedaría tomar el camino del formalismo abstractizante que entiende y se conforma con la plasmación en un texto positivo de lo que en un particular momento histórico, según unas condiciones y de acuerdo a una correlación de fuerzas, se determina que es derechos humanos. 37 La insistencia parece necia por obvia, pero véase que lo que se realiza son acciones y no derechos humanos. 38 Al respecto véanse HINKELAMMERT (I-1990), p. 231 ss.; DUSSEL,Enrique (1998), Ética de la liberación en la edad de la globalización y la exclusión, Trotta, Madrid, p. 258-280.
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garantista” (cfr. (1995), p. 940-942), y que antes fuera puesta en evidencia por Bobbio como ilusión iusnaturalista, cuando señalaba el postulado del racionalismo ético conforme al cual “la demostrada racionalidad de un valor es condición no sólo necesaria sino suficiente de su realización” (cfr. BOBBIO (I-1991), p. 60). Por otro lado, se oculta por el uso ideológico de los derechos humanos, como ocurre entre los poderes instituidos de las llamadas democracias occidentales. En ese caso la relación transversal (conditio) resulta instrumentalizada o funcionalizada a los fines de la legitimación de los poderes instituidos. Este proceso es análogo, más bien, es parte del proceso de instrumentalización del ser humano por parte del capitalismo, toda vez que la pretendida lógica (irracional) del capital desconoce la conditio humana. De esta forma, hemos señalado el lugar (locus) donde se establece la inversión ideológica; nos corresponde ahora señalar el tiempo (tempus) en que ella aparece.
*** Una vez que los poderes instituidos 39 han conformado un orden sociopolítico, que pretende preservar unas determinadas relaciones de producción, tienden a absolutizarse y tienen la pretensión de clausurar cualquier vía para la emergencia de nuevos poderes. Es la secuencia del poder absoluto e irresistible de Hobbes; o del Espíritu Absoluto e incontestable de Hegel, o de cualquier otro tipo de absolutismo. Pero, no obstante su ansia de absoluto, la contingencia los acecha y les impone su impronta. Veamos. En el contexto de las democracias occidentales capitalistas, el poder instituido funda su legitimidad en la pretensión de realizar derechos humanos; sea
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Hoy poderes instituidos que ayer, no más, fueron luchas por emancipaciones específicas. Toda lucha emancipadora es específica aunque su fundamento sea universal; esto es algo que no se debiera olvidar, pero es lo que más prontamente parecen olvidar los/las “creyentes”, “guerreros/as” y “luchadores/as” por la libertad, la igualdad, la justicia, la tolerancia, etc., al punto que la desmemoria y el olvido se llegan a utilizar como herramienta de control y desactivación de las (otras) luchas (que no sean las suyas). Así, una vez logrado el propósito específico (que aquella lucha plasmara en reconocimiento), se tiende a cerrar el paso, cual Moisés ordenando cerrar el paso por el mar, para que nadie más use ese camino, en definitiva, para no compartir el espacio socio-histórico. ¿Paradoja de la historia, inevitabilidad de la inversión si...? Quizá, pero nunca necesidad.
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como fuere, eso es lo que les da el grado de legitimidad a sus decisiones mayoritarias (cfr. HINKELAMMERT (II-1990), p. 133 ss.). Mas hemos señalado que derechos humanos no se pueden realizar (por su carácter utópico), lo cual tiene un valor cognitivo y práctico, pues recién a partir de ahí se sabe lo que sí se puede realizar o se valora lo que efectivamente se realiza. Eso hace que los derechos humanos denuncien o sean un parámetro para determinar el grado de ilegitimidad de los poderes instituidos, ya que evidencian la incapacidad de éstos 40 para satisfacer condiciones para la realización de acciones conforme a derechos humanos. De ahí que cualquier exigencia de cumplimiento de derechos humanos, en tanto que exigencia de realizar acciones conforme a derechos humanos, es mostrar o denunciar esa incapacidad de los poderes instituidos, por ende, constituye una crítica de su (i)legitimidad 41. Pero, en la medida que con el reclamo por acciones conforme a derechos humanos se está denunciando la ilegitimidad de los poderes instituidos, y éstos fundan su legitimidad en la pretensión de realizar derechos humanos; entonces, recién en ese momento se pone 42 el argumento de que el sujeto (particular o colectivo) que demande esas acciones está en contra de la “garantía” 43 de realización de los derechos humanos. Aparece así el crimen ideológico como crimen objetivo, que se vincula con la imagen de opositor como enemigo (cfr. HINKELAMMERT (II-1990), p. 141). Por consiguiente, esos poderes se vuelven contra el sujeto que reclama derechos humanos y, en razón de la relación amigo – enemigo, lo sataniza como
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De sus instituciones y, en general, de sus mediaciones (discursivas, expresivas, normativas, etc.), siempre históricas, contingentes, pero que por obra de la esclerotización burocrática se presentan como cuasi-naturales. 41 En este punto, buscando la convergencia con Ferrajoli, podemos instalar la crítica de las lagunas, como denuncia de la ilegitimidad del poder estatal que incumple acciones a las que está obligado (deberes). 42 Ni siquiera se ex-pone, sino que es una puesta en escena, es un acto positivo con pretensión de inapelabilidad (¡como la ley!), pues traduce y pone en acción todo el poder sacralizante que reclaman los poderes instituidos. 43 Los poderes instituidos se auto-proclaman como la garantía de cumplimiento de todos los deseos y aspiraciones de los sujetos que les están sometidos; por ese motivo los sujetos ya no tienen deseos y aspiraciones propias, sino que las “suyas” son las del poder (el “amor de la censura” –cfr. LEGENDRE, Pierre (1979), El amor del censor. Ensayo sobre el orden dogmático (título original L´amour du censeur. Essai sur l´ordre dogmatique, Editions du Seuil, Paris, 1974, trad. de Marta Giacomino), Anagrama, Barcelona) y esto facilita la “muerte de todo deseo de vida” (cfr. IBÁÑEZ, Jesús (1986), Más allá de la Sociología. El grupo de discusión: técnica y crítica, Siglo XIX, Madrid, 2° ed.). Por esta vía se da la colonización de los cuerpos, proyecto y estrategia de un poder incorpóreo que quiere dejar su marca e imponer su imperio.
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enemigo de los derechos humanos y de las instituciones y medios que pretenden garantizar la realización de derechos humanos. En definitiva, en nombre de los derechos humanos, es decir, por su inversión ideológica, los poderes instituidos se pretenden legitimados para contrarrestar cualquier acción que los deslegitime (crítica), aunque ello signifique desconocer todos los derechos humanos del sujeto (particular o colectivo) que demande la realización de acciones conforme a derechos humanos. Esta secuencia de la inversión ideológica se puede entender mejor si nos ubicamos en el contexto del mero “Estado de derecho” tradicional, en el que el derecho se reduce a derecho estatal; “orden legítimo” se identifica exclusivamente con estado, y se confunden estado y derecho. Así, una crítica por “falta de derecho” (laguna), por una falacia de composición (se toma la parte por el todo) se traduce como crítica al estado, por ende, como ataque contra el estado que se autolegitima para declarar una guerra (cualquier guerra). Por eso, si el estado es el único que puede garantizar el “cumplimiento” y “realización” de los derechos, el sujeto crítico no puede pretender obtener satisfacción a sus demandas si se convierte en enemigo del estado; más bien, éste último podrá volverse contra aquél con toda su fuerza, hasta su eliminación física (y metafísica: más allá de la muerte, el olvido). Por otra parte, en tiempos de euforia neoliberal (tiempos y contextos de globalización) vemos como el estado vuelve a ser “estado gendarme”, peor aún, “estado castrense”, cuidador de los intereses de las empresas y la libertad de los mercados; en cuanto defensor de las burocracias privadas (ej., empresas transnacionales), el estado deviene “neutral”, sin intereses propios, se clausura la agenda política y se estatuye una agenda económica según las exigencias de esas burocracias privadas.
Esto da una idea de como la promesa de la emancipación por la razón se ha ido diluyendo y en un proceso de inversión ideológica, que surge a la par y correlativo a la institucionalización de las concreciones históricas de la misma emancipación, puede terminar por crear una nueva dominación 44. Las emancipaciones y todo esfuerzo a ellas dirigidas resultan culpables de atentar contra alguna emancipación anterior ya institucionalizada (poder), por eso deben ser reprimidas o castigadas, inclusive hasta el límite de su aniquilación total. Esta 44
Sobre la legitimación y los tribunales o instancias que controlan el poder definitorio, véase BOURDIEU (2000); para el caso particular de las ciencias, que son la otra cara del proceso descrito, también de Michel SERRES (1991), el exquisito “Prefacio que invita al lector a no descuidar su lectura para penetrar en la intención de los autores y comprender la disposición de este libro” en SERRES et. al. (1991), Historia de las ciencias, Cátedra, Madrid, particularmente p. 18.
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anti-dinámica parece que opera un dispositivo de cierre o clausura de la historia, casi de manera circular; por eso hay que ver los márgenes y desde los márgenes (históricos), pues éstos son los que posibilitan tanto el no-cierre de la historia, como los ensayos para enfrentar la destructividad de los efectos indirectos de la acción directa (de los poderes instituidos principalmente, pero también de los emergentes), que por virtud de los procesos de inversión ideológica han quedado desplazados en las concepciones imperantes (eje., económica, politológica, etc.) como efectos colaterales, o, simplemente ocultados al invisibilizarlos en una fragmentaria relación medio – fin.
***
Para hacer una parada provisional. Hasta aquí hemos afirmado la relevancia teórica de la elucidación de la inversión ideológica, en el sentido de que tal inversión y su ocultamiento resulta un obstáculo epistemológico para imaginar soluciones alternativas posibles, lo cual ocurre toda vez que los conceptos tienden, o más propiamente, nuestro imaginario jurídico tiende a considerar sus conceptos como cosas naturales, objetivos, deshistorizados y descontextualizados. Pero también tiene una notable relevancia práctica (pertinencia), pues sabemos que mantener oculta esa inversión resulta un obstáculo para realizar la hermenéutica (que se) precisa de la norma particular en el contexto del ordenamiento jurídico (y más allá: de la realidad jurídica). Esto podría dar la impresión de que, de esta forma, terminamos recayendo en uno de los vicios criticados, la reducción, en último caso, del derecho a la esfera estatal (habida cuenta de que la jurisdicción está monopolizada en el Estado de derecho). Sin embargo, ni es lo cierto que toda jurisdicción está monopolizada por el estado, habida cuenta de la internacionalización de la justicia (tercera tesis de Ferrajoli), por un lado, sobre todo para las cuestiones relativas a los derechos humanos, y por otro lado, dada la creciente descentralización y desgajamiento de funciones jurisdiccionales en órganos, algunos estatales y otros no estatales (ejemplo, las estrategias de “resolución alternativa de conflictos” pueden estar en manos de unos y otros). Inclusive el argumento de que, en definitiva, esos órganos alternativos, la misma justicia internacional, está
Derecho Moderno e Inversión Ideológica
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supeditada a una decisión estatal legislativa que los apruebe o instituya un marco de acción (ej., la aceptación de la jurisdicción internacional), con lo cual el recurso al argumento constitucional terminaría enclavado en la visión estatalista, podría ser contra-argumentado diciendo que igualar el acto legislativo al acto constitucional (siendo este último sólo un tipo especial o calificado de aquel) es desconocer una diferencia (formal y sustancial) dada, sobre todo, por la adscripción o vinculación estructural del constitucionalismo a la democracia (segunda y tercera tesis de Ferrajoli). En todo caso, aceptar ese argumento sería como suponer que, por ejemplo, por el mero hecho de que la constitución o la misma legislación ordinaria puedan hacen referencia a “la realidad nacional” toda la realidad quedaría, por ese motivo, juridificada.
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Derechos Discriminados y Olvidados *
Helio Gallardo
Sumario: Presentación. 1. Referentes Sociohistóricos de Derechos Humanos. 2. Integralidad de los Derechos. 3. Derechos Humanos como Propuesta Política y Moral. 4. Derechos Humanos y Sociohistoria. Referências Bibliográficas.
Presentación Cuando se habla de derechos humanos resulta siempre oportuno recordar la perspectiva desde la que se los enfoca. Existe un exceso de complejo ruido académico, diplomático y político sobre ellos como para imaginar que la expresión, por sí misma tampoco unívoca, “derechos humanos”, tiene valor y significado universales indisputables. Para el caso que nos ocupa, consideramos que el desafío más grande e intenso en el campo de derechos humanos es la distancia que existe, que hemos socialmente producido, y que algunos consideran abismo, entre el discurso que los afirma, la norma jurídica que los reconoce y su cumplimiento efectivo. Esta brecha se ve reforzada por la distancia que también existe entre la voluntad de sentirnos individualmente cada uno de nosotros dotado de derechos y capacidades, y la indiferencia, cuando no hostilidad, por el compromiso y la responsabilidad que cada de uno de nosotros, cada cual, tiene en la configuración, consolidación y continuidad de un ethos o sensibilidad sociocultural que haga de derechos humanos un reclamo persistente y un componente o factor fundamental de las políticas públicas y de los comportamientos privados... ¡En el año 2002 no somos todavía, y quizás ni siquiera nos encaminamos, a ser luchadores firmes, irreversibles, por una cultura de derechos humanos, nacional e internacional! Las pugnas, tropiezos y reservas acerca del establecimiento de una Corte Penal Internacional de Derechos Humanos, con alcance fragmentario circunscrito a derechos básicos, o sea para sancionar a los que se considera ‘tradicionalmente’ delitos de “lesa humanidad”, con jurisdicción y competencia muy limitadas, constituyen un signo dramático de *
Discusión presentada en el Primer Encuentro de Procuradores y Presidentes de Consejos Estatales de Derechos Humanos, Región Oeste, México, Guanajuato, septiembre del 2002.
estas brechas e indiferencia relativas. Y también resalta una circunstancia que quizás nos sirva de advertencia. Son las economías y Estados más poderosos, los líderes de los países más poderosos quienes desconfían de las instituciones que permitirían avanzar hacia una cultura, o sea hacia un moral, planetaria, aunque sin imperialismos, de derechos humanos. Son estos dirigentes quienes no desean, o tal vez no pueden, ejercer un liderazgo que forma parte de su responsabilidad política. Y nosotros carecemos también de vigor organizado para exigírsela. El signo que señalo dice: quizás la manera como constituimos hoy el poder, la capacidad de su ejercicio, no favorece una cultura de derechos humanos, que es
una
cultura
de
reconocimiento
y
acompañamiento
humanos,
de
empoderamiento de capacidades humanas, de libertades humanas, o sea de autónoma producción de contextos humanos de opción. Y también este signo dice que es posible advertir una indiferencia social hacia la necesidad de producir estos contextos. Para mucha gente todavía ‘derechos humanos’ es un reclamo individual o, socialmente, en especial para los más empobrecidos socioeconómica y culturalmente, un difuso horizonte de esperanza, pero no una lucha política permanente. Abismo entre lo que se dice y lo que se practica. Distancia entre compromiso social y reclamo de derechos. Cinismo e impunidad entre la constitución de poderes y sus ejercicios y el reconocimiento y cumplimiento de las libertades y capacidades asociadas de cada cual y de cada pueblo. Insuficiente y magro compromiso político con una cultura de derechos humanos. Ausencia de un movimiento social de derechos humanos. Estos son los criterios básicos, todos ellos ofrecidos a la discusión, desde los que quiero realizar algunas observaciones sobre derechos discriminados y relegados, derechos olvidados, derechos económicos, sociales y culturales. Y les agradezco me permitan hacerlo entre ustedes, muchos de los cuales están hoy en funciones de ejercicio, a veces asediado, del poder. También deseo aprovechar esta oportunidad privilegiada que nos reúne en León, Guanajuato, para indicar que el reciente retiro de México del Tratado Interamericano de Asistencia Recíproca (TIAR) y la voluntad de su política exterior para construir paz social y humana mediante compromisos y medidas de
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Helio Gallardo
promoción económica, cultural y política, que buscan que la gente se torne cada vez más deseosa de autoestima legítima y más responsable por su existencia y por su capacidad de incidencia pública, sin recurrir, o al menos sin privilegiar, la fuerza de las armas militares, de la violencia abierta, es un paso simbólico y también efectivo hacia una eventual cultura de derechos humanos en América Latina. Ojalá más países y gobiernos lo imiten. Un reconocimiento, pues, con independencia de banderías, al Gobierno y al pueblo de México. ¡Y cuánta distancia cultural y política entre este signo y la voluntad actual de algunos dirigentes para llevar a cabo una escalada de exterminio en Colombia cobijándola con los mantos de derechos humanos y de la guerra contra el terrorismo y el narcoterrorismo!
1. Referentes Sociohistóricos de Derechos Humanos Es evidente que si existen derechos humanos bautizados como económicos, sociales y culturales, es porque existen otros derechos humanos. Y efectivamente, los hay. Estos
‘otros’
derechos
son
los
derechos
fundamentales
de
los
individuos/personas, o de los individuos/ciudadanos, según sea la doctrina jurídica que los afirma, y los políticos, determinados por sus capacidades cívicas. También están los derechos de los pueblos, como el reconocimiento de la capacidad de éstos para la autodeterminación, y para su independencia económica y política. Y, desde luego, para construir su identidad nacional. Estos derechos son los que se llaman de primera y tercera generación. Entre ellos, los de segunda generación, los económicos, sociales y culturales. Más recientemente se habla, para denunciarlos como aberraciones o para afirmarlos, de los derechos de las generaciones futuras en una doble dimensión: bioética, que hace referencia principalmente al impacto de la manipulación genética que permiten hoy las tecnologías de punta en los futuros seres humanos y sus hábitats, y a los desafíos ambientales, es decir a la necesidad de establecer modelos económicos y sociales sustentables, que nutran a la humanidad y al planeta y que no los
Derechos Discriminados y Olvidados
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envilezcan o destruyan 1. Decía, entre estos derechos/reclamos de primera, tercera, cuarta y quinta generación, los de segunda generación: los económicos, sociales y culturales2. La expresión “generación” puede entenderse en al menos dos sentidos. En uno, indicativo y descriptivo, señala un lugar o estadio en una secuencia temporal. En otro, más dinámico, designa un proceso de gestación, un origen, un despliegue y, eventualmente, una consolidación (institucional en este caso) o consumación. El primer alcance de la noción de ‘generación’ aparece así determinado por el segundo. No es posible ocupar un lugar apropiado en una nomenclatura determinada sin haber recorrido el camino completo indicado por la gestación del proceso. En un sentido profundo, la fórmula “generación de derechos humanos” es ambigua. Reclama ideológicamente una existencia falsa: una primera generación de derechos humanos sería una realidad política y cultural, por ejemplo. Pero también indica el carácter sociohistórico, no meramente histórico, de derechos humanos: su carácter de reclamo por transferencias de poder y por la institucionalización de estas transferencias en el mismo movimiento que enuncia ideológicamente su imposible definitiva institucionalización 3. Si esto es cierto, derechos humanos no son caracteres de los individuos, sino decantaciones sociohistóricas cuya gestación sociopolítica las torna
siempre
reversibles.
El
reclamo
por
derechos
humanos,
y
su
institucionalización, se constituye siempre en el campo de las luchas sociales, políticas y geopolíticas de sectores de la población en las formaciones sociales modernas constituidas desde diversos principios y lógicas de dominación. 1
Con sarcasmo, que su magro talento no justifica, el catedrático argentino C.I. Massini distingue cinco generaciones de derechos humanos. Los derechos-libertades, en el sentido de libertad negativa, los derechos sociales, que consistirían en demandas para paliar las carencias más urgentes de la población, los derechos ‘difusos’, en los que entrarían el desarrollo, la paz, la sustentabilidad del medio natural, los de género, los ‘eróticos’ que se ocuparían de la libertad sexual, homosexualidad, aborto, contraconcepción subsidiada estatalmente, e ‘infrahumanos’ entre los que enumera los de los animales, de los ríos y montañas y de los mares. Aunque su taxonomía es arbitraria y falta de rigor, expresa el carácter sociohistórico del ‘reclamo’ por derechos humano al que aquí hacemos referencia (Cf. Massini: El derecho, los derechos humanos y el valor del derecho). 2 Formalmente fueron propuestos por la Asamblea General de la ONU en diciembre de 1966, pero algunos de sus reclamos figuraban ya en la Declaración Universal de 1948. Su antecedente sociohistórico está en las luchas sociales de los siglos XIX y XX. 3 O sea su cumplimiento real para siempre. Por tratarse de concreciones sociohistóricas los derechos humanos están siempre en tensión cultural y pueden ser siempre revertidos. Ninguno de estos derechos existe sin una actitud política positiva hacia ellos, actitud que debe trascenderse en un ethos sociocultural.
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Si los derechos humanos se siguen siempre de pugnas sociales por transferencias de poder, sus expresiones éticas y jurídicas (la letra que los reclama o sanciona) resultan también siempre socialmente ambiguas, reversibles y manipulables. No es necesario abundar en ejemplos de esta situación. Sí, en cambio, encontrar aquí una fuente del abismo entre lo que se dice y se hace en el campo de derechos humanos. Las luchas sociales que gestan objetiva y subjetivamente derechos humanos, por tanto, no pueden conformarse con proclamaciones éticas o normas jurídicas. Éstas deben descansar en la configuración de un ethos sociocultural que opere como matriz institucional para su eficacia o cumplimiento. Las luchas sociales por derechos humanos deben resolverse no mediante una conciliación política, sino por una transformación efectiva (y muchas veces radical) de la sociedad. Esta transformación puede ser básicamente descrita como una conversión subjetiva y objetiva hacia la humanidad. No existen derechos humanos efectivos sin una conversión radical hacia el reconocimiento y acompañamiento solidario entre individuos, grupos y culturas humanas. Es este proceso de acompañamiento entre diversos (tarea no siempre intentada, siempre inacabada) el que sostiene las propuestas éticas y las instituciones jurídicas que promocionan y sancionan derechos humanos. La universalidad e integralidad de derechos humanos es una proclama vacía si no está sostenida por estos reconocimiento y acompañamiento. La expresión “generación de derechos”, entonces, hace parcialmente referencia a su carácter de estadio sociohistórico. Por ello, algunos estiman que se les puede asignar, para comprenderlos en su alcance cultural, un énfasis o valor sociopolítico axial o determinado 4. Los derechos y libertades fundamentales, como la igualdad de mujeres y varones, expresión del reconocimiento de la dignidad de toda persona humana, o el que nadie pueda ser sometido a la esclavitud o torturado, harían referencia a la vida 5. A la dignidad universal de la experiencia humana individual cuando ella testimonia una voluntad autónoma de crecimiento en libertad. Los derechos económicos, sociales y culturales, en 4
Cf. J. B Barba: Educación para los derechos humanos, p. 31. También en las páginas antecedentes. 5 El punto es discutible. Los derechos que suelen llamarse fundamentales podrían perfectamente acuñarse bajo la referencia a la libertad negativa liberal (I. Berlin), o sea a los fueros individuales entendidos como escudos contra la acción del Estado o poder político.
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cambio, podrían ser referidos al trabajo y con él a la calidad de la existencia humana en sociedad, es decir a la relacionalidad inherente al carácter social de su libertad. Calidad, o sea relacionalidad liberadora, de su vida familiar. Calidad de su vida sexual. Calidad de la educación estatal y privada que se le ofrece y que él desea recibir. Preservación de la calidad de la existencia en momentos que pueden ser difíciles como la maternidad, el desempleo, la migración forzosa, el empleo, es decir la relación salarial, la disolución de la familia, la escasa receptividad social, o incluso hostilidad, para su cultura, como ocurre con los pueblos profundos u originarios de América, en la caracterización que de ellos hace el mexicano Guillermo Bonfill Batalla: los pueblos y naciones indígenas. Derechos fundamentales centrados en el reconocimiento a la vida digna y libre de cada cual y de todos. Derechos económicos y sociales centrados en la calidad de la existencia que el trabajo (esfuerzo) debería ofrecer a todos, pero en especial a los jóvenes, a las mujeres, a los indígenas, a los niños, a los migrantes, a los desplazados, a los enfermos o a quienes padecen alguna discapacidad. Quizás convenga interponer aquí un brevísimo excursus. El trabajo no es el empleo. La noción de trabajo hace referencia a la autorrealización particular de cada individuo social y también a la autorrealización, entendida como proceso abierto, de humanidad. Si los derechos reconocidos como fundamentales parecen remitir a una existencia abstracta que puede ser asumida como un fuero sin contenidos6, los derechos económicos, sociales y culturales resultan también fundamentales o básicos porque apuntan hacia la realización efectiva de los seres humanos particulares y de su humanidad en una sociohistoria centrada en su trabajo o autoproducción, ambos indisputables aunque enajenables. 7 Estos derechos, entendidos como reclamo y propuesta ética, denuncian que las tramas
6
Históricamente los contenidos propuestos para este fuero son los del individuo racional, libre, propietario y productivo. 7 Sobre el punto señala D. Sánchez Rubio: “Mediante la sustitución del derecho al trabajo por las prestaciones que el estado y las empresas pueden realizar, se convence a los más desfavorecidos que no tienen posibilidad alguna de autorrealizarse. Sus posibilidades humanas quedan subordinadas al son que marca el sistema” (Proyección jurídica de la filosofía latinoamericana de la liberación, p. 539, citado por Silva Filho: O Direito Social e Suas Significaçoes). Ahora, el sistema es de la relación salarial que desplaza el trabajo por el empleo y al ser humano por el asalariado o empresario consumidor gestando, en el mismo movimiento, a los explotados, pauperizados, desempleados y excluidos.
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sociales complejamente instituidas desde el eje del trabajo social, ni los contienen ni los posibilitan. Denuncian una ausencia política de humanidad en la economía, en el empleo, en la familia, en el ethos sociocultural, en la existencia cotidiana, una ausencia de cuidado por el ser humano, una ausencia, que podría ser incapacidad radical, es decir sociohistórica, de sujeto moral. ¿Qué gritan y exigen los derechos económicos y sociales, los derechos culturales? Que nadie sea empobrecido por las instituciones y lógicas sociales. Que nadie resulta empobrecido ni explotado ni excluido, por ejemplo, por la economía local, nacional o global o, sólo en apariencia paradójicamente, por el salario, incluso abundante. Que nadie sufra de empobrecimiento en la familia, en particular niños, ancianos y mujeres. Que nadie pauperice a nadie en la relación de pareja. Que el consumo necesario no empodere la agresividad y la voluntad de muerte. Que la escuela, en su sentido amplio de educación formal, sea un espacio de crecimiento humano compartido, para estudiantes, docentes, administrativos o funcionarios, y también para los padres y la comunidad. Ese es el sentido intenso y tensional a la vez del primer inciso del artículo 13 del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales adoptado por la Organización de Naciones Unidas en 1966: Los Estados Partes en el presente Pacto reconocen el derecho de toda persona a la educación. Convienen en que la educación debe orientarse hacia el pleno desarrollo de la personalidad humana y del sentido de su dignidad, y debe fortalecer el respeto por los derechos humanos y las libertades fundamentales. Convienen asimismo en que la educación debe capacitar a todas las personas para participar efectivamente en una sociedad libre, favorecer la comprensión, la tolerancia y la amistad entre todas las naciones y entre todos los grupos raciales, étnicos o religiosos... 8 Los derechos económicos, sociales y culturales exigen que nadie nunca sea material y espiritualmente empobrecido, es decir se le niegue socialmente su condición de sujeto con autonomía y autoestima. Autonomía y autoestima
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Este artículo del Pacto concreta el artículo 26 de la propuesta de la Declaración Universal de Derechos Humanos de Naciones Unidas (1948). Cito ambos documentos desde los anexos del trabajo ya citado de J. B. Barba.
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mediante el trabajo. Autonomía y autoestima en la vida de pareja. Autonomía y autoestima en la vinculación padres/hijos. Autonomía y autoestima en la ancianidad. Autonomía y autoestima en la experiencia comunitaria de barrio, de iglesia, de empresa, de país, de planeta. Autonomía y autoestima como factores constitutivos y empoderadores de la existencia cotidiana. Un ejemplo desde la existencia latinoamericana. La prensa mexicana de ayer 9 destacó que 12 millones de mexicanos no tienen acceso al agua potable y que sólo el 2.6% de las aguas residuales es tratada en plantas potabilizadoras y que ante éste y otros problemas ligados con una sensibilidad hacia los recursos naturales, el Secretario de Medio Ambiente y Recursos Naturales, Víctor Lichtinger, declaró: si no nos hacemos responsables “por el uso del agua, tarde o temprano lo pagaremos mediante la escasez, enfermedades, deterioro del paisaje, pérdida de oportunidades económicas y de calidad de vida”. Y agregó: Mal manejado el recurso natural puede constituir una fuente de conflictos locales, regionales, nacionales e internacionales; también puede frenar el desarrollo económico y social, y ser un vector de enfermedades de amplia distribución en la población. “No pocos analistas consideran que este siglo puede quedar marcado por un colapso de los recursos naturales, y por el tránsito de las guerras por petróleo a guerras por el agua”. Responsabilidad y autoestima, y producción de humanidad y paz, en el acceso y manejo del agua. Responsabilidad y autoestima, y producción de humanidad, en la relación de pareja. Responsabilidad y autoestima, y producción de humanidad, en el proceso de trabajo y también en el ejercicio de la huelga. Responsabilidad y autoestima y trascendencia, en el obligatorio trato de la existencia cotidiana. Y si no hacemos esto, es decir si no nos hacemos responsables y no buscamos crecer en humanidad (con todos) en el manejo del agua, de la economía, de la familia, de la existencia diaria..., permítanme dramatizar ¡¡el futuro (quizás hoy) es la guerra!! De esto, de la violencia o de la paz, de la edificación de humanidad o de la guerra, tratan los derechos humanos económicos, sociales y culturales. Los derechos discriminados.
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La Jornada, miércoles 18 de septiembre del 2002: Plantea Fox cambios para proteger el agua.
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Estos derechos, entendidos como reclamos, exigen que la economía no produzca opulentos y miserables. Demandan que en la autopista, en la colonia o barrio, en el estadio o en las relaciones internacionales no nos tratemos con indiferencia, desprecio, u odio. Expresan el deseo por una televisión o escuela, en su sentido lato, que no precipiten frivolidad, consumismo, pereza o codicia. Los derechos económicos, sociales y culturales dicen: que ninguna institución o lógica social, incluido el Gobierno, tenga como efecto deseado o no deseado, la ausencia de sujeto humano (Humanidad) y de sujetos en cada una de sus particularidades sociohistóricas. 2. Integralidad de los Derechos Quisiera todavía retornar un momento, para recuperar un énfasis, a las declaraciones del Secretario de Medio Ambiente y Recursos Naturales, el señor Lichtinger. Él decía: “Si no nos comportamos económica y socialmente”, es decir humanamente, porque los comportamientos humanos están fundados siempre en un trabajo que debe ofrecer condiciones para ser trascendido como proceso de construcción de humanidad, “si no nos comportamos económica y socialmente hacia el agua”, es decir hacia los recursos naturales, “tendremos o conseguiremos conflicto y guerra” 10. Nosotros hemos indicado que este resultado, el conflicto y la guerra, resultan de relacionalidades previas, estructurales y situacionales, en las que imperan la violencia y la discriminación resueltas mediante lógicas de dominación 11. El conflicto y la guerra, la destrucción, resultan como consumación de un determinado y asimétrico ejercicio del poder, de una institucionalización de la violencia como constitutiva de toda relacionalidad. Es decir, de la efectiva inexistencia de derechos para todos o derechos universales. Sin embargo, no es éste el punto que deseo enfatizar. Sintetizo: un comportamiento, de fuente compleja es cierto, sin autonomía y autoestima (moral) individual y social, el comportamiento que el Secretario Lichtinger creía advertir en relación con el agua, un comportamiento sin sensibilidad (o, mejor, dotado de una sensibilidad no 10
En realidad, el sentido que el señor Lichtinger quería darle a su sentencia fue: si no hacemos del agua algo privado, de modo de hacer conciencia de su escasez, entonces habrá guerra. 11 Económico/sociales, de género, generacionales, políticas, étnicas y geopolíticas.
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universalizable, o de dominación) por los derechos de segunda generación, compromete a los de cuarta y quinta generación (ambiente social y natural) y, asimismo, a los de primera y tercera generación (libertad y seguridad de las existencias individuales y nacionales amenazadas por la guerra). He realizado este énfasis porque derechos humanos, su cumplimiento, reclaman no sólo su universalidad, o sea que comprendan a todos los seres humanos, sino también su integralidad: todos los seres humanos, todo el ser humano, todo el tiempo. La propuesta es que todas las relaciones entre seres humanos o reconocidos como tales potencien y promuevan humanidad todo el tiempo. Una sociedad local, nacional, hemisférica, global, cuyas instituciones y lógicas empoderen a los seres humanos para lograr su estatura de sujetos humanos todo el tiempo. Abusando de su paciencia quisiera todavía extraer un corolario de la tesis de integralidad: como tendencia: todos los derechos, todo el tiempo. Derechos fundamentales y políticos, económicos y sociales, de los pueblos, de las generaciones, futuras, bioéticos. Esto quiere decir, derecho a la vida y a no ser esclavo y, al mismo tiempo, todo el tiempo, posibilidad cierta de una educación de calidad y reconocimiento cierto del carácter plenamente humano de todas las culturas y de los géneros y de las diversas generaciones. Reclamo de una misma inclinación moral y de un mismo respaldo e institucionalización jurídicos y de una misma implacable sanción estatal y no estatal tanto para el derecho a la vida como para la educación de calidad y para el reconocimiento de la cultura propia. ¿Es esto lo que ocurre? No. Lo que ocurre, es decir lo que nosotros hacemos que ocurra, es que además del abismo inicial entre lo que se dice y se hace, en un contexto de indiferencia relativa u oportunista, se establece, incluso académicamente, también una separación entre derechos humanos absolutos y derechos humanos relativos. Los absolutos, como lo dice su calificativo, lo son por su fundamento en Dios o en el Individuo, y valdrían siempre. Los relativos, en el mejor de los casos, tendrían valor sólo si las condiciones socioeconómicas y culturales los permiten. Esto quiere decir, en sociedades con lógicas de dominación, nunca. En el peor de los casos, lo que aquí he llamado derechos relativos, serían pretensiones falsas y abusivas sin carácter de derechos. Escribe,
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por ejemplo, el profesor argentino C. I. Massini:
... si en un país de muy escasos recursos naturales y en épocas de crisis económica se reclama irrestrictamente el derecho proclamado por las Naciones Unidas a “un nivel de vida suficiente para asegurar la salud, el bienestar y el de la familia”, lo más probable es que se lleva a esa nación al caos sin que se mejoren las condiciones de vida; y si en algunas de las naciones tribales de Africa se pretende reclamar el derecho a “la educación técnica generalizada y al igual acceso a los estudios superiores” o a “participar libremente de la vida cultural de la comunidad, gozar de las artes y participar del progreso científico”, puede lograrse generalizar el descontento, pero jamás el hacer posible la vigencia de esos “derechos”. En otras palabras, desvinculados de las condiciones reales de la vida social, el reclamo de los derechos humanos puede conducir a peores males que los realmente existentes. 12 –Ya se ve: buena salud...., si hay dinero y condiciones políticas. –Educación..., si hay dinero y condiciones políticas. –Empleo de calidad y pago justo..., si hay dinero. –Reconocimiento cultural..., si hay dinero (?) y ‘otras condiciones’. ¿Desaparición del etnocentrismo y el racismo, quizás?
Por supuesto, para estos derechos y debido al ‘orden de las cosas’, nunca habrá dinero ni condiciones favorables. Ni en Africa ni en América Latina. Ni siquiera se trata, para el juicio del profesor Massini, de derechos ‘imposibles’, sino prohibidos. Esto quiere decir que los sistemas de ejercicio del poder hoy promueven como tentativamente posibles derechos fundamentales, algunos de los de primera generación (y la controversia sobre la Corte Penal Internacional es una prueba de esta promoción tentativa) y postergan o prohiben derechos de segunda y tercera generación. Y este ethos sociocultural discriminador y fragmentador no despierta una irritación generalizada que se materialice en un comportamiento político. El texto citado del profesor argentino, un ‘especialista’ en derechos humanos, tiene la ventaja de su transparencia. En él se ubica el problema de la reivindicación de derechos ‘falsos’ en Africa, allá lejos, donde residen los ‘negros’ animistas y primitivos, bárbaros, tribales, es decir allí donde la humanidad no se ha hecho presente y en cuya realidad carecemos de toda responsabilidad. Como 12
C.I. Massini: El Derecho, los derechos humanos y el valor del derecho, p. 148. En parecido sentido escriben M. Villey (“inflación de los derechos del hombre”) o G. Robles (los derechos del hombre son “papel mojado”), o B. Montejano (“fanatismo principista” sobre derechos humanos) y muchos otros autores que se adscriben a las distintas corrientes del derecho natural.
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se advierte, la escandalosa negación dogmática de derechos de segunda generación descansa y promueve la no universalidad de todo derecho positivo económico, social y cultural sobre la base de la universalidad de derechos fundamentales naturales o propios de la dignidad del ser humano y de la discriminación consciente de las vidas de aquellos por quienes no nos hacemos responsables. La afirmación de derechos naturales, no sociohistóricos, sirve para rehusar derechos positivos a grupos y culturas a los que no se reconoce suficiente humanidad ni capacidad para construirla desde sí mismos. ¡Y se supone que en esta discriminación carecemos de toda responsabilidad! Son ellos allá, los negros, quienes se han hecho a sí mismos humanoides, homúnculos o cuasihumanos de segunda, tercera o cuarta categoría. Podemos trasladar esta temática a América Latina. La gente merece tanta salud como pueda pagar, tanta educación como pueda pagar, tanta seguridad como pueda pagar. Y si no pueden pagar, entonces no merecen ni educación, ni salud, ni seguridad 13. Son culpables por su suerte. Nosotros, los que podemos pagar, no somos responsables por su pobreza. Son ellos quienes la han producido. Existe una frase en nuestras sociedades que condensa bien esta sensibilidad ‘cultural’ hacia derechos humanos: “Cuando veo un pobre, cambio de acera”. Derechos humanos implica una exigencia para que cambiemos las condiciones que producen pobres y discriminados y para que, por ello, no tengamos que cambiar de acera. Universalidad de derechos humanos quiere decir una sola acera. Un mismo camino que puede recorrerse de diversas maneras, pero un solo camino. El de nuestra responsabilidad en la producción de condiciones para producir humanidad todo el tiempo y para todos. En América Latina nunca tenemos recursos, ni la voluntad moral y política para buscarlos y producirlos, para esta segunda generación de derechos humanos que pasan a ser así no sólo relativos sino también de segunda o ninguna categoría. Esta degradación constituye un signo de descomposición política y moral.
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Ni agua, como sugiere Lichtinger.
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3. Derechos Humanos como Propuesta Política y Moral Quisiera hacer aquí una reflexión directa. Un aspecto o factor de derechos humanos es que ellos se configuran como una propuesta o invitación moral. Cuando la Declaración Universal de Derechos Humanos de Naciones Unidas dice en su artículo primero que
Todos los seres humanos nacen libres e iguales” no está describiendo algo que realmente ocurra, sino que está diciendo que “todos los seres humanos deberían ser tratados sin discriminación y potenciados para ejercer su autonomia.
Se trata de una propuesta y un deseo moral que supone un trabajo político integral
para
que
pueda
ser
jurídicamente
normado
y
culturalmente
institucionalizado. Este deseo exige la adopción de una tendencia ética que sólo se puede seguir de una transformación de las condiciones de existencia (en la economía, en la pareja, etc.) de la gente, es decir de los seres humanos. Una tendencia ética, un trabajo o responsabilidad políticos, un deseo moral: “Deberían ser tratados sin discriminación”. Repárese en el escándalo que para este deseo moral contiene la frase: “Cuando veo un pobre, cambio de acera”. Políticamente esto significa: la economía no debería contener lógicas de discriminación, entre ellas la de explotación, para que pueda producir, al mismo tiempo que valores económicos, sujetos humanos y, con ellos, derechos humanos efectivos. La administración social de la libido, economía libidinal, no debería expresarse mediante lógicas de discriminación que permitan inferiorizar a mujeres, niños y jóvenes o ancianos. La política, como capacidad para discutir, orientar y administrar el camino colectivo y las responsabilidades que cada cual tiene en él no debería realizarse mediante lógicas de discriminación que escinden, por ejemplo, a la clase política de la ciudadanía y a ésta de sus necesidades humanas. La producción cultural tampoco debería configurarse mediante lógicas de discriminación (racistas, tecnológicas, de género, religiosas, étnicas, sociales, etc.) que produzcan y reproduzcan un monopolio que invisibilice, postergue o mediatice la pluralidad de sentidos que en cada comunidad de diversos alcanza la experiencia humana. ¡Y en este sueño o deseo deberíamos esforzarnos todo el tiempo! Derechos Discriminados y Olvidados
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Pero nosotros decimos: no hay dinero. No se dan las condiciones. Para los seres humanos las condiciones nunca se dan. Se producen. Las producimos.
Somos
responsables
por
ellas.
O
deberíamos
hacernos
responsables. Para decirlo esquemáticamente, debería resultarnos imperativo hacer que ese ‘dinero’ (potencial humano o financiero) aparezca. ¡Hay que hacer surgir ese ‘dinero’, hay que potenciar las capacidades humanas para que los derechos de segunda generación no se transformen en derechos de segunda o ninguna categoría, o en derechos ‘relativos’! Hemos mostrado que si no se tienen estos derechos relativos, tampoco existen los derechos ‘absolutos’ que entonces serían de primera generación exclusivamente por su momento de proclamación política y jurídica en el siglo XVIII, no por su función y alcance en un proyecto de humanización universal e integral. Entonces, ¡deberíamos hacer surgir ese ‘dinero’! Y esta es obviamente una tarea política con sus componentes ‘privados’ y ‘públicos’. Privados porque la tarea compromete a lo que el imaginario moderno llama sociedad civil y que aquí es entendida como una matriz desde la que surgen movimientos sociales que aspiran a transferencias de poder que les permitan producir y constituir su identidad y autoestima (condición de sujetos sociales y de individuos que asumen su particularidad con voluntad de trascendencia). Públicos porque hace referencia a la necesaria transformación del dispositivo estatal14 que condensa e impone intereses de particulares como si fueran universales, codicias de minorías como si fuesen el deseo de todos, agresividad de oligarquías como si fuese la voluntad autodestructiva del mayor número. Entonces, necesitamos primariamente movimientos sociales que reclamen radicalmente su necesidad de ser sujetos en todas las instancias de su existencia social particular. Y necesitamos un aparato estatal en sentido amplio y un estilo gubernamental que potencie la voluntad de ser sujeto en todos y en cada uno. Y que también sancione, unitaria o pluralmente, en el sentido de castigar, el irrespeto al derecho de cada individuo a ser sujeto en la relación de pareja, en la familia, en la economía, en la dinámica política y en los encuentros y 14
Estado y aparatos ideológicos, que pueden ser privados, del Estado, como los medios masivos y la educación ‘religiosa’.
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desencuentros culturales. Si así fuera, nos acercaríamos a una cultura de derechos humanos y ella condensaría y expresaría una tendencia a la ausencia de coerción y coacción. Estaríamos construyendo una cultura de paz. Y reconstituyendo con el aporte de todos la espiritualidad y materialidad universal, aunque diferenciada, de los seres humanos y de sus asociaciones o comunidades, aspiración sociohistórica en que se funda toda propuesta sobre sus derechos.
4. Derechos Humanos y Sociohistoria Termino con una referencia sencilla: los derechos humanos que se consideran de primera, segunda, tercera, cuarta y quinta generación, es decir la historia sociopolítica de derechos humanos, surge en contextos relativamente precisos aunque su medio de origen y las fechas de su reconocimiento mediante proclamaciones y pactos no coincidan de inmediato: los primeros, como protección individual y sectorial ante el orden social de señores y curas y sus monopolios y privilegios a los que se confería origen divino. Esto ocurre en los siglos XVII y XVIII. Los segundos, en relación con la consternación moral y las luchas reivindicativas de los obreros y trabajadores durante el siglo XIX y la presión de las revoluciones socialistas y de los Estados que se constituyen tras sus triunfos en el siglo XX. Los terceros, los de los pueblos, como efecto de los movimientos de descolonización o de liberación nacional del siglo XX y por la independencia e identidad que esta liberación reclamaba. La cuarta y quinta generación de derechos ante los desafíos del triángulo configurado por el modelo económico que ha permitido transitar desde un capitalismo extensivo a uno intensivo, la polarización social y humana que este modelo provoca, y los desafíos que la misma polarización destructiva genera en los hábitats natural y social. Todo ello en el marco de un crecimiento demográfico que los países centrales consideran amenazante para su estilo de existencia y del impacto de las tecnologías de punta, en particular la informática y la ingeniería genética, para el futuro cercano de la existencia humana. Estos fenómenos se expresan, en la transición entre siglos, en el seno de una agresiva geopolítica unipolar sustentada
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por una pronunciada y anunciada crisis moral. 15 Del anterior enunciado esquemático quiero destacar que las distintas generaciones de derechos humanos tienen en común ser el resultado de luchas sociales y políticas y de transformaciones culturales y morales mejor o peor extendidas y asumidas que han acompañado esas luchas y se han reforzado con sus logros. Esto quiere decir que nunca habrá dinero ni disposición cultural favorable para una educación de calidad para todos, ni para agua potable, ni para empleo digno, sin una lucha que implique una conversión moral hacia el ser humano por parte de dirigentes y dirigidos, de organizaciones políticas y de sectores sociales. Se trata, una vez más, de una lucha que debería comprometer a todos porque expresa el lado solidario y luminoso de la modernidad. Habría que preguntarse si nuestra organización del mundo la permite. O, quiénes y qué la prohiben. A esta lucha posible y a esta conversión moral en un período de crisis radical, a este testimonio organizado es que llama la proclamación y el reclamo de derechos económicos, sociales y culturales como hábitat imprescindible y propio de la realización de un proceso de humanidad desde cada individuo/sujeto y para todos nosotros. Cuando se menciona a los derechos de segunda generación, los derechos económicos, sociales y culturales, como discriminados y olvidados, lo que se dice es que se ha renunciado, muchos han renunciado y, sobre todo, cada uno de nosotros ha renunciado, a la responsabilidad moral y jurídica de construir el sujeto humano plural que crece desde su autonomía y autoestima. Si olvidamos estos derechos es porque hemos renunciado a crecer y a proyectarnos en humanidad desde nosotros mismos.
15
En el momento de redactar estas líneas se produce una catástrofe política y humana en Rusia. La captura de unos 700 rehenes en un teatro por parte de militantes de la independencia chechena fue ‘resuelta’ por el gobierno ruso introduciendo un gas tóxico paralizante que asesinó inicialmente al menos a 115 rehenes. Un militar participante en el asalto declaró que “exageramos un poco la dosis para estar completamente seguros”. Esta clara demostración de terror de Estado por parte del gobierno ruso se realizó en nombre de derechos humanos. Y no será sancionada por ningún tribunal. Este trabajo es parte de un texto más amplio, realizado por Joaquín Herrera Flores y Alejandro M. Médici, y titulado Derechos Humanos y Orden Global: tres desafíos teóricopolíticos, de próxima aparición en Desclée de Brouwer.
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Referências Bibliográficas Barba, José Bonifacio: Educación para los derechos humanos, Fondo de Cultura Económica, México 1997. Gurvitch, George: L’Idée de Droit Sociale, Historie Doctrinale depuis de XVII Siècle jusque la fin de XIX Siècle, Librairie Recueil Sirey, Paris, France, 1931. La Jornada (diario): “Plantea Fox cambios para proteger el agua”, 18 de septiembre del 2002, México. Massini, Carlos Ignacio: El derecho, los derechos humanos y el valor del derecho, Abeledo/Perrot, Buenos Aires, Argentina, 1994. Ricoeur, Paul (coordinador): Los fundamentos filosóficos de los derechos humanos, Serbal/UNESCO, Barcelona, España, 1985. Sánchez Rubio, David: Proyección jurídica de la filosofía latinoamericana de la liberación. Aproximación concreta a la obra de Leopoldo Zea y Enrique Dussel, Tesis de Doctorado, Universidad de Sevilla, España, 1994. Silva Filho, José Carlos Moreira da: “O Direito Social e suas significaçoes: O Principio de Alteridade”, en Anuario Ibero/Americano de Direitos Humanos (2001/2002), Lumen/Juris, Rio de Janeiro, Brasil, 2002.
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Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización: Tres Precisiones Conceptuales
Joaquín Herrera Flores
Sumario: 1. Las Tres Precisiones. 1.A. La Precisión Filosófica. 1.B. La Precisión Teórico-Política: los Cuatro Planos de la Lucha por los Derechos y los Cuatro Malestares Culturales. 1.B.1. El Plano de la Integralidad de los Derechos: el Malestar de la Dualidad. 1.B.2. El Plano Jurídico-Cultural: el Malestar de la Emancipación. 1.B.3. El Plano Social: el Malestar del Desarrollo. 1.B.4. El Plano Político: el Malestar del Individualismo Abstracto. 1.C. La Precisión Filosófico-Jurídica: la Crítica a la Utopía de la Validez Formal. 2. El Concepto de Derechos Humanos: los Derechos Humanos como Procesos. 3. Conclusiones.
El ser humano sólo es alguien (o se expresa como alguien) como condensación de tramas de relaciones. (Helio Gallardo, Política y transformación social. Discusión sobre Derechos Humanos, 2000)
1. Las Tres Precisiones 1.A. La Precisión Filosófica En la tradición de derechos humanos que ha venido imponiéndose durante la época de la Guerra Fría, la fundamentación filosófica de los mismos se ha plasmado en dos tendencias: la universalidad de los derechos y su pertenencia innata a la persona humana. Nada ni nadie puede ir contra dicha “esencia”, ya que al hacerlo pareciera que atentamos contra las propias características de la “naturaleza” y la dignidad humanas universales. Los desmanes y atrocidades que se han cometido durante el siglo XX y la memoria del horror que tenemos acerca de fenómenos tales como la esclavitud, los genocidios imperialistas o, por poner un ejemplo más cercano, la irracionalidad, el terror y la indiferencia hacia cualquier normativa internacional que se desprende del campo de concentración de Guantánamo, nos induce a pensar que tal fundamentación es la adecuada, que hay esencias humanas abstractas que no pueden ser contrariadas ni siquiera por los propios seres humanos, que hay, en fin, como una especie de reserva espiritual intocable que nos preserva del mal desplegado en la historia. Presentándose como la fundamentación “humanista”, las fundamentaciones abstractas de los derechos
humanos lo que en realidad defienden es un antihumanismo que postula que los derechos humanos son entidades que están –o deben estar– al margen de nuestras acciones, al margen de lo humano y deben entenderse como si dependieran de una entidad trascendente a nuestras debilidades humanas que nos va a proteger en última instancia del horror y de las violaciones. Los derechos supondrían, pues, una esfera “objetiva” de límites a la propia acción del hombre, sobre todo cuando éste ostenta el poder sobre la vida y muerte de sus congéneres. Aunque los beneficios “inmediatos” de esa fundamentación filosófica sean importantes para movilizar las conciencias y denunciar el horror de la tortura, de la discriminación, de la indiferencia ante el hambre o ante la destrucción ecológica, bajo una mirada más atenta vemos que los problemas que acarrea son mayores que los beneficios que aporta. Intentar colocar los derechos en un más allá liberado de cualquier tipo de impurezas contextuales, puede servirnos, como decimos, para concienciar de un modo ingenuo e inmediato a los que no tienen más equipaje que el de la esperanza por un mundo mejor y sin injusticias: de ahí la enorme legitimación que han conseguido las propuestas de la teología de la liberación en el campo de los derechos humanos. Ahora bien, ¿basta levantar la esperanza para solucionar los problemas concretos y reales?. ¿es suficiente para nosotros confiar en una instancia trascendente benevolente para fundamentar prácticas sociales de articulación de movimientos de lucha por los derechos? Aún más, ¿hay que luchar por los derechos si ya los tenemos garantizados metafísica, ideal o religiosamente?. ¿de qué sirve reclamar una esencia metafísica que nos dicen que nos pertenece por el mero hecho de ser seres humanos, ante las prácticas depredadoras de las grandes corporaciones transnacionales?. ¿qué se ha conseguido en los más de cincuenta años de la firma de la Declaración Universal a la hora de resolver los problemas de condiciones de vida de más de las cuatro quintas partes de la humanidad? ¿No estaremos universalizando un solo punto de vista: el judeo-cristiano-occidental y lo presentamos como la esencia inmutable de algo que tiene necesariamente que contar con otras formas de plantear y resolver los problemas que subyacen a los particulares conceptos de dignidad? ¿Cómo garantizar el acceso a la justicia a aquellas y aquellos que defienden y practican
Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización
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un concepto diferente de dignidad humana, o que jerarquizan los valores de un modo distinto?... Como afirma Nietzsche, cuando hablamos de conocimiento o de realidad debemos negar la existencia en sí, es decir, separada de sus condiciones de existencia, de términos tales como espíritu, razón, conciencia, alma o pensamientos “verdaderos”. “El concepto de verdad es un contrasentido...todo el reino de lo verdadero y de lo falso se refiere tan sólo a relaciones entre seres, no a lo en sí...no hay ningún ser en sí como tampoco puede darse un conocimiento en sí” 1; ambos, conocimiento y ser se constituyen en el conjunto de relaciones en que se integran. En ese sentido, cualquier producto cultural –en nuestro caso, los derechos humanos–, hay que integrarlo en lo que denominamos: Circuito cultural Productos culturales
Con nosotros mismos
Realidad
Trama de Relaciones
Con los otros Con la naturaleza
Todo producto cultural surge en una determinada realidad, es decir, en un específico e histórico marco de relaciones sociales, morales y naturales. No hay productos culturales al margen del sistema de relaciones que constituye sus condiciones de existencia. No hay productos culturales en sí mismos. Todos surgen como respuestas simbólicas a determinados contextos de relaciones. Ahora bien, los productos culturales no sólo están determinados por dicho contexto, sino que, a su vez, condicionan la realidad en la que se insertan. Este es el circuito cultural. No hay, pues, nada que pueda ser considerado en sí mismo, al margen del contexto específico en que surge y sobre el que actúa. El ejemplo filosófico por excelencia es Platón. ¿Se hubiera escrito La República si Platón no hubiera sido impulsado a escribir contra la democracia de su tiempo? ¿Acaso no ha influido Platón en los desarrollos reaccionarios posteriores? Hablamos de un productor de productos culturales que reaccionaba ante un determinado complejo de relaciones humanas y que se planteó como objetivo de todo su pensamiento alejar lo más posible a los seres humanos 1
F. Nietzsche, Nihilismo. Escritos póstumos, Península, Barcelona, 1998 (14-122)
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concretos del conocimiento y la política “verdaderos”. Con argumentos, denominados por la tradición como “dialécticos”, pero que en realidad no eran más que reducciones al absurdo, Platón va despreciando todo lo que suene a pacto entre seres humanos y todo lo que se base en el fluir continuo de los acontecimientos. Las cosas no tienen relación ni dependencia –afirma Platón- con nosotros; sino que son en sí por su propia naturaleza 2; y, además, no pueden cambiar, son estáticas, ajenas a los flujos naturales e históricos3, ya que si no fuera así el conocimiento sería imposible. Habría que añadir, el conocimiento puro, el conocimiento de esencias inmutables, el conocimiento no humano. Nada, ni la justicia, ni la dignidad, y mucho menos los derechos humanos, proceden de esencias inmutables o metafísicas que se sitúen más allá de la acción humana por construir espacios donde desarrollar las luchas por la dignidad humana. Por mucho que se hable de derechos que las personas tienen por el mero hecho de ser seres humanos, es decir, de esencias “anteriores” o “previas” a las prácticas sociales de construcción de relaciones sociales, políticas o jurídicas, inevitablemente tendremos que descifrar el contexto de relaciones –la trama densa de relaciones que definen al sujeto– que les da origen y sentido, sobre todo si queremos huir de la tentación de “imputar” a toda la humanidad lo que no es más que producto de una forma cultural de ver y estar en el mundo.
1.B. La Precisión Teórico-Política: Los Cuatro Planos de la Lucha por los Derechos y los Cuatro Malestares Culturales El hombre es un animal suspendido en redes que él mismo ha tejido. (C.Geertz, La interpretación de las culturas, 1998)
1.B.1. El Plano de la Integralidad de los Derechos: El Malestar de la Dualidad Desde 1948 hasta la actualidad, nos hemos ido acostumbrando a denominar como “derechos humanos” a los diferentes procesos sociales, políticos y culturales que han tendido a positivar institucionalmente tanto las exigencias de 2
Platón, Crátilo, 386 e. Platón, Crátilo 411 c, 437c, 439 d. Como ampliación de lo que tratamos, ver Rodolfo Mondolfo, La comprensión del Sujeto en la Cultura Antigua, Buenos Aires, 1968. 3
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protección ciudadana contra la hegemonía del Estado sobre nuestras vidas cotidianas, como las demandas políticas de intervención del mismo Estado, con el objetivo de obstaculizar el despliegue irrestricto del mercado en las relaciones sociales y sus consecuencias, sean éstas intencionales o no. Esa doble actitud ante el Estado conduce a lo que podemos denominar el malestar de la dualidad. Aunque esta tendencia supone, por un lado, un fuerte componente de ambigüedad, dado que por un lado nos pone ante la reivindicación de una esfera autónoma libre de interferencias, y, por otro, ante la exigencia de interferencia con el objetivo de obstaculizar el despliegue sin restricciones de las consecuencias perversas del mercado capitalista: destrucción del medio ambiente, desempleo, privatización del patrimonio histórico artístico, indefensión ante las enfermedades... Por otro, nos pone ante la riqueza del concepto que “convencionalmente” hemos ido denominando a lo largo de la segunda mitad del siglo XX, como derechos humanos. Cuando utilizamos la “convención” –terminológica, pero, asimismo, ideológica– de “derechos humanos” no nos referimos a procesos unilineales o abstractos en los que sólo se ve una parte del problema: las injerencias del Estado en la autonomía individual, sino que, al mismo tiempo, se exige la adaptación a los niveles de complejidad de una realidad humana sometida a procesos económicos, sociales y culturales en los que priman las distribuciones injustas de bienes y la reducción de los objetivos políticos a las necesidades de protección jurídica de la esfera económica. Convencionalmente, hemos denominado, pues, como derechos humanos a los procesos que aseguran nuestra esfera de actuación autónoma; pero también a los procesos que se enfrentan a las consecuencias perversas de esa autonomía, sobre todo cuando ésta es entendida como la posibilidad de actuar irrestricta y corporativamente con el objetivo de profundizar en los diferentes modos de acumulación y apropiación del capital. Este “malestar de la dualidad” puede ser planteado desde otra perspectiva. Como defiende Jürgen Habermas si hablamos de derechos humanos nos estamos remitiendo a meras instancias ideales y morales de justificación y legitimación de las acciones individuales y de las políticas públicas, lo cual es absolutamente rechazable para el filósofo de Frankfurt; pero si lo hacemos de derechos humanos –opción admitida por Habermas-, nos estamos refiriendo al
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conjunto de normas constitucionales, válidas positivamente, que controlan las hipotéticas desviaciones despóticas del poder, mientras que, al mismo tiempo, aseguran una obediencia basada en la ley y no en meras instancias morales o metafísicas. Dejando de lado el fundamento filosófico de esa distinción terminológica –no puede haber un consenso racional discursivo basado en cuestiones morales o de bien común, sino únicamente en derechos formales– la causa eficiente de la distinción reside en el repudio que la teoría jurídica liberal ha mantenido contra la estrecha relación que existe entre derechos y deberes. Para Habermas, los derechos humanos no obligan a nada, sino que nos ofrecen un marco de autonomía para nuestra acción pública: por eso pueden ser justificados por el mero procedimiento de su positivación. Pero los derechos humanos, al basarse en cuestiones morales, establecen una simetría absoluta entre derechos y deberes, lo cual excede del procedimiento y nos conduce a preguntarnos si los actores públicos y privados han cumplido o no con las responsabilidades que les compete como criterio de justificación de sus acciones. Como afirma el propio Habermas 4, tratar un problema social desde el punto de vista jurídico requiere, entre otras condiciones, reconocer que el derecho es algo formal –lo que no está prohibido, está permitido–, individualista –no existen derechos colectivos, dado que el sujeto jurídico es el individuo y no las comunidades–, y justificable únicamente desde criterios racionales de procedimiento discursivo – no desde las responsabilidades y los deberes. ¿Qué esfera de los derechos está defendiendo Habermas? ¿la de interferencia social, económica y cultural que controle las consecuencias perversas del mercado o la puramente individual abstracta que exige la no intervención y no responsabilización de los ámbitos públicos e institucionales en las vidas cotidianas de los seres humanos? Si el derecho tiene como única función establecer y garantizar marcos de acción sin referencia a deberes y responsabilidades ¿cómo obligar a las instituciones a intervenir contra los horrores que produce el proceso de acumulación, hoy global, del capital? ¿cómo exigir a las grandes corporaciones privadas a que renuncien a su actitud depredadora del conocimiento tradicional de las comunidades populares?. ¿cómo garantizar la reproducción del ecosistema y la diversidad socio-biológica de la 4
Jürgen Habermas, La inclusión del otro. Estudios sobre Teoría Política, Piados, Barcelona, 1999, p. 204
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humanidad? El problema reside en que al rechazar los fundamentos morales de los derechos y aceptar únicamente los derechos positivados constitucionalmente, Habermas –como Bobbio cuando defendía que lo importante para los derechos no era su justificación, sino su mera aplicación– están aceptando implícitamente una fundamentación moral que no llevan al debate, sino que se invisibiliza al ser aceptada como algo natural e inmodificable. Y esa fundamentación moral es la del liberalismo, ideología dualista que separa los derechos humanos en dos esferas irreconciliables
y
defiende
la
imposibilidad
de
garantizar
jurídica
e
institucionalmente los derechos sociales, económicos y culturales. Si estamos únicamente ante derechos formales que permiten lo que no está expresamente prohibido, ¿cómo resistirnos ante innovaciones técnicas que van mucho más deprisa que las reformas jurídicas y que al no encontrar prohibiciones expresas tienen el campo libre para provocar consecuencias que pueden ser gravosas para la humanidad? ¿cómo controlar las astucias con las que funcionan las grandes corporaciones para evitar las pocas regulaciones jurídicas que el nuevo orden global ha dejado indemnes? ¿no sería mejor ante estos hechos cambiar el adagio jurídico mencionado e institucionalizar que lo que no está expresamente permitido, está prohibido? Ahí reside la verdadera razón del malestar de la dualidad. No hablemos de derechos humanos, ni de derechos humanos, sino de derechos humanos. Éstos son algo más que las normas que los reconocen a nivel nacional o internacional, y algo menos que las propuestas idealistas que repiten la existencia de una esfera moral externa a los seres humanos. Pero –aparte de otras consideraciones que expondremos más abajo–, hablar de derechos humanos, supone enfrentarse directamente con ese dualismo castrante que divide ideológicamente donde la propia realidad no puede distinguir. Desde nuestro punto de vista el problema tiene otros tres planos: el jurídico-cultural, el social y el político. Los cuatro planos están estrechamente imbricados en un bucle de tal complejidad que la falta de uno de ellos supone la tergiversación del debate 5.
5
Cfr. Fraisse, G., “Entre égalité et liberté”, La Place des Femmes, La Decouverte, 1995
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1.B.2. El Plano Jurídico-Cultural: El Malestar de la Emancipación En el plano jurídico-cultural, hablamos de las tensas relaciones entre las categorías de identidad y diferencia. Ya desde los debates de la Asamblea revolucionaria en la Francia post-1789 se viene hablando de la necesidad de un mínimo de homogeneidad ciudadana como base para la construcción de un Estado democrático. Los ciudadanos deben compartir una serie de rasgos comunes que les permitan autoentenderse como partícipes de la voluntad general. Esos rasgos comunes hacen posible hablar de la igualdad ante la ley y presentarla como si de un “hecho” se tratara: todos somos iguales ante la ley. Por tanto, cualquier diferencia “real” entre las personas o grupos sólo entra en el debate jurídico siempre y cuando no provoque algún tipo de discriminación ante la ley. Tomar partido “únicamente” por este aspecto jurídico-cultural que superpone la identidad a la diferencia, ha conducido a la preponderancia de las teorías formales o procedimentales de la justicia. Teorías, para las que las diferencias – sean las representadas por las reivindicaciones igualitaristas de Babeuf, sean las propuestas feministas de Olimpe de Gouges– eran y siguen siendo consideradas como obstáculos, distorsiones, o, como meras proposiciones de deber ser – anulables del discurso ante el riesgo de caer en la “humeana” falacia naturalista. Las diferencias parecen interferir en dicho proceso de construcción jurídica y política, el cual requiere la homogeneidad como base imprescindible 6. Gran parte del debate teórico de clase (Marx), de etnia (Fanon) o de género (Librería de Mujeres de Milán), se ha centrado en la denuncia de lo que podemos llamar “el malestar de la emancipación”: la conquista de la igualdad de derechos no parece haberse apoyado ni parece haber impulsado el reconocimiento de, y el respeto por, las diferencias. El afán homogeneizador ha primado sobre el de la pluralidad y diversidad. La problemática hunde sus raíces en la figura clásica del “contrato” como fundamento de la relación social. Paradójicamente, la idea de contrato, que parece tener una clara raíz económica o mercantil (y, de hecho, es traída a la 6
Birulés, F., “El sueño de la absoluta autonomía: Reflexiones en torno a la igualdad y la diferencia” en Gómez Rodríguez, A., y Tally, J., La construcción cultural de lo femenino, op. cit., p. 19-29. Cfr. asimismo, Honig, B., Political Theory and the Displacement of Politics, Cornell University Press, New York, 1993, p. 76-125
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filosofía política desde la economía), se sitúa en la separación, fundamental para el liberalismo político, entre política y economía. Como afirman Rosanvallon y Fitoussi, a pesar de esa proclamación ideológica de esferas separadas, es el mercado el que impone las líneas de transformación social que la política tiene que acatar7. ¿Qué mejor representación del orden político, pues, que la proporcionada por un modelo explicativo que “a la vez que se articula sobre la organización capitalista de las relaciones sociales, elude toda referencia a la economía?”8. Por consiguiente, y a pesar de sus connotaciones concretas, la figura del contrato se basa en un conjunto de abstracciones que, al separarse ideológica y ficticiamente de los contextos donde se dan las situaciones concretas entre los individuos y los grupos 9, normalizan, legitiman y legalizan posiciones previas de desigualdad con el objetivo de reproducirse infinítamente. En este proceso se va instaurando una segunda separación muy importante para nuestro tema: aparece un espacio ideal/universal –el espacio público– donde se moverían idealmente sujetos idealizados e idénticos que gozan de la igualdad formal ante la ley. En términos de Sheila Benhabib, se instaura la idea de un sujeto “generalizado” tan alejado de los contextos en los que vive, que las situaciones conflictivas desaparecen ante el consenso que supone la igualdad formal y las situaciones de desigualdad se esfuman ante la apariencia de justicia en que consisten los procedimientos. Mientras que junto a este espacio público ideal, surge la conciencia de un espacio material/particular –el espacio de lo privado– donde se dan cita no sólo los intereses económicos de los sujetos “concretos”, sus inserciones en los ámbitos productivos y reproductivos, sino también los
7
Fitoussi, J.P.,Rosanvallon, P., La nueva era de las desigualdades, Manantial, Buenos Aires, 1997 “La expulsión de las relaciones sociales, la exclusión de las determinaciones efectivas de los sujetos reales, posibilita una representación del orden político como un asunto de racionalidad, consenso, legalidad...la escisión entre economía y política convierte a los teóricos del contrato en liberales ilustrados, seguramente bien intencionados y progresistas, pero cada vez más impotentes para articular la teoría a los procesos efectivos, cada vez más impotentes para detener la avanzada de la nueva derecha, ese enemigo que no ha dejado de vencer”, Alejandra Ciriza, “Democracia y ciudadanía de mujeres: encrucijadas teóricas y políticas” en Atilio Borón (comp.), Teoría y Filosofía Política. La tradición clásica y las nuevas fronteras, CLACSO- Eudeba, Buenos Aires, 1999, p. 237 9 “El capitalismo alcanza su mayoría de edad cuando automatiza lo que en el periodo de la acumulación originaria era simple expropiación arbitraria, desposesión salvaje...La normalidad sucede a la anomalía, la legitimidad a la ley de la jungla, la plusvalía al robo. Todo es conforme a la ley, conforme al valor, y el ciclo de la reproducción se basta por sí solo, con muda constricción, para garantizar su continuidad ampliada”, Antonio Negri, Fin de Siglo, Piados, Barcelona, 1989, p. 21 8
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nudos de relaciones que los ligan a otros sujetos en el espacio doméstico, las creencias particulares y las identidades sexuales y raciales 10. El contractualismo supone, pues, la construcción de una percepción social basada en la identidad que se da en el espacio público garantizado por el derecho y en la expulsión de las diferencias al ámbito desestructurado, e invisible para lo institucional, de lo privado. De ahí las dificultades que la teoría política liberal encuentra a la hora de reconocer institucionalmente la proliferación de reivindicaciones de género, raciales o étnicas. Para el liberalismo político, la diferencia hay que entenderla como “diversidad”, como mera desemejanza que, en el mejor de los casos, hay que tolerar estableciendo medidas que permitan acercar al diferente al patrón universal que nos hace idénticos a todos 11 y no como un recurso público a fomentar y a garantizar. El argumento ideológico que se usa una y otra vez es que no se debe “contaminar” el debate filosófico jurídico con cuestiones como las sexuales, étnicas o raciales. Todas estas cuestiones están embebidas en el principio universal de igualdad formal que constituye el sujeto “generalizado”. Cualquier argumentación que parta de las características concretas y de las inserciones contextuales específicas de los sujetos “concretos” es rápidamente tildada de comunitarismo, obviando el engarce que dicho categoría o esquema tiene con la realidad norteamericana para la cual fue creada 12. La cuestión no reside en introducir el sexo, la raza o la etnia en lo jurídico y en lo político, difuminando el debate con preguntas tales como ¿tienen sexo las normas? Precisamente, la reclusión de las diferencias en un ámbito 10
“Lo privado incluye no sólo los intereses económicos de los sujetos, su forma de inserción en el proceso de producción y reproducción de la vida misma, sino además el conjunto de relaciones que los ligan a otros sujetos en el espacio doméstico, las creencias particulares, las prácticas e identidades sexuales y raciales”, Alejandra Ciriza, “Democracia y ciudadanía de mujeres: encrucijadas teóricas y políticas”, en Atilio Borón (comp..), op. cit. p. 239 11 Desde una perspectiva liberal, la tolerancia hacia los diferentes se reduce a la mera contemplación de la diversidad. En ese sentido “la diversidad es débilmente democrática: reconoce la mera desemejanza. Se podría decir que su padrino intelectual es John Locke en su Letter on Toleration. Enfrentado a la diversidad de visiones de los grupos religiosos adoptó una táctica que reducía el poder a religión organizada...la religión era ante una cuestión de creencias individuales y no de representaciones colectivas”, Sheldon Wolin, “Democracia, diferencia y reconocimiento” en La Política, 1, 1996, p. 154 12 Cuando los conceptos aplicables a un contexto que goza de hegemonía se “exportan” sin mayor reflexión a otros contextos hegemonizados, se llega a la conclusión de que dichos conceptos no son particulares, sino de aplicación universal. Ver Bourdieu, P., y Wacquant, L., “Los artificios de la razón imperialista” en Voces y Culturas. Revista de comunicación, 15, 2000, p. 110 y 113. Sobre el contexto de la polémica liberales-comunitaristas, ver “Universalism ‘v’ Comunitarianism: Contemporary Debates in Ethics”, en Philosophy & Social Criticism, n°. 3-4, V. 14, 1998
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separado de lo público, hace que la raza, el sexo y la etnia adquieran importancia para el derecho y la política. Si en un Parlamento la ratio hombre-mujer es del 80 y el 20%, en esa institución el sexo tiene mucha importancia: es un criterio configurador de la pertenencia a la institución. Si en un código civil o en una teoría de la justicia se sigue utilizando el término “padre de familia”, el sexo del que firma los contratos o del que puede decirse que es una persona representativa tiene mucha importancia: es un criterio discriminador en beneficio de una sola de las partes. Ahora bien, en una configuración institucional donde la diferencia, en este caso sexual, se reconoce como un recurso público a garantizar y en donde el porcentaje se acerca al 50%, la característica sexual deja de ser algo relevante al tener todas las partes su cuota de participación y visibilidad: estamos ante la plasmación real, no sólo formal/ideal del principio de no discriminación. Reconocer pública y jurídicamente las diferencias tiene el objetivo de erradicar lo sexual, lo étnico o lo racial del debate político, ya que todos tendrían la posibilidad de plantear sus expectativas e intereses sin tener en cuenta, ahora sí, sus diferencias. No estaríamos ante una política de discriminación inversa, con toda la connotación adversa que tiene la palabra discriminación; sino ante políticas de inversión de la discriminación y los privilegios tradicionalmente ostentados por los grupos que han dominado la construcción social de la realidad que vivimos.
1.B.3. El Plano Social: El Malestar del Desarrollo El plano social de la problemática nos hace dar un paso adelante. Ya no se trata de analizar las tendencias homogeneizadoras que pretenden aparentemente evitar las discriminaciones, con el efecto perverso de reducir a ceniza las diferencias e imponer una sola visión del mundo como la universal. Se trata ahora de contraponer los conceptos de igualdad y desigualdad. En este nivel abandonamos el terreno del “sameness”, del esfuerzo tendente a potenciar la igual identidad de todos ante el derecho, para adentrarnos en la problemática de la igualdad, la cual conceptualmente no se opone a “diferencia”, sino a desigualdad. En esta sede ya no hablamos de no discriminación de las ciudadanas y ciudadanos ante la ley, sino de las diferentes condiciones sociales, económicas y culturales que hacen que unos tengan menos capacidades para
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actuar que otros: sea por razones de etnia (Amílcar Cabral), de género (Simone de Beauvoir), de clase (Mariátegui), de poder cultural (Gramsci), de situación geográfica (Samir Amin) o, por poner un punto final, de “mala suerte” (Ronald Dworkin). En este nivel se constata lo que podemos denominar “el malestar del desarrollo”: el progreso en las técnicas y la abundancia para unos, no sólo no ha redundado en beneficio de las inmensas mayorías populares que pueblan nuestro mundo, sino que precisamente parecen alimentarse de la explotación y empobrecimiento de las cuatro quintas partes de la humanidad. Danilo Zolo intentó dar salida a este malestar afirmando que mientras la ciudadanía provocaba desigualdades, pero al mismo tiempo libertad; el mercado, provocando asimismo desigualdades, creaba riqueza 13. El problema de esta ecuación reside en analizar qué tipo de condiciones posibilitan la riqueza y la libertad,
pero
sin
provocar
o
aumentar
las
desigualdades
existentes.
Quedándonos, por el momento, en el aspecto jurídico del problema podríamos afirmar que se da una proporción inversa entre la cantidad de recursos que se maneje y la relación que se tenga con los derechos (en este caso, sociales, económicos y culturales): a mayor cantidad de recursos disponibles, menor referencia a estos derechos, y a menor cantidad de recursos, mayor referencia a los mismos. Pero, por el contrario, se da una proporción directa entre la cantidad de recursos a que tengamos acceso y la relación que se tenga con los derechos (individuales: civiles y políticos): a mayor cantidad de recursos disponible, mayor importancia concedida a estos derechos, y a menor cantidad de recursos, mayor indiferencia y desdén hacia los mismos (entendiendo por recursos no sólo los económicos, sino también los sociales y culturales con los que enfrentarse a lo que más adelante llamaremos las diferentes caras de la opresión). Está claro que el común denominador que distingue las diferentes posiciones ante los derechos es el acceso a los recursos. Lo que nos lleva a una reflexión sobre la igualdad y la necesidad de abstracción que toda tarea jurídica requiere. El derecho no
13
D. Zolo, “La ciudadanía en una era post-comunista” en Agora, 7, 1997, p. 111. “La aceptación plena de las premisas liberales e individualistas en relación a la ciudadanía conducen, mal que le pese a Zolo, a predicar, sin saberlo y probablemente sin desearlo, un retorno a la barbarie. Efectivamente, una de las tensiones de la ciudadanía es precisamente la de requerir de un mínimo de inserción con vista al goce de los derechos. De ahí la importancia de tener en cuenta la tensión, y no la mutua exclusión, entre economía y política. La consideración puramente política de los derechos deriva en su configuración como privilegios”. A. Ciriza, op, cit., p. 245 (cursiva nuestra).
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reconoce necesidades, sino formas de satisfacción de esas necesidades en función del conjunto de valores que predominen en la sociedad de que se trate. Al no formalizar necesidades sino formas de satisfacción de las necesidades, el derecho ostenta un fuerte carácter de abstracción. El problema no reside en esto: formalizar implica necesariamente abstraer. El problema reside en qué es lo que se abstrae para poder llevar adelante la tarea de formalización sin profundizar en, o crear nuevas, desigualdades. Si abstraemos las normas de la diferente situación a la hora de acceder a los recursos disponibles, los derechos, sobre todo los individuales, serán vistos como privilegios de los ciudadanos que tienen acceso a las condiciones materiales que permiten gozar de los mismos, y a un consiguiente desprecio por los derechos sociales, económicos y culturales como meros indicadores de tendencia. En este sentido, el derecho privilegiaría a los miembros de una clase, de un sexo, de una raza o de una etnia en perjuicio de los que no pertenecen al sesgo privilegiado, manteniendo o profundizando la distancia entre la proclamación formal de la igualdad y las condiciones que permiten su goce. ¿Es éste el objetivo de la democracia y del estado de derecho? Ahora bien, si al formalizar una forma de satisfacer alguna necesidad no abstraemos las diferentes posiciones sociales a la hora de acceder a los recursos que permiten poner en práctica los derechos, estaremos, primero, denunciando los privilegios gozados por los pocos; segundo, estableciendo cauces para ir cerrando el abismo entre lo formal y lo material; y, tercero, poniendo en funcionamiento el principio de no discriminación por razones económicas, sexuales, raciales o étnicas, ya que lo importante para el derecho será esa función o tendencia de igualación en el acceso a los recursos y no defender y garantizar los privilegios de los miembros de una clase, sexo, raza o etnia. En este sentido, tanto una política de redistribución de las posibilidades en el acceso a los recursos, como una política de reconocimiento de la diferencia como un recurso público a garantizar conducirían a una revitalización y a una democratización de lo jurídico, siempre y cuando queda superada la tradicional escisión entre las esferas de la economía y de la política y, a partir de ahí, tengamos el marco adecuado, no para seguir gozando de privilegios formales, sino para crear las condiciones que permitan gozar de mayores cotas de libertad y riqueza sin la contrapartida de la desigualdad.
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1.B.4. El Plano Político: El Malestar del Individualismo Abstracto Por esta razón, debemos añadir un cuarto plano a los dos anteriores: el plano político. En este nivel se trata de comprender las relaciones entre los conceptos de igualdad y de libertad. La lucha por la igualdad –o, lo que es lo mismo, la socialización de los recursos– es una condición de la libertad –vista, por ahora, como socialización de la política. La lucha por la igualdad no agota la lucha contra la discriminación ni contra las desigualdades 14. Hay que introducir en el debate la lucha por la libertad que, basándose en las condiciones de no discriminación y de igualdad de recursos, siempre irá “más allá de la igualdad”. Dependiendo de lo que entendamos por libertad, así interpretaremos esta reivindicación. De la libertad existen, por lo menos, dos interpretaciones: la primera, y más extendida dada la fuerza expansiva de la ideología “liberal”, entiende la libertad como autonomía, como independencia radical de cualquier nexo con las “situaciones”, los contextos o las relaciones. La libertad, desde esta interpretación, supone un gesto de rechazo a toda relación de dependencia o de contextualización, dado que tiende a la garantía de un espacio moral y autónomo de despliegue individual considerado como “lo universal”. En ese espacio moral individual todos somos semejantes y todos nos vemos envueltos en un solo tipo de relación, la de individuos morales y racionales, sin cuerpo, sin comunidad, sin contexto. Este espacio de la semejanza garantiza que los individuos morales y racionales puedan dialogar “idealmente” en la pura abstracción del lenguaje, relegando al terreno de lo irracional toda reivindicación de desemejanza, de diversidad, de pluralidad o de diferencia. Esta interpretación de la libertad conduce a lo que denominaríamos “el malestar del individualismo abstracto”: la propuesta de independencia del contexto supone un tipo de sujeto inmóvil o pasivo frente a los diferentes y cambiantes embates que proceden del contexto social “irracional” en que necesariamente dichos individuos “racionales” se debaten. Para evitar –mejor dicho, para ocultar– la entrada de ese contexto irracional en la acción individual, hay que garantizar política y jurídicamente un
14
Grupo DIOTIMA, Oltre l’ugluaglianze. Le radici femminili dell’autoritá, Liguori Editore, Milano, 1995
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espacio moral-racional ideal –definido por los derechos civiles y políticos y la “mano invisible del mercado”– que permita la acción aislada y apolítica de individuos dirigidos por sus propios e intocables intereses. La paradoja está servida: individuos que se definen como “no situados”, dependiendo de la “situación” en la que viven. Rechazo de la política –como construcción de condiciones sociales, económicas y culturales– y dependencia de ella –como garantía del espacio moral individual. ¿Cómo si no proteger la libertad como autonomía? Esta última pregunta nos conduce inevitablemente a la segunda interpretación
del
concepto
de
libertad.
Más
que
de
autonomías
e
independencias, hablar de libertad supone hacerlo de política, o, lo que es lo mismo, de construcción de espacios sociales en los que los individuos y los grupos puedan llevar adelante sus luchas por su propia concepción de la dignidad humana. Ejercer la libertad supone, pues, ir más allá de la lucha por la igualdad. Como afirma Amartya Sen, la libertad, entendida desde esta segunda interpretación, tiene, a su vez, dos facetas: una “constitutiva”, en la que prima la construcción “política” de condiciones que permitan a la ciudadanía ejercer su lucha por la dignidad humana, o, en palabras de Sen, de “abordar el mundo con coraje y libertad”: evitar privaciones como la inanición, la desnutrición, la morbilidad evitable o prematura; y otra “instrumental”, en la que la libertad, en este caso las libertades políticas, puedan servir como instrumento de progreso e igualación económicos. La faceta constitutiva de la libertad nunca debe quedar eclipsada por la instrumental, dado que desde aquella se posibilita que “...los individuos (se vean) como seres que participan activamente –si se les da la oportunidad– en la configuración de su propio destino, no como meros receptores pasivos de los frutos de ingeniosos programas de desarrollo” 15. La lucha por los derechos humanos exige la imbricación de los cuatro niveles que hemos mencionado. Evitar los malestares de la dualidad, de la emancipación, del desarrollo y del individualismo sólo será posible a medida que vayamos construyendo un espacio social ampliado en el que la lucha contra la discriminación tenga en cuenta, por un lado, la progresiva eliminación de las 15
Sen, A., Desarrollo y Libertad, Planeta, Barcelona, 2000, p. 54 y 75
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situaciones de desigualdad y, por otro, convierta las diferencias en un recurso público a proteger. Se trata, por tanto, de tomarse en serio el pluralismo, no como mera “superposición” de consensos, sino como la práctica democrática que refuerza la diferencia de las posiciones en conflicto y se sustenta en la singularidad de sus interpretaciones y perspectivas acerca de la realidad.
1.C. La Precisión Filosófico-Jurídica. La Crítica a la Utopía de la Validez Formal Hemos repetido más arriba que el término derechos humanos es una convención adoptada en 1948 en los comienzos de la época de la Guerra Fría, convirtiéndose en el discurso ideológico hegemónico del nuevo proceso de acumulación de los capitales simbólicos, sociales y culturales de la fase keynesiana del modo de producción capitalista. Si antes de la Declaración Universal de los Derechos Humanos no podía hablarse de derechos humanos “propiamente dichos”, sino de derechos de la nueva clase emergente que va conquistando a lo largo de los siglos XVI al XX todas y cada una de las esferas del poder16, tras la “gran victoria” frente al nacionalsocialismo e, indirectamente, frente al comunismo soviético y la sustitución del imperialismo europeo por el de matriz estadounidense, la ideología liberal –con sus componentes individualistas, abstractos y formalistas– se consolida como la visión “natural” y “universal” que se expresa diáfana y con matices universalistas en las “normas” y textos que van surgiendo del orden institucional global de Naciones Unidas. Este orden, que se mantiene intacto hasta la crisis del keynesianismo a principios de los setenta y que se desmorona a finales de los ochenta con el “triunfo” del capitalismo anglosajón y sus justificaciones englobadas bajo el rótulo del “fin de la historia” y del “Consenso de Washington”, está siendo sustituido por otro conjunto de procesos que están ampliando la idea liberal de derechos humanos a otras esferas antaño consideradas “malditas” al “pertenecer” a los supuestos básicos del marxismo y del socialismo real17. Lo que nos interesa, por el momento, es 16
Ver las obras de Richard TUCK, Natural Rights Theories, Cambridge University Press, 1981; Philosophy and government: 1572-1651, Cambridge University Press, 1993; y, sobre todo, The rights of war and peace: political thought and the international order from Grotius to Kant, Oxford University Press, 1999 17 Negri, A., Hardt, M., Imperio, Paidós, Barcelona, 2002.
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resaltar la visión liberal individualista de los derechos humanos que, a partir de ese afán universalizador y garantista de la ideología liberal, ha primado en el periodo de la Guerra Fría y que aún sigue funcionando como presupuesto ideológico en el campo de la producción jurídica. Por un lado, el término “humanos” ha servido para la imposición de una concepción, como decimos, liberal-individualista de la idea de humanidad, la cual sobrevolaría por encima de la división del mundo en los dos bloques antagónicos, y que funciona “como si” expresara la esencia abstracta de la persona. Por otro, el término “derecho” ha servido para presentar los derechos humanos “como si” pudieran ser garantizados por sí mismos sin la necesidad de otras instancias. Esto ha llevado a polémicas falaces y desenfocadas que han discutido si era mejor hablar de derechos fundamentales o de derechos humanos (o como en el caso de Habermas de “derechos” formales versus derechos “humanos”). El hecho de la existencia de un derecho nacional de los derechos humanos (los derechos fundamentales), y un derecho internacional de los derechos humanos, nos aclara lo que venimos defendiendo: cuando hablamos de derechos humanos, lo hacemos de una convención, de un acuerdo ideológico, que apunta a algo que tiene más contenido que el puramente formal y que, asimismo, nos aleja de las visiones esencialistas de la Declaración de 1948. Y, sin embargo, como vimos con Habermas –visión ratificada por el escepticismo que profesa la teoría jurídica en relación al concepto de derechos humanos– predomina la concepción formalista de los mismos. Esta concepción, además de mantener una concepción restringida de cultura jurídica como algo separado del conjunto de relaciones sociales, políticas, jurídicas y económicas, parte también de una visión muy estrecha de las prácticas jurídicas. El derecho no es únicamente un reflejo de las relaciones sociales y culturales dominantes; también puede actuar, o, mejor dicho, puede ser usado, y así
ha
sido
históricamente
tanto
por
tendencias
conservadoras
como
revolucionarias, para transformar tradiciones, costumbres e inercias axiológicas. No es que estemos ante una herramienta neutral: en primer lugar, el derecho es una
técnica
de
dominio
social
particular 18
que
aborda
los
conflictos
neutralizándolos desde la perspectiva del orden dominante. Y, en segundo lugar, 18
Capella, J.R., Elementos de análisis jurídico. Op. cit. pg. 150
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es una técnica especializada que determina a priori quién es el legitimado para producirla y cuáles son los parámetros desde donde enjuiciarla. De ahí la inmensa fuerza del que controla –en otras palabras, del que está dotado de autoridad para la– tarea de “decir” el derecho a la hora de conformar actitudes y regular relaciones sociales en un sentido ideológica y políticamente determinado, que en la actualidad sigue siendo fuertemente sexista. Por tanto, ni desprecio de la lucha jurídica, ni confianza en que sólo a través de ella se va a llegar a un tipo de sociedad justa en la que quepan todas las expectativas, no sólo las hegemónicas. Toda “lectura” de la realidad se hace desde dos posiciones: en primer lugar, “leemos” el mundo desde las claves que el presente nos ofrece, es decir, desde los parámetros dominantes que conforman la hegemonía en un espacio y en un tiempo determinados: estamos ante la posición ideológica. Mientras que, en segundo lugar, “leemos” el mundo desde la situación que ocupamos en el interior de los conflictos sociales; o, lo que es lo mismo, desde las claves que la acción social, opositora o legitimadora frente al status quo, nos ofrece: posición política. Pues bien, la cultura jurídica –entendida como el conjunto de presupuestos teóricos, conceptuales y simbólicos a través de los cuales se interviene en, se explican y, en su caso, se interpretan las relaciones sociales desde el derecho–, despliega, por decirlo en términos de Juan Ramón Capella, un conjunto de “selectores doxológicos” 19 que inducen a un determinado tipo de “lectura” del fenómeno jurídico. En primer lugar, es una lectura “no ideológica”, la cual tiene una versión fuerte, que es la que niega la influencia de las ideologías en la producción, interpretación y aplicación del derecho; y una versión débil, que afirma que el derecho es susceptible de ser usado por cualquier ideología: aún reconociendo que las normas jurídicas son producto de una lectura determinada de las relaciones sociales, al entrar a formar parte del ordenamiento jurídico positivo, adquieren el carácter de universalidad y generalidad. Y, en segundo lugar, una lectura “no política”, cuya versión fuerte se afirma en los dogmas de autosuficiencia (validez formal) y completud (mecanismos de ajustes puramente internos); y su versión débil, la que, aún reconociendo el apego del derecho a los 19
Capella, J.R., Elementos de análisis jurídico, Op. cit. pg. 138
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conflictos, primero, “olvida” cuál de dichos conflictos estuvo en el origen de las normas y, a continuación, supone que desde ellas se puede resolver “técnicamente” cualquier otro conflicto que se presente de una manera neutral y aséptica. Tanto desde su versión fuerte como débil, esta lectura del derecho “selecciona”, jerarquiza y separa los diferentes componentes que constituyen el fenómeno jurídico en su globalidad y complejidad, invisibilizando o difuminando, como veremos, las posiciones ideológicas y políticas del mismo sustentadas en la visión patriarcal, vale decir, sexista de la realidad social. La costarricense Alda Facio 20, defiende que para llegar a un derecho y a un análisis jurídico apropiados para entender la categoría de derechos humanos de todas y todos, es preciso adoptar, en primer lugar, un concepto amplio de derecho que
contemple
tanto
el
componente
formal/normativo,
como
el
institucional/estructural y el político/cultural; concepto que conduzca a la consiguiente ampliación de los conceptos de validez formal, aplicación e interpretación y eficacia de las normas; de lo que se deduce, en segundo lugar, la exigencia de una visión relacional, no fragmentaria o idealizada, de dichos componentes, dado que no se habla de tres esferas o perspectivas, sino de tres componentes de una misma realidad, sólo separables a un nivel pedagógico. Hablar del componente formal/normativo, es hacerlo no sólo del conjunto de normas positivas que configuran lo que se denomina “ordenamiento jurídico”, aunque éste sea su contenido fundamental; sino también, del conjunto de reglas que institucionalizan determinados comportamientos relegando otros a lo perseguido o perseguible por las instituciones dotadas de autoridad. Estas reglas no agotan su funcionalidad en sí mismas, sino que van marcando el ritmo de la actividad interpretativa, creando, al mismo tiempo, formas de pensar que establecen lo que en un deteminado momento espacio-temporal se denomina sentido común. Estamos pues ante la “ordenación” y regulación de quien ostenta poder, de quien interpreta las decisiones de ese poder, conformando, paralela y simultáneamente, las conciencias de los sometidos a la autoridad. Por lo que los 20
Facio, A., Cuando el género suena cambios trae, ILANUD, San José de Costa Rica, 1999; Facio, A., y Fries, L., “Feminismo, Género y Patriarcado”, y Facio, A., “Hacia otra teoría crítica del derecho”, ambos trabajos recogidos en Facio, A., y Fries, L., (edit.), Género y Derecho, LOM Ediciones/La Morada, 1999, p. 21-60, y 201-229 respectivamente.
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componentes estructural/institucional y el político/ cultural influyen, y son influidos, por
el
componente
formal.
Asimismo,
hablar
del
componente
estructural/institucional no consiste únicamente en describir las instituciones que crean las normas, las aplican y las tutelan. También hay que hablar del “contenido” que dichas instituciones les dan a las normas formalmente promulgadas al combinarlas, seleccionarlas, aplicarlas e interpretarlas, creando, como afirma Facio, otras leyes no escritas –como la que impone la tendencia a otorgar los hijos a las madres en los procesos de separación y divorcio–, pero de tanta o mayor importancia a la hora de entender el fenómeno jurídico en su globalidad. Desde esta perspectiva, no se puede entender la interpretación y aplicación del derecho (sea por parte de la administración pública o la de justicia) únicamente desde la actividad del órgano dotado de jurisdicción (es decir, desde las operaciones intelectuales realizadas por las entidades jurisdiccionales a la hora de interpretar y aplicar la norma); sino también desde los resultados a los que conducen dichas actividades, o lo que es lo mismo, desde la atribución de significados a los hechos y a las normas en función de la cultura jurídica que predomine y los objetivos y valores dominantes. La interpretación y aplicación que de una ley se realice de forma reiterativa, o la ausencia de ambas –por ejemplo, por su lejanía de la realidad social o por una imposibilidad material de aplicación– va dotando de significados a dicha ley otorgándole una determinada vigencia o falta de efectividad al margen de la pura actividad formal. El hermeneuta, tal como lo concibe Juan Ramón Capella, está ligado a dos tipos de exigencias: unas, internas a la actividad de decidir; otras, ligadas a la estructura institucional en la que está inserto. Por lo que el juez o el administrador no sólo están sujetos a normas preexistentes y a reglas institucionales, sino también a valores, ideales, representaciones intelectuales, pasiones, intereses concretos y condiciones de factibilidad de su actuación jurisdiccional que no tenemos otro remedio que considerar como parte del contenido de la ley, si es que no queremos, como veremos más adelante, caer en una metafísica jurídica de claros tintes conservadores. De igual modo, el componente político/cultural no se reduce al mero conocimiento que la ciudadanía tenga de las leyes. Está claro que si no conocemos nuestros derechos, éstos no se exigirán. Pero en esta tarea ciudadana de “exigencia” y reconocimiento de derechos, estos se rellenarán de un
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contenido ausente de la pura redacción formal. Como afirma Alda Facio, del contenido que cada comunidad le dé a los principios y valores tales como libertad, igualdad, solidaridad, honestidad... dependerá mucho de lo que se entienda por “igualdad de salario”, “igualdad conyugal”, “igual cualificación” o “libertad de trabajo”, todos ellos conceptos relevantes de diferentes campos jurídicos concretos. Una ley o una norma por muy válida que sea, en el sentido formal del término, no podrá ser interpretada o aplicada por las autoridades jurisdiccionales si no es auspiciada, impulsada o exigida por la ciudadanía, y, asimismo, una norma será o no considerada conforme a la constitución, no por sí misma, sino hasta que un tribunal así lo decida, bien –en nuestro ordenamiento constitucional– por duda razonable, bien, por el recurso planteado por los sectores “sociales” legitimados para ello. Por tanto los tres componentes del fenómeno jurídico hay que entenderlos en estrecha interrelación. Sin embargo, hay que insistir sobre el nivel formal de lo jurídico, ya que es ahí donde más se han cebado las interpretaciones metafísicas al imputarle una característica más propia de los elementos que componen el topos uranos platónico
que
los
específicos
de
una
sociedad
democrática:
la
autofundamentación. A pesar de la imposibilidad de un sistema cerrado y completo en sí mismo denunciada por Gödel y las mismas dudas del mismo Kelsen en relación al carácter de mero supuesto, de hipótesis o de ficción de la Grundnorm, la idea “utópica” de validez formal (la validez o invalidez de una norma puede deducirse desde sí misma y únicamente en relación con otras normas, por lo que el proceso jurídico se percibe como un mecanismo automático que sigue las pautas de alguna entidad 21) sigue funcionando, no sólo como selector, sino, de un modo más relevante, como “inductor” doxológico para los operadores jurídicos. El trato con las normas jurídicas como si estas formaran parte de una máquina autosuficiente hace pensar al que legisla, aplica o interpreta –misión básica y tradicional de los años de aprendizaje y de los ritos de entrada en la práctica jurídica legítima–, que el derecho se sustenta a sí mismo y no está sometido a alguna previa “lectura” de la realidad. Una norma es válida si y sólo si existe otra norma que corrobora el enunciado, sin apenas reflexionar acerca del 21
Hinkelammert, F.J., Crítica de la razón utópica (edición a cargo de J.A. Senent de Frutos), Desclée de Brouwer, 2002
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“misterio” que subyace a la autoridad que otorgó legitimidad a la “Grundnorm” originaria, cuya “voluntad” es diaria y cotidianamente puesta en circulación desde los diferentes campos de actividad del derecho. Más que “conocer el derecho”, el juez debe saber situarse en los límites de esa “norma básica” que se finge aceptar como la dadora originaria de validez y que permite separar los tres componentes de todo fenómeno jurídico, otorgándole a cada uno una esfera independiente de actuación con respecto a un mero texto concebido, por obra y gracia de esa norma fundamental, como una cosa o un objeto situado al margen de las diferentes subjetividades. La utopía de la validez formal presupone, pues, la “ficción” de un legislador y un intérprete omnisciente que es capaz de conocer los límites y fundamentos del derecho sin tener que recurrir a alguna entidad externa a él; y, asimismo, se basa en la “creencia” –o, asimismo, en la ficción– de que el ordenamiento jurídico es una máquina autosuficiente que camina por sí sola al otorgarse a sí misma los criterios que la convierten en válida para todos los que van a regularse por ella. La omnisciencia del legislador, del intérprete/aplicador y del intérprete/descubridor de lógicas inmanentes, o la referencia a la autorregulación y autofundamentación de la maquinaria jurídica, son ambos presupuestos metafísicos que no pueden someterse
a
las
condiciones
de
factibilidad
(lecturas
condicionadas
y
contextualizadas de las relaciones sociales y ausencia de todo automatismo de los sistemas) de toda anticipación racional que no pretenda convertirse en utopía absolutista y cosificada. Sin embargo, por muy metafísicos y utópicos que sean, dichos presupuestos son necesarios para evitar reconocer la presencia de las ideologías y de las relaciones fácticas de poder, y pasar a entender las normas como enunciados normativos neutrales y universales. “Porque si no se “finge” la existencia de la Grundnorm, nos quedaríamos únicamente con la descripción de hechos o de relaciones fácticas de poder” 22, con lo que ni se describe ni se conoce el derecho positivo,
...sino que se acaba construyendo un discurso político o una ideología acerca de cómo debe ser concebido el Derecho, esto es, una concepción apriorística del mismo... un sistema jurídico22
Fariñas Dulce, M.J., “La ‘ficción’ en la teoría jurídica de Kelsen” en Crítica Jurídica. Revista Latinoamericana de Política, Filosofía y Derecho, 18, 2001, p. 106
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estatal unificado, jerarquizado, pleno y coherente de normas jurídicas y autoridades normativas, dotado de validez objetiva y obligatoriedad intrínseca... 23,
del cual han sido amputados los hechos y las mismas relaciones de poder. Lo dice muy bien Antonio Tabucchi en La cabeza perdida de Damasceno Monteiro, utilizando para ello la “ficción” literaria:
es una proposición normativa –dice el abogado al periodista–, está en el vértice de la pirámide de lo que llamamos Derecho. Pero es el fruto de la imaginación del estudioso, una pura hipótesis... Si usted quiere es una hipótesis metafísica, absolutamente metafísica. Y si usted quiere, se trata de un asunto auténticamente kafkiano, es la norma que nos enreda a todos y de la cual, aunque le pueda parecer incongruente, se deriva la prepotencia de un señorito que se cree con derecho a azotar a una puta. Las vías de la Grundnorm –concluye el abogado– son infinitas 24.
No se quiere decir que, por ejemplo, una constitución democrática induzca o proteja al torturador, al violento o al que maltrata a una mujer (aunque las nuevas tendencias legislativas antiterroristas, surgidas en los USA –tras el 11 de Septiembre– y rápidamente adoptadas, más o menos a regañadientes, por sus satélites,
contradigan
la
afirmación
anterior,
dada
su
pretendida
constitucionalidad), sino que la ficción cultural que está en la base de las normas, sobre todo de aquella que “nos enreda a todos”(legisladores, aplicadores, intérpretes y ciudadanas/os), conduce a la legitimación, ahora sí, normativa de actos de violencia, de explotación o de marginación difícilmente controlables por el resto de normas jurídicas enredadas en aquella hipótesis o ficción. Como afirma Robert Cover, habitamos un nomos, un universo normativo a partir del cual distinguimos entre el bien y el mal, lo legal y lo ilegal, lo válido y lo inválido.
Las reglas y principios de justicia, las instituciones formales del derecho y las convenciones del orden social son, por supuesto, importantes para ese mundo (normativo); y, sin embargo, sólo son una pequeña parte del universo normativo que debería llamar
23 24
Fariñas Dulce, M.J., op. cit. p. 105-106. Tabucchi, A., La cabeza perdida de Damasceno Monteiro, Anagrama, Barcelona, 1997, p. 86-87
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nuestra atención .
Quedarnos en el aspecto puramente formal nos hace olvidar, o nos oculta ideológicamente, que actuamos en el marco de un conjunto de narraciones que sitúan las normas y les otorgan significado cultural. Toda constitución –afirma Cover– tiene una épica, como todo decálogo tiene una Escritura.
Cuando se lo entiende en el contexto de las narraciones que le dan sentido, el derecho deja de ser un mero sistema de reglas a ser observadas, y se transforma en un mundo en el que vivimos.
Los derechos humanos funcionan como ese contexto de narraciones al establecer “procesualmente” las relaciones entre el mundo normativo y el mundo material, entre los límites y obstáculos de la realidad y las demandas éticoculturales de la comunidad. El que ese contexto de narraciones nos conduzca a un paradigma de pasividad y de resignación o a otro de contradicción y resistencia dependerá de nuestros “compromisos interpretativos” en relación con el estado de cosas dominante. Si reducimos los derechos a su componente jurídico-formal perderemos eso que George Steiner denomina la “alternidad” del “nomos”, es decir, la facultad de construir “lo distinto a lo que es”, es decir,
...las proposiciones, imágenes, formas del deseo y de la evasión contrafácticas con las cuales alimentamos nuestra vida mental y a través de las cuales construimos el medio cambiante y en gran medida ficticio de nuestra existencia somática y social 26.
Si analizamos las normas (o, lo que es muy importante, las consecuencias de su aplicación a colectivos tradicionalmente marginados de las ventajas que 25
Robert Cover, Derecho, narración y violencia. Poder constructivo y poder destructivo en la interpretación judicial, (edición a cargo de Ch. Courtis), Gedisa (Biblioteca Yale de Estudios Jurídicos), Barcelona, 2002, p. 16 26 G. Steiner, Después de Babel, Fondo de Cultura Económica, México D.F.-Madrid, 1980 (ver R. Cover, op cit., p. 23. “El alcance del significado que se puede asignar a toda norma –la interpretabilidad de la norma- se define, entonces, tanto por un texto legal, que objetiva la exigencia, como por una multiplicidad de compromisos implícitos y explícitos que lo acompañan. Algunas interpretaciones están escritas con sangre, y permiten apelar a la sangre como parte de su fuerza de legitimación. Otras interpretaciones suponen límites más convencionales acerca de cuánto debe arriesgarse en su defensa. Las narraciones que cada grupo particular asocia con la ley revelan el alcance de los compromisos del grupo. Esas narraciones también ofrecen recursos de justificación, condena y debate a los actores del grupo que deben luchar para vivir su ley”, p77)
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supone la adopción de aquella ficción y de ese “nomos”) y las teorías o reflexiones sobre las mismas, percibiremos las dificultades existentes a nivel jurídico e institucional para incluir las expectativas y los valores de grandes capas de la población: el patriarcalismo, el individualismo posesivo y el formalismo están en la base de dicha norma fundamental, de dicha hipótesis, ficción o, mejor aún, de dicha cultura jurídica dominante. Ahora bien, al toparnos con universos discursivos y no con esencias absolutas o metafísicas, podremos defender que, si la burguesía tuvo éxito al construir un procedimiento que le permitió elevar sus valores y expectativas a la categoría de “Grundnorm”, hoy en día se debe generalizar dicha posibilidad y posibilitando una transformación del procedimiento jurídico para que otros colectivos puedan constituir –parafraseando a Ignacio Ellacuría–, otra “Grundnorm”: es decir, otro conjunto de ficciones y supuestos, favorables ahora, no sólo a una clase social, la que triunfa con las revoluciones burguesas, sino a los colectivos tradicionalmente marginados de la ficción hegemónica: indígenas, inmigrantes, mujeres... Por muy importante que sea defender el principio de seguridad jurídica que certifica la validez interna de las normas y otorga certeza en la aplicación del derecho, y por muy relevante que sea identificar las normas que promuevan desigualdades o discriminaciones –tanto en su redacción formal como en los resultados que produzcan–, cuando hablamos desde la convención de los derechos humanos es mucho más necesario desvelar y enjuiciar críticamente los rasgos patriarcales de la cultura jurídica; es decir, los supuestos, hipótesis y ficciones que imponen un único punto de vista, una lectura particular y parcial de la realidad como si fuera la única y la universal. Y para ello se necesita una concepción del derecho que interrelacione sus tres componentes.
2. El Concepto de Derechos Humanos: Los Derechos Humanos como Procesos ...la libertad es lo más apreciado y lo más dulce... esta libertad no sólo se puede conceder sin perjuicio para la paz piedad y la paz del Estado, sino que, además, sólo se la puede suprimir, suprimiendo con ella la misma paz del Estado y la piedad (Spinoza, Tratado teológico-político, Prefacio 20-30) La capacidad de disfrutar es condición para disfrutar, y es, por lo
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tanto, su primer instrumento; esta capacidad equivale al desarrollo de un talento individual, de la fuerza productiva. (A. Negri, Marx oltre Marx, cap.8)
Los derechos humanos, en su integralidad y desde el universo normativo de resistencia que defendemos en estas páginas, constituyen algo más que el conjunto de normas formales que los reconocen y los garantizan a un nivel nacional o internacional, formando parte de la tendencia humana ancestral por construir y asegurar las condiciones sociales, políticas, económicas y culturales que permiten a los seres humanos perseverar en la lucha por la dignidad, o lo que es lo mismo, el impulso vital que, en términos spinozianos, les posibilita mantenerse en la lucha por seguir siendo lo que son: seres dotados de capacidad y potencia para actuar por sí mismos. Los valores –libertad, igualdad, solidaridad– que en esas luchas se han ido formulando han sido producto de lo que Spinoza denominó el conatus 27, es decir, la creación inmanente de potencia política de la multitud para perseverar en la existencia y ampliar el poder del conocimiento y de la acción humana 28. Este conatus constituye el fundamento inmanente de los derechos humanos. Cada formación socio-política que se ha dado en la historia no ha tenido su causa en alguna voluntad trascendente que dadivosamente le otorga su posibilidad de existencia; la causa es siempre inmanente, y se identifica con ese conatus que nos impulsa a la autoconservación y cuya fuerza e intensidad no está en relación con esencias metafísicas sino con el conjunto de relaciones que mantenemos con otras fuerzas, sean naturales o sociales. El “conatus”, la potencia de la multitud es la causa inmanente de nuestra humana tendencia a actuar en aras de la perseveración en el ser y de la transformación de todo aquello que intente reducir su fuerza y su dinamismo. Si nuestro universo normativo se sustenta en el miedo, en la superstición y en la muerte, estamos 27
Término latino que significa esfuerzo de, o esfuerzo para; en la filosofía del siglo XVII, es usado a partir de la nueva física que, al presentar el principio de inercia (un cuerpo permanece en movimiento o en reposo si ningún otro cuerpo actúa sobre él modificando su estado), hace posible la idea de que todos los seres del universo poseen la tendencia natural y espontánea a la autoconservación y se esfuerzan para permanecer en la existencia. Ver Marilena Chauí, Espinosa, uma filosofia da liberdade, Editora Moderna, Sao Paulo, 1995, p. 106. 28 Los valores no constituyen una esfera separada u objetiva que oriente la acción humana desde fuera de sí misma. Por ejemplo, la libertad, para Spinoza, no se identifica con el libre arbitrio de la voluntad a la hora de elegir entre varias opciones que se le presentan heterónomamente. De acuerdo con Spinoza, la libertad no es un acto de elección voluntaria, sino la capacidad para convertirnos en agentes o sujetos autónomos de nuestras ideas, sentimientos y acciones, de acuerdo con la causalidad interna de nuestro “conatus”. Ver Marilena Chauí, op. cit. P. 107.
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ante la aniquilación de lo humano, entendido no como el resultado de la manifestación de alguna esencia trascendente a nuestra condición humana, sino como el despliegue de nuestras potencialidades inmanentes. Sólo desde la alegría, la felicidad y el deseo de vida que sólo se despliegan cuando lo social, lo jurídico, lo económico o lo político se dedican a fortalecer nuestra potencia ciudadana, es como podemos plantear una definición de derechos humanos que supere los intentos de reducirlos a una de sus facetas: la jurídica-formal, o de insertarlos en una trascendencia metafísica alejada de las pasiones, las necesidades y las determinaciones de nuestra existencia 29. Los derechos humanos, pues, deben ser vistos como la convención terminológica y político-jurídica a partir de la cual se materializa el “conatus” que nos induce a construir tramas de relaciones –sociales, políticas, económicas y culturales– que aumenten las potencialidades humanas. Por eso debemos resistirnos al esencialismo de la “convención” –la narración, el horizonte normativo– que ha instituido el discurso occidental sobre tales “derechos”. Si, convencionalmente se les ha asignado el calificativo de “humanos” para universalizar una idea de humanidad (la liberal-individualista) y el sustantivo de “derechos” para presentarlos como algo conseguido de una vez por todas, nosotros nos situamos en otra narración, en otro nomos, en otra grundnorm, en un discurso normativo de “alternidad”, de alternativa, de resistencia a los esencialismos y formalismos liberal-occidentales que, hoy en día, son completamente funcionales a los desarrollos genocidas e injustos de la globalización neoliberal. Bajo estas premisas, los derechos humanos, en su integralidad (derechos humanos) y en su inmanencia (trama de relaciones) pueden definirse como el conjunto de procesos sociales, económicos, normativos, políticos y culturales que abren y consolidan –desde el “reconocimiento”, la “transferencia de poder” y la “mediación 29
Sobre el conatus spinoziano, entendido como fundamento inmanente de los derechos humanos, puede consultarse la Parte III de la Ética (RBA, Barcelona, 2002) y el Tratado Político, Alianza, Madrid, 1986. Asimismo, consultar Lucía Lermond Leiden, The form of man: human essence in Spinoza’s “Ethic”, E.J. Brill, 1988; G. Deleuze, Spinoza: filosofía práctica, Tusquets, Barcelona, 2001; A. Negri, La Anomalía Salvaje: ensayos sobre poder y potencia en Baruch Spinoza, Anthropos, Barcelona/UAM Iztapalapa, 1993; y la magna obra de la filósofa brasileña Marilena Chauí, A nervura do real. Imanência e Liberdade en Espinosa, Vol. 1 Imanência, Companhia Das Letras, 1999.
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jurídica”– espacios de lucha por la particular concepción de la dignidad humana 30.
Para los objetivos de este trabajo, nos interesa resaltar la idea según la cual los derechos humanos no son algo dado y construido de una vez por todas en 1789 o en 1948, sino que se trata de procesos. Es decir, de dinámicas y luchas históricas resultado de resistencias contra la violencia que las diferentes manifestaciones del poder, tanto de las burocracias públicas como privadas, han ejercido contra los individuos y los colectivos. Ahora bien, no hablamos de procesos “abstractos” dirigidos por alguna filosofía o dialéctica histórica con pretensiones de objetividad y absolutismo; ni, asimismo, lo hacemos de un poder mistificado en alguna instancia trascendente, a partir de la cual la realidad social va
emanando
milagrosamente.
“convencionalmente” hemos
ido
Los
procesos
denominando
de como
lucha,
a
los
que
derechos humanos,
comenzaron a surgir históricamente con la aparición y consolidación paulatina de una nueva forma de producir y de distribuir bienes, que fue dando como resultado nuevas formas de relación social: el modo de producción capitalista y su dogma de los mercados autorreguladores. Como afirma Bourdieu, a estas nuevas relaciones de producción que conforman las diferentes formas de capital –económico, social, cultural– que se han ido dando históricamente, le corresponden diferentes formas de poder – político, regulador, simbólico– que aseguran su producción y su reproducción social.
El capital es una fuerza inscrita en la objetividad de las cosas que determina que no todo sea igualmente posible e imposible (...) la estructura de distribución de los diferentes tipos y subtipos de capital, dada en un momento determinado del tiempo, corresponde a la estructura inmanente del mundo social, esto es, a la totalidad de fuerzas que le son inherentes y mediante las cuales se determina el funcionamiento duradero de la realidad social y se deciden las oportunidades de éxito de las prácticas 31.
30
Joaquín Herrera Flores “Hacia una visión compleja de los derechos humanos” en Joaquín Herrera Flores (ed.), El Vuelo de Anteo. Derechos Humanos y Crítica de la Razón Liberal, Desclée de Brouwer, Bilbao, 2001. 31 Pierre Bourdieu, Poder, Derecho y Clases Sociales, Desclée de Brouwer, Bilbao, 2ª edición, 2001, p. 132-133 (cursivas nuestras).
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En primer lugar, el capital es una fuerza inscrita, un tipo de relación construida y no una fase histórica objetiva que contiene un pasado y un futuro ineluctables; en segundo lugar, es una fuerza que construye la estructura inmanente del mundo social, es decir, el marco institucional y la propia naturaleza de las prácticas sociales; para, en tercer lugar, condicionar dichas prácticas al tipo de acción (¿racional?) desmovilizadora y despolitizadora que las reduce a una inercia política conservadora que
...mantiene a los agentes dominados en una situación de grupo meramente práctica, de tal modo que sólo entren en contacto unos con otros mediante la orquestación de disposiciones, resultando condenados, además, a funcionar como un agregado y a limitarse a unas prácticas aisladas y aditivas siempre idénticas (como las decisiones electorales o de consumo) 32.
A medida que ese tipo de
estructura inmanente del mundo social” se va generalizando históricamente y va consolidando estructuras de poder adecuadas a su afán voraz de acumulación y dominación, van surgiendo los procesos que, en la actualidad, denominamos “derechos humanos.
Estos constituyen, por un lado, dinámicas sociales de diferente tipo que han impulsado a la acción frente a la extensión y generalización de las relaciones sociales, políticas, económicas y culturales que se iban construyendo en la interacción entre las diferentes formas de capital y sus consecuentes formas de poder. Y, asimismo, han funcionado como marcos o esquemas de acción y pensamiento que han permitido generalizar socialmente valores alternativos a la forma de relación social dominante. Así, la burguesía en ascenso durante los siglos XVII y XVIII utilizó los “derechos del ciudadano” –en esta fase histórica no se puede hablar aún de “derechos humanos”– para resistirse al esquema de relaciones que primaba bajo las monarquías absolutistas. El proceso de “acumulación originaria” exigía, primero, la conformación de espacios autónomos de acción en los que las burocracias feudales o monárquicas no pudieran
32
P. Bourdieu, op. cit.: nota 1, p. 132 y, del mismo autor, Esquisse d’une théorie de la pratique precede de trois études d’ethnologie kabyle, Droz, Genève, 1972
100
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interferir, y, segundo, un tipo de fundamento esencialista “humanista” que propiciara una consideración de las relaciones sociales como producto del despliegue de una naturaleza humana “individualista” y “posesiva” ancestral, que, vayamos a saber por qué milagrosa razón, coincidía con los intereses de la clase en ascenso. Las “filosofías de la historia” cumplieron su papel al afirmar que el presente no era más que la consecuencia necesaria de un pasado que, al mismo tiempo, incluía en él las mismas claves del futuro. La garantía filosófica, ética y política de la nueva configuración social, económica, política y cultural y su propia reproducción escatológica quedaba asegurada. Sin embargo, en el mismo seno de esta nueva estructuración de las relaciones entre capital y formas de poder que se sustenta en la categoría de derechos del “hombre” y del ciudadano, ya iban surgiendo quiebras impulsadas por los colectivos que quedaban marginados de las ventajas del sistema y que proponían nuevas rearticulaciones económicas, filosóficas y políticas: Olimpe de Gouges y sus reivindicaciones de género; Babeuf y su lucha por la sustitución de la igualdad formal ante la ley por una igualdad real de todos; Toussaint L’ Ouverture y sus prácticas antiesclavistas y antirracistas; Marx y su análisis “científico” del funcionamiento del capitalismo como base de prácticas antisistémicas... Todos ellos construyendo las posibilidades de otro proceso en el que esos derechos de los ciudadanos no funcionaran como obstáculos para prácticas sociales diferentes. ¿Qué decir de los movimientos feministas de los años 70 y 80 a favor de la aceptación de la diferencia de género? ¿Dónde contextualizar los esfuerzos de los colectivos negros, latinos, indígenas sino en la construcción de nuevos procesos y nuevos espacios de lucha por su particular concepción de la dignidad humana? Estamos, pues, ante procesos y dinámicas históricas que han ido tomando forma en textos y declaraciones, y que desde el siglo XVIII hasta la actualidad han venido conformando el marco de adaptación o reacción frente a las consecuencias de la extensión social, económica, política y cultural del modo de producción capitalista. Como decimos, estos textos y declaraciones son, por un lado, producto de la reacción social frente a las diferentes fases por las que ha atravesado la construcción de dicha estructura inmanente del mundo social; pero, por otro, han querido ser vistos ideológicamente –idios logos: discurso privado y particular que
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se presenta como universal– como producto del despliegue de una naturaleza humana esencial y abstracta. Si nosotros hablamos de derechos humanos como procesos de lucha –el conatus como fundamento inmanente de los derechos humanos–, debemos negar estas fundamentaciones idealistas y ver los derechos humanos en sus contextos y en sus relaciones de adaptación o crítica ante la estructura inmanente del mundo social que impone el capitalismo. Así, como hemos visto, con el primer conjunto de textos (siglo XVIII) nos encontramos con la formulación de los derechos del ciudadano, bajo los cuales se pretendió asegurar el ámbito autónomo –individual y esencialista– de libertad necesario para la acción ¿racional? del individuo en el nuevo marco de relaciones sociales capitalistas que se estaba diseñando: Declaración del Buen Pueblo de Virginia y Declaración del Hombre y del Ciudadano 33, textos perfectamente funcionales, primero, para enfrentarse a las estructuras del Ancien Regime, y, segundo, para la extensión colonial e imperialista de las potencias occidentales. Sin embargo, tras las dos grandes guerras que asolaron el continente europeo durante el siglo XX y que implicaron, por primera vez, a la potencia norteamericana como “socio” en la rapiña colonial y neocolonial que se avecinaba para la segunda mitad del siglo, surge el concepto de derechos humanos: un concepto que pretendía extenderse a toda la humanidad, al no circunscribirse únicamente a los derechos del hombre burgués, blanco y capitalista, y que “parecía” gozar de la garantía jurídica que ofrece el sustantivo de “derechos” (Cortes regionales e internacionales de justicia). Sin embargo, debemos tener en cuenta tres cuestiones: 1a) la inserción de dicho concepto (Declaración Universal de Derechos Humanos) en el marco sociopolítico de la Guerra Fría entre los países capitalistas y los comunistas –lo cual lo redujo de nuevo a la defensa y garantía de los derechos individuales del sujeto capitalista, frente a los derechos sociales, económicos y culturales de los colectivos de ideología socialista; 2a) el reconocimiento positivo de los derechos se dio en el marco geo-estratégico de la descolonización “controlada” de las 33
Sin embargo, no debemos tener una visión unilineal de la historia; al lado de estas “declaraciones” liberales, fueron surgiendo alternativas que intentaban superarlas desde diferentes ámbitos: la incorporación de la mujer (O. de Gouges), los derechos de las masas populares (jacobinos), las ansias de libertad y justicia de los esclavos (Haití). Alternativas que fueron inmediatamente desmanteladas por un poder burgués que iba asumiendo hegemonía y que no aceptaba ir más allá de lo que sus ideólogos ilustrados habían concebido.
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antiguas colonias –lo cual redujo el papel liberador de los llamados derechos de autodeterminación–, y supuso la consolidación de un sistema jurídico y político internacional basado en la supremacía de la voluntad de los Estados y 3a) la continuidad de la definición “humanista”, es decir, esencialista y abstracta de los derechos, que pretendía verlos como la plasmación histórica del despliegue de una naturaleza humana ahistórica, producto de alguna instancia trascendental ajena a los procesos de lucha sociales y separada de la extensión del capitalismo como base ideológica, económica y política de la reconstrucción mundial tras la segunda gran guerra. Estos tres elementos supusieron una reducción del concepto a sus márgenes individualistas, etnocéntricos, estatalistas y formalistas, perfectamente funcionales ante la nueva fase de acumulación del capital que se dio en la segunda mitad del XX y sus correspondientes formas de poder social, económico y cultural. En la actualidad, estamos asistiendo a una nueva fase histórica que está exigiendo una nueva perspectiva teórica y política en lo que concierne a los derechos humanos. Desde finales de los años ochenta y principios de los noventa del siglo pasado, y a consecuencia de fenómenos tales como la caída estrepitosa del socialismo real y la consiguiente expansión global del modo de producción y de relaciones sociales capitalistas, se han iniciado nuevos procesos que están poniendo en cuestión la naturaleza individualista, esencialista, estatalista y formalista de los derechos que primó desde 1948 hasta casi la última década del siglo XX. La nueva fase de la globalización, la denominada “neoliberal”, puede caracterizarse en términos generales bajo cuatro características articuladas : a) la proliferación de centros de poder (el poder político nacional se ve obligado a compartir “soberanía” con corporaciones privadas y organismos globales multilaterales), b) la inextricable red de interconexiones financieras (que hacen depender las políticas públicas y la “constitución económica” nacional de fluctuaciones económicas imprevisibles para el “tiempo” con el que juega la praxis democrática en los Estados Nación), c) la dependencia de una información que vuela en tiempo real y es “cazada” por las grandes corporaciones privadas con mucha mayor facilidad que por las estructuras institucionales de los Estados de Derecho), y d) el ataque frontal a los derechos sociales y laborales (que está
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provocando que la pobreza y la tiranía se conviertan en “ventajas comparativas” para atraer inversiones y capitales) 34. Estas características propias de la nueva fase de apropiación del capital, están provocando un cambio importante en la consideración de los derechos humanos: primero, a un nivel jurídico, estos “hechos” han inducido, en primer lugar, a la crisis del derecho nacional de los derechos humanos, ya que las constituciones –sobre todo, las que surgieron en América Latina y en la Europa Latina tras las dictaduras del último tercio del siglo XX, y en las que se vertió la última esperanza del Estado democrático de derecho– están perdiendo su carácter normativo y se están acercando peligrosamente a lo que Loewestein denominaba constituciones nominales y semánticas; y, en segundo lugar, están suponiendo la reconfiguración del derecho internacional de matriz “particularista” y “soberanista” que primó tras la proclamación de la Declaración Universal. La instauración paulatina de un orden global desigual e injusto que está minando las propuestas de justicia social, están llevando a la teoría jurídica internacionalista más progresista a una “relectura constituyente” que base el derecho internacional, más que en el individualismo y el etnocentrismo, en la planetarización de las necesidades y exigencias de individuos y grupos, en la búsqueda material de justicia y de solidaridad y en la instauración de una relación circular entre el Estado y la comunidad internacional35. Y, a otro nivel, la conciencia de las injusticias y los desequilibrios a los que conduce la globalización, está provocando, en primer lugar, el surgimiento de procesos
de
reacción
social
multitudinarios
de
repulsa
(movimientos
antiglobalización) que llevan años poniendo en jaque las antaño tranquilas y legitimadas reuniones de los poderosos del planeta; en segundo lugar, el inicio de búsquedas de nuevas rearticulaciones de redes sociales amplias (los tres foros sociales mundiales celebrados en Porto Alegre), que están formando un movimiento de movimientos a nivel planetario que no se conforma con las tradicionales formas de participación y articulación sociales, sino que están creando una nueva visión de lo que significa la democracia; y, a nivel 34
José Eduardo Faria, El derecho en la economía globalizada, Op.cit.. VV.AA., “El derecho en una democracia cosmopolita”, monográfico de Anales de la Cátedra Francisco Suárez, n°. 36, 2002. 35 Juan A. Carrillo Salcedo, “Prólogo” a J.M. Pureza, El Patrimonio Común de la Humanidad. ¿Hacia un derecho internacional de solidaridad? Trotta, Madrid, 2002, p. 20.
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internacional, están dando origen a toda una amalgama de textos, declaraciones y propuestas que superan con creces el carácter individualista y esencialista de la Declaración Universal 36. ¿Es posible negar que estamos ante un nuevo proceso, ante una nueva dinámica histórica que se enfrenta a las nuevas circunstancias por las que atraviesa el mundo a inicios del nuevo milenio? ¿Son los derechos humanos algo dado y construido de una vez por todas o procesos en permanente construcción y reconstrucción? ¿No estaremos asistiendo a la instauración de un nuevo proceso de derechos humanos enfrentado de lleno contra la globalización neoliberal?
3. Conclusiones El acto de voluntad que da origen al mundo es un acto de nuestra propia voluntad. (Shopenhauer, Obras, T. II, p. 720)
Siguiendo la revolución óptica de Huygens, a partir de la cual era el ojo humano el que iluminaba los objetos y no éstos los que enviaban su luz al ojo, Spinoza pudo concebir la naturaleza inmanente del fundamento de lo humano en 36
Consúltese el cambio de tono y de fondo que surge, entre otros textos, en la “Convención marco sobre cambio climático” (Rio de Janeiro, 1992), la “Convención de la UNESCO sobre la protección del patrimonio mundial cultural y natural (de 1972); La “Earth Charter Initiative” en la que los derechos humanos se condicionan a una visión concreta de la dignidad humana (Parte I), a la protección ambiental -con especial atención a las relaciones sociales de producción, distribución y consumo- (Parte II), a la justicia social y económica (Parte III) y a la construcción de relaciones políticas democráticas y no violentas, como precondiciones para la construcción de un “Espacio Público Compartido” (Parte IV); el “Manifiesto 2000 para una cultura de paz y no violencia”, en el que la situación violenta se ve como consecuencia de la falta de aplicación de los derechos sociales, económicos y culturales; la “Declaración del Milenio”, que comienza con el objetivo de eliminación de la pobreza y la creación de desarrollo; la importante “Declaración de Responsabilidades y Deberes Humanos” adoptada por la UNESCO y organizada por ADC Millénaire y la Fundación Valencia Tercer Milenio, y en la que desde el principio se apuesta por la imputación de responsabilidad tanto a los organismos públicos como privados de las consecuencias que provoca el orden político, social y cultural que surge de la extensión global de la globalización: véase el capítulo 3 sobre “seguridad humana y orden internacional equitativo” (artículos 10-15) y el capítulo 10 sobre “Trabajo, calidad de vida y nivel de vida” (sobre todo, articulo 36, en cuyo apartado 11 se consolida el derecho a la seguridad social y a las medidas de promoción de los derechos humanos). Este mismo tono y estas mismas cuestiones de fondo, indicadoras, como decimos, del surgimiento de un nuevo proceso de derechos humanos, se encuentra en las declaraciones de derechos indígenas redactadas en la década de los noventa del siglo XX: la “Declaración de Kari-Oca y Carta de la Tierra de los Pueblos Indígenas. Conferencia Mundial de los Pueblos Indígenas sobre Territorio, Ambiente y Desarrollo” (1992); la “Declaración de Mataatua de los Derechos Intelectuales y Culturales de los Pueblos Indígenas” (1993); la “Declaración de los Pueblos Indígenas del hemisferio occidental en relación con el Proyecto de Diversidad del Genoma Humano” (1995).
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el conatus, es decir, en la potencia humana de autopreservación en la existencia. Ese “dinamismo” de lo humano, opuesto a cualquier tentativa trascendente de pasividad y sometimiento a “necesidades” externas, supuso reconcebir la libertad, no como la libre decisión de una voluntad autónoma, sino como la expresión de una necesidad interna de existir y de actuar. Rechazando el individualismo del “contrato social hobbesiano” –a partir del cual, los seres humanos renunciaban a su potencia a favor del Estado–, Spinoza reivindicó el “conatus” como fundamento del “contrato político” –cuyo presupuesto es la igualdad de condiciones entre las partes–, que no obliga a renunciar a nada, sino que tiende a empoderar a los sujetos que participan en él. Sólo habrá libertad, para Spinoza, cuando se fortalezca el “conatus colectivo”, es decir, la trama de relaciones de empoderamiento en que debe consistir la política democrática, y el sujeto humano no quede debilitado por el miedo, la superstición o las promesas de recompensas que se presentan en las diferentes formas y manifestaciones teológicas de la vida celestial. Sin esa precondición, la acción política y social no será más que la manifestación de un simulacro: se vive en un tipo de régimen, pero se actúa “como si” si estuviera en otro. A través del “conatus”, la acción política y social tenderá a la construcción de una cultura de poder en la que se manifiesten clara y tajantemente las diferencias, la pluralidad y la potencialidad humana de transformación social. La “ingenuidad” en política es, en palabras de Slavoj Zizek, la presuposición de que la realidad es algo dado de una vez por todas, algo ontológicamente autosuficiente, siendo nuestra libertad el espacio de autonomía que nos permite la existencia en el marco de lo que se considera objetivamente puro y alejado de las impurezas de la subjetividad. La “madurez” en política, pues, supone afirmar la incompletud ontológica de la “propia” realidad: “hay realidad sólo en la medida en que hay un hiato ontológico, una grieta, en su mismo centro”, siendo la libertad, pues, la asunción de nuestra capacidad y nuestra potencialidad para aprovechar las grietas y los intersticios de lo que se considera objetivo y crear nuevas formas de organización y de lucha. Antígona no sólo niega la ley pública, sino que, como manifestación de su potencia como ser humano, la trasciende y lucha por transformarla en otra. La nueva fase del proceso de construcción social, política, económica y
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cultural de una nueva forma de estar en el mundo desde la categoría convencional e inmanente de los derechos humanos, implica necesariamente proyectar luz sobre el conjunto de relaciones que el neoliberalismo globalizado nos viene imponiendo como si de una realidad trascendental e intocable se tratara. Pero esa “necesidad de contexto” no se queda ahí. Reconocer la dependencia de las categorías sociales, como, por ejemplo, los derechos humanos, de sus condiciones sociales de existencia no es lo único que nos interesa; hay que dar un paso más y afirmar la presencia de la subjetividad revolucionaria y antagonista como motor móvil del proceso de lucha por la dignidad humana. Las fases históricas no están determinadas “objetivamente”, tal y como el actual determinismo del mercado, o el viejo determinismo comunista, nos querían hacer pensar. El paso de una época a otra es producto de subjetividades que configuran el proceso de transición y establecen las bases de la nueva configuración social. No es la transición objetiva la que se materializa en las luchas; más bien, son las luchas las que se materializan bajo la forma de la transición, del cambio, de la transformación, desde el despliegue del “conatus” colectivo spinoziano. Pues bien, lo que constituye el punto de vista decisivo en todo este proceso, no son ya las determinaciones objetivas del mismo, sino la creación de subjetividad antagonista capaz de presentar alternativas al orden dominante: en nuestros términos, los derechos humanos como procesos de lucha. Contra la pasividad de los humanismos que defienden el despliegue natural y orgánico de la naturaleza humana abstraída de sus contextos, debemos reinvidicar el dinamismo de las fundamentaciones inmanentes y materialistas que tienden, como defiende Negri, no a nuevos determinismos, sino a la constitución material de la subjetividad revolucionaria y antagonista. El acto ético y político por excelencia, defienden Jacques Ranciére, Alain Badiou y Slavoj Zizek, no es el que va más allá del principio de realidad. El propio Freud lo decía en El porvenir de una ilusión: la ilusión tiene futuro no porque la dura realidad no se pueda aceptar nunca y se necesiten falsos sueños, sino porque las “ilusiones”, interpreta Zizek, “están sostenidas por la insistencia incondicional de una pulsión que es más real que la realidad misma”. El acto ético y político por excelencia es aquel, pues, que empodera a los sujetos para que
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puedan cambiar las propias coordenadas de lo que se percibe como posible. No supone situarse “más allá del bien y del mal”, sino traduciendo literalmente la famosa obra de Nietzsche, implica posicionarnos “más allá de bien y mal”, es decir, más allá de los dualismos que nos impiden construir otras consideraciones del “bien” y otras formas distintas, no sólo de oponermos, sino, incluso, de definir el mal. Para nosotros, el mal está reglado en lo que denominamos la “nueva constitución jurídica de la globalización”, la cual se materializa en los diferentes “acuerdos” que surgen de la Organización Mundial del Comercio y cuyas consecuencias Susan George ha definido con toda claridad: –debilitar o destruir los servicios públicos; –arruinar a los pequeños agricultores; –poner en tela de juicio los logros sociales; –burlar el derecho internacional más consolidado; – perjudicar todavía más a los países ya desfavorecidos; –homogeneizar la cultura; –devastar el medio ambiente; –recortar los salarios reales y la normativa laboral; – reducir drásticamente la capacidad de los gobiernos para proteger a sus ciudadanos y la capacidad de los ciudadanos para exigir garantías a sus gobiernos. La cultura –afirma George–, la sanidad y los servicios sociales, la educación, los servicios públicos, la propiedad intelectual, la seguridad alimentaria: todo ello se ve amenazado, entre otras muchas cosas más. Para esta (“constitución jurídica del neoliberalismo globalizado”), el mundo es, efectivamente, una mercancía.
Los derechos humanos deben ser entendidos como los procesos sociales, económicos, políticos y culturales que, por un lado, configuren materialmente –a través de procesos de reconocimiento y de mediación jurídica– ese acto ético y político maduro y radical de creación de un orden nuevo; y, por otro, la matriz para la constitución de nuevas prácticas sociales, de nuevas subjetividades antagonistas, revolucionarias y subversivas de ese orden global opuesto absolutamente al conjunto inmanente de valores –libertad, igualdad, solidaridad– que tantas luchas y sacrificios han necesitado para su generalización. Por esa razón, el último y gran desafío que citamos en estas páginas y que deberá constituir el foco que ilumine nuestras prácticas, es el afirmar que lo que
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convencionalmente denominamos derechos humanos, no son meramente normas jurídicas nacionales o internacionales, ni meras declaraciones idealistas o abstractas, sino procesos de lucha que se dirijan abiertamente contra el orden genocida y antidemocrático del neoliberalismo globalizado. El sujeto antagonista se constituye en ese proceso y se reproduce en la riqueza de sus prácticas sucesivas. No hay más objetividad que la “fuerza de la multitud que –como defendía Deleuze– convierte en común la lucha y dota de realidad a la utopía”.
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Neoliberalismo: O Declínio do Direito
*
Agostinho Ramalho Marques Neto
Devo iniciar prestando um esclarecimento acerca do conteúdo e dos enfoques teóricos cuja articulação fará a tessitura do presente trabalho. Decidi aproveitar o tema dessa mesa-redonda, “Direito na Infância”, para, promovendo um deslocamento de sentido nessa expressão, tecer algumas considerações sobre certas limitações restritivas que o avanço da onda neoliberal vem progressivamente impondo à esfera jurídica de alguns anos para cá. Não vou tratar aqui, especificamente, de questões relativas ao conceito jurídico, ou ao conceito psicanalítico, de infância, nem me deterei na apreciação dos
princípios
internacionais
e e
infraconstitucional,
normas
consagrados
incorporados que
à
conferem
nossa
em
declarações
ordem
jurídica
tratamento especial às
e
convenções
constitucional crianças,
e
para
assegurar-lhes condições adequadas a seu desenvolvimento socioeconômicoeducacional e para protegê-las contra várias espécies de abusos, incluída aí a exploração de seu trabalho. Num Congresso das dimensões do presente, que reúne especialistas de diversas áreas, em nível nacional e internacional, não faltarão trabalhos de qualidade que aprofundem a questão da infância sob os enfoques acima mencionados. O que me interessa aqui, como já disse, é examinar algumas consequências do impacto do modelo neoliberal sobre a instância do Direito, considerado, sobretudo, no sentido de uma linguagem de enunciação de direitos, articulando-a a outras instâncias sociais que com ela se relacionam intimamente, sobretudo, as instâncias ética, política e econômica. Para tal empreendimento, e tendo em vista as considerações apresentadas no parágrafo anterior, faço agora um giro no sentido do significante infância, referindo-o ao contexto do Direito enquanto tal. Tomo, então, o significante infância num sentido metafórico, dentro * Versão ligeiramente modificada de trabalho apresentado na mesa-redonda Direito na Infância, por ocasião do Congresso Internacional de Psicanálise e suas Conexões, sob o tema geral “Tratase uma Criança”, promovido pela Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 20 de agosto de 1998. Publicado, sob o título “Neoliberalismo: o Direito na ‘Infância’”, em: Congresso Internacional de Psicanálise e suas Conexões: Trata-se uma Criança. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999, t. II, p. 225-238.
do qual posso falar, para os fins desse trabalho, de uma “infância” do Direito como correspondente a todo o longo período anterior à formalização e à positivação dos sistemas, institutos e normas jurídicas, que constituem um traço marcante da Modernidade, e das quais as declarações de direitos são uma importante expressão. Com efeito, duas das características essenciais do direito moderno são, por um lado, a formalização lógica e sistemática dos princípios, regras e institutos jurídicos, a qual deslocou a motivação da obediência, de critérios baseados na teologia e na tradição, para uma justificativa de ordem legal-racional fundada na crença na validade de normas gerais e impessoais, e não no arbítrio dos detentores do poder; e, por outro lado, a positivação do Direito, no duplo sentido da busca da certeza jurídica mediante a sistematização escrita da ordem normativa, e também do fato de as normas jurídicas, sobretudo a partir da Constituição Norte-Americana e da Revolução Francesa na segunda metade do século XVIII, terem passado a declarar direitos, isto é, a proclamá-los positivamente e não apenas subentendê-los nos casos em que a norma é omissa ou não proíbe expressamente, vinculando ao mesmo tempo o Estado, jurídica e politicamente, a garantir a efetividade dos direitos declarados. Tem-se aqui uma importantíssima novidade. Até então, as leis quase nunca declaravam direitos, limitando-se a estatuir deveres. As ordens jurídicas, por assim dizer, não tinham voz para atribuir direitos subjetivos, mas apenas para prescrever obrigações e estabelecer as sanções aplicáveis nos casos de transgressão. É nessa perspectiva que falo aqui de uma “infância” do Direito, referindo esse significante a suas raízes etimológicas, isto é, ao latim infantia, ae, palavra proveniente de infans, antis, que quer dizer: que não fala, ou, mais radicalmente, sem voz. Pois bem, entendo que o assim denominado modelo neoliberal, que se vem impondo avassaladoramente em escala mundial, tende a um esvaziamento dos direitos que gradativamente se foram incorporando ao patrimônio jurídico dos sujeitos, considerados tanto sob o prisma individual quanto coletivo; e, nesse sentido, se movimenta em sentido contrário à tendência de acumulação de direitos e de ampliação dos espaços de reivindicação e de exercício da cidadania, que caracterizou estes dois últimos séculos no Ocidente. Na perspectiva aqui adotada, esse movimento representa uma tendência de “retrocesso” àquele
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período anterior ao da proclamação de direitos, que metaforicamente designei acima como a “infância” do Direito. O objetivo do presente trabalho é examinar alguns aspectos que podem ser considerados como pertencentes à lógica interna desse movimento de retrocesso, enfocando-os no eixo das filosofias jurídica, ética e política e concluindo com uma breve articulação a partir da teoria psicanalítica. Aquelas duas características essenciais do direito moderno, isto é, a formalização lógica e a positivação, nos sentidos que acima indiquei, devem ser consideradas em sua inserção histórica. Com o advento da Modernidade, a submissão física, tanto na forma da escravidão antiga quanto na da servidão medieval, vai pouco a pouco cedendo lugar à submissão contratual. É mesmo uma concepção contratualista, isto é, eminentemente jurídica, que tece toda a teoria do Estado moderno. Essa “passagem” supõe que a submissão não pode fundar-se senão em critérios racionais, gerais e impessoais, isto é, válidos para todos, inclusive os ocupantes dos lugares de poder. Não há aí, apenas, o reconhecimento do princípio da autonomia da vontade, tão caro aos juristas, mas, antes dele, o reconhecimento do outro como pessoa, como diferença, como sujeito e, nessa condição, assujeitado à Lei. Esse conjunto de condições é imprescindível para o surgimento e desenvolvimento de certos conceitos cruciais da Modernidade, como os de democracia, cidadania, Estado Democrático de Direito e sujeitos de direito, entre outros. Tais conceitos se relacionam tão intimamente, que trabalhar qualquer deles supõe referi-lo aos demais. A burguesia ascendente, que se movia em direção à tomada do poder, que não tardaria a conquistar por meios revolucionários ou não, teve um papel determinante nesse processo. Ao discurso particularizador da aristocracia, que estabelecia expressamente nas normas jurídicas privilégios e discriminações, que reservava para a classe dominante, direitos que não eram estendidos nem mesmo nominalmente às outras camadas sociais, a burguesia contrapôs um discurso universalizador, que a todos incluía em princípio como sujeitos jurídicos e políticos. Uma vez no poder a burguesia, as declarações de direitos, enunciadas pela nova classe dominante sob a forma universal “todos os homens têm direito a...”, passam a constituir a expressão jurídica privilegiada da necessidade de afirmar os novos princípios, sobretudo o do império das leis em substituição ao império do monarca, e o da submissão do poder ao Direito, que é
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um pressuposto necessário da noção de Estado Democrático de Direito. Uma função essencial do Direito, a partir daí, é precisamente a de enunciar direitos, mesmo quando as condições sociais, políticas e econômicas sejam insuficientes para que a eficácia desses direitos seja plenamente assegurada. NORBERTO BOBBIO sintetiza esse processo na expressão a era dos direitos. Ora, essas mudanças de perspectiva do que podemos chamar de função enunciadora do Direito não podem deixar de ter profundas consequências. A burguesia não poderia afirmar tão universalmente os direitos e a cidadania sem implicar-se nas consequências dessa afirmação, ou seja, sem vincular-se pelo menos formalmente a essas consequências. Por exemplo, o liberalismo político moderno, que deita suas raízes no século XVII, floresce no século seguinte e estende-se, com modificações decorrentes do embate com outras correntes de pensamento, sobretudo o marxismo, por todo o século XIX, indo até à Primeira Guerra Mundial, tem um compromisso com a democracia, ainda que no sentido de democracia formal e representativa e ainda que esse significante “democracia” também sirva, nesse contexto, para ocultar a dominação de classe, compromisso esse que não pode ser apenas retórico, mas deve ser também admitido como histórico, político, ético e lógico. Com efeito, sem uma valorização da democracia como regime político, não teria sido possível à burguesia legitimar seu discurso universalizador. Na base deste está o binômio sobre o qual assenta o edifício liberal: a liberdade (de contratar) dinamicamente articulada à igualdade (jurídicoformal, isto é, a igualdade perante a lei) e a esta se sobrepondo na maioria dos casos em que entre elas haja conflito. A função do Estado nesse contexto é antes de tudo a de garantir as condições da liberdade contratual, intervindo nas relações entre os agentes econômicos, empregados e empregadores, supostos em pé de igualdade jurídica, apenas para assegurar essas condições, ou seja, o status quo de dominação. Essa função, que essencialmente consiste em absterse, ficou conhecida pela expressão “laisser faire, laisser passer”. Creio já ter indicado suficientemente que a constituição histórica de noções como as de cidadão e sujeito de direitos, além de indissociáveis entre si, pressupõem outras noções com as quais formam como que constelações conceituais. A noção de Estado Democrático de Direito ocupa um lugar fundamental aqui, como a “ambiência” político-jurídica na qual aquelas noções de
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cidadão e de sujeito jurídico podem aspirar a uma possível realização histórica. Mas há também fundamentos que não são apenas de natureza histórica, lógica ou teórica. Há fundamentos éticos que se entrelaçam com os outros nessa tessitura que vou tentando esboçar. O princípio da dignidade da pessoa humana, que a nossa Constituição Federal abraça logo em seu art. 1°, inciso III, é um princípio ético fundamental de tudo o que venho expondo até aqui. Ele está na base da cidadania, da noção de sujeito jurídico, da valoração ética e política da democracia e daí por diante. Talvez ninguém tenha sintetizado melhor esse princípio do que KANT, ao referi-lo ao reconhecimento do homem como um fim em si mesmo, reconhecimento esse que introduz a importante dimensão do respeito nas relações entre os homens. Esse reconhecimento, no sentido kantiano, implica, a meu ver, o reconhecimento do outro em sua concretude, ou seja, em sua diferença, sem o que noções como as de cidadão e sujeito de direitos como que perdem seu suporte. A ocasião é propícia para que eu intercale a observação de que, simbolicamente, a democracia é antes de tudo um espaço político onde é possível a convivência dialética das diferenças, onde há lugar para a alteridade. Digo diferenças, e não desigualdades, entendidas estas como diferenças a serviço da dominação, da opressão. Numa linguagem psicanalítica, diria que a democracia supõe a Bejahung da castração, da falta, da alteridade do outro e do Outro, o assujeitamento à Lei, enfim. Foi nessa articulação que escutei certa vez o Prof. LUIS ALBERTO WARAT sustentar que “o grande inimigo do capitalismo não é o socialismo, mas a democracia”. Quando se fala de alteridade, fala-se também de inconsciente, de descentramento, de clivagem subjetiva, desse outro que me habita e que, no belo dizer de CAETANO VELOSO, “em mim é de mim tão desigual”. Pois bem, é o princípio da dignidade da pessoa humana que está na base da enunciação dos chamados direitos humanos. A primeira geração destes, correspondente às primeiras declarações de direitos, é constituída pelos direitos individuais de liberdade, oponíveis ao Estado e supondo a abstenção deste na esfera negocial, no qual somente interviria para garantir as regras do jogo. É a dimensão individual do homem que está protegida aqui, não como mero indivíduo empírico, mas revestido de valor jurídico e, antes deste, de valor ético.
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As consequências perversas de miséria e exclusão, decorrentes da política do “laisser faire, laisser passer”, e a influência do pensamento socialista, sobretudo o marxismo, forçaram, principalmente após a I Guerra Mundial, o capitalismo liberal a reciclar-se, a “perder alguns anéis para poder conservar os dedos”, o que resultou no estabelecimento e na ampliação de direitos sociais coletivos, como, por exemplo, os direitos trabalhistas e previdenciários. Esses direitos constituem a segunda geração dos direitos humanos, que são direitos coletivos de igualdade de condições, que supõem uma ação do Estado, isto é, uma prestação positiva deste. A chamada social-democracia, hoje o alvo principal do neoliberalismo, é a expressão histórica, nos países desenvolvidos, da consagração dos direitos humanos de segunda geração. Hoje, acrescenta-se ainda uma terceira geração desses direitos, que são direitos difusos de cidadania, como o direito ao sossego, ao desenvolvimento, a um meio ambiente saudável etc. Aqui, cabe à sociedade um papel ativo no sentido de que esses direitos ganhem eficácia. E muitos já falam de uma quarta geração de direitos humanos, relativa a questões como a clonagem e outras que a pesquisa científica e o desenvolvimento tecnológico impõem. Reafirmo aqui um princípio, já por outros enunciado, de que os direitos humanos, em suas quatro gerações, constituem um limite último na defesa da cidadania e da democracia, e uma barreira oponível à exclusão sempre implicada numa prática neoliberal. Daí a necessidade de afirmá-los como conquistas históricas irreversíveis 1. Não pode mais ser aceitável como prática legítima, por exemplo, reintroduzir a tortura como meio de obter confissão dos acusados. *** Vou agora examinar sucintamente o progressivo deslocamento dos princípios, conceitos e direitos até aqui mencionados, dos eixos da política, da ética e do direito para o eixo da economia, como consequência do triunfo do modelo neoliberal no mundo contemporâneo. 1
Conforme LUIGI FERRAJOLI, um Estado de Direito é caracterizado, no plano formal, pelo princípio da legalidade, em virtude do qual todo poder público está subordinado a leis gerais e abstratas; e, no plano substancial, pela subordinação dos poderes do Estado aos conteúdos dos direitos fundamentais dos cidadãos, que podem ser defendidos através das garantias constitucionais. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Trad. espanhola. Madri: Trotta.
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Mas debrucemo-nos antes, por um momento, sobre a própria palavra neoliberalismo. Há nela, ao mesmo tempo, uma ideia de continuidade e uma ideia de ruptura. Trata-se, afinal, de liberalismo, de algo que permanece, ou de algo ao qual se volta? Por outro lado, esse liberalismo é “neo”, é novo, com o que se diz implicitamente que algo do liberalismo não mais subsiste nele. O que se mantém? E, principalmente, o que foi abandonado? O que não pode mais ser mantido sob pena de prejudicar o princípio de utilidade, tão central no ideário neoliberal? Veremos que a principal novidade do neoliberalismo consiste precisamente no abandono, em favor da eficiência econômica, de princípios éticos fundamentais, dos quais resultam relevantes consequências políticas e jurídicas. No terreno político, princípios e conceitos cruciais, como os de democracia, Estado, Nação, soberania e cidadania, fundados no princípio ético da dignidade da pessoa humana, vão se transfigurando e mesmo, num sentido limite, se dissolvendo. A soberania, por exemplo, desloca-se cada vez mais do âmbito do Estado (ou do povo, ou da nação) para o domínio do mercado. O Mercado, esse ser metafísico, inatingível e indestrutível enquanto tal é o verdadeiro soberano no mundo da economia globalizada. Destituído do lugar de soberania para o de simples garantidor do livre funcionamento do mercado, ou seja, da competição, o Estado contemporâneo vai sofrendo sua afânise: apequena-se, minimiza-se. Com isso, a noção de espaço público se contrai e vai diluindo-se rapidamente na medida em que é implicitamente reduzida ao espaço de garantia das relações negociais. A linguagem corrente nos veículos de comunicação de massa dá-nos um eloquente testemunho desse deslocamento: já quase não se fala mais, por exemplo, de “países em desenvolvimento”, como até há pouco tempo atrás, mas de “mercados emergentes”. O que decai, aí, é a própria noção de país, de nação. E o que “emerge” dessa linguagem é a subsunção do político no econômico. A cidadania, por seu turno, vai pouco a pouco perdendo seus sentidos: político (de participação ativa na gestão da sociedade política) e jurídico (a cidadania enquanto direito a ter direitos), para identificar-se ao acesso ao consumo. Cidadão, no mundo neoliberal, nada mais é do que aquele que pode consumir. De fato, não é mais o ser humano enquanto tal, na medida em que
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pertence a uma sociedade política, que recebe o atributo da cidadania. Do súdito dos monarcas do Antigo Regime, passando pelo cidadão liberal-burguês e pelo trabalhador na perspectiva marxista, chegou-se, por fim, ao consumidor neoliberal! Diferentemente do liberalismo, o neoliberalismo não parte de indivíduos, mas de agentes econômicos. Ainda no plano político, a democracia não é mais uma necessidade pertencente à lógica interna do sistema, como no liberalismo, mas algo que se acrescenta, secundariamente. Pode até ser desejável, mas também se pode passar sem ela, sem que por isso a ordem econômica perca sua eficiência. Como afirmava FRIEDRICH HAYEK, o primeiro ideólogo do neoliberalismo, em seu texto O Caminho da Servidão, escrito em 1944, “a democracia em si mesma jamais havia sido um valor central no neoliberalismo” (como o é, por exemplo, a competição).
A liberdade e a democracia, explicava Hayek, podiam facilmente tornar-se incompatíveis, se a maioria democrática decidisse interferir com os direitos incondicionais de cada agente econômico de dispor de sua renda e de sua propriedade como quisesse 2.
Essa depreciação da democracia como valor político é tão imanente ao neoliberalismo, que um jusfilósofo como Bobbio a inclui na definição mesma que dá dessa corrente:
Por neoliberal se entende, hoje, principalmente, uma doutrina econômica conseqüente, da qual o liberalismo político é apenas um modo de realização, nem sempre secundário, ou em outros termos: uma defesa intransigente da liberdade econômica, da qual a liberdade política é apenas o corolário 3.
Pode-se perguntar aqui, com ironia, se afinal de contas MARX não tinha razão quando dizia que o econômico determina mesmo, em última instância. Só que, agora, essa determinação parece ocorrer em todas as instâncias. Essa subordinação da democracia à esfera do econômico transparece, 2
Apud ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo [org.]. Pós-Neoliberalismo: as Políticas Sociais e o Estado Democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 19-20. 3 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia, p. 87 [Grifos meus].
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para quem sabe escutar, como um pressuposto implícito do discurso oficial, como, por exemplo, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso identificou, reiteradas vezes, no início de seu governo, o fracasso do plano real ao fracasso da democracia. Não haveria uma ameaça velada de golpe nessa identificação? Como ilustração disso, atente-se para a declaração que o Ex-Ministro do Planejamento, José Serra, fez pela televisão (Brasília, 04/06/1996), ao afastar-se do cargo para concorrer à Prefeitura de São Paulo: “A estabilidade da moeda é uma necessidade anterior e superior às outras”. Inclusive, também, à democracia? Como observa Perry Anderson, com a “superação histórica” da eficácia das ditaduras militares no que tange à imposição de políticas neoliberais, a questão que se coloca é a de “como induzir democrática e não coercitivamente um povo a aceitar políticas neoliberais mais drásticas”4. O mesmo autor prossegue afirmando que o combate à inflação é uma das vias principais, nesse sentido. Para ele, no Brasil foi necessária a hiperinflação para que a população aceitasse sem maiores traumas o modelo neoliberal. A hiperinflação teria exercido, nesse contexto, papel semelhante ao da ditadura militar e, nas circunstâncias, mais eficiente. No nosso caso, esse combate à inflação aparece como o limite último, para cuja consecução qualquer preço social que se pague nunca é demasiado alto. O combate à inflação, embora o reconheçamos como indispensável, nem por isso deixa de ocupar, na escala da legitimação do modelo neoliberal, um lugar de última instância, ultrapassado o qual adviria como consequência o próprio caos. Esse lugar é análogo àquele que GEORGE ORWELL atribui, em sua A Revolução dos Bichos, à volta de Mr. Jones ao comando da Granja: nenhum sacrifício é suficientemente grande, se contribui para evitar que isso aconteça! Vimos anteriormente que o liberalismo formula suas proposições fundamentado no binômio liberdade contratual/igualdade jurídico-formal. Já no ideário neoliberal, o binômio fundamental é desigualdade/competição. Vejo na competição não somente algo fundante e ineliminável no ser humano, como também necessário ao desenvolvimento social e pessoal. O problema está em deixar que tudo seja resolvido por essa via. A competição pode ser saudável, se 4
ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo. Op. cit., p. 21.
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sujeita à Lei. Mas é perversa se substitui a Lei, isto é, se a competição se torna a própria Lei. O primeiro e mais perverso efeito da competição no lugar da Lei é a exclusão social, que mais adiante abordarei em breves pinceladas. Antes disso, entretanto, vejamos, de um modo apenas esquemático, pois a limitação de tempo dessa exposição não me permite uma apreciação mais detalhada, algumas das consequências da escalada neoliberal no terreno do Direito, que vão minando pouco a pouco a instância jurídica enquanto instância de garantia de direitos: 1) Há uma crescente internacionalização das normas jurídicas, sobretudo as de caráter negocial, que vigem, de fato, acima das ordens jurídicas estatais e às quais os Estados, cada vez mais, limitam-se a aderir, incorporando seus preceitos ao direito interno. Ora, incorporar normas implica incorporar também as consequências jurídicas, políticas e lógicas delas, bem como seus pressupostos tanto éticos quanto utilitaristas. Esse fenômeno repercute sobre o Poder Judiciário, cuja atuação tende a limitar-se a questões “menores”, ou seja, não diretamente ligadas à esfera negocial. O tempo dos negócios, sua velocidade vertiginosa, vai tornando-se incompatível com o tempo da democracia, que supõe a solução estatal e judicial dos conflitos. O recorrente tema da extinção da Justiça do Trabalho no Brasil quer venha ou não tal extinção a ocorrer de fato, é um eloquente exemplo do que estou afirmando. 2) Assiste-se, também, a uma drástica redução dos direitos, sobretudo sociais, trabalhistas e previdenciários, ou seja, direitos coletivos de igualdade, de segunda geração. A desconstitucionalização e a desregulamentação desses direitos, assim como da própria relação entre empregados e empregadores, é o caminho usado para essa redução. A argumentação de que, abrindo-se mão de direitos trabalhistas, garantem-se empregos em maior quantidade (a “política da solidariedade”, como a batizou o presidente Fernando Henrique Cardoso 5), é falaciosa e impõe, para o futuro, renúncias cada vez maiores. A propósito, ninguém se lembra de dizer ou de perguntar, a cada direito retirado em nome de “garantir mais empregos”, se e quando esses direitos serão restituídos! 5
Em 10/04/1997, o Presidente Fernando Henrique Cardoso avisou os líderes sindicais de que não esperassem normas gerais para os trabalhadores. “A palavra agora”, disse ele, “é flexibilização. A própria noção de emprego não é mais a mesma”, acrescentou, sem, no entanto, especificar qual seria a nova noção.
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3) Assiste-se, ainda, à realização do que Hayek preconizava já na década de 40: um direito que não implicasse necessariamente garantias para o futuro. Com isso, vão dissolvendo-se aos poucos a eficácia e o próprio conceito de direitos adquiridos (transformados subrepticiamente, na linguagem do poder, em “privilégios” adquiridos), de atos jurídicos perfeitos e de coisa julgada. Nesse processo, as garantias jurídicas vão sendo substituídas pelas garantias de mercado: em última instância, é o interesse do empresário que garante o consumidor! Ora, se o Direito não pode garantir que o consumado ao império da lei atual valha para o futuro, não pode, a rigor, garantir mais nada! A garantia de direitos para o futuro é um pressuposto necessário do Estado Democrático de Direito. 4) Dentro do contexto antes delineado, os princípios, categorias, institutos, conceitos fundamentais e a própria estrutura da lógica jurídica vão sendo gradativamente redimensionados e substituídos por princípios utilitários de conteúdo econômico. A manipulação da linguagem, por sua vez, como na “passagem” de direitos a privilégios adquiridos, provoca efeitos de eficácia simbólica e identificação imaginária, que dificultam qualquer posicionamento crítico com relação à “nova ordem mundial”. Essa manipulação da linguagem evidencia-se, também, no caráter de “naturalidade” de que o neoliberalismo vai revestindo-se enquanto ideologia única. O neoliberalismo se dá como justificado de fato e por isso não se sente na necessidade de procurar justificativas éticas ou filosóficas, como o liberalismo precisou fazer. Apresenta-se como sem alternativas, como algo perante o qual não resta a ninguém, quer indivíduos, quer Estados, outra saída senão a de aderir. E aí, na negação de alternativas, transparece o totalitarismo simbólico neoliberal. Daí o fato de alguns terem identificado o modelo neoliberal com o “fim da História”. Com efeito, o que seria o fim da História, senão a ausência de alternativas? De todo esse quadro que acabo de traçar, resulta que a exclusão social é endêmica ao modelo neoliberal, pertence à sua lógica interna, por assim dizer. As políticas sociais são, aí, meramente paliativas, embora frequentemente louváveis: a estrutura de exclusão permanece intacta. Como disse o Ex-Presidente norteamericano George Bush, em setembro de 1992, “o tempo de caridade acabou!”. Demitir para competireis o âmago da lógica neoliberal. Há nisso um evidente
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darwinismo social, e não nos esqueçamos de que em tal referência o mais forte é sempre o mais bem adaptado. A velha oposição marxiana entre opressores e oprimidos tende hoje a ser uma subclasse da oposição mais ampla entre incluídos e excluídos. Afinal, ser oprimido não deixa de ser uma forma de inclusão! Nessa perspectiva, os atuais excluídos da cidadania e de tudo o que a ordem social pode apresentar como proteção estão numa situação ainda pior que a dos escravos. Essas são as condições necessárias de uma ordem escravista. E essa necessidade os inclui. Como escravos, é verdade, mas ainda assim os inclui. Quanto aos excluídos, que necessidade há deles no novo estado das coisas? Ninguém precisa deles, nem mesmo para oprimi-los! Os incluídos, por sua vez, são cada vez mais obrigados a tolerar: o camelô na porta de sua loja, o vigia de carro que impõe sua prestação de serviço, e assim por diante... E, em face da inércia do poder público, são compelidos a tomar pessoalmente as medidas necessárias à proteção de seus direitos. No limite dessa tendência, não estará o estado de natureza hobbesiano, de guerra de todos contra todos? *** Mas será que não haverá mesmo alternativas ao neoliberalismo? Que fazer? O século XX se abre e se fecha com essa pergunta. Será que aquela “coisa fora da nova ordem mundial”, de que fala CAETANO VELOSO (que contudo não diz, porque não sabe que coisa é essa, a qual acrescento só pode “estar” na medida em que venha a ser construída), não deve ter para nós, psicanalistas e juristas, um sentido ético? Um sentido de ética de alteridade a ser contraposto ao utilitarismo neoliberal? A alteridade é a contraface do sujeito. Sem o outro, sem diferença, não pode haver sujeito. Assim, como os antigos gregos vincularam a ética à política, a Arte Mestra, e assim como os modernos pretenderam organizar arquitetonicamente os princípios de uma política racional, sem qualquer sustentação ética ou teológica, não caberá a nós, nos dias que correm, reivindicar uma política e um direito vinculados à ética, a valores éticos que sejam sua condição de possibilidade? Não seria a partir dessa vinculação que o sistema jurídico poderia fundamentar sua pretensão de autonomia, construindo para si mesmo o espaço de sua “maioridade” e escapando ao infantilismo a que o modelo neoliberal parece querer condená-lo? A aposta na via Neoliberalismo
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ética, quer dizer, no desejo, é uma reafirmação da pulsão de vida: “A ética é o triunfo de Eros, a máxima expressão de Eros”, disse o jusfilósofo italiano DOMENICO CORRADINI, numa mesa-redonda de um congresso de Filosofia do Direito, da qual também participei na Universidad Nacional Autónoma de México, na cidade do México, em março de 1996. Nessa contraposição de uma ética do desejo ao utilitarismo neoliberal, a Psicanálise também pode ter algo a dizer. Existe, por exemplo, uma íntima articulação entre o sujeito do Direito e o sujeito da Psicanálise. Como indiquei no início deste trabalho, o surgimento e o desenvolvimento de certos conceitos cruciais da Modernidade, como os de democracia representativa, de cidadania, de Estado de Direito e de sujeitos de direito, indissoluvelmente relacionados a ponto de não se poder falar de qualquer deles sem referi-lo aos restantes, supõem todo um conjunto de condições. Dentre estas, destaquei a fundamentação da submissão a critérios gerais, racionais e impessoais, válidos inclusive para os ocupantes do poder; assim como o reconhecimento do outro como pessoa, como sujeito, como diferença, como alteridade. Pois bem, é no âmbito de tais condições, embora ultrapassando-as em certo sentido, visto que aqui o foco está voltado para uma Outra cena que supõe a referência do desejo ao inconsciente e uma clivagem constitutiva do sujeito enquanto sujeito do inconsciente, radicalmente outro em relação ao eu consciente, volitivo e racional, o que representa uma ruptura decisiva em relação à concepção de indivíduo constituída nos séculos XVII e XVIII é no âmbito de tais condições, repito, inseridas na tradição ocidental das formas modernas de democracia, que a Psicanálise, desde o fim do século XIX, vem constituindo-se como saber e forjando o conceito de sujeito do desejo. Esse conceito não deve ser pensado como algo dissociado das condições históricas que tornaram possível sua emergência no plano da teoria. Como diz BIRMAN,
a constituição do sujeito do desejo teve como condição histórica de possibilidade a constituição do sujeito do direito [...], categoria que fundamenta a Declaração dos Direitos do Homem, marca da modernidade 6. 6
BIRMAN, Joel. Barbárie, Cidadania e Desejo. In: FRANÇA, Maria Inês [org.]. Desejo, Barbárie e Cidadania. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 165.
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Desse modo, acrescenta aquele autor, o conceito psicanalítico de sujeito do desejo só pôde estabelecer-se historicamente na medida em que a cidadania, mediante a existência conceitual do sujeito do direito, instituiu-se para a individualidade, e as modernas formas de democracia se foram consolidando. Nessa
perspectiva,
esses
conceitos
se
intercomplementam,
num
todo
indissociável. Com base em tais articulações, tenho sustentado que ninguém é propriamente cidadão sem investir-se subjetivamente na cidadania, investimento esse para o qual a via é o desejo. Não há cidadão sem desejo de cidadania. Na perspectiva da Psicanálise, a via é o desejo, não uma utopia. Politicamente, a Psicanálise não se fundamenta em nem se dirige a qualquer utopia. Essa sempre é uma cristalização imaginária, que visa a tamponar a falta. Os discursos utópicos alcançam, nesse tamponamento da falta, nessa recusa da incompletude, sua dimensão totalitária. Quando digo que a via é o desejo, não estou apontando, por isso mesmo, nenhum caminho a seguir. Nada mais errante que o movimento do desejo. Nada mais incerto que o seu rumo. Mas também nada mais digno, sob a ótica psicanalítica, a ponto de a Psicanálise fundar nele sua ética. A afirmação dessa dignidade já está em FREUD, e desde muito cedo. No capítulo VII da Interpretação dos Sonhos, por exemplo, publicado em 1900, ele já enuncia, como uma espécie de lei geral, que só um desejo pode colocar em movimento o aparelho psíquico. E LACAN fala da ética da Psicanálise como sendo uma ética trágica do desejo, desejo esse, diz ele, que “não é um bem em nenhum sentido do termo”. LACAN situa a ética da Psicanálise para além de toda economia dos bens. Não é o bem do sujeito, mas seus impasses nas trilhas de seu desejo, aquilo que vai sendo perlaborado no trabalho analítico. Afinal,
o desejo é o único ponto a partir do qual se pode explicar que haja homens. Não homens enquanto rebanho, porém homens que falam, com esta fala que introduz no mundo algo que pesa tanto quanto o real todo 7.
Para quem considera, à luz da cidadania e da democracia, o ocaso do 7
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 2: O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise [1954-5]. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Trad. de Marie Christine Laznik Penot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 282-3.
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direito, da política e da ética no mundo da globalização neoliberal, parece-me essencial manter sempre aberta a instância da interrogação. E, para isso, eventos como esse Congresso podem constituir espaços preciosos. O foco dessa interrogação precisa ser dirigido à explicitação dos fundamentos e da lógica interna do modelo neoliberal, enfatizando sua impotência, mesmo quando em meio a “boas intenções”, no sentido de conter o processo de exclusão social crescente, que é uma de suas consequências necessárias. E aqui, creio que não se poderá prescindir da utopia. Que esta, entretanto, não seja tomada como um modelo a concretizar a qualquer custo, mas como um fora-de-lugar, condizente com o u-topos de sua etimologia, como algo que tendencialmente se coloca no horizonte e que se vai transformando, no processo mesmo de sua “aproximação”, instigando a ação e inspirando a reflexão.
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Agostinho Ramalho Marques Neto
Direitos Humanos, Estado e Globalização
José Luis Bolzan de Morais
Sumário: I. Considerações Iniciais. II. Direitos Humanos, Estado Democrático de Direito e Globalização. 2.1. Direitos Humanos: ponto de vista tradicional. 2.2. Estado Democrático de Direito: o caráter novo do Estado. 2.3. Globalização: um caminho múltiplo. III. As crises (des)constitutivas do Estado Democrático de Direito. 3.1. As crises: uma retomada rápida. 3.2. O Estado Nacional como “locus” de realização dos direitos fundamentais. 3.3. A desterritorialização dos espaços. IV. Interrogações prospectivas (nada contra M. Weber). 4.1. O deslocamento. 4.2. Uma estratégia globalizada para os direitos humanos. Referências Bibliográficas.
...Bebida é água. Comida é pasto. Você tem sede de quê? Você tem fome de quê? A gente não quer só comer, A gente quer comer e quer fazer amor. A gente não quer só comer, A gente quer prazer para aliviar a dor. A gente não quer só dinheiro, A gente quer dinheiro e felicidade. A gente não quer só dinheiro. A gente quer inteiro e não pela metade. (Comida, Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sergio Brito)
I. Considerações Iniciais Talvez, como José Saramago, devêssemos iniciar – e o fazemos efetivamente – essa incitação dizendo que o mais grave desafio que temos hoje, todos e globalmente, é o de pormos um prato de comida na frente de todas as pessoas, sem nos preocuparmos, a princípio, se elas irão simplesmente devorá-lo insensivelmente ou, ao contrário, irão saboreá-lo, tirando todos os sabores possíveis do ato de comer. Digo isso porque comer, para uma grande parte dos seres humanos, ainda hoje, tem o sentido apenas de manter as forças físicas suficientes para “estar de pé”, não havendo espaço para interrogar-se acerca das artes e prazeres da culinária. Por outro lado, para aqueles poucos que comem, esse ato está se tornando mais uma prática globalizada, homogeneizada e descaracterizada como ato simbólico e apaixonado de vida. A macdonaldização do ato de comer levou a
uma pasteurização dos sabores e do próprio ato de comer muito adequada aos padrões uniformes pretendidos pelos modelos globais de vida em conformidade com um padrão único de ser-estar no mundo. É o fast food que “permite” ao homem acompanhar, com o estômago, a lógica de uma sociedade cuja referência é a domesticação selvagem do ser humano. Todavia, em muitos lugares, de novo dentre aqueles poucos que comem, tem-se constituído uma contracorrente que pretende manter ou recuperar uma relação lúdica com a comida, no qual o ato de comer não seja uma aventura incerta e sequer apenas um ato pasteurizado de ingestão de rações diárias de sabor duvidoso. São os movimentos do slow food. Mas, e o que tem isso a ver com a temática dos direitos fundamentais sociais frente à(s) globalização(ões)? Tudo me parece. E é o que pretendo propor-lhes ao longo dessa conversa. Em primeiro lugar, por tratarmos de um tema que expressa de maneira fulcral o conteúdo dos chamados direitos fundamentais sociais contidos no pressuposto básico da dignidade da pessoa humana, princípio fundante do nominado Estado Democrático de Direito. Em segundo lugar, porque nos permite o mote para refletirmos essa temática a partir de um pressuposto que pretendemos apresentar a seguir, qual seja o de que não há apenas uma globalização e sequer, de outra banda, há o que alguns pretendem, o fim da história, das ideologias, instaurando-se em definitivo um modelo homogêneo de ser/estar no mundo. Ou seja, ao lado dos aspectos perversos e, eventualmente, hegemônicos de um determinado projeto global,
vemos
instaurar-se
espaços
de
autonomização
que
permitem
reapropriações de sentidos autônomos e diferentes de vida. Todavia, continua impaga nossa primeira dívida: dar comida a todos. Talvez esta seja, enfim, a maior causa global. É, assim, com esse pano de fundo e com essa ilustração que pretendo propor, nas linhas que seguem, não uma liturgia missionária, mas uma reflexão acadêmica comprometida com uma intenção concretizadora dos direitos humanos – todos eles – como um projeto – ou uma dívida – global/universal que se expressa em todos os lugares ao mesmo tempo. Portanto, pensar as possibilidades práticas para os direitos humanos, em especial no que se refere aos sociais, coloca-nos, no contexto de uma sociedade
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José Luis Bolzan de Morais
globalizada, questões que se impõem como inafastáveis, bem como implicam que as tratemos como inseridas em um rol de possibilidades que vai muito além daquele de pretendermos um apego tradicional às estratégias, fórmulas e instituições com as quais operamos, bem como implica certo desapego a uma leitura que se apresenta tal qual a do projeto econômico-capitalista global, reticente/alheia/xenófaba às potencialidades que se abrem a partir de um contexto de universalização das pretensões e estratégias. Dentre as tantas questões que se apresentam, tencionamos apontar – não mais do que isso – algumas daquelas que cremos ser das mais significativas para os operadores do Direito, sem negar a ocorrência de tantas outras. Optamos, assim, por refletir, ao longo do texto, alguns tópicos que digam com as condições de torná-los usufruíveis. Não há, por óbvio, como se esquivar da análise de uma tentativa de implementação dos direitos humanos tendo como cenário o espectro da globalização do universo das relações socioeconômicas e seus corolários, sobretudo quando visamos instrumentalizar para isso as práticas jurídicas. Adotamos como estratégia operacional a de discorrer topicamente sobre os diversos aspectos que tocam essa temática, sem que isso implique rupturas ao longo do texto, mas, apenas, um mecanismo metodológico que viabilize a compreensão das posições adotadas. Em especial vamos tentar sustentar, ao final, uma leitura que dialogue com a ideia de que, tendo como pressuposto o déficit original no que diz com os direitos sociais – e não só com eles –, entenda o atual contexto histórico como uma potencialidade comprometida com a concretização dos direitos fundamentais e que temos uma multiplicidade de lugares onde se mostram práticas que apontam para isso, sem descurarmos também dos limites e restrições que um modelo hegemônico de globalização impõe a essa pretensão. Ou
seja,
há
um
“embate”
dialético
entre
inclusão/exclusão,
negação/afirmação, concretização/desconstrução, confirmação/desconfirmação etc. Enfim, a partida não está terminada, muito embora nos sintamos, muitas vezes – e com razão –, perdendo já com boa parte do tempo de jogo decorrido. Entretanto, esses são os limites a que nos propomos, refletindo uma leitura
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possível, ao que nos parece, estruturada em três momentos. O primeiro que retoma e ordena os conceitos centrais desse debate – direitos humanos, Estado Democrático de Direito e globalização –, pretendendo apenas apontar uma caracterização instrumental para esse momento. O segundo apropria uma discussão que temos feito insistentemente quanto às crises que afetam o Estado enquanto instituição da modernidade e desde o seu (re)desenho contemporâneo. Por fim, pretendemos sugerir algumas reflexões, fazendo incidir a coimplicação entre o primeiro e o segundo momentos, apontando para as possibilidades de ruptura e reconstrução dos espaços e práticas humanitárias.
II. Direitos Humanos, Estado Democrático de Direito e Globalização 2.1 Direitos Humanos: Ponto de Vista Tradicional
A preocupação com o tema dos direitos humanos está presente desde muito tempo nos trabalhos jurídicos daqueles que somos preocupados com a qualificação da vida quotidiana dos indivíduos, dos grupos sociais, da humanidade e de todos os seres que habitam o planeta. De notar que, na modernidade, pelo menos, a história dos direitos humanos está intrinsecamente conectada com aquela do Estado e de suas apresentações, sobretudo desde a passagem da fórmula absolutista para a liberal clássica, nos idos dos anos 1700/1800 1. Como diz José Antonio López García,
“(...) una buena manera de estudiar los Derechos humanos, al menos desde el siglo XIX hasta nuestros días, consiste en verlos en conexión com la historia del Estado Moderno” 2, e, agregaríamos, hoje, com suas crises. 1
Não queremos dizer com isso que a história dos direitos humanos, e a luta por sua concretização, tenha se iniciado nesse período. Há um longo caminho percorrido até esse momento. Todavia, para fins deste trabalho, essa “pré-história” não afeta a sua formatação e argumentação, apesar da importância central que tem para a compreensão mesma deste tema. 2 Ver: GARCÍA, José Antonio López. Los Derechos: entre la ética, el poder y el derecho. In: GARCÍA, José Antonio López e REAL, J. Alberto del( eds.). Los Derechos: entre la ética, el poder y el derecho. P. 26.
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José Luis Bolzan de Morais
Dessa forma é que inúmeros juristas, como também sociólogos, politólogos, filósofos etc., além daqueles que buscamos construir uma visão transdisciplinar da temática que nos move, bem como agentes sociais engajados na luta por sua efetivação, consolidação e ampliação, vêm desenvolvendo pesquisas e projetos, tentando, a todo o momento, constituir um saber e práticas mais apuradas, além de um discurso garantidor da eficácia e efetividade dos conteúdos próprios – tradicionais ou inovadores – aos direitos humanos, ao lado de uma busca incessante por práticas concretizadoras, além da tentativa permanente de tornar o compromisso com os direitos humanos um “valor universal”, como pretendemos apontar adiante. Deve-se ter presente que tais questionamentos devem acompanhar não apenas as transformações que se operam nos conteúdos tidos como próprios dos direitos humanos – e aqui observamos que, como adverte Norberto Bobbio em seu A Era dos Direitos, assim como o nosso anfitrião Ingo Sarlet, em seu A Eficácia dos Direitos Fundamentais, os direitos humanos não nascem todos de uma vez, eles são históricos e se formulam quando e como as circunstâncias sócio-histórico-políticas
são
propícias
ou
referem
a
inexorabilidade
do
reconhecimento de novos conteúdos – como também a necessidade que temos de dar-lhes efetividade prática, podendo-se agregar, ainda, com José Eduardo Faria 3, a ideia de que às diversas gerações pode-se atrelar o maior compromisso de uma das funções do Estado – à cidadania civil e política (1a geração) atrelava-se, de regra, a ação legislativa, pois bastaria o seu reconhecimento legal para a sua concreção por tratarem-se de liberdades negativas cuja intenção privilegia o caráter de não impedimento das ações por parte do Estado; à cidadania social e econômica (2a geração), a ação executiva através de prestações públicas, implicando necessárias ações políticas promocionais; à cidadania pós-material (3a geração), a ação jurisdicional em sentido amplo, garantindo a efetividade de seus conteúdos, através de uma atitude hermenêutica positiva e concretizante dos conteúdos 3
José Eduardo Faria. Direitos Humanos e Globalização Econômica. Notas para uma discussão. Tal postura não pode significar que as demais funções do Estado não tenham nenhum tipo de comprometimento na medida em que, e.g., o desrespeito a qualquer deles enseja a utilização de remédios procedimentais construídos para dar conta dessas situações, tais como o Habeas Corpus, Mandado de Segurança, Mandado de Injunção. Ação Civil Pública, Ação Popular etc.
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constitucionalizados. 4 Há, ainda, quem os identifique por intermédio do valor privilegiado em seus conteúdos. Assim, teríamos os direitos de liberdade, os de igualdade e os de solidariedade/fraternidade, acompanhando as diversas gerações como antes explicitadas. Ao final, pode-se dizer que os direitos humanos são universais e cada vez mais projetam-se no sentido de seu alargamento objetivo e subjetivo, mantendo seu caráter de temporalidade. São históricos, não definitivos, exigindo a todo o instante não apenas o reconhecimento de situações novas, como também a moldagem de novos instrumentos de resguardo e efetivação de situações já consolidadas. Preferimos dizer que se generalizam – ou difundem – na medida em que sob as gerações atuais observamos, muitas vezes, um aprofundamento subjetivo, a transformação ou a renovação (e.g. função social) dos conteúdos albergados sob o manto dos direitos fundamentais de gerações anteriores, além da especificação de novas dimensões5. Ou seja, da 1ª geração com interesses de perfil individual passamos a, na(s) última(s), transcender o indivíduo como sujeito dos interesses reconhecidos, sem desconsiderá-lo, obviamente 6 – coletivos e difusos. O que se percebe nessa seara é que muito dos conteúdos básicos em muitos lugares sequer foi implementado ou muitos são sonegados e ao mesmo tempo precisamos dar conta de situações novas cada vez mais complexas, impondo-se ao jurista uma formação qualificada que lhe permita enfrentar 4
É de ver que não há, também neste aspecto, uma uniformidade conceitual, podendo-se referir autores que multiplicam as gerações de direitos humanos, a partir de concepções primárias díspares, bem como da emergência de novas circunstâncias que dizem respeito à existência dos seres no planeta. 5 No âmbito deste trabalho é suficiente adotarmos uma distinção simplificada para entendermos os direitos fundamentais como sendo o catálogo positivado dos direitos humanos em certa ordem jurídica, o que, ao mesmo tempo em que os identifica, pode diferenciá-los em razão da extensão quantitativa de uns e de outros. Ver adiante a questão da dialética entre internacionalização dos direitos humanos e constitucionalização do direito internacional. 6 Assim é que se pode falar, nos dias que passam, de uma multiplicação de gerações em razão de novos conteúdos próprios ao universo dos direitos humanos, tais como aquelas relacionadas com as questões ambientais, a paz, o desenvolvimento e, mais recentemente, aquelas ligadas à pesquisa genética – que dá origem a um novo ramo do direito, reconhecido como o biodireito – e à cibernética, o que só confirma a hipótese bobbiana da historicidade destas matérias, bem como certa independência de umas em relação a outras na medida em que o aparecimento de uma nova geração não implica o desaparecimento de alguma das precedentes, embora possa redefinila, como já expresso. A este respeito ver nosso Do Direito Social aos Interesses Transindividuais. O Estado e o Direito na ordem contemporânea.
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José Luis Bolzan de Morais
competentemente os conflitos surgidos nesse meio, sem esquecer o fundamental que são as estratégias próprias ao Estado de Direito como Estado Democrático de Direito 7 – ver, abaixo, o item 2.2. –, assim como os enfrentamentos a que estamos sujeitos em tempos de globalização neoliberal (capitalista) e seus reflexos de reforma do Estado, flexibilização etc., como veremos na sequência deste trabalho. Pode-se dizer, então, que:
Los Derechos humanos expresan así aquello que es natural, común o universal a todos los individuos. Constituyen una construcción teórica (principalmente teórico-jurídica) basada en un modelo de sujeto (de Derecho) que se abstrae de las particularidades jurídicamente irrelevantes de cada cual para señalar las similitudes relevantes de todos. 8
Resumidamente poderíamos dizer, então, que os direitos humanos, como conjunto de valores históricos básicos e fundamentais, que dizem respeito à vida digna jurídico-político-psíquico-físico-econômica e afetiva dos seres humanos e de seu habitat, tanto daqueles do presente quanto daqueles do porvir, surgem sempre como condição fundante da vida, impondo aos agentes político-jurídico-econômico-sociais a tarefa de agirem no sentido de permitir e viabilizar que a todos seja consignada a possibilidade de usufruílos em benefício próprio e comum ao mesmo tempo. Assim, como os direitos humanos dirigem-se a todos, o compromisso com sua concretização caracteriza tarefa de todos, em um comprometimento comum com a dignidade comum.
2.2 Estado Democrático de Direito: O Caráter Novo do Estado O Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador da realidade, não se restringindo, como o Estado Social de Direito, a uma adaptação 7
o
Ver art. 1 da CFB/88. Sobre o conceito de Estado Democrático de Direito, ver: BOLZAN DE MORAIS, Do Direito Social aos Interesses Transindividuais, em especial capítulo I. Da mesma forma ver: BOLZAN DE MORAIS, José, Luis e STRECK, Lenio Luiz. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 8 Ver: GARCÍA, José Antonio López. Los Derechos: entre la ética, el poder y el derecho. In: GARCÍA, op. cit., p. 22.
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melhorada das condições sociais de existência. Assim, o seu conteúdo ultrapassa o aspecto material de concretização de uma vida digna ao homem e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação pública quando o democrático qualifica o Estado, o que irradia os valores da democracia sobre todos os seus elementos constitutivos e, pois, também sobre a ordem jurídica. E mais, a ideia de democracia contém e implica, necessariamente, a questão da solução do problema das condições materiais de existência. Com efeito, são princípios do Estado Democrático de Direito: A – Constitucionalidade: vinculação do Estado Democrático de Direito a uma Constituição como instrumento básico de garantia jurídica; B – Organização Democrática da Sociedade; C – Sistema de direitos fundamentais individuais e coletivos, seja como Estado de distância, porque os direitos fundamentais asseguram ao homem uma autonomia perante os poderes públicos, seja como um Estado antropologicamente amigo, pois respeita a dignidade da pessoa humana e empenha-se na defesa e garantia da liberdade, da justiça e da solidariedade; D – Justiça Social como mecanismos corretivos das desigualdades; E – Igualdade não apenas como possibilidade formal, mas, também, como articulação de uma sociedade justa; F – Divisão de Poderes ou de Funções; G – Legalidade que aparece como medida do direito, isto é, através de um meio de ordenação
racional,
vinculativamente
prescritivo,
de
regras,
formas
e
procedimentos que excluem o arbítrio e a prepotência; H – Segurança e Certeza Jurídicas. Assim, o Estado Democrático de Direito teria a característica de ultrapassar não só a formulação do Estado Liberal de Direito, como também a do Estado Social de Direito – vinculado ao welfare state neocapitalista –, impondo à ordem jurídica e à atividade estatal um conteúdo utópico de transformação da realidade. Dito de outro modo, o Estado Democrático é plus normativo em relação às formulações anteriores. Vê-se que a novidade que apresenta o Estado Democrático de Direito é muito mais em um sentido teleológico de sua normatividade do que nos intrumentos utilizados ou mesmo na maioria de seus conteúdos, os quais vêm sendo construídos de alguma data. Como sustentamos, o Estado Democrático de Direito carrega em si um caráter transgressor que implica agregar o feitio incerto da Democracia ao Direito,
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impondo um caráter reestruturador à sociedade e revelando uma contradição fundamental com a juridicidade liberal, a partir da reconstrução de seus primados básicos de certeza e segurança jurídicas, para adaptá-los a uma ordenação jurídica voltada para a garantia/implementação do futuro, e não para a conservação do passado. Nesse sentido, pode-se dizer que, no Estado Democrático de Direito, há um sensível deslocamento da esfera de tensão do Poder Executivo e do Poder Legislativo para o Poder Judiciário 9. Nesse sentido, é preciso ter presente que o Estado Democrático de Direito deve romper, e o faz efetivamente, com a tensão entre autonomização e amoldamento que caracterizou/za muitas experiências do Estado Social – tomado esse conceito, aqui, em sentido amplo, para abranger todas as experiências tidas ao longo, em particular, do século XX. Ou seja, o Estado Democrático de Direito não pode se fazer à custa do amoldamento da subjetividade individual, através de estruturas compensatórias de promoção clientelística do consumo, por intermédio de um efeito duplo de proteção e normalização de condutas. Ou seja: o Estado Democrático de Direito deve romper com aquilo que poderíamos nominar, com J. Habermas “colonização do mundo da vida” 10.
2.3 Globalização: Um Caminho Múltiplo Para entendermos o fenômeno da globalização, talvez fosse necessário, em primeiro lugar, caracterizarmos a sua identidade singular ou plural. De fato, temos uma ou várias globalizações ou temos uma globalização que se espraia por diversos (todos) os setores da vida (?). Nessa esteira poderíamos tentar, em um primeiro aporte, entendê-la como algo que expressa um contexto de maximização das interconexões, as quais se estabelecem não mais no interior de espaços ou temas restritos, mas, ao contrário, projetam-se ao infinito. Todavia, diante da complexidade do tema, podemos adotar aqui uma 9
a
Nesse sentido, ver nosso, com Lenio Streck, Ciência Política e Teoria Geral do Estado, 2 ed., p. 98. Também ver: STRECK, Lenio. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma nova crítica do Direito. 10 Ver, sobre o tema, o nosso A Subjetividade do Tempo, em particular o capítulo terceiro, sem, contudo não deixar de considerar a dinâmica sofrida pelos conteúdos ali expressos. De Habermas, ver o seu Teoría de la Acción Comunicativa.
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“ideia” apenas, no sentido de que
a globalização muda, assim, nossa relação com o espaço – que se amplia – e com o tempo – que se acelera, o que deve conduzir a que evitemos vê-la sob o ângulo exclusivo de um processo de homogeinização ou reter dela somente fatores de heterogeneidade ou, ainda, tentar compreendê-la a partir da dialética da globalização e da fragmentação recorrendo a fórmulas de efeito, fundadas, por exemplo, na oposição McWorld versus Jihad 11.
Talvez, e é o que pretendemos apontar, devamos perceber o fenômeno globalização como não restrito às estratégias do capitalismo financeiro, mas, desde a perspectiva de que, não é um estado e sim um processo radicalmente incerto e ambivalente que se projeta por sobre os mais variados aspectos da vida e que, ao mesmo tempo em que rompe com os lugares tradicionais da economia, da política, das relações e práticas sociais, implica uma imbricação entre os diversos lugares em que tais ocorrem, multiplicando
de maneira simultânea e superposta fenômenos de homogeneização, localismo, desterritorialização, renacionalização e fragmentação das identidades coletivas, o que as torna multifacetadas, fluidas, ambíguas e em profundo processo de transformação (Gómes, p. 67).
Assim, nesse espectro, segundo Gómes (2009):
a globalização não deve ser equacionada exclusivamente como um fenômeno econômico ou como um processo único, mas como uma mistura complexa de processos frequentemente contraditórios, produtores de conflitos e de novas formas de estratificação e poder, que interpela fortemente subjetividades e tradições, exigindo maior reflexividade na ação diante do incremento da complexidade e da incerteza, e que diz respeito não apenas à criação de sistemas em grande escala, mas também às mudanças nos contextos locais e até mesmo pessoais de experiência social. (Gómes p. 59)
11
Ver: Laïdi, Z. La Mondialisation ou la Radicalisation de l’Incertitude, apud Gómes, José María, op. cit., p. 55-56.
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III. As Crises (Des)Constitutivas do Estado Democrático de Direito 12 3.1. As Crises: Uma Retomada Rápida Há algum tempo vimos sustentando que o Estado Nacional, com suas características da modernidade, em especial sua sustentabilidade em um poder supremo e incontrastável – como soberania –, sua organização sob a lógica da especialização de funções exclusivas(excludentes), sua conformação sob uma ordem jurídica consolidada constitucionalmente – Estado Constitucional – e sua projeção como o sustentáculo de padrões mínimos de sobrevivência e agente superior de regulação e formatação social, tem perdido, para dizer o menos, sua centralidade como instância de referência. São esses aspectos aquilo que chamamos: crise conceitual, crise funcional, crise institucional(constitucional), crise estrutural, respectivamente, sem pretender desconsiderar os vínculos que as unificam. Isso reflete o que alguns apontam como neofeudalismo, outros sustentam a necessidade de praticar-se uma reforma que vise a adequação da instituição Estado a um novo contexto de relações econômico-políticas e outros, ainda, que sugerem a necessidade de se retomar as bases de sustentação da ideia mesma de Estado para produzir-se uma refundação que permita recuperar suas referências legitimantes perdidas. Desde tempos vimos percebendo, pelos mais variados fatores, a corrosão da instituição estatal como tal e vendo surgir algo que poderíamos nominar provisoriamente como um espaço concorrencial de ação, no qual, de variados lugares, vemos partir estratégias decisórias que se confrontam na busca de supremacia.
3.2 O Estado Nacional como “Locus” de/para Realização dos Direitos Fundamentais Diante disso, é preciso que reflitamos acerca das possibilidades dos
12
Para uma revisão mais ampla desse tema, ver o nosso Revisitando o Estado! Da crise conceitual à crise institucional(constitucional), in Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS, 2000, p. 69 e ss.
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direitos humanos dados, como se disse anteriormente, seus vínculos intrínsecos com o Estado. Se retomarmos os vínculos, sugeridos por José Eduardo Faria, das diversas gerações de direitos humanos com uma das funções do Estado, percebemos o quão é importante, diante do quadro de esfacelamento da autoridade pública, a figura do Estado como instância de referência para a produção, salvaguarda e concretização dos direitos humanos Assim, sob o prisma da concretização pelo/através do Estado, é preciso verificar-se o papel do ente público estatal para que se obtenha o máximo de efetividade, assim como o máximo de adequação dos conteúdos que lhe são próprios. Por evidente que a ação pública estatal deverá incluir não apenas o reconhecimento em nível legislativo expresso ou implícito – através de uma cláusula constitucional aberta – (vide art. 5º da CFB/88) – que, como visto, tem serventia fundamental no âmbito das liberdades negativas, mas é insuficiente, já na seara dos direitos sociais, econômicos e culturais, como uma produção legislativa ordinária de caráter implementante da norma superior. Quando tratamos das liberdades positivas, a essa ação do legislador – pela regulação da previsão constitucional – é imprescindível que se agregue uma atuação promotora dos mesmos, a qual se funda em geral na ação executiva do Estado, colocando em prática conteúdos reconhecidos pelo direito positivo. Esse caráter prestacional vincula-se inexoravelmente à implementação dos direitos sociais, econômicos e culturais através da ação política – políticas públicas – estatal. 13 Temos, portanto, um problema ampliado. Um problema de teoria jurídica constitucional que se inicia com a compreensão da mesma, do perfil das normas que introjetam tais conteúdos e que são apresentados, muitas vezes, apenas como embelezamentos estratégicos e legitimadores da ordem normativa estatal, sem refletirem-se no cotidiano prático do cidadão, impondo-se que reflitamos 13
A respeito, do autor, ver As Crises do Estado Contemporâneo, in América Latina: cidadania, desenvolvimento e Estado. Portanto, quanto à implementação dos conteúdos dessa geração de direitos humanos, é inafastável a necessária compreensão dos contornos próprios às crises do Estado Contemporâneo, nos seus aspectos conceituais (em particular o problema da soberania) e estruturais (no que diz com os problemas financeiros, ideológicos e fillosóficos do Welfare state).
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acerca das ditas normas programáticas e de sua concretização sustentada na ideia de ótima concretização da norma, assentada em princípios, tais como o da unidade constitucional, concordância prática, exatidão funcional, efeito integrador e força normativa da Constituição (máxima efetividade), como explicita Konrad Hesse 14. Portanto, a implementação dos conteúdos de direitos humanos, em particular os positivos, implicam a necessária compreensão da ação jurídica fundamentada em uma prática comprometida e assente em uma teoria engajada, cuja Constituição não seja percebida exclusivamente como uma folha de papel15. Do outro lado, é preciso, ainda, que se pense na concretização dos direitos humanos a partir do prisma da jurisdição, atribuindo-lhe expressão fundamental quando estejamos frente aos direitos de terceira geração, o que não a afasta da problemática ora enfrentada. 16 Essa refere, ainda, a necessidade de que, para além da compreensão do tema, façamos uma utilização dos instrumentos procedimentais para fazer valer os seus conteúdos, apropriando-nos do que o próprio texto constitucional coloca à disposição do cidadão. Assim, em situações individuais, temos o habeas corpus, o habeas data e o mandado de segurança; para situações coletivas, temos o mandado de segurança coletivo; para as situações que envolvem interesses difusos, temos a ação popular, a ação civil pública, além de devermos considerar as possibilidades postas pelo mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Por óbvio que não se trata de tarefa fácil, em quaisquer dos aspectos antes expressos, particularmente quando tomamos como pano de fundo o Estado Contemporâneo e sua conformação e o caráter da formação jurídica dos atores envolvidos. Ou seja: o cenário que dispomos nos conduz a circunstâncias complicadoras das já difíceis tarefas que temos. É preciso que saibamos que a Constituição, como documento jurídico-
14
Ver o seu (livro?) A Força Normativa da Constituição. Para o trato da questão hermenêutica, ver Hermenêutica Jurídica (em)Crise, de Lenio Luis Streck. 15 Ver Ferdinand Lassale, Que é uma Constituição, passim. 16 Se pensarmos, nos limites desse trabalho, a função da jurisdição em uma perspectiva ampliada, que inclua não apenas a ação do agente público encarregado das atribuições afetas à função pública estatal, mas incorporando algo que poderíamos denominar como uma prática jurídica comprometida que congregue todos os operadores jurídicos, poderíamos refletir, aqui, acerca da necessidade de, com o alargamento e aprofundamento dos catálogos de direitos humanos, enfrentarmos o problema de como tornar tais conteúdos usufruíveis pelos cidadãos.
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político, está imersa nesse jogo de tensões e de poderes, mas é indispensável que tenhamos presente, os que militamos no direito constitucional e nos direitos humanos, também, que a Constituição não é programa de governo, ao contrário, são os programas de governo que precisam se constitucionalizar. 17 Mas como nos restringirmos ao debate acerca da concretização dos direitos humanos, em particular os sociais, através do Estado, se aceitarmos a referência anterior quando refere o papel apenas contingente do Estado nos dias atuais? É preciso, assim, que reflitamos acerca desse processo, o que podemos tentar sistematizar como um processo de desterritorialização dos espaços.
3.3 A Desterritorialização dos Espaços Para avançarmos, portanto, é necessário que tentemos atribuir um sentido ao conteúdo contido por esta locução: desterritorialização. O que pretendemos sugerir aqui é que de alguma forma a modernidade político-institucional sustentou-se, ao longo de sua história, sobre uma base geográfica territorial que permitiu, ao mesmo tempo, estabelecer identidades locais e diferenças. Ou seja, o território serviu para, através de seus limites, constituir características, direitos e acessibilidades ao mesmo tempo em que, conjugado com a ideia de soberania, impermeabilizava o interno diante do externo (estrangeiro). Todavia, essa noção parece indicada ao desaparecimento ou a uma necessária reconstrução, em especial se considerarmos o impacto estrondoso da(s) globalização(ções) que desestabiliza (...) as fundações políticas da ordem de Vestfália e mina (...) a correspondência histórica e analítica entre a democracia política e o Estado-nação soberano, como diz José María Gómes18. O que se tem aqui é que as questões e categorias centrais da teoria e prática da 17
Tal debate envolveria, ainda, um discurso competente acerca da mutação constitucional e do controle de constitucionalidade, os quais afetam indelevelmente o problema da concretização dos direitos humanos. Ver: BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Constituição ou Barbárie. Perspectivas constitucionais. In SARLET, Ingo. A Constituição Concretizada. 18 Ver, do autor, Política e Democracia em tempos de globalização, p. 62-63.
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democracia contemporânea resultam indissociáveis da figura do Estado-nação: o consenso e a legitimidade do poder político; a base político-territorial do processo político; a responsabilidade das decisões políticas; a forma e o alcance da participação política; e até o próprio papel do Estado-nação como garantia institucional dos direitos e deveres dos cidadãos e os processos em curso de globalização estão desafiando as fundações e princípios políticos do Estado-nação e da ordem de Vestfállia e, por extensão, da própria democracia e cidadania 19
Diante disso, como é possível enfrentar o desafio de “dar conta” dos direitos humanos?
IV. Interrogações prospectivas (nada contra Max Weber) Assim, a importância do debate acerca dos Direitos Humanos, parece-nos, deve ser percebida, no âmbito do Direito, pelo necessário reconhecimento e proteção através de garantias suficientes e eficientes; no âmbito da Política, pelo seu acatamento, respeito e promoção; e, no âmbito da Sociedade Civil, pelo apego aos seus conteúdos já consolidados e pela busca de salvaguardas aos novos desafios, além da moldagem de estratégias sociais de proteção e promoção independentes daquelas postas à disposição pelo Direito Positivo. Tal se apresenta não apenas em razão de sua constante ampliação do frequente desrespeito de que são objeto. Portanto, de que adianta retomar o tema dos Direitos Humanos e sua implementação, a partir de uma estratégia constitucional e de hermenêutica de suas disposições, para consolidarmos e ampliarmos o seu catálogo, os mecanismos procedimentais e as instâncias de proteção dos mesmos se, diante do atual quadro de crise das instituições públicas – crise do espaço público, da democracia, do Estado enquanto tal etc. – as instâncias de regulação social – como é o caso do Direito, estão se enfraquecendo ou, pior, desaparecendo, como espaços públicos de apelo, em especial frente a estruturas e estratégias paraestatais e mercadológicas? Não basta, nesse espectro, que nos restrinjamos ao debate jurídicopositivo acerca do tema enfrentado, se não tivermos presente que o seu 19
Id. Ibid., p. 52-53
Direitos Humanos, Estado e Globalização
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“sucesso” – efetividade – não depende unicamente de seu reforço por mecanismos jurídicos, posto que estes, muitas vezes, se esfacelam perante o estabelecimento de um espaço “público” privatizado ou paralelo. Deve-se, por outro lado, observar uma inevitável correspondência entre os Direitos Humanos e a Democracia, posto que, se essa se enfraquece são aqueles os primeiros e principais prejudicados, na qual em muitas situações, explicita-se a incapacidade de as instituições democráticas enfrentarem a força não repercute únicamente no âmbito dos Direitos Humanos civis e políticos, mas a todas as suas gerações, fazendo supor, como aponta Renato Janine Ribeiro, de que somente é legítimo, na política, o regime democrático... 20 Nesse momento é, ainda, relevante que tenhamos presente a inevitável e incontornável co-implicação que têm os direitos humanos em suas diversas gerações, o que impõe a percepção de que a dualidade “liberdades positivas/liberdades negativas” tem apenas um valor didático, posto que não podemos percebê-las como instâncias independentes.
4.1 O Deslocamento De outra banda seria preciso pensar a questão da concretização dos direitos humanos a partir de uma perspectiva social, para o quê apenas faremos menção. Ou seja: de que estratégias deveriam lançar mão, além daquelas já apontadas, os atores sociais para verem materializadas as políticas humanitárias erigidas ou não – uma vez que poderiam agir com o objetivo de verem satisfeitas pretensões novas emergentes de novos contextos e conflitos – como direitos fundamentais. Por óbvio que as possibilidades de verem satisfeitas tais pretensões podem, nos dias de hoje, ser pensadas a partir de uma dupla via. Na primeira, através de pretensões dirigidas à autoridade pública estatal, buscando fazê-los valer desde alguma estratégia positivo/prestacional ou negativa 20
Ver do autor: Primazias da Democracia, in Folha de S.Paulo, Caderno Mais, p. 5-13, 13.07.97. Para ele: Este valor ético da democracia faz com que os direitos que a constituem tenham primazia sobre todos os outros direitos possíveis do homem. Aliás, nosso tempo mostra que tais direitos somente são assegurados quando há o núcleo duro dos direitos democráticos.
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– na dependência do conteúdo da pretensão – por parte do Estado, de suas funções, de suas agências ou agentes. Na segunda, poder-se-ia supor um processo de autonomização social – o que não significa adoção de uma matriz (neo)liberal/capitalista – que conduzisse a uma apropriação coletiva das incumbências necessárias à efetivação de tais conteúdos. Tal efetivação dar-se-ia, então, a partir de um comprometimento coletivo pelo bem-estar comum, desde a assunção de tarefas sociais no próprio âmbito da sociedade e pelos atores sociais os mais diversos, independizando-se de amarras, muitas vezes, intransponíveis, próprias às características estruturais do Estado Contemporâneo, como Estado do Bem-Estar Social em suas diversas experimentações práticas. Aqui e dessa forma poder-se-ia incluir diversas experiências que vão desde uma flexibilização participativa da democracia representativa até a implementação mesma de políticas públicas autônomas que “rompem” ideologicamente com o caráter transferencial adrede ao modelo representativo.
4.2 Uma Estratégia Globalizada para os Direitos Humanos Ao final, e estrategicamente, é preciso que saibamos, mesmo imersos nesse contexto crítico, tirar o proveito possível dos conteúdos e procedimentos constitucionais positivados. Nesse quadro de ideias, não podemos furtar-nos ao enfrentamento desse tema se quisermos dar vazão, com certo grau de eficácia, à necessária constitucionalização do cotidiano, tendo como pressuposto que, como diz Paulo Bonavides, fora da Constituição não há instrumento nem meio que afiance a sobrevivência democrática das instituições. 21 Partindo desse pressuposto, quisemos sugerir uma leitura que projete um ponto de vista que parte da contradição entre dois projetos distintos para aquilo que pretendemos nominar – em outro momento – de um projeto mundial com exequibilidade local. Assim, desde logo poderíamos adiantar que, se fôssemos titulares de uma resposta à interrogação suscitada pelo tema enfrentado,
21
Ver: BONAVIDES, Paulo. Do País Constitucional ao País Neocolonial, p. 13.
Direitos Humanos, Estado e Globalização
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seríamos tentados a dizer que a globalização em seu sentido estrito, como projeto
econômico
hegemônico,
unilateral
e,
por
consequência,
uniformisante, aparece como uma perversa farsa que impõe um padrão único e totalizante – para sermos eufemísticos – de condutas. Por outro lado, se pensarmos a globalização – em uma perspectiva de universalização diferenciada – não enquanto tal, mas como um projeto civilizatório 22 que conjuga uma perspectiva universal que se constrói em escala mundial e se concretiza no plano local a partir de padrões compartilhados do justo, seríamos conduzidos a dizer que estaríamos, então, diante de uma inevitabilidade se quisermos construir uma sociedade justa e solidária, sob a paz perpétua kantiana necessária à medida que se apresenta o que Habermas nomina de globalização dos riscos 23. Quem sabe poder-se-ia falar, a partir da lógica humanitária, em um pensamento universal democrático que ne tend pas à la diffusion d’un modèle unique, à partir d’un point unique, mais plutôt à l’émergence en divers points d’une même volonté de reconaître des droits communs à tous les êtres humains 24, harmonizando e não unificando posições, permitindo-se certa perenidade da experiência constitucional como projeto de cultura comprometido com o presente e o futuro. 25 Ou seja, é necessário que percebamos que o espaço da democracia, em razão de um processo conjunto de desterritorialização e reterritorialização consectário da complexidade das relações contemporâneas, multiplica-se, não ficando mais restrito aos limites geográficos do Estado Nação, mas incluindo o espaço internacional, comunitário, além das experiências locais – como, e.g., no caso dos projetos de democracia participativa. Isso faz com que a própria noção de cidadania seja revisitada, não apenas em seus conteúdos, mas, e particularmente, em seus espaços de expressão, embora hoje prevaleça, ainda, 22
Ver: HÄBERLE, Peter. Libertad, Igualdad, Fraternidad. 1789 como historia, actualidad y futuro del Estado Constitucional. Madrid: Trotta. 1998. 23 Ver: HABERMAS, Jürgen. La Paix Perpétuelle, le bicentenaire d’une Idée Kantienne, p. 74 24 Ver: DELMAS-MARTY, Mireille. Op. cit., p. 25. 25 No es la Constitución sólo un texto jurídico o un entramado de reglas normativas sino también expresión de una situación cultural dinámica, medio de la autrepresentación cultural de un pueblo, espejo de su legado cultural y fundamento de sus esperanzas. In: HÄBERLE, Peter. Libertad, Igualdad, Fraternidae, p. 46.
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uma noção de cidadania identificada com um elenco conhecido de liberdades civis e políticas, assim como de instituições e comportamentos políticos altamente padronizados, que possibilitam a participação formal dos membros de uma comunidade política nacional, especialmente na escolha de autoridades que ocupam os mais elevados cargos e funções de governo 26,
estando, também ela, indissociável da ideia moderna de território. Tais premissas demonstram a incompatibilidade das noções clássicas de democracia e de cidadania com a desterritorialização provocada pela globalização, o que coloca a necessidade de repensarmos o conteúdo e a extensão de tais noções e práticas. Quanto ao conteúdo, é necessário que tenhamos presente que a questão da democracia e da cidadania há muito ultrapassou o seu viés político e ingressou em outros setores, tais como o social – na perspectiva do Estado do Bem-Estar Social – o gênero, o trabalho, a escola, o consumo, os afetos, as relações jurídicas e jurisdicionais – muito embora neste último talvez ocorra a maior defasagem. Poderíamos, também, falar de uma cidadania atrelada às gerações de direitos humanos, na qual teríamos uma cidadania da liberdade, vinculada às liberdades negativas, uma cidadania da igualdade, atrelada às liberdades positivas
e
às
prestações
fraternidade/solidariedade,
adrede
públicas aos
e
novos
uma
cidadania
conteúdos
da
humanitários
ambientais, de desenvolvimento sustentável, de paz etc. Quanto à extensão, é preciso saber conjugar e materializar as práticas e conteúdos da cidadania e da democracia no tradicional espaço nacional da modernidade e do Estado Nação, com o espaço regional/comunitário, produto das aproximações integracionistas/comunitárias, além de expandi-las para o espaço supranacional, seja identificando-o com espaço das relações privadas, seja com o espaço das relações interestatais, bem como compartilhar do esforço de forjar um espaço local/participativo, no qual haja uma transformação radical nas fórmulas das práticas cidadãs e democráticas aproximando e autonomizando autor e sujeito das decisões. Observa-se, assim, o estabelecimento de uma democracia e de uma 26
Como diz: GÓMEZ, Jose Maria. Política e Democracia em Tempos de Globalização. p. 90. Direitos Humanos, Estado e Globalização
143
cidadania multifacetadas e multipolarizadas. Para, além disso, diante desse contexto de complexidade e de busca de concretização
para
os
direitos
humanos,
parece-nos,
acompanhando
o
pensamento de José Maria Gómez, importante pensarmos uma cidadania cosmopolita que vá além da simples extensão do conjunto de direitos civis, políticos e sociais e suas respectivas garantias para a seara internacional, mas que se constitua em deveres éticos para com os outros além das fronteiras geográficas, ideológicas, raciais, culturais etc. 27 Em suma, para tanto é preciso: (...) promover novas formas de comunidade política e novas concepções de cidadania que vinculem autoridades e lealdades subestatais, estatais e transnacionais, em um ordenamento mundial alternativo àquele hoje existente. Isto é: de articular um duplo processo de democratização, de fortalecimento mútuo, capaz de aprofundar a democracia no plano doméstico (abrangendo o Estado e as sociedade civil, política e econômica) e, ao mesmo tempo, de impulsionar a ampliação radical de formas e processos democráticos nos âmbitos regional e global. 28 (grifos nossos)
Como diz Gómez: É preciso construir um projeto de democracia cosmopolita, sustentado tanto nas garantias institucionais e normativas que assegurem representação e participação de caráter regional e global, quanto em ações deliberativas e em rede que expandam e adensem uma esfera pública sobre as mais variadas questões relevantes (direitos humanos, paz, justiça distributiva, gênero, biosfera, saúde etc.) 29
Ou seja: não basta mais sermos cidadãos da própria comunidade política. Há cidadanias múltiplas e diversas que se exercem em locais, sob formas e conteúdos variados. 30 Como se vê, pôr um prato de comida nas mãos de cada um não parece ser tarefa fácil, embora inevitável e imediata, sem que enfrentemos a tensão permanente e intransponível entre uma estratégia econômica excludente e as tarefas includentes de uma política democrática, alicerçada nos direitos humanos 27
Id. Ibid., p. 71. Ibidem, p. 135. 29 Gómez, op. cit., p. 138. 30 Id. Ibid., p. 134. 28
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Direitos Humanos, Estado e Globalização
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Globalización: El Nirvana del Viejo Orden Burgués
José María Seco Martínez
Conciencia de crisis. Crisis suele ser el juicio recurrente en el diagnóstico con que la literatura científico-jurídica y política más pujante, enfrenta desde no pocos sectores el declinar creciente de los planteamientos, pese a su pretendida impecabilidad teorética, de la vigencia tradicional acerca del Estado y su transfiguración contemporánea, el derecho y el sistema democrático e institucional. Desde que en la década de los setenta se abriera paso una nueva conciencia de crisis generalizada de legitimación política del Estado liberaldemocrático
(o
Estado
constitucional
de
derecho
como
acuñara
el
constitucionalismo más reciente 1), el concepto de crisis se ha ido instalando definitivamente no ya en la ciencia política o en la sociología, sino en prácticamente todos los órdenes disciplinares del imaginario cultural y científico de nuestros días (cultura, ciencias experimentales, ciencias sociales, filosofía, religión,...), y como no en la filosofía jurídica. No es preciso, por tanto, esforzase demasiado para arribar, de la mano de HEINO KAACK, al entendimiento consistente en considerar la existencia de un proceso notable de inflación del concepto de crisis 2. Es más, se ha utilizado tanto y en ocasiones de manera tan bizantina y fútil, que la propia experiencia diaria de los hechos se ha encargado de desdibujar su contenido mediante la tácita 1
Que alentaran OFFE C. y HABERMAS, J., así como otros autores que fueron adhiriéndose seguidamente tales como BELL y GUGGENBERGER o los decididamente marxistas O’CONNOR y GOUGH. 2 V. PASTOR, M., “Las ideologías políticas”, en Fundamentos de ciencia política, Ed. McGraw-Hill, Madrid, 1997, p.66. Empero, esta conciencia de crisis generalizada del mundo occidental/capitalista pulula por doquier y con antelación incluso a la conmoción del Crack repentino del 29. Entre los años 1919 y 1922 OSWALD SPENGLER publica su obra más famosa La decadencia de Occidente, que se situaría a la cabeza de una larga serie de obras y ensayos que tenían por objeto de conocimiento el estudio de la crisis. Este es el caso de obras tan significativas como Una nueva Edad Media, a cargo de N. BERDIAEFF; El fin de nuestro tiempo, de R. GUARDINI; La crisis de nuestra civilización, de H. BELLOC,...etc, y que formado parte de lo que se ha dado en llamar “literatura de la crisis”. Para una visión más amplia, cfr. con MOSSE G.L., La cultura dell`Europa occidentale, Milano, Mondadori, 1986; con HUGHES, H.S., Coscienza e societá - Storia delle idee in Europa dal 1890 al 1930, Torino, Einaudi, 1967 -muy interesante desde la óptica estricta de la historia de la cultura-; y con BRACHER, K.D., Il Novecento secolo delle ideologie, Bari, Laterza, 1984.
devaluación de su verdadera carga significacional. Pero, lo cierto es que desde que este se consolidara hace apenas treinta años el punto de referencia ha sido sólo uno. Y al se sigue recurriendo constantemente: la crisis. Hoy se manifiesta o conoce de manera casi ininterrumpida cuando oímos hablar insistentemente de crisis institucional (en sociedades
democráticamente
cada
vez
más
depauperadas),
de
crisis
internacional (por la desvigorización de los equilibrios de posguerra que aseguraron a buena parte del mundo períodos relativos de paz, como por el quehacer disoluto y quedo de los organismos internacionales fruto de aquellos), de crisis económica, ecológica, cultural o simplemente política. En verdad, vivimos años muy convulsos y en franca transición, destrucción y creación 3 de una crisis de la hegemonía del viejo paradigma sobre el mundo. Es este el tiempo en que la modernidad y sus expectativas performativas de la realidad 4 en orden a la consecución de grados superiores de inteligibilidad propiciatorios de un nuevo orden social de relaciones, reino sin igual de la abundancia, la armonía y la paz universales 5, se vienen definitivamente abajo. 3
V. LEFEBVRE, H., “Du culte de l’ Esprit au matérialisme dialectique”, en Nouvelle Revue française, Diciembre de 1932. 4 Que ya llevaban poniéndose en entredicho hace media centuria por la profusión de las filosofías de la persona, los existencialismos o el irracionalismo de post-guerra, mediante la impugnación de las bases mismas de la modernidad occidental/capitalista: racionalismo, individualismo, materialismo e inversión ideológica de valores. 5 En verdad, los vigores del optimismo ilimitado moderno o quizás, su ingenuidad, han extendido la idea de que todos los procesos dimanantes de la modernidad – democratización de la sociedad, secularización de la realidad, etc.- llevan a pensar que la naturaleza y la humanidad disponen en todos los sentidos de recursos infinitos y desconocidos. El mito occidental del paraíso perdido (v.gr., el reino del preste Juan) alimentado ahora por la metafísica de la armonía oficial de corte racionalista recobra su situación en el centro de lo temporal, olvidando a Dios y apelando a la perfección de las leyes de la naturaleza. En un primer momento pudiera pensarse que la metafísica ya secularizada, como el utopismo ya temporalizado, que se prodigaban en la época y el rigor de los patrones tanto de científicos (GALILEO y NEWTON), como de filósofos (HUME y LOCKE), pudieran ser opuestos. Sin embargo, ni los autores sociales utópicos (CONDORCET, BUFFON, FOURIER) prescindieron de la ciencia para sostener la validez de sus planteamientos, ni la Ciencia se desvinculaba, al abrigo de la ilusión trascendental, de la idea de progreso entendida como perfección. Una actitud displicente para con las repercusiones de la ciencia ciertamente no era posible en un momento histórico (s.XVIII) en que la práctica científica constituía el hilo por el que se enhebraba el conocimiento. Esta nueva forma de divinizar a fuego lento del brazo de la ciencia y la razón, que ya se percibiera en el s. XVII incluso en autores utilitaristas tales como BACON, F., en su obra La Nueva Atlantis de 1627, y CAMPANELLA, T., en La Ciudad del Sol de 1632, en las que se privilegiaban la contribución del conocimiento científico en la construcción de un orden social perfecto, se recoge de manera magistral en un pequeño excurso que REBOLLEDO F., atribuye de manera figurada a BUFFON, filósofo francés del siglo XVIII amante civilizado como muchos de su tiempo del saber científico: “El ingenio humano es inagotable. Podemos hacer cualquier cosa que queramos. Sí, amigos, lo que queramos. Basta con estudiar la naturaleza, comprender sus leyes, respetar sus principios, y el mundo estará a nuestros
Globalización
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Con la caída del muro de Berlín se abre paso, sin más resguardo que la savia sintética de su propio discurso profético, el individualismo liberal. Un discurso excluyente y totalitario 6 que, habiéndose quedado solo y concibiéndose a sí mismo como el único dotado de racionalidad, cree haber convencido a sus adversarios de que su fracaso era inevitable, que formaba parte del orden indeleble de las cosas. Quizás sea ésta la trampa más elaborada del neoliberalismo económico más taimado: convencer a sus detractores de que la globalización de la economía constituye un hecho irreversible y, por ende, incuestionable. Nada, absolutamente nada, puede detener el avance rayano en lo mágico de un fenómeno estentóreo que, a la manera de una nueva revolución, pretende cambiar la configuración del viejo orden social. En fin, un discurso por cuya boca sólo correrá un rezo: el triunfo incontestable del capital. Cree habernos convencido a todos de que únicamente él es justo, legítimo y moral. Qué sólo él es capaz de ahormar y dirigir la acción política en orden a la felicidad. Con más sobranza de afeite y provocación que humanismo, se alimenta de promesas vacías de futuro con las que despeja el camino de su propia consubstanciación 7. Habiendo enfrentado todas nuestras carencias, confía en haber cubierto todas nuestras necesidades. Y lo que es peor, pretende haber vencido sin violencia, sin más recurso que el de sus propias declamaciones utópicas, su pies, inagotable y generoso. Sacaremos de él alimentos, salud, riquezas, lo que queramos. Por eso yo me burlo de quienes se burlan de mi obra, de mi lucha por defender el saber, la filosofía y la ciencia (....), porque hermoso es nuestro futuro, porque nuestra inteligencia está adornada con dones divinos. Somos unas criaturas perfectas. Nuestra capacidad para saber es inagotable. Nuestro futuro es sublime. Estamos llamados a rehacer, con nuestras manos, con nuestra inteligencia, el paraíso para volver, de igual a igual, algún día no muy lejano, a los brazos de nuestro Hacedor -Buffon Abril de 1761-”. REBOLLEDO, F., El sueño de la razón, Ediciones B, S.A., Barcelona, 1995, p. 123 (El subrayado es mío). 6 Un discurso cuyos efectos obran en nuestra consciencia como si de una astilla clavada en la mente se tratara. Por eso no podemos reparar en él. Nos envuelve constantemente. Está por todas partes. Nos rodea, nos posee. Puedes sentirlo al mirar por la ventana, cuando ves la televisión, pero no podemos discernir como funciona ni cuál es el alcance de sus efectos sobre la realidad. Opera como una “prisión para nuestra mente”. Es lo que se ha venido en llamar por I. RAMONET “el pensamiento único” que es asumido, parafraseando a CAPELLA, “como dogma por los principales órganos de opinión económica mundiales a la que le sirve una policía de pensamiento omnipresente: son agentes suyos desde los decanos de la facultad, catedráticos (…) de universidad hasta directores de medios de masas y ejecutivos de la industria editorial y la publicidad”. CAPELLA, JR., Fruta Prohibida. Una aproximación histórico-teorética al estudio del derecho y del estado, Trotta, Madrid, 1997, p. 266. 7 En nombre de aquéllas, parafraseando a F. HINKELAMMERT, “cada paso destructivo del sistema es celebrado como un paso inevitable hacia un futuro mejor (...). Es la utopía neo-liberal del bienestar (...). Es la utopía de la Sociedad Perfecta del mercado total, que anuncia la destrucción como el camino realista de la construcción”. HINKELAMMERT, F., El Grito del Sujeto, DEI, S.José (Costa Rica), 1998, p.239 y 240
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persuasión y su pretendida “eficacia” histórica. En fin, son los años de la consagración silenciosa de la violencia, que no de la victoria, del capital, que ha incubado la tragedia social para millones de seres humanos y la catástrofe ecológica para buena parte de los recursos, desde luego extenuables, del planeta. La conciencia de crisis, por tanto, no es ni por asomo un hecho casual. Antes bien, es el resultado de una elección que apuesta ahora sin rodeos por el risorgimento de un capitalismo factual, pertrechado y global. Aquella estalla precisamente como salida imposible a la crisis múltiple –de corte social, económico, político, ecológico, etc– de la expansión productivista del mercado y el ethos materialista donde se cobija y alienta. El hecho de que pretendamos no reparar en aquélla, para obviar así la causa de la misma o su verdadera magnitud de proporciones bíblicas, no nos exime de la necesidad de reconocer que nos topamos con ella a diario. Ya fuere a través de los medios de comunicación, en las aulas, en el flujo cotidiano de nuestras conversaciones, lo cierto es que somos en mayor o menor medida conscientes – otra cosa es que no los situemos jerárquicamente dentro de nuestra escala individual de problemas requirentes de atención – del deterioro progresivo del medio natural, de la desaparición de nuestros bosques por razón de la especulación, de la falta de precaución o la acumulación de residuos sólidos, del cambio climático de la mano del efecto invernadero o la destrucción de la capa de ozono, de la marginación social que aflora en los círculos industriales de nuestras grandes ciudades, del hambre, el desaliño o la privación extrema habituales en lo que de forma tan recurrente y común denominamos “Tercer Mundo”, que pese a ser postrero y el más rezagado no es más que el primero geo-cuantitativamente hablando; etc... Surge (la idea de crisis), en definitiva, con el propósito nada desdeñable de auspiciar la superación de los quebrantos de una cultura individualista, inmovilista y mecanicista, que se forja en las bases metafísicas del optimismo liberal de la mano
del
espiritualismo
desvitalizado
del
cristianismo
burgués,
(aliado
incondicional del capitalismo y corruptor del hecho temporal cristiano), y que se obceca en la idea de progreso técnico y productivo entendido como crecimiento económico. Es decir, como rechazo a la inferencia demasiado sacrificial de un
Globalización
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desorden histórico al que se conoce, nos guste o no, como globalización 8, presidido por la glorificación desaforada del dinero, por el beneficio económico inaplazable, por la erradicación en las instituciones de cualesquiera controles éticos, por la ocupación del orden social y sus relaciones, por la colonización de todas las esferas del saber y el poder y por la redefinición del papel del Estado – orientado ahora a la satisfacción, no ya a las necesidades de la ciudadanía y su urgencia social (pacto social, consenso, pleno empleo,...), sino de las condiciones de posibilidad idóneas a la hegemonía del mercado 9. Sin olvidar mis afanes vindicativos contra el yugo de las estructuras de un sistema moralmente indiferente que embarra a millones de seres humanos, trataré a continuación de desenmascarar sin el monóculo tubular de los entendidos, es decir, sin ánimo de categorizar lo más mínimo y sin perjuicio de que existan otras interpretaciones de lejos más apropiadas y de mayor alcance que las aquí se proponen, los valores embozados sobre los que reposa y arraiga este fenómeno globalizador del modus de producción capitalista. Los adentros de este régimen económico, hendido en la ciénaga sin memoria social al socaire de los influjos envilecidos que impone el movimiento del capital, vienen determinados por el efecto combinado de tres principios claramente diferenciados: la confianza metafísica del optimismo liberal, la preponderancia del dinero y el primado del beneficio inaplazable 10. Veamos en que consisten.
8
Se podría esperar en este punto que comenzáramos por definir “Globalización”. Sin embargo, es tanto lo que se ha escrito y tan variado lo que se ha dicho que no se puede considerar a esta objeto de una autentica definición. Diríase que es esencial a ésta su no definibilidad. Toda definición le resulta inadecuada, no ya por la heterogeneidad significacional a que alude o por la diversidad de situaciones a las que remite, sino porque básicamente no es un concepto, ni tan siquiera una categoría. El término globalización se ha utilizado de manera indiscriminada y ambigua. Ahora bien, ya fuere como proceso de mundialización o internacionalización (de liberalización) de la economía, o como proceso de homogeneización/universalización ideológica, lo cierto es que el hecho de que no se pueda definir con precisión no conlleva que confinemos al término de referencia en el ámbito de lo ininteligible. Sólo faltaba que además de su preponderancia asistiéramos perplejos a la invocación de su incognoscibilidad. Descartando la posibilidad de una definición comprensiva de múltiples implicaciones, preferimos definir a la globalización como desorden histórico. Un nuevo desorden que apuesta no ya por la inmutabilidad del sistema vigente, sino por su definitiva regeneración. 9 V. En este sentido las páginas enervantes de ZOLO, D., Cosmopolis. La prospettiva del governo mondiale, Feltrinelli, Milan, 1995 10 Régimen o desorden cuya realidad, no obstante la formulación de estos tres principios, requiere ser comprendida por medio de la contemplación simultánea de todos ellos. Toda vez que al no representar otra cosa que aspectos de una misma realidad, la que se forja al abrigo de la sociedad occidental/capitalista, no pueden ser suficientemente evaluados en sus implicaciones como si de compartimentos estancos se tratara.
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a) “La Confianza Metafísica en el Optimismo Liberal”
En virtud del cual, los designios de la libertad, confiada esta a su tiempo e inercia, tienden de manera espontánea a la armonía. Lo cual refluye tanto en el arrojo épico del liberalismo, que entroniza a la libertad humana como el eje que enhebra y da sentido a todo el sistema, como en el mesianismo temporal y redentor de la acción liberal/capitalista, que sublima las potencialidades del mercado en la construcción angelical de lo real. La eclosión internacional del comercio a lo largo del S.XIX, la revolución industrial y el auge del transporte fueron aquilatando de manera imparable una nueva fisionomía para el mundo, en el que se alterarían los resortes ya congestivos del orden social, las formas de vidas de los sujetos y sus modales, el légamo de sus relaciones, la manera de conocer e interpretar el acontecimiento y, sobre todo, las estructuras económicas. Este proceso temprano de expansión acumulativa en el que cada logro o innovación constituía el fondo desde el que partían los siguientes y el influjo todavía bullente por aquel entonces de las ciencias de la naturaleza, azuzaron la necesidad de dedicar esfuerzos a la teorización científica del mercado y sus sistemas que, acorralados aún por el encomio armonicista (LEIBNIZ) de la vieja metafísica racionalista, tienden inevitablemente, a causa del automatismo intrínseco de sus mecanismos de funcionamiento, al mejor de los horizontes posibles. El mercado se erige así en el mejor fierro frente a la lividez de los horrores continuos, la deriva y los riesgos de la escasez y el abandono. Sólo él pasaporta al mejor de los mundos elaborables; sólo él está en situación de expiar las atávicas cuentas pendientes del hambre y la necesidad; sólo él puede restañar definitivamente las heridas de un mundo en carne viva. En fin, sólo él se siente en condiciones de producir automáticamente un efecto armónico general sobre la realidad. Esta transposición del principio (leibniziano) armonioso natural al ámbito de las relaciones económicas, lo que se ha conocido vox populi como el laissez
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faire 11, se ha sintetizado hasta con soniquete por los historiadores del pensamiento económico clásico en la mano invisible de ADAM SMIT, por medio de la cual se organizan todas las actividades, en orden al mejor de los mundos realizables, de todas y cada una de las diversas entidades existentes fueren aisladas o no, sin que en ningún caso sea preciso o posible el llamamiento a los deseos de regulación de los poderes públicos, aquí representados en el dedo admonitor de una mano externa y visible. Quizás sea el texto de KINGSLEY, un socialista cristiano providencial y arremansado en las responsabilidades sociales que se opuso desde el principio a las falsas esplendideces del optimismo económico liberal, quien nos esclarezca el fariseismo suntuoso del alacre férreo e industrial del laissez-passer: Pero tú puedes recordar tanto como yo, cuando una delegación nuestra acudió a un miembro del Parlamento, que tenía fama de ser filósofo, economista y un liberal, y le expuso la miseria y penuria crecientes de nuestro oficio y de los relacionados con él; recuerdas su respuesta: que, aunque le agradaría poder ayudarnos, era imposible, él no podía alterar las leyes de la naturaleza, los salarios, estaban regulados por la competencia entre los hombres, y ni el Estado ni nadie debía entrometerse en los acuerdos entre patronos y obreros, pues esas cosas se regulaban solas a través de las leyes de la economía política, a las que era una locura y un suicidio oponerse. (KINGSLEY, CH., Alton Locke, 1850) 12
En este sentido, sea cual fuere nuestra actitud o propósito más sectario, individual o fragmentario, siempre debeladores del cálculo y la idea cuantitativa de ganancia maximizada, el efecto será el mismo: su transformación invariable en interés común. La conclusión para SMITH, siguiendo posiblemente al dictado la 11
Tradicionalmente se ha considerado por la propia historia del pensamiento económico a ADAM SMITH como el auténtico precursor, no ya de la ciencia económica clásica, lo cual es también discutible si nos remontamos a 1767 y reparamos en las aportaciones del que fuera su antecesor JAMES STEWART en su obra titulada Investigación sobre los principios de la economía política, sino de la doctrina del laissez faire. De hecho, Smith únicamente se limitó a proscribir, en su obra principal Las riquezas de las naciones, determinadas actuaciones públicas por su pésima contribución a la restauración de la actividad económica dirimiendo sus repercusiones en la exaltación de la no intervención política como principio. Será preciso indagar, por tanto, en los escritos de otros autores de su tiempo como JOHN RAMSAY MCCULLOCH, STUART MILL, NASSAU WILLIAM SENIOR o, incluso, predecesores como el propio BERNARD MANDEVILLE, GEORGE BERKELEY o los propios fisiócratas franceses (a quienes la historia económica ha reservado la autoria del término), para remontar la reconstrucción del nacimiento y evolución de la ideología política del laissez nous faire. 12 V. GORDON, S., Historia y filosofía de las ciencias sociales, Ariel, Barcelona, 1995, p. 254 y 255.
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conocida intuición de BERNARD MANDEVILLE en su Fábula de las abejas según la cual los “vicios privados acarrean siempre beneficios públicos”, es bien sencilla: cuanto más pesada sea tu avidez, cuanto más alobadas sean tus acciones, cuanto más serpenteante sea tu actitud en función de esa idea de rapacidad interior que no hace sino calcular ganancias, más contribuirás al interés general. Cuanto menos restricciones se establezcan al ejercicio de nuestra iniciativa, cuanto menos trabas oscurezcan y parcialicen el desarrollo de la individualidad más cercano estará de todos los hombres el advenimiento de un orden social perfecto. El mercado rubrica así su disposición y capacidad técnica de arbitrar mecanismos de ordenación económica perfecta sin otra colaboración política que la del Estado en la prevención y sanción de los ilícitos contra la vida, la libertad, la propiedad, la seguridad y el tráfico mercantil por medio del cumplimiento de los contratos. Con un planteamiento semejante no nos debe extrañar la visión uniforme, simple y apologética del optimismo liberal y su viejo cartelón de aleluyas que identifica libertad con armonía, mercado con sociedad perfecta 13 y, sobre todo, omisión con responsabilidad. Empero, el uso indiscriminado de la libertad no regulada conforme a los 13
Que se recogen de manera diáfana y precisa en la obra de HARRIER MARTINEAU conocida como Ilustraciones de economía política que elaborara entre los años 1832 a 1834, particularmente en su sección destinada a resúmenes de principios. Transcribamos algunos: P.II. “Los intereses de las dos clases de productores, trabajadores y capitalistas son los mismos: la prosperidad de ambos depende de la acumulación del capital”; P.XVII “a través de un intercambio universal y libre, se establece un sistema absolutamente perfecto de economía de recursos. Como el interés general de cada nación exige que haya libertad perfecta en el intercambio de mercancías, cualquier limitación a esa libertad, con el propósito de beneficiar a una clase concreta o a unas clases, es sacrificar un interés mayor a otro más pequeño (...), es decir, un pecado de gobierno”; P.XXIII “Dado que el gasto público, aunque necesario, es improductivo, debe limitarse (...). Sólo es justificable que se gaste lo necesario para la defensa, el orden y la mejora social”; P.XXIV “Un sistema fiscal justo debe dejar a todos los miembros de la sociedad exactamente en la misma situación en que los halló”. MARTINEAU, H., Ilustraciones de economía política, en GORDON, S., Op. Cit., p. 261. En definitiva, únicamente en un mercado perfecto, esto es, realizado en su totalidad, podrán darse alcance a los sueños hasta ahora malhadados de la sociedad racional. Sólo dejando vía libre al mercado, únicamente encomendando al mismo la construcción de la realidad, podrá accederse a grados nuevos de paz y felicidad para todos los hombres. Si existe exclusión social o degradación natural es porque no se abandona al Mercado la construcción de lo real. Es por esto, que para los teóricos del liberalismo político y económico, debe desaparecer todo aquello que distorsione el proceso de totalización del mercado. Los derechos humanos, social y materialmente entendidos, esto es, los derechos sociales, los proyectos nuevos que abogan por otros modelos de desarrollo sólo obstruyen la consecución de esa idea de sociedad perfecta. Por tanto, deben desaparecer. Para el neoliberalismo, sólo en el contexto de una sociedad perfecta de mercado total será posible el sueño de babel (magistralmente representado por Fritz Lang en Metrópolis, 1926) de un mundo perfecto. Acerca de la idea de sociedad perfecta V. HINKELAMMERT, F., El Grito del Sujeto, Op. Cit., p. 239 a 241.
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postulados del liberalismo, ha dado origen a un mundo asimétrico cargado de riesgos ostensibles para el sostenimiento, parafraseando a HINKELAMMERT, F., de las condiciones de posibilidad de la vida humana y no humana. Repárese sino en la desigualdad y exclusión crecientes del ochenta por ciento de la población, la destrucción a escala de nuestro entorno natural, el aniquilamiento sostenido de múltiples culturas expresivas de otras formas de concebir el mundo y la naturaleza. El optimismo ideológico sin ambages que profesan quienes aventuran, al igual que los vencedores en camino (pero con muertos todos los días), el derrame de tanta regalía, al albur del renacimiento del laissez faire y de la homogeneización
de
la
lex
mercatoria,
contrasta
sobremanera
con
la
tenebrosidad, el patetismo y la experiencia temulenta de sacrificios de unos hechos demasiado explícitos de la tragedia que hiere la vida concreta de millones de seres humanos. Cuando estallan el tifus o el cólera, nos dicen que nadie tiene la culpa. ¡Ese terrible Nadie! ¡De cuantas cosas tiene que responder! No hay en el mundo quien haga tanto mal como Nadie. Nadie adultera nuestra comida. Nadie nos envenena con bebidas malas. Nadie nos suministra agua hedionda. Nadie difunde la fiebre en los callejones y en las callejas sin barrer. Nadie deja las calles sin alcantarillas. Nadie llena las cárceles, penitenciarías y comisarías. Nadie hace furtivos, ladrones y borrachos. Nadie tiene una teoría, además (...) una teoría horrible. Está encarnada en dos palabras: laissez faire (...) “dejadnos en paz”. Cuando envenenan a la gente con yeso mate mezclado con harina, el remedio es “dejadnos en paz”. Cuando se utiliza Cocculus indicus en vez de lúpulo y los hombres mueren prematuramente, es fácil decir: “Nadie lo hizo”. Dejad que quienes puedan descubran cuándo se les engaña: Caveat emptor. Cuando la gente vive en viviendas hediondas, dejadla en paz. Dejad que la desgracia haga su trabajo; no pongáis obstáculos a la muerte. (SIMILES, S., Frugalidad, 1875) 14.
Testimonio feroz de un realismo imposible de justificar, estos hechos evidencian no ya la sucesión interminable de problemas/límite, que están poniendo en jaque las condiciones indispensables para el mantenimiento de la vida, ni tan siquiera el agotamiento inequívoco de los ideales y estilos de vida que se fueron fraguando al hilo de determinados acontecimientos históricos de nuestra
14
V. GORDON, S., Op. Cit., p. 256.
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cultura más reciente 15, sino la existencia de dos mundos definitivamente escindidos 16. Podría incluso decirse que uno vive arriba y es centro. La tonalidad de sus relaciones es de color sepia y el sabor de su tiempo azucarado. En él habitan unos pocos escogidos que abrazan el hechizo de una vida que confunden con el valle de Josafat, para acto continuo aferrarse con fuerza al rincón cálido y azulino de un modo de vida sin apenas sobresaltos, colmado de certezas y/o seguridades. El otro malvive en la periferia y es subterráneo. Discordante con el primero, por la tonalidad violácea de su tiempo, la agritud será el distintivo de sus relaciones. Su aspiración más cercana será el tósigo de la sobrevivencia diaria. Su ambición comer 365 días al año. Uno de ellos acoge en su regazo el acomodo de unos pocos privilegiados, ajenos al desierto de “los otros”, y entregados con demasiada fruición a la conquista del Eliseo. El segundo es el de “los demás”, el de la práctica mayoría, es decir, el de los pobres, olvidados, marginados, omitidos, abandonados, desplazados, arrinconados, relegados, negados, huidos..., que sobreviven por debajo del pan cotidiano de cada día. En fin, dos mundos irremisiblemente separados por un precipicio, pero inter-relacionados por razón de la inercia de sus destinos opuestos: el mantenimiento del primero requiere de la postración del segundo. Mientras que aquél no hace otra cosa sino porfiar abrazos al globo con el propósito de apropiarse del mundo para luego concentrar toda su riqueza en su vórtice, el 15
Y que apuntan a un horizonte de “transición paradigmática”. Téngase en consideración que nuestro modelo de organización social de vivir arranca con la modernidad y sus concepciones del hombre y sus relaciones, la naturaleza y el Estado. A raíz de la misma se inicia una fase histórica que llega hasta nuestros días con niveles de expoliación y/o marginación desconocidos en millones de años. Desde entonces lo que se ha venido en llamar “el paradigma de la Modernidad”, que adereza un mundo de certezas anclado en el olvido de la realidad, ha ido jalonando el desarrollo de la cultura occidental. Una cultura que creyendo hallar el paraíso en la tierra, que tratando de auspiciar la realización de los sueños de la ilustración, propaga el infierno de lo real. V. en este sentido acerca del contexto de transición en que nos encontramos y a título de ejemplo a BOAVENTURA DE SOUSA, S., A crítica da razäo indolente contra o despedicio da experiência. Para um novo senso comum. A ciencia, odireito e a política na transiçao paradigmática, Cortez Editora, Sau Paulo, 2000. 16 Como ya dijera M. Castells la arquitectura de nuestra civilización ofrece en la actualidad un mundo “asimétricamente interdependiente, organizado en torno a tres regiones económicas principales y cada vez más polarizadas a lo largo de un eje de oposición entre zonas productivas, con abundante información y ricas, y zonas empobrecidas, de economías devaluadas y socialmente excluidas”. CASTELLS, M., La era de la información. Economía, sociedad y cultura (VOL.I), Alianza, Madrid, 1996, p. 173.
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segundo, que se debate entre seguir viviendo o morirse de hambre, es desterrado, abandonado y condenado a la inviabilidad bajo los juegos platonizantes del liberalismo redentor. El precio de la riqueza de uno es la miseria del segundo.
b) “La Preponderancia del Dinero” El primado del capital sobre la economía, el trabajo y cualesquiera otros factores de producción. Pretenden hacernos creer que el sistema capitalista no es más que el fruto esperanzado de una simbiosis ordenada entre capital y trabajo 17. Nada más lejos de la realidad, la jactancia de aquél revierte en una primacía insultante del capital sobre la remuneración del trabajo y el poder económico. Lo que empieza siendo desde sus primeros fueros un simple valor de cambio
orientado
a
la
agilización
necesaria
que
urgía
la
incipiente
internacionalización del tráfico de mercancías, acaba erigiéndose en el objeto último de los mercados. Del dinero como mera instrumentalización de cambio de bienes y servicios el aparato capitalista ha desarrollado un bien productivo en sí mismo. Su reproducción y/o acumulación febril será la finalidad única y excluyente del proceso productivo. La satisfacción de las necesidades básicas ya no constituirá el criterio regulador de las relaciones de una sociedad. El Mercado se ha creado por y para la expiación de la demanda, esto es, de la necesidad solvente, la única capaz de garantizar el funcionamiento del sistema mediante la obtención excendentaria de un fetiche llamado dinero. El dinero, en un sistema tal, posee una fuerza convincente rayana en lo mágico. Es la llave que abre todas las puertas, es la clave de la prerrogativa y el poder. Todo cuanto pueda interesar al ser humano, hasta su propia espontaneidad vital y sus pulsiones más íntimas, sus valores y sus generosidades, sus anhelos de aventura e imaginación, acaban cediendo bajo el peso grotesco del abrazo al dinero y a la consideración social que conlleva su hacinamiento. Se abre paso así un sistema descabellado, al tiempo que eficaz, en que la 17
Por desgracia, el trabajo ha dejado de ser un instrumento de cambio y el capital se ha apropiado del derecho a disponer de su producto. El trabajo ya no es el agente movilizante de la actividad económica. La ganancia capitalista deviene posible en la medida en que opta por una desvinculación con el trabajo.
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“recolección” insaciable del capital, debido a su progresión anónima e inorgánica y su naturaleza matemática, deviene en su razón más solícita. Se rebaña una y otra vez con el firme propósito de seguir amontonando más y más dinero por medio de una secuencia diabólica e interminable de acopio de capital en constante evolución y asociación.
c) “El Primado del Beneficio” Ante este panorama, se impone progresivamente la exaltación de la ganancia económica como la mejor opción de las posibles para con esta estrategia imparable de acumulación. Entra así en escena el último y postrero de los principios reguladores de la realidad capitalista, el móvil preeminente de la vida económica en general, el principio “operativo-regulativo básico del capitalismo” 18: la mistificación artificial del beneficio inaplazable o la ganancia económica maximizada. La ganancia y su enfática complicidad con el apremio cuantitativo hacen del crecimiento con respaldo económico en el bienestar, red azul que nos protege del crepúsculo de la necesidad, su empeño inmarcesible. Es precisamente esta convicción larvada en la memoria de sus víctimas la que se ha encargado de lubricar los procesos de generalización de modelos de desarrollo excesivamente expeditivos o de realización exterminadora para con la biosfera y la vida humana. La ecuación es bien sencilla. Si el sueño ilustrado de la felicidad equivale a bienestar y éste sólo es alcanzable de la mano del crecimiento acaudalado consistente en un incremento exponencial de la producción y el consumo, la felicidad sólo será posible en el vientre del progreso económico a caño libre. Cuanto más crecimiento, esto es, cuanto más elevada sea la producción y el consumo, más cercano estará ese horizonte metafísico de la modernidad de hacerse carne en los hombres. Empero,
la
devoción
irreprimible
a
esta
secuencia
bienestar/felicidad/crecimiento ha posibilitado la legitimación de pautas de desarrollo, cimentadas en la producción y en el consumo incontenibles, 18
Al menos así se alude al primado del beneficio por SOLORZANO, N.J., Esta globalización: de los nuevos mitos al contexto, texto impreso (s.e), 2.002, p. 4.
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dimisionarias de la responsabilidad primigenia que les dio sentido en orden a la ventura de todos los hombres. El aumento de los niveles de calidad de vida en las sociedades menos depauperadas y la necesidad de mantener el crecimiento a toda costa en contextos de mercado cada vez más abotagados19 ha supuesto de modo simultáneo el consabido primado de la producción sobre el consumo y la dolorosa desamortización ética del concepto de necesidad humana entendida como mínimo necesario 20. Así es, para esta moral del crecimiento indefinido, para la que no existe otra cosa que mercado o mercancías y no necesidades, precios y no valores, el consumo ya no es entendido en términos de utilidad. Ha perdido su valor de uso y su valor de cambio. La necesidad ha dado paso al deseo. La acechanza del deseo y su arrullo silencioso, raudo, casi lírico consiente el aguardo efímero de necesidades estériles. Podría decirse que se trata de la deformación interesada (al mantenimiento de la producción) del principio sine quo non potest vita transigi secundum proprium statum et negotia ocurrentia, esto es, del necesarium no estricto que se concibiera otrora, allá por el medioevo, como todo aquello sin lo cual el sujeto humano concreto no podía vivir en lo que a condición, linaje, situación y obligaciones se refiere, y que ahora se troca en excusa y reverencias al dominio abúlico de un consumo cada vez más envilecido en nombre de las exigencias de valor entendido del rango social, no por eso menos superfluas, de lo que bien pudiera llamarse arbitrios sinfónicos de clase.
19
La competitividad extrema da pie a una rotación tecnológica irracional, los bienes son cada vez más efímeros y el consumo se vuelve brutal e irracional. La fluctuación de modas, la reducción de la vida media de los bienes de consumo, son el remedio técnico que justifica el mantenimiento de la producción. Sus efectos como la marginación social, la toxicidad ambiental, la insalubridad acaban siendo absueltos a fuerza de ignorarlos voluntariamente. Acerca de los repercusiones ecológicas y humanas de la producción desenfrenada V. CLIMENT, V., Producción y crisis ecológica. Los agentes sociales ante la problemática mediamabiental, Ed. Universitat de Barecelona, Barcelona, 1999. 20 El mínimo necesario, que fluye de la respuesta a la pregunta ¿qué bienes son precisos a un hombre para asegurarle una vida humana decorosa?, debe ser entendido en su acepción más amplia: como necesarium vitae, el estricto vital sine quo aliquid esse non potest, sin cuya satisfacción la sobrevivencia no deviene posible, y como necesarium personae, el estricto personal, allende el curso biológico que en poco se diferencia del animal, orientado, parafraseando a Santo Tomás, a la holgura necesaria para el ejercicio de la virtud (De Reg.Princ.,1. 1. Cap. XV), esto es, de su participación libre y creadora como sujeto, de su iniciativa, capacidad y responsabilidad. Porque el hombre, en su vida breve, debe tener la oportunidad de encaminarse libremente hacia la perfección V. MOUNIER, E., De la propiedad capitalista a la propiedad humana, Obras Completas (VOL.I), Op. Cit., p.545 a 561.
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Usted debiera de comprender como el que más que, dada nuestra posición, sólo me sienta seguro entre los de mi clase (...); que una mujer que no tenga doncella para el servicio doméstico carece de autoestima; que quien no disponga al menos de dos automóviles de prestaciones elevadas aparente ser un réprobo social; que trate a toda costa de evitar que los demás piensen que no somos sofisticados; que me engalane con ropas de fiesta y luzca perfumes de importación en los días más señalados para parecer alguien respetable; que frecuente restaurantes tácitamente reservados a comensales de mi ralea, (...) etc.
En verdad, nadie se cuestiona lo más mínimo si la vanidad y el dinero no han instituido un código aplastante de deberes públicos farisaicos, de falsas obligaciones sociales de clase 21. Consumir esto o aquello aquietará los ánimos tanto de quienes se saben inmersos en un grupo social determinado, como de aquellos que al abrigo de sus expectativas de disfrute sensible de la vida pretenden alcanzar la consideración de sectores sociales más específicos aferrándose a sus convenciones. La significación del consumo deviene ahora simbólica y cultural. Las necesidades del consumidor ya no determinan la producción ni condicionan la oferta, antes al contrario, es la producción la que va forjando las necesidades de consumo por medio de mercados estandarizados que ensalzan el arrojo simbólico de determinados hábitos de consumo 22. Sólo de esta forma pueden mantenerse las exigencias de progreso/crecimiento de las sociedades desarrolladas: reduciendo al sujeto humano concreto a la condición de mero ser que produce cuando trabaja y consume cuando deja de trabajar. Es decir que produce o trabaja sólo para consumir, que sólo vale en la medida en que consume y no en la medida en que produce. Quizás sea este el hechizo más procaz del nuevo social/liberalismo, la colonización, por medio de la creación de un clima de tranquilidad psicológica y 21
Ibíd., p. 548 Tanto es así que la desconfianza de los consumidores puede dar al traste con las previsiones más avezadas de los analistas y con las expectativas de recuperación más optimistas de los mercados. La solidez del consumo, que llega a representar buena parte del P.I.B. de algunos países desarrollados (piénsese sino en las 2/3 partes que ha llegado alcanzar en Estados Unidos), ha propiciado el mantenimiento ininterrumpido en los últimos años, no sin oscilaciones al albur de los descensos de los tipos, del crecimiento económico en lo que bien pudiera considerarse la red de seguridad del sistema capitalista, que gravita sobre los mercados estadounidense y europeo. Prueba de ello, es el recorte reciente de los tipos de interés en EEUU y la inminencia de su provisión en la eurozona por la Reserva Federal y el Banco Central respectivamente, a la vista de la implosión económica que avizoran los expertos como consecuencia del descenso generalizado del consumo. 22
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social, de prácticamente todo el imaginario, en el que participan hasta sus propios detractores, muchos de los cuales, de manera singular quienes han hecho fortuna conforme a los parámetros de funcionamiento de la sociedad de mercado, residencian su ambivalencia teórico/práctica en la necesidad de aguzar sus contradicciones por medio de su reprobación intelectual y el usufructo isócrono de sus plácemes de la facilidad y el confort. El único imaginario social que es prácticamente compartido por todos es ahora el imaginario mercantil. ...porque unos y otros están dentro del contexto capitalista que es el único real que hoy funciona (...), tanto a nivel de gran capitalismo como de capitalismo popular. Nos conmueven poco los enfrentamientos dialécticos a distancia, las zapatillas que se arrojan unos a otros y la divergencia de actitudes y banderas, pues sabemos que, gane quien gane, en las elecciones y en la vida, el programa a aplicar será más o menos el mismo. Al capitalismo unos lo llaman socialdemocracia, otros social/liberalismo, unos izquierda y otros derecha, pero todo desemboca en una modernización del rancio capitalismo (...), auñón y empeñista, que es el que ha cambiado pesetas por euros, nos ha hecho consumistas y ha extendido el tabú del dinero incluso a las clases que nunca soñaron con tenerlo 23.
Por otra parte, el creciente desarraigo del capital del circuito productivo y el nuevo compás que se prodiga desde el cuadro briago de valores del nuevo liberalismo 24, determinan que el provecho capitalista no se oriente a una retribución normal de la prestación de servicios determinados, desplazándose progresivamente hacia sectores de reproducción especulativa del capital, donde la especulación transforma la economía en un inmenso juego de azar indiferente a las consecuencias de sus contrapartidas económicas y humanas, en desmedro del mundo del trabajo y de su clásica expectativa de creación de riqueza. Emerge así una forma de provecho diferente. Un beneficio sin trabajo, sin servicio real o transformación material, aspiración contemporánea de toda ganancia capitalista, que sólo puede dimanar del propio juego del dinero ocioso sobre el trabajo de los demás. Elástico y adquirido sin trabajo sustituye la
23
UMBRAL, F., “El contexto”, en Los placeres y los días, El Mundo 30/10/02. Donde reina la preocupación mecánica por el beneficio con el consiguiente destierro de otra clase de valores desde luego más humanos: “amor por el trabajo, sentido del servicio social y de la comunidad humana, sentido poético del mundo, vida privada, vida interior...”198. MOUNIER, E., Revolución personalista y comunitaria, en Obras Completas Vol.I, Ed. Sígueme, Madrid, 1997, p.310. 24
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ganancia industrial por el beneficio especulativo. Su ordenación no se halla vinculada al afrontamiento de las necesidades, su valor no es real porque no es sinónimo de riqueza y su eficacia enraíza no tanto en los fundamentos de la economía real, cuanto en los diversos resortes de generación reproductiva y/o fecunda (financiera) del dinero. El propósito alcista del mercado de valores no se aviene a la lógica macroeconómica. No tiene porque obedecer, de hecho no lo hace, a la mejora de sus indicadores o expectativas de crecimiento, expresivos de la capacidad inversora de las empresas, del comportamiento del consumo y el desempleo. Basta con indagar en la actitud desaforada de los mercados en las últimas semanas para llegar al convencimiento de que su evolución es diametralmente contraria al desgarro que padecen los indicadores macro-económicos que apuntan a un crecimiento del P.I.B. muy por debajo de las previsiones más realistas, al descenso a escala del consumo y al aumento del desempleo. El hecho de que pese a este contexto de desaceleración económica las Bolsas en todas las plazas experimentaran, en sus trayectorias respectivas de ganancias, beneficios contundentes, refutando incluso las previsiones más sombrías de los analistas, son la demostración irrebatible de que el capitalismo financiero y su potencia multiplicadora y la economía genuinamente entendida hollan su destino por sendas muy diferentes. Ciertamente el sistema económico capitalista deviene así en un aparato desproporcionado de opresión y de dominación, cuya correa de transmisión son hoy la banca, los mercados de renta y en general cuantos mecanismos financieros se establecen para el aseguramiento efectivo de la rentabilidad no productiva. Es un sistema opaco, pues no es transparente, y cerrado, porque no es libre, que se apropia del imaginario sometiéndolo a sus propias reglas, modos y principios, esto es, al precio, a la deuda, a la seguridad, a la certidumbre psicológica, a la falsa necesidad y a la trampa especulativa. Y al desvirtuar ostensiblemente la finalidad natural de la economía pliega la acción de los poderes públicos a los designios de una gestión nefeloide del bienestar. En efecto, mientras que para los países ricos es sinónimo de opulencia y prosperidad, para los países menos desarrollados el crecimiento económico es la única vía plausible para escapar de la desesperación y el marasmo de la pobreza.
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Con el fin de alcanzar las mismas costas de riqueza se abandonan a la misma convicción productivista que asocia industrialización incontrolada, con arreglo a los patrones de desarrollo de las sociedades del norte, con desarrollo y riqueza. Se entregan a la experiencia almidonada de un modelo social que sublima la potencialidad del mercado como el constituyente de la realidad: se liberaliza la migración sin trabas del capital a través de la inversión extranjera, la acción de las multinacionales y el crédito internacional; se transige con la instalación, directa o por medio de la subcontratación, de grandes empresas en los países en vías de desarrollo, ávidos de la inversión extranjera para su rápida industrialización, donde los costes de producción descienden considerablemente por razón de la precariedad laboral existente y la escasa cualificación de sus trabajadores que los hace más competitivos que sus homólogos del norte. El efecto, que hierve por dentro la olla de la globalización, es devastador. Se globalizan los riesgos ecológicos: se exprimen los recursos, se propaga la mácula ecológica de la tecnología, se incrementa la toxicidad por el crecimiento del consumo; y se expande la pobreza: incluso a amplias capas de población, los más débiles y menos cualificados, en los países más desarrollados del norte (demasiada demanda de empleo para un mercado con urgencias decrecientes de mano de obra), se acelera la exclusión de zonas cada vez más extensas socialmente devaluadas... En fin, se prodiga la destrucción de las relaciones humanas en beneficio de la proliferación de los vicios estructurales de un sistema construido a espaldas y en contra de la vida humana en el que únicamente priman el deseo de producción sobre el consumo y el trabajo, el dinero sobre la economía o el trabajo, y el provecho, lucro o beneficio sobre cualesquiera otros valores humanos, personales o colectivos. Tales son los principios que forjan el doctrinario social/liberal irredento de los conciliábulos del nuevo liberalismo, seguidores flirteantes del fundamento levítico, casi sacramental, de la propiedad privada, el contrato y el capital. Con tales asideros el ideario socio-económico del nuevo contexto capitalista, henchido de viento universal e idolatrante insaciable del aquél: inflama el pecado de la explotación humana, celebra la restauración augusta del hombre civilizado pero posterga a la mayoría; instaura la libertad para luego sepultarla bajo el entramado anónimo del dinero y suplantarla por el alambicado especulativo de la guerra
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económica, la explotación social y las oligarquías ocultas; aplaude la iniciativa, por el auspicio del lema liberal consagrado a la libertad de competencia y a la iniciativa individual, más sólo se la reconoce a aquellos que ya la tienen o son doctos en ella. Bajo la apariencia de su humanidad prosperan el alarde y el engaño, del mismo modo que miman la postiza ilusión de un planeta más armonioso, más próspero, menos lívido y desdibujado, con el fin de embozar mejor el monopolio de la propiedad, las libertades, el poder económico y el político. El infausto fénix del absolutismo capitalista se descubre como una fabulosa máquina de enredos matemáticos, de astucias, de prácticas contables alucinantes, que instaura, en suma, una dictadura económica decididamente deshumanizada en la que: Se desposee a la economía de su encomio más cimero: la satisfacción de las necesidades fundamentales. Se distorsiona el sentido del trabajo al consagrar su separación del capital, y éste, a su vez, de la idea de responsabilidad. La separación entre capital, trabajo y responsabilidad es considerada uno de los mecanismos esenciales para el mantenimiento de las estructuras del modelo capitalista. Se desposee al trabajador de su ganancia legítima, de la propiedad legal y el dominio personal del fruto de su trabajo. Se subvierte, por tanto, el orden económico haciendo primar el capital y el lucro sobre el trabajo y la remuneración. Se abandona al determinismo inquisitorial de una nueva sinfonía de clases en la que como siempre los más fuertes desposeen y oprimen a los más débiles, concentrándose, de este modo, el poder de la libre competencia en manos de la prerrogativa. Se configura el perfil de un hombre más inhumano, cuya primera noción es la del beneficio. Su interioridad emética sucumbe al encanto alienante del dinero zalamero. No tiene otro afán que disiparse en las cosas, diluirse en el formol de su propio egotismo, caldo lúbrico dado al hombre acorralado. Se amilana al consumidor en el ejercicio inmoderado del consumo. Se apropia de su potencia de ahorro y racionalización del gasto por medio del recurso a juegos especulativos imprevisibles y a campañas descomunales de incitación al consumo vacuo e irreflexivo. Se fomenta la formación de un clima espiritual presidido por el miedo a
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vivir, el envilecimiento en el confort, el temor enfermizo a la incertidumbre, la estrechez de miras, la mezquindad, el ansia denodada de seguridad y felicidad 25, la avaricia reivindicante y la indiferencia des-solidaria para con los otros. Se adiestra, en fin, el movimiento expedito y especulativo del capital al tiempo que patrocina la concentración indiscriminada del poder industrial y financiero, dando entrada a una nueva forma de endriago multinacional que viene a detentar sin jaleo épico y por la vía de los hechos el control económico y, mediante éste, el poder político, haciéndose con las riendas ocultas de los Estados y su funcionamiento institucional, amén de la distraída naturalidad con que congestiona la información, la opinión y la cultura en aras de la encarnación en la ciudadanía de los dictados de voluntad de una clase y sus aspiraciones. En fin, más de lo mismo. Viejo liberalismo remozado como neoliberalismo suicida. Su razón el enriquecimiento a toda costa. Su destino a gran escala, imperialismo. O sea el viejo nirvana burgués, “la flor final y exquisita del capitalismo” 26.
25 26
V.VELA F., Persona, Poder y Educación, S. Esteban, Salamanca, 1983, p. 96. UMBRAL, F., El Contexto, loc. Cit.
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La Globalización como Trama Jerárquica: ¿“Gobernancia” sin Gobierno o Hegemonía? El Nuevo Contexto de los Derechos Humanos Alejandro Medici
Sumario: Introducción. 1. De la “Gobernancia” a la Hegemonía. 2. El Proyecto de la Globalización como Hegemonía. 3. Conclusiones Provisionales.
Introducción Con el creciente desencanto frente a las consecuencias sociales, ecológicas y políticas de la globalización, las interpretaciones que desde las relaciones internacionales hablaban de un orden mundial de interdependencia compleja, o que desde la comunicación, festejaban el advenimiento de la “aldea global”, sin perder su pertinencia para comprender aspectos de esa compleja realidad mundial que se sintetiza con el término globalización, parecen pecar, ahora, de una cierta ingenuidad. Es que el eje de las preocupaciones teóricas acerca de la globalización se ha desplazado hacia la lógica de su estructuración jerárquica. En este trabajo sostenemos la hipótesis de que más que como “gobernancia global”, la trama jerárquica de la globalización debe entenderse como hegemonía. Hegemonía no en el sentido que la teoría realista de las relaciones internacionales le atribuye al término, sino entendida desde una interpretación relacional y dinámica del pensamiento gramsciano, y también desde las aportaciones que en las corrientes neomarxistas de las relaciones internacionales han utilizado los conceptos gramscianos como instrumentos operativos para comprender como se construyen y deconstruyen los órdenes en el sistema mundial.
1. De la “Gobernancia” a la Hegemonía En las conclusiones de su obra “La retirada del estado”, Susan Strange explica cómo en el contexto posterior a la Guerra Fría, los especialistas en relaciones internacionales han prestado una creciente atención a la situación que
definen mediante el uso y abuso de los términos global governance, gobernación o “gobernanza” global. Este concepto, pretende transmitir la idea de una especie de alternativa al sistema de estados, pero que difiere sutilmente del gobierno mundial 1. Normalmente este término se utiliza para designar los procesos de harmonización o estandarización de una práctica entre los gobiernos de los estados, en la mayoría de las ocasiones llevadas a cabo por organizaciones internacionales.
La
premisa
implícita
que
transmiten
ambas
palabras,
“gobernación” y “global” es que se está consiguiendo gobernar a una escala mundial a través de una autoridad mundial 2. Lo mismo sucede con la literatura sobre los denominados “regímenes internacionales”, que son frecuentemente caracterizados como el producto de un proceso concertado, a través del cual los gobiernos han coordinado sus intereses comunes.
Sin embargo, en realidad, muchos regímenes internacionales no han sido fruto de una concertación entre iguales, sino el resultado último de una estrategia desarrollada por un estado dominante, o a veces por un pequeño grupo de estados dominantes... Hasta las secretarías de las instituciones internacionales implicadas son socializadas subliminalmente para administrar un “orden internacional” que no es en absoluto neutro ni en sus intenciones ni en sus consecuencias 3.
Vistas las cosas de esta forma, “gobernancia”, pasa a ser un eufemismo para designar la lógica de esa trama jerárquica de la globalización que articula la sociedad mundial. Sin embargo, Susan Strange no llega todo lo lejos que cabría esperar luego de reconocer las asimetrías relacionales que están detrás de la “gobernancia” y de los “regímenes internacionales”. Sus tres principales conclusiones respecto a los “patrones de autoridad legítima” a fines del siglo XX, son las siguientes: Primero, existe una asimetría creciente entre los llamados 1
Strange, Susan. La retirada del estado. Icaria. 2001. pg. 259. Strange, Susan. Ibid. pg. 13. 3 Strange, Susan. Ibid. pg.13. Ver también Stephen Krasner (Ed.) International regimes. Cornell University Press. 1995. Para una crítica de las asimetrías de poder que conforman los regímenes internacionales ver también Gale, Fred. Cave, Cave! Hic dragones: a neo-gramscian deconstruction and reconstruction of international regime theory. En: Review of International Political Economy 5:2. Verano 1998. pgs. 252/283. Gowan, Peter. La apuesta por la globalización. Akal. 1999. pgs.59/60. 2
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estados soberanos con respecto a la autoridad que ejercen en la sociedad y en la economía. Segundo, la autoridad de los gobiernos de todos los estados, grandes y pequeños, fuertes y débiles, se ha debilitado como consecuencia del cambio tecnológico y financiero, así como la integración acelerada de las economías nacionales en una única economía de mercado global. Tercero, algunas de las responsabilidades básicas del estado en una economía de mercado no están siendo asumidas por nadie. Según Strange,
En el núcleo de la economía política internacional existe un vacío, (...) que no ha sido convenientemente ocupado por instituciones intergubernamentales o por un poder hegemónico que ejerza el liderazgo en aras del interés común. La polarización de los estados entre aquellos que conservan algún control sobre sus destinos y aquellos otros que son materialmente incapaces de ejercer tal control no constituye un juego de suma cero. Lo que han perdido algunos, no ha sido ganado por otros. La difusión de la autoridad más allá de los gobiernos nacionales, ha dejado un enorme agujero vacío de autoridad que podría denominarse “desgobernación” 4.
Desde nuestra perspectiva, la aproximación de Strange a la trama jerárquica de la globalización es insuficiente. Compartimos sus dos primeras conclusiones, son evidentes las crecientes asimetrías interestatales, con los Estados Unidos como principal potencia capitalista bastante por delante de sus asociados/competidores europeos, Japón, etc., y todos ellos muy lejos del resto de estados semiperiféricos y periféricos. Su segunda conclusión también se sostiene por la evidencia de la refuncionalización de los estados, perdiendo, como vimos, algunos de sus atributos soberanos. Pero nos parece insatisfactoria por defecto. su tercera aserción, la idea del “agujero vacío” o de la “desgobernación”, o simplemente de que parte de la autoridad perdida por los estados se evaporó. Ese poder se ha trasladado hacia actores no estatales o supraestatales, como son instituciones formales e informales, G7, OMC, FMI, BM, corporaciones multinacionales económicas y financieras, etc., y una de sus principales expresiones son la libertad y movilidad del capital y las condicionalidades económicas, financieras y políticas que la hacen posible. Por otra parte, pese a que Strange critica la tradición neorrealista de las relaciones internacionales, su 4
Strange, Susan. Ibid. pgs 34/35.
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definición de hegemonía parece seguir siendo tributaria de la teoría de la estabilidad hegemónica en el sistema interestatal, una hegemonía que debería ejercerse en “interés común”. Esta definición estrecha de hegemonía no parece dar cuenta de toda la tradición crítica que partiendo del materialismo histórico de Antonio Gramsci, ha desarrollado 5, incluso en el propio terreno de las relaciones internacionales y la política económica global, una concepción de hegemonía que va más allá de la estatalidad, analizando las relaciones globales de “complejos sociedad civilestados”, y que enfatiza el importante papel en los procesos hegemónicos de los actores no estatales y supraestatales. Por otra parte, esta perspectiva, en tanto que crítica, rechaza la posibilidad de que la hegemonía en la trama jerárquica de la globalización pueda ser realmente en “interés común”, pese a que se presente como tal e incluso aunque se limite esa noción a una definición estrecha que se centre solamente en la estabilidad del orden mundial. La hegemonía se ejerce siempre a través de una retórica universalista de legitimación, pero beneficia a grupos sociales e intereses minoritarios. Juan Ramón Capella, aporta una visión más compleja de las relaciones de poder que estructuran la sociedad global. Esta visión cabalga, creemos, sobre algo más que la simple asimetría de las relaciones interestatales y la emergencia de poderosos agentes globales no estatales. La espacialidad compleja de la globalización, supone una escisión entre la soberanía, que parece estar siendo expropiada, especialmente a los estados que no integran el restringido círculo de los Estados Unidos y asociados, y la estatalidad, que lejos de desaparecer, es refuncionalizada. La lógica de la soberanía, si sigue siendo válido usar el concepto, ha mutado de escala y de sujetos: la eficacia cognitiva de la metáfora de un poder (político) agente, asociada con el estado soberano, y de una fuerza causal puesta en movimiento por voluntad de ese agente, ya no da cuenta de la complejidad de 5
Ver de Cox, Robert. Gramsci, hegemony and international relations: an essay in method. En: Millenium n° 12. pgs. 1983. pgs. 162/175, Production, power and world order: social forces in the making of history. Columbia University Press. 1987 y Social forces, states and world orders: beyond international relations theory. En: Kehoane, Robert. O. Neorealism and its critics. Columbia University Press. 1986. Ver también de Gill, Stephen. American hegemony and the Trilateral Commission. Cambridge University Press. 1990, Reflections on global order and sociohistorical time. En: Alternatives, n°. 16. 1991. pgs. 275/314 y de Gill, Stephen y Law, David. The global political economy: perspectives, problems and policies. John Hopkins University Press. 1988.
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la realidad. Para comprender el fenómeno del poder en el contexto actual, como dice Juan Ramón Capella, hay que utilizar alguna metáfora más compleja, por ejemplo, aquella proveniente de la física, del campo de fuerzas:
hay que prescindir de la idea de un único agente causal y pasar a hablar de un ámbito en el que se suscitan determinaciones, aunque éstas no puedan ser atribuidas linealmente a un solo agente generador o incluso aunque en una situación concreta la determinación del generador quede oscurecida o sea imposible dentro del campo. 6
Trasladando la metáfora, el nuevo “campo del poder” contemporáneo se da, en el espacio de relación entre un soberano privado supraestatal difuso y puesto que se mantiene la base territorial del asentamiento del poder– un “estado permeable” o unas “asociaciones estatales” permeables, abiertas o porosas. 7 La denominación de soberano privado supraestatal difuso, se atribuye al titular “privado” de un poder supraestatal que produce efectos de naturaleza pública o política. Constituye un poder fáctico, no totalmente localizado o institucionalizado y mucho menos normativizado, de características difusas.
Está constituido por el poder estratégico conjunto de las grandes compañías transnacionales y sobre todo, hoy, de los grandes conglomerados financieros. Se impone mediante instancias convencionales interestatales, como el G7, instituciones, como el FMI, el BM, y la OMC, la OCDE, instancias privadas de creación del derecho 8,
como la lex mercatoria, etc. Pero también, como veremos, puede recurrir a la seguridad y fijeza de la forma jurídica de los acuerdos multilaterales, para consolidar sus posiciones obtenidas fácticamente. Este nuevo campo de poder, se caracteriza por señalar el marco de opciones restringidas de políticas económicas y sociales que pueden desarrollar los estados e incluso la instituciones internacionales del sistema de las Naciones Unidas, incidiendo directamente en el nivel de garantía de los derechos 6
Capella, Juan Ramón. Fruta prohibida. Una aproximación histórico-teorética al estudio del derecho y del estado. Op. cit. pg. 257. 7 Capella, Juan Ramón. Ibid. pg. 258. 8 Capella, Juan Ramón. Ibid. pg. 261.
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económicos, sociales, y ambientales. Además, admite legitimaciones distintas, si los estados siguen vinculados al principio de legitimación democrática, el soberano privado, al ser difuso y consistir en un poder estratégico de los grandes agentes económicos, se basa en un discurso legitimador fundado en la eficacia técnico-productiva. Este principio de legitimación, sobredetermina y erosiona la legitimación democrática de los estados. 9 Las explicaciones de Strange y de Capella buscan comprender la situación actual, en que la sociedad mundial se mueve entre dos tipos extremos e “ideales” de estructuración, que han sido propuestos, respectivamente, por las escuelas realistas e idealistas de las relaciones internacionales, es decir, entre el modelo relacional clásico basado en el sistema de estados soberanos del derecho internacional y otro cosmopolita basado en el derecho, las instituciones internacionales y la tendencia a la universalización de los derechos humanos en su indivisibilidad e interrelación. Frente a la idea de Strange del vacío o evaporación del poder soberano que ceden los estados, debemos constatar, siguiendo a Capella, con un mínimo de realismo crítico, que en ese continuo, la globalización hegemónica se ubica más cerca del primero de los polos, pero desplazando de la mayoría de los estados del sistema interestatal el ejercicio real del poder y manteniendo, de la lógica de la soberanía, al menos el hecho de la existencia de poderes fácticos capaces de imponerse, no controlados o regulados. Con todo, la idea del campo de poder debe todavía precisarse en cuanto a las lógicas de relación entre los actores estatales, no estatales, las instituciones dominantes y los dominados, entre otras cuestiones. Desde una perspectiva radicalmente diferente, James Petras 10 identifica claramente un “sistema imperial”, en cuyo centro los Estados Unidos desempeñan la función de “estado imperial”. Frente a la corrupción del “lenguaje político”, que a través de eufemismos y conceptos que tienen poca relación con las realidades y
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Capella, Juan Ramón. Ibid. pg. 265. Petras, James y Morley, Morris. El estado imperial norteamericano. En: Petras, James. Clase, estado y poder en el Tercer Mundo. Casos de conflictos de clases en América Latina. F.C.E. 1986. y del mismo Petras, James. El globalismo y el estado. En: Idem. La izquierda contraataca. Conflicto de clases en América Latina en la era del neoliberalismo. Akal. 2000, Globalización y ciudadanía. Dimensiones sociales y políticas y El imperialismo resurgente: el problema principal del nuevo milenio. Ambos en: Sediciones n°. 13. 1999. 10
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políticas sobre las que pretenden hablar, sostiene que la globalización se halló asociada siempre al imperialismo 11, y que, en la actualidad, la globalización debe ser vista como un nombre en clave del imperialismo ascendente de los Estados Unidos 12. Según Petras,
puede definirse al estado imperial norteamericano como el conjunto de agencias y órganos ejecutivos encargados de promover y proteger la expansión del capital, más allá de las fronteras estatales, por la comunidad corporativa multinacional cuya sede se encuentra en el centro imperial 13
El sistema imperial, consiste en el conjunto de procesos por el que las agencias del gobierno norteamericano, ejerciendo sus funciones económicas y coercitivas, promueven la penetración y el establecimiento del capital en los países imperializados, estableciendo vínculos con las clases colaboradoras. Respecto a la coerción, mientras en los estados del centro del sistema imperial juega un papel “en última instancia”, secundario en relación al consenso ideológicamente inducido, su rol es central en la periferia a través de la represión, la coerción y la explotación 14. La fuerza es un elemento central del sistema imperial. Por nuestra parte, creemos que es innegable el rol que juegan en la organización de la trama jerárquica de la globalización las asimetrías del sistema 11
Petras, James. El globalismo y el estado. Op.cit. pg. 246. Petras, James. Globalización y ciudadanía. Dimensiones sociales y políticas. Op.cit. pg. 120. 13 Petras, James y Morley, Morris H. Ibid. pg.19. 14 En su ensayo de los 80, Petras enfatizaba la recurrencia de los regímenes represivos, mientras que en los ensayos más actuales, posteriores a lo que, desde la politología ha dado en llamarse “tercera ola de democratización”, y el establecimiento de regímenes electorales formales en las periferias y semiperiferias, su análisis se ha desplazado hacia lo que denomina “neoautoritarismo”, “el nuevo autoritarismo es diferente a los regímenes del viejo estilo represivo. En el pasado el autoritarismo tenía una cara militar, negaba las libertades individuales y la oposición electoral. El nuevo autoritarismo es un régimen híbrido que combina procesos electorales y libertades individuales con estructuras de toma de decisión altamente elitistas”. Este neoautoritarismo se caracteriza por la separación entre promesas y programas electorales votados y políticas neoliberales de los gobiernos, por el recurso a los decretos presidenciales para imponer esas políticas, cercenando cada vez más el debate público, chantajes, amenazas y coacción indirecta por parte del FMI condicionando los créditos y de las corporaciones y actores económicos a través de “golpes de mercado” y “fugas de capital”. Más allá de que discrepemos con algunos aspectos de su análisis de la trama jerárquica global, compartimos el análisis del neoautoritarismo en Petras, que viene a llenar muchos de los vacíos y ambigüedades de las teorizaciones acerca de las “democracias con adjetivos” de la politología latinoamericana. Petras, James. Globalización y ciudadanía. Op.cit. pgs. 132/135. 12
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interestatal, en primer lugar, la posición dominante de los Estados Unidos, y luego, la de los principales estados capitalistas asociados del G7 y de la OCDE. Sin embargo, no compartimos con Petras la simple extensión a la situación actual del concepto de imperialismo, que supone una forma de espacialidad que no se corresponde con la complejidad de la configuración espacial global, la falta de ponderación adecuada de la autonomía y poder relativos de los actores no estatales y la no distinción clara entre dominación hegemónica y no hegemónica, que implica calibrar de forma más fina el equilibrio entre consenso y coacción, el papel de la ideología hegemónica y de las instituciones internacionales. En un trabajo de los años 80, Robert Cox 15, comentando el trabajo de Petras desde una perspectiva neogramsciana, sostenía que el imperialismo es un concepto impreciso, que en la práctica debe ser redefinido con referencia a cada período histórico. No tiene sentido buscar alguna “esencia” del imperialismo, más allá de las formas que la dominación y la subordinación toman en sucesivos órdenes mundiales. La forma actual, sea activada por estados, por fuerzas sociales (como las corporaciones multinacionales), o alguna combinación de ambos, sea la dominación primariamente política o económica, debe ser determinada por un análisis histórico y no por razonamiento deductivo. Cox, ponderaba el trabajo de James Petras en sus rupturas con la tradición neorrealista hegemónica en la academia estadounidense y sostenía que en su uso del concepto de un sistema imperial de estados, había desarrollado una serie de cuestiones importantes en relación a las características estructurales del sistema interestatal en el presente orden mundial. El estado imperial dominante y los estados subordinados colaboradores, difieren en estructura y tienen funciones complementarias en el sistema imperial, no son solamente más o menos poderosas unidades del mismo tipo, como se los representa en el modelo neorrealista simple. Una cuestión importante en el marco conceptual de Petras, es que el estado imperial que analiza, no es todo el gobierno de los Estados Unidos, sino esos cuerpos ejecutivos al interior del gobierno que cargan con la promoción y protección de la expansión del capital a través de las fronteras estatales. El sistema imperial, es al mismo tiempo, más y 15
Cox, Robert. Social forces, states and world orders. Beyond international relations theory. Op.cit. pg.228.
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menos que el estado. Es más que el estado ya que es una estructura transnacional con un centro dominante y una periferia dependiente 16. Es menos que el estado, o mejor dicho, diferente que el estado, ya que partes del gobierno estadounidense forman el centro del sistema con instituciones tales como el FMI y el BM, relacionadas simbióticamente con la expansión del capital y con las partes de los gobiernos asociados vinculadas al sistema. Esta definición, que es al mismo tiempo más y menos que el sistema interestatal, siguiendo a Cox, debe entenderse en el sentido gramsciano del estado ampliado, ampliando la interestatalidad en el plano global según la célebre fórmula de los Quaderni, (EA= SP + SC o hegemonía acorazada de coerción). Esto implica también un espacio relacional no monolítico y que incluso puede ser antagónico, en el sentido que puede haber desajustes entre los actores estatales y no estatales y entre éstos y las instituciones, así como fuerzas no sistémicas o antisistémicas, pueden estar presentes tanto en el centro como en la periferia 17. Esta perspectiva, nos resulta sumamente sugerente para comprender las tramas que estructuran la sociedad global y que inciden en la distribución de costos y beneficios de los procesos que la producen, superando las visiones trascendentes de la ideología globalista. La unidad del estado, propuesta por los neorrealistas, está fragmentada en esta imagen, y la lucha por y contra el sistema imperial puede darse dentro de las estructuras estatales tanto del centro como de la periferia, así como a través de fuerzas sociales sostenedoras o enfrentadas al sistema. El sistema interestatal es entonces una categoría necesaria pero insuficiente para dar cuenta del sistema imperial. El sistema imperial en sí mismo, debe ser, para Cox, el punto de partida de la indagación, entendido ahora como una estructura histórica 18. En su mayor abstracción, la noción de un marco para la acción o estructura histórica es una pintura de una particular configuración de fuerzas 19. Esta configuración no determina acciones de forma directa o mecánica pero impone
16
Cox, Robert. Ibid. pg. 228. Cox, Robert. Ibid. pg. 229. 18 Cox, Robert. Ibid. pg. 229. 19 Estas fuerzas interactúan de acuerdo a Cox, en una dinámica relacional, donde las ideas, las capacidades materiales y las instituciones son articuladas, de forma no determinista, por las fuerzas sociales, las formas de estado ampliado (complejos estado-sociedad civil), y los órdenes mundiales. Cox, Robert. Ibid. pg. 219/221. 17
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presiones y constreñimientos. Los individuos y los grupos pueden moverse con las presiones o resistir y oponerse a ellas, pero no pueden ignorarlas. En la medida en que resisten exitosamente una estructura histórica dominante, apoyan sus acciones en una configuración de fuerzas emergente o alternativa, una estructuración rival. Es necesario precaverse de caer en un lenguaje de reificación al hablar de las estructuras. Éstas son constreñimientos sobre la acción, no actores. El sistema imperial incluye algunas organizaciones formales y otras menos formales a través de las cuales puede ejercerse presión sobre los estados sin usurpar el poder de los mismos. La conducta de estados particulares o de intereses económicos y sociales organizados, de todas formas, encuentra su significado en la totalidad más grande del sistema imperial. Las acciones son construidas tanto directamente por presiones proyectadas a través del sistema, como por la percepción subjetiva de los actores acerca de los condicionamientos del mismo. Sin embargo, dice Cox,
Uno no debe esperar entender el sistema imperial identificando el imperialismo con actores, sean estados o multinacionales, éstos son ambos elementos dominantes del sistema, pero este, en tanto estructura, es más que su suma 20.
Aún así, no debe olvidarse el carácter no cerrado o suturado, los puntos de fractura, los antagonismos, ni sobrestimarse el poder y la coherencia de la estructura, aún una dominante. Donde una estructura es manifiestamente dominante, la teoría crítica nos lleva a observar las contraestructuras, incluso las latentes, buscando sus posibles bases de sustentación y elementos de cohesión 21. Matizando la posición de Petras, para Cox, es preferible volver a la terminología que se refiere a órdenes mundiales hegemónicos y no hegemónicos. Introducir el término imperial, como hace Petras, en referencia a la pax americana de postguerra –nosotros agregamos ahora el actual relanzamiento sobre nuevas bases del papel dominante de los Estados Unidos– presenta el riesgo de 20 21
Cox, Robert. Ibid. pg. 229. Traducción propia. Cox, Robert. Ibid. pg. 229.
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confundir un actor principalísimo de la estructura de poder global con la estructura misma, la dominación hegemónica y la no hegemónica, y también distintas estructuras históricas o formas de imperialismo 22.
2. El Proyecto de la Globalización como Hegemonía Este desarrollo nos lleva a interrogarnos acerca de cómo entender la hegemonía en tanto definición de la articulación de la trama jerárquica de la globalización. En síntesis, ¿qué significa comprender la globalización como un campo de relaciones hegemónicas? Para contestar esta pregunta queremos, en primer lugar, dado que el uso del término hegemonía en las relaciones internacionales23 y en la teoría política está lleno de ambigüedades y reduccionismos de tipo estadocéntrico y politicista, 22
Cox sostiene que las formas históricas de relaciones imperialistas deben vincularse con los ciclos de dominaciones hegemónicas y no hegemónicas. Estos ciclos tendrían dos fases, una fase de consolidación y ejercicio de la hegemonía y otra de decadencia y disputa entre estados rivales por articular un nuevo ciclo. Los períodos desde mediados del siglo XIX serían 1845-75 (Pax Britannica), caracterizado por una economía mundial, el patrón oro, libre comercio, la doctrina de las ventajas comparativas de las naciones. Por medio de su supremacía naval, Inglaterra “acorazaba de coerción” su hegemonía, manteniéndose a la cabeza del equilibrio de poder entre los estados de Europa Occidental y disciplinando con las cañoneras a sus colonias y a los estados periféricos reacios al libre comercio. En el segundo período, (1875-1945), la decadencia de la hegemonía británica, el surgimiento de potencias competidoras, como Alemania y Estados Unidos, el proteccionismo y las dos guerras mundiales, marcan un período de crisis o ausencia de hegemonía. A partir de 1945-65 se inicia el ciclo hegemónico norteamericano, caracterizado por la expansión del fordismo y el keynesianismo, las instituciones de Bretton Woods, la expansión industrial, comercial y financiera del capitalismo estadounidense por medio de sus corporaciones multinacionales, la densificación del sistema interestatal. Según Cox, con la crisis de fines de los 60 y 70, los proyectos en danza para reconstruir la hegemonía, eran los de la Comisión Trilateral, una economía más policéntrica regionalizada en torno a potencias económicas, o el contrahegemónico, basado en un nuevo equilibrio Norte-Sur y la construcción de un nuevo orden económico internacional (NOEI), auspiciado por, por ejemplo, la comisión Brandt, y los principales países del Tercer Mundo. Sin embargo, la crisis se resolvió con la emergencia del neoliberalismo, luego denominado “Consenso de Washington”, y el relanzamiento del papel de los Estados Unidos en un contexto o estructura diferente. A su vez, estos ciclos hegemónicos, deben relacionarse, respectivamente, con las formas históricas de imperialismo, del “Imperialismo liberal” británico, el “nuevo imperialismo”, caracterizado por la competencia interimperialista y el ascenso del capital financiero, en la forma en que Lenin, Rosa Luxemburgo, Hilderfing, entre otros, lo caracterizaron, y el tercer período, que Cox denomina “imperialismo liberal-monopolista”, inspirándose en Baran y Sweezy, caracterizado por la internacionalización de la producción, la emergencia de las corporaciones multinacionales americanas y nuevas formas de capital financiero (bancos comerciales y consorcios financieros internacionales). Ver Cox, Robert. Production, power and world order: social forces in the making of history. Columbia University Press. 1987. 23 En la teoría de las relaciones internacionales, hegemonía designa la dominación de un estado sobre el sistema de estados y se considera factor de estabilidad. Para una buena revisión de las teorías de la hegemonía en este terreno ver Fiori, José Luis. Globalizaçao, hegemonia e imperio. En: Tavares, Maria da Coinceiçao y Fiori, José Luis. Poder e dinheiro. Uma economia política da globalizaçao. Vozes. 1997. pgs. 92 y ss.
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precisar, a través de un necesario excurso, cuáles son las características principales que atribuimos al mismo a la hora de aplicarlo a la comprensión de la globalización. Para ello, enunciamos las siguientes proposiciones: a) La hegemonía es el concepto de una articulación de espacios sociales económicos, políticos y culturales, por lo tanto, no puede reducirse a su dimensión ideológico-política, ni tampoco a su dimensión económica. La actual hegemonía global resuelve la articulación en un espacio absoluto. Mucho se ha discutido sobre el estatuto teórico de los conceptos de Gramsci en relación a la teoría marxista. Han proliferado interpretaciones que acentúan el carácter leninista y revolucionario de Gramsci, lo cual es obvio, y otras que reducen el problema de la hegemonía al campo de la discursividad ideológico política. Sin entrar en esas discusiones teóricas que exceden el objeto de este trabajo, nos interesa destacar dos aspectos que para nosotros hacen a la actualidad y pertinencia del pensamiento gramsciano. Esos aspectos son: la visualización de totalidades articuladas por vínculos orgánicos entre economía, política, cultura y el dinamismo relacional e histórico de los conceptos gramscianos. Más que un “teórico de las superestructuras”, Gramsci ha sido un pensador de totalidades históricas irresueltas y tal vez, irresolubles, de los vínculos orgánicos entre economía, cultura y política y de las distintas coyunturas históricas de su articulación. En tanto que activista e intelectual revolucionario, Gramsci ha construido categorías, que no sólo buscaban describir la dominación social, sino que querían ser herramientas para trastocarla. Muy lejos de cualquier exceso estructuralista y funcionalista, o de cualquier reificación de instancias, la totalidad de lo social es siempre inacabada, sometida a un proceso relacional y dinámico, que a través de la lucha, el antagonismo y las alianzas de las clases y otros grupos sociales, va desplazando constantemente los términos de la articulación 24. 24
En una de las notas de los Quaderni, Gramsci, reflexionando sobre el perenne interrogante acerca de la naturaleza humana, sostenía: “El problema ¿Qué es el hombre? Es, pues, siempre el problema llamado de la “naturaleza humana”, o del llamado “hombre en general”, o sea el intento de crear una ciencia del hombre (una filosofía) que parta de un concepto inicialmente “unitario”, de una abstracción en la cual pueda contenerse todo lo “humano”. Pero ¿es “lo humano” un punto de partida o un punto de llegada, como concepto y hecho unitario? ¿O no es más bien esa búsqueda el resto “teológico”y “metafísico” si se pone como punto de partida?”. Unas líneas más adelante respondía “La respuesta más satisfactoria es que la “naturaleza humana” es “el complejo de las
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En esa dinámica histórica, frente a las visiones deterministas y economicistas de las segunda y tercera internacionales, (de las que surgían estrategias reformistas o revolucionarias, pero que siempre pensaban el estado en términos instrumentales), Gramsci negaba causalidades simples, o leyes históricas objetivas que garantizaran el triunfo de la clases subalternas 25. Por eso, los conceptos gramscianos más conocidos, como hegemonía, bloque histórico, estado ampliado, sociedad civil, guerra de maniobras y de posiciones, revolución pasiva, etc., que han provocado ríos de tinta y extensas discusiones para fijarlos en una cierta topografía de lo social, en la infraestructura o la superestructura 26, etc., en realidad son procesos sociales que atraviesan, desplazando los términos de la articulación de los antagonismos históricos. Son conceptos preñados de relacionalidad y espacialidad, una espacialidad de límites móviles y difusos que subvierten las categorías burguesas que separan, reificando, el estado y lo político de la esfera económica y de la sociedad civil 27, relaciones sociales”, porque incluye la idea de devenir: el hombre deviene, cambia continuamente al cambiar las relaciones sociales, y porque esa respuesta niega “al hombre en general”. Efectivamente, las relaciones sociales son producidas por diversos grupos de hombres que se presuponen, cuya unidad es dialéctica, no formal. El hombre es aristócrata en cuanto es siervo de la gleba, etc. También se puede decir que la naturaleza del hombre es la “historia”,..con la condición de dar a “historia” la significación de “devenir”, en una “concordia discors”que no parte de la unidad, sino que contiene las razones de la unidad posible”. Apropiar esta comprensión dinámica y relacional, nos sirve para ver como la praxis, el movimiento, va desplazando los horizontes de una sutura última posible de lo social y la fijación de las articulaciones. Creemos que estas reflexiones son válidas tanto en el terreno de las formaciones sociales, como en el de los órdenes que se van configurando en el despliegue histórico del sistema mundial. Ver Gramsci, Antonio. Antología. Selección, traducción y notas de Manuel Sacristán. Siglo XXI. Pgs. 279/280. El resaltado es nuestro. 25 En una nota de los Quaderni titulada “Economía e ideología”, Gramsci argumentaba “La pretensión (presentada como postulado esencial del materialismo histórico) de presentar y explicar toda fluctuación de la política y de la ideología como expresión inmediata de la estructura tiene que ser combatida en la teoría como un infantilismo primitivo, y en la práctica hay que combatirla con el testimonio auténtico de Marx, escritor de obras políticas e históricas concretas”.Gramsci, Antonio. Antología. Op.cit. pg.276. 26 Ver por ejemplo, las discusiones reflejadas por Portelli respecto a las categorías bloque histórico y sociedad civil. En: Portelli, Hugues. Gramsci y el bloque histórico. Siglo XXI. 1992. 27 En una nota sobre el “estado gendarme”, se advierte este movimiento social que desarticula la exterioridad de sus términos. Gramsci sostiene que en esa concepción. “Seguimos en el terreno de la identificación entre estado y gobierno, identificación que consiste precisamente en una resurrección de la forma corporativo-económica, o sea, de la confusión entre sociedad civil y sociedad política, pues hay que observar que en la noción general de estado intervienen elementos que hay que reconducir a la noción de sociedad civil (en el sentido, pudiera decirse, de que Estado=sociedad política + sociedad civil, o sea, hegemonía acorazada con coacción). En una doctrina que conciba al estado como tendencialmente susceptible de agotamiento y de resolución en la sociedad regulada, el tema es fundamental. El elemento estado-coacción puede concebirse en un proceso de agotamiento a medida que se afirman elementos cada vez más importantes de sociedad regulada (o estado ético, o sociedad civil)”. En otra nota, donde el sardo parece estar reflexionando sobre la afirmación que hacen Marx y Engels en el Manifiesto, acerca del carácter
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pero también la metáfora arquitectónica de la base y la superestructura 28. Como vimos, los procesos económicos, políticos y culturales que están fabricando la trama de mundialidad, que se sintetizan en el término globalización, implican una forma de articulación de esos procesos. Por eso, nos interesa aquí, más que intentar una exégesis de los textos del revolucionario italiano 29, desplegar radicalmente el dinamismo, espacialidad y relacionalidad de los conceptos gramscianos 30, para pensar la trama jerárquica de la globalización como lógica de dominación política, económica y cultural, pero también en su apertura histórica. Desde este último ángulo, la radicalización de los conceptos gramscianos, nos muestra a la globalización como el terreno en el cual surgen y se articulan, para revertir la dirección hegemónica del proceso, cada vez más
revolucionario (en el sentido de revolucionar los modos de producción precapitalistas, etc.,), define a la propia hegemonía como movimiento, pretensión de universalidad y expansividad: “La clase burguesa se pone a sí misma como organismo en movimiento continuo, capaz de absorber toda la sociedad, asimilándola a su nivel cultural y económico: toda la función del estado se transforma; el estado se hace “educador”, etc.” Ver Gramsci, An tonio. Antología. Op.cit. pgs. 291 y 316 respectivamente. 28 Perry Anderson, en Las antinomias de Antonio Gramsci, enfatiza que en los Quaderni, aparece una relación estado-sociedad civil oscilante, según la coyuntura o articulación histórica analizada: el estado está en una relación “equilibrada”; es solamente una “superficie exterior” de la sociedad civil; es la “estructura masiva”, que cancela la auto-nomía de la sociedad civil. Derivan de estas distintas situaciones, diferentes respuestas políticas posibles desde la perspectiva de las clases subalternas. Anderson, Perry. Las antinomias de Antonio Gramsci. Cuadernos del Sur n°. 6. 1987. pg. 19. 29 Dado que su obra constituye un texto abierto (como todo texto), pero en este caso, cuyo carácter no sistemático hay que enfatizar, especialmente en lo que hace a su etapa carcelaria, pero también en su producción anterior, ya que Gramsci no escribía para la academia sino que lo hacía al calor de las luchas de su tiempo. Su escritura es una escritura práxica. 30 En este sentido en los últimos años, numerosos pensadores críticos, han propuesto una renovada lectura de las categorías gramscianas desde el materialismo histórico, y a veces, desde su intersección con otras tradiciones teóricas. Ver por ejemplo, las ideas de “marxismo sin garantías” en Stuart Hall, “materialismo posmoderno” en David Ruccio y Antonio Callari, “materialismo aleatorio” en el último Louis Althousser, y la interpretación que hace Antonio Negri de este término, y la radicalización del concepto de Hegemonía en Ernesto Laclau y Chantal Mouffe (aunque en el caso de Laclau, su concepción, luego de escribir junto a Mouffe, Hegemonía y estrategia socialista, se ha desplazado cada vez más hacia un reduccionismo de la hegemonía a sus formas de discursividad ideológico-política). Desde el punto de vista de la materialidad de la lucha ideológica, dos trabajos importantes son el de Göran Therborn y Mabel Thwaytes Rey. Ver respectivamente, Hall, Stuart. The problem of ideology: marxism without guarantees. En: Morley, David y Chen, K.H. (eds.). Stuart Hall: Critical dialogues in cultural studies. Routledge. 1996. pgs. 25/46. Callari, Antonio y Ruccio, David. Postmodern materialism and the future of marxist theory. Essays in the althusserian tradition. Wesleyan University Press. 1996. pgs. 1/45. Negri, Antonio. Notes on the evolution of the thought of the later Althousser. En: Callari, Antonio y Ruccio, David. Ibid. pgs. 51/68. Laclau, Ernesto y Mouffe, Chantal. Hegemonía y estrategia socialista. Hacia una radicalización de la democracia. Siglo XXI. 1987. Therborn, Göran. La ideología del poder y el poder de la ideología. Siglo XXI. 1989. Thwaytes Rey, Mabel. La noción gramsciana de hegemonía en el convulsionado fin de siglo. Acerca de las bases materiales del consenso. En: Ferreira, Leandro, Logiudice, Edgardo y Thwaytes Rey, Mabel. Gramsci mirando al Sur. Sobre la hegemonía en los 90. Kohen y Asociados. 1994. pgs. 15/84.
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luchas de dignidad humana. La construcción de contrahegemonía, puede entenderse desde esta perspectiva como la articulación de las luchas emancipatorias en diversos espacio-tiempos sociales, por que lo importante de un marco categorial neogramsciano es, más que una topografía estática de lo social, el desplazamiento de las fronteras, la subversión de los tiempos y de las técnicas, es decir, lo que Joaquín Herrera Flores denomina la construcción de espacios sociales ampliados 31, desde los que afirmar y consolidar esas luchas por la dignidad humana. La metáfora gramsciana acerca de las estrategias de “guerra de maniobras”, y de “posiciones”, ha sido correctamente vinculada a la discusión estratégica contemporánea de Gramsci acerca de las condiciones de la revolución en Europa Occidental32. Sin embargo, analizada desde su aspecto de movimiento o dinamismo en el espacio absoluto, de relacionalidad compleja de la globalización, puede servir para pensar las guerras de posiciones que van subvirtiendo los espacios relacionales y geográficos para articular las luchas frente a la trama jerárquica de la globalización. 31
Herrera Flores, Joaquín. Feminismo y materialismo: hacia la construcción de un “Espacio Social Ampliado”. En: Sánchez Rubio, David, Herrera Flores, Joaquín y de Carvalho, Salo. Anuario iberoamericano de direitos humanos. (2001/2002). Lumen- Juris. 2002. pgs. 321/364. 32 Nos referimos a los ampliamente conocidos y comentados párrafos de Gramsci donde por Oriente y Occidente debe entenderse la diferencia entre las articulaciones sociales de Rusia y de los estados de Europa Occidental, analizada por Gramsci en perspectiva histórico-estratégica, siendo que “En Oriente, el estado lo era todo, la sociedad civil era primaria y gelatinosa; en Occidente; en cambio, había una correlación eficaz entre el estado y la sociedad civil, y en el temblor del Estado podía de todos modos verse en seguida una robusta estructura de la sociedad civil. El estado era una trinchera avanzada detrás de la cual se encontraba una robusta cadena de fortalezas y fortines; con diferencias entre los Estados, naturalmente, pero eso era precisamente lo que requería un cuidadoso reconocimiento de carácter nacional”. Gramsci, Antonio. Antología. Op.cit. pg.284. Para Juan Carlos Rubinstein, esta diferenciación, concerniente a los “complejos estado-sociedad civil”, pretendió señalar una diferente estrategia a seguir según que aquellas pertenecieran a lo que hoy se conoce como “periferia” –“Oriente”- de lo que corresponde a los “centros” –“Occidente”-.Para los países “periféricos” la estrategia se centraba en la lucha tendiente a conquistar, en una “guerra de movimiento”, los “aparatos” del “estado propiamente dicho”, por la gelatinosidad o inexistencia virtual de una “sociedad civil”; en cambio, para los “centrales” la lucha, más lenta, ardua y fundamentalmente de desgaste, se traducía en una “guerra de posición”...que se concretaba en la construcción y afirmación de las “trincheras” y “casamatas” propias (partidos políticos de masa, sindicatos económicamente fuertes, organizaciones cooperativas, etc.) y en la conquista de las correspondientes a “las reservas organizativas de la clase dominante”, mediante un asedio permanente de esas “trincheras” y “casamatas” para ablandarlas y una concentración inaudita de “hegemonía” en su doble acepción de “dirección” política de la lucha revolucionaria, liderada por la clase obrera, y de “ideología” en el desarrollo de una “concepción del mundo” alternativa) para inclinar la balanza de la relación de fuerzas a su favor”. Rubinstein, Juan Carlos. “Reflexiones en torno a la sociedad civil”. Editorial de la U.N.L.P. 1995. pgs. 37/38.
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Aplicando el concepto gramsciano de hegemonía a las relaciones internacionales, Robert Cox sostiene que las relaciones de poder global, geoeconómicas
y
geopolíticas
pueden
rastrearse
hasta
las
tendencias
“orgánicas”, de largo plazo, de las relaciones sociales 33. La aplicación de los conceptos gramscianos tiene la virtualidad, como vimos, de desbordar el marco clásico de la interestatalidad en las relaciones internacionales, que toma al estado como unidad básica de las mismas. El concepto de estado ampliado desborda hacia arriba y hacia abajo, ya que incluye las bases y fuerzas sociales del estado que se localizan y/o globalizan. Al mismo tiempo, este marco categorial sirve para pensar, como lo hizo Gramsci en sus escritos sobre la “cuestión meridional”, la interrelación entre la influencia externa que sufre un estado, y las desigualdades económicas y sociales que lo desgarran por dentro. La vida económica de las naciones subordinadas es penetrada por y entretejida con la de las naciones poderosas. Esta articulación es compleja,
dada
la
existencia
al
interior
de
los
estados
de
regiones
estructuralmente diversas que tienen patrones distintos de relación con las fuerzas exteriores 34. Según Cox, en el pensamiento de Gramsci, las revoluciones burguesas en Inglaterra, Francia, Estados Unidos y la revolución proletaria y popular en Rusia, constituyeron fenómenos históricos que desbordaron para expandirse más allá de las fronteras nacionales generando fuerzas sociales e ideológicas que conmovieron la arena internacional, influyendo en lo que Wallerstein llama la geocultura mundial. Otros países, receptores de estos procesos a través de grupos sociales y estratos intelectuales dominantes, toman y difunden esas ideas originadas de una transformación económica y social previa y externa, y no de un 33
En una nota titulada “Análisis de las situaciones. Correlaciones de fuerzas”, Gramsci sostiene que “Los elementos de observación empírica que comúnmente se exponen en confusión en los tratados de ciencia política...tendrían que situarse, en la medida en que no sean cuestiones abstractas o en el aire, en los varios grados de correlaciones de fuerzas, empezando por las correlaciones de las fuerzas internacionales (en esta sección habría que colocar las notas escritas acerca de lo que es una gran potencia, las agrupaciones de estados en sistemas hegemónicos y, por tanto, acerca del concepto de independencia y de soberanía por lo que hace a las potencias pequeñas y medias), para pasar a las correlaciones objetivas sociales, o sea, al grado de desarrollo de las fuerzas productivas, a las correlaciones de fuerzas políticas y de partido (sistemas hegemónicos en el interior de los Estados) y a las correlaciones políticas inmediatas (o sea, potencialmente militares). Gramsci, Antonio. Antología. Op.cit. pg.409. 34 Cox, Robert. Gramsci, hegemony and international relations: An essay in method. En: Gill, Stephen. (ed.) Gramsci, historical materialism and international relations. Op.cit. pg. 58.
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grupo social indígena comprometido en la construcción de una nueva estructura de relaciones sociales. En consecuencia, el pensamiento de ese grupo dominante, es construido de forma idealista, sin relación con procesos domésticos de desarrollo, y su concepción del estado, como en el caso de Benedetto Croce, toma la forma de un “racional absoluto”35. Aplicando estas premisas al concepto hegemónico de orden mundial, sostiene que este se basa no solamente en la regulación del conflicto interestatal, sino también de una sociedad civil concebida globalmente, un modo de producción de extensión global que produce vínculos entre las clases y demás grupos sociales de los estados que abarca. Históricamente, las hegemonías de este tipo están fundadas por estados poderosos que han atravesado una revolución (activa o pasiva) y desatado energías que se expanden más allá de las fronteras. Una hegemonía mundial es la expansión de la hegemonía interna establecida por los grupos sociales dominantes. Las instituciones económicas y sociales, la cultura, la tecnología asociada con esta hegemonía nacional devienen parámetros de emulación. Esa hegemonía expansiva penetra en los complejos estado-sociedad civil periféricos como una “revolución pasiva”. Estos estados, no han pasado por la misma revolución social, ni tienen sus economías desarrolladas de la misma forma, pero tratan de incorporar elementos del modelo hegemónico sin perturbar las viejas estructuras de poder. Mientras que los estados periféricos pueden incorporar algunos aspectos económicos y culturales del centro hegemónico, tienen menos capacidad para adoptar sus modelos políticos. La hegemonía mundial es más intensa y consistente en el centro y más inestable y contradictoria en la periferia, donde el nivel de coerción económica
y política
para
imponerla, es
mayor 36.
Sin embargo,
esta
subordinación frecuentemente aparece ideológicamente deformada a través de la pantalla del nacionalismo 37.
35
Cox, Robert. Ibid. pg. 59. Cox, Robert. Ibid. pg. 61. 37 En la mismo nota citada, unos párrafos más adelante, el sardo sostiene: “Cuando más subordinada está la vida económica inmediata de una nación a las relaciones internacionales, tanto más representa un partido esa situación y la aprovecha para impedir la llegada de los partidos adversarios al poder...a menudo el llamado “partido del extranjero” no es precisamente el que se indica como tal, sino el partido más nacionalista, el cual, en realidad, más que representar las fuerzas vitales del país, representa la subordinación y sometimiento económico a las naciones o a un grupo de naciones hegemónicas”. Gramsci, Antonio. Antología. Ibid. pg. 409/410. 36
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La hegemonía mundial desde esta perspectiva,
es describible como una estructura social, económica y política, y no puede ser reducida a uno de estos aspectos... se expresa en normas, instituciones y mecanismos universales que establecen reglas generales de conducta para los estados y aquellas fuerzas de la sociedad civil que actúan a través de las fronteras nacionales, reglas que sostienen el modo de producción dominante 38.
Por su parte, Giovanni Arrighi 39, traza un interesante puente entre la teoría de los sistemas mundiales y la teoría neogramsciana de la economía política global, analizando las tendencias seculares en el desarrollo de largo plazo de los ciclos hegemónicos, y enriqueciendo un concepto de hegemonía aplicable a la actual trama jerárquica de la globalización. La hegemonía en el sistema mundial es más que la simple dominación. Consiste en la capacidad de generar un liderazgo intelectual y moral, y de hacer pasar los intereses de los grupos dominantes como universales. Esta pretensión, es siempre más o menos fraudulenta, pero la relación hegemónica se produce cuando tiene algún viso de realidad, y por consiguiente, consigue credibilidad 40. Para Arrighi, desde que la hegemonía, normal y etimológicamente, se refiere a relaciones interestatales, es muy posible que Gramsci use el término metafóricamente para clarificar relaciones entre grupos sociales a través de una analogía con relaciones entre estados. Por eso, transponiendo el concepto gramsciano de hegemonía de las relaciones intraestatales a las interestatales, puede ser que simplemente estemos recorriendo en reversa el proceso mental del sardo. Al hacerlo, se presentan dos requisitos para la construcción de hegemonía en el sistema mundial: Primero, ésta debe basarse en un liderazgo que oriente el sistema hacia una dirección y al hacerlo, que sea percibido como si actuase en interés universal. Segundo, la hegemonía debe expandir el poder colectivo de los dominadores en relación a los sujetos, en cuyo caso estamos ante una hegemonía regresiva. A la inversa, si el liderazgo hegemónico puede pretender 38
Cox, Robert. Ibid. pg. 62. Traducción propia. Arrighi, Giovanni. The three hegemonies of historical capitalism. En: Gill, Stephen. Gramsci, historical materialism and international relations. Op.cit. pg.148 y ss. 40 Arrighi, Giovanni. Ibid. pg. 149. 39
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con credibilidad, que la expansión de su poder relativo a algunos o a los otros estados es en el interés general de los sujetos de esos estados, estamos ante una hegemonía progresiva, que incorpora molecularmente, resignificándolas, algunas de las reivindicaciones y necesidades de los grupos subalternos41. Al analizar los ciclos hegemónicos, con sus fases de consolidación, seguidas de decadencia y desorden sucesorio desde los orígenes del capitalismo, Arrighi encuentra tendencias de largo plazo. Halla que las lógicas de los acumuladores de capital y la de los gobernantes territoriales, y la espacialidad que tienden a construir, han sido contradictorias desde el origen de la economía mundo capitalista. Las sucesivas hegemonías mundiales aparecen entonces, como un arreglo o mediación entre estas dos lógicas, haciendo y rehaciendo el sistema mundial para resolver la contradicción recurrente entre la acumulación de capital sin límites y la comparativamente más estable organización del espacio político, articulando el mundo de los estados soberanos con las redes de acumulación de capital 42. En este entendimiento, es central la definición de capitalismo y territorialismo como lógicas de poder opuestas. Los soberanos territoriales identificaban el poder con la extensión del territorio y la cantidad de población en sus dominios y concebían la riqueza como un medio o un subproducto de la expansión territorial. Los capitalistas, en cambio, identificaban el poder con la extensión de su dominio sobre recursos escasos y consideraban las adquisiciones territoriales como medios o un subproducto para la acumulación de capital sin límites 43. Por otra parte, en los períodos de caos sistémico que suceden al declive del estado hegemónico y anteceden al establecimiento de una nueva hegemonía, se producen dos dinámicas incrementales: en sus guerras, los competidores por la hegemonía, en la medida en que el espacio abarcado por la economía-mundo y la densidad del sistema interestatal se ha ampliado, involucran a más pueblos y grupos sociales. Las rebeliones populares y la emergencia de movimientos antisistémicos, que en perspectiva de largo plazo eran instrumentalizadas para el 41
Arrighi, Giovanni. Ibid. pgs. 150/151. Arrighi, Giovanni. Ibid. pg. 154. 43 Arrighi, Giovanni. Ibid. pg. 155. 42
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lanzamiento de la nueva hegemonía y luego de establecida ésta, rápidamente sofocadas, se hacen cada vez más difíciles de controlar y expanden su alcance y conflictividad. Esta aceleración de la historia social se debió a la creciente socialización del estado y de los esfuerzos de construcción del mundo por parte de los grupos dirigentes, que precisaban, para su viabilidad, cada vez más consentimiento de los grupos subalternos.
En la medida en que círculos de sujetos cada vez más amplios eran movilizados directamente o indirectamente en esos esfuerzos, más rápidamente el conflicto interestatal generó rebeliones populares en relación con la distribución de los costos y los beneficios de esos esfuerzos 44.
El reverso de esta tendencia a la aceleración de la historia social, es lo que Raymon Aron llamó la desaceleración de la historia política. La socialización de la guerra y de la construcción del estado incrementó, para los grupos dirigentes, los costos y riesgos de sus antagonismos mutuos. De ahí que, según Arrighi, la próxima lucha por el relanzamiento de la hegemonía mundial, tomará una forma más condensada y saltará la fase del conflicto armado entre grandes poderes. Al final de su ensayo, que data de 1993, Arrighi sugiere que el caos puede estar comenzando, –aunque no lo notemos, dada la lentitud que para nuestro tiempo vital entrañan los ciclos hegemónicos–, en este caso, no como resultado de la agudización del conflicto interestatal, sino como consecuencia de la tendencia a su superación por el surgimiento de formas de organización y poder supraestatal y la proliferación de sujetos no estatales45. Es decir, eso que venimos llamando globalización. Siguiendo el razonamiento de Arrighi, esta nueva etapa de la mediación hegemónica entre espacialidad del capital y espacialidad territorial, –es decir, la lógica topográfica de los continuos espaciales territoriales y la lógica topológica de las discontinuidades, las segmentaciones y las redes de producción, información y comunicación–, pareciera estar destinada a resolverse por una hegemonía que articule una espacialidad absoluta, emergente de la crisis de la soberanía nacional y la refuncionalización de la estatalidad “post-westfaliana”. 44 45
Arrighi, Giovanni. Ibid. pg. 184. Traducción propia. Arrighi, Giovanni. Ibid. pg. 185.
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Esta hegemonía que impone una espacialidad absoluta, es lo que estamos tratando de comprender como trama jerárquica de la globalización, lo que Antonio Negri y Michael Hardt, llaman “Imperio”.
A través de las transformaciones contemporáneas, los controles políticos, las funciones estatales y los mecanismos regulatorios han continuado rigiendo el campo de la producción social y económica y el intercambio. Nuestra hipótesis básica es que la soberanía ha tomado una nueva forma, compuesta por una serie de organismos nacionales y supranacionales unidos bajo una sola lógica de dominio. Esta nueva forma de soberanía global es lo que llamamos Imperio 46.
Esta espacialidad absoluta de la globalización 47, supone que ya no hay una arena exterior al sistema mundial del capitalismo histórico, y que por lo tanto, la impugnación, resistencia y construcción de contrahegemonía tendrán a la globalización directa o indirectamente, explícita o implícitamente, como escenario 46
Hardt, Michael y Negri, Antonio. Empire. Op.cit. pg. xii. Traducción propia. Aunque Hardt y Negri critican la tendencia, por parte de Arrighi, a considerar las luchas del presente simplemente en el marco de las crisis cíclicas de acumulación y hegemonía del sistema del capitalismo histórico, como mera repetición de las fluctuaciones estructurales de este. Por nuestra parte, creemos que las tendencias seculares de largo plazo constituyen un marco del cual parte la acción humana y no un determinante, y que se pueden compatibilizar las tendencias diacrónicas con el análisis de las tendencias sincrónicas de la globalización capitalista. Por otra parte, Wallerstein, Arrighi, ChaseDunn y otros teóricos del world system, reconocen la apertura histórica y la imposibilidad de pronosticar que sucederá en los próximos 50 años, que no será mera repetición de ciclos históricos anteriores. Estos autores reconocen, por medio de sus análisis históricos, como el de Arrighi, que acabamos de comentar, que estamos tal vez ante un período de transformación del sistema mundial, ya que los patrones de fluctuación de las tendencias seculares toman una dinámica incremental que exceden los límites de compatibilidad del sistema, lo que se expresa en una creciente corrosividad sociopsicológica y ecológica, al decir de Wallerstein. Ver Hardt, Michael y Negri, Antonio. Ibid. pgs. 237/239. Wallerstein, Immanuel. Después del liberalismo. Op.cit. pg.168/169. 47 Como explican Hardt y Negri, basándose en Marx, Rosa Luxemburgo, Hilderfing, Kautsky y Lenin, la contradicción entre realización y acumulación de capital, hacía que el capitalismo necesitara expandir su esfera de circulación constantemente y por lo tanto, que necesitara una esfera exterior, mercados para conquistar, trabajo, maquinarias e insumos baratos para relanzar el ciclo. Pero en su expansión, el capital no se limita a extraer recursos y fuerza de trabajo de arenas no capitalistas, sino que es exportado para extraer plusvalor en la periferia. Esto es lo que se llama capitalización. En esta actividad de capitalización, relanza el proceso de acumulación primitiva continuamente, transforma en capitalistas sus entornos no capitalistas, que son subsumidos formalmente dentro de ese modo de producción. Pero entonces, la capitalización pone un límite para la realización y viceversa. En ese sentido, las fronteras o división del mundo impuestas por el imperialismo, se transforman en un momento determinado en una obstáculo para la concreción de la tendencia inscrita en la lógica del capital a la realización de un mercado mundial. El capital debe eventualmente trascender las barreras del imperialismo y destruir la distinción entre un afuera y un adentro. Una vez que ya no hay afuera, la contradicción entre capitalización y realización se agudiza, se profundiza el proceso de comodificación de más y más aspectos de la vida, y la corrosividad social y ecológica del capitalismo aumenta exponencialmente. Hardt, Michael y Negri, Antonio. Empire. Op.cit. pgs. 219/239.
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y objeto de conflicto. b) La hegemonía supone, en su fundamento material, un régimen de producción y reproducción de la vida. En tanto que ejercicio de la dirección intelectual y moral, posibilitado por el carácter económico fundamental de una clase o grupo social que aparece como organizadora de la sociedad de su época, la hegemonía supone una cierta estructuración jerárquica de necesidades valoradas, de los medios para su satisfacción, y un cierto régimen para su imputación. Es el contexto que nos dice el qué y el cómo acerca de la satisfacción o insatisfacción de las necesidades que hacen a la producción y la reproducción material de la vida, las instituciones y normas que son necesarias para ello, y las ideologías justificatorias. En los contextos hegemónicos de sociedades escindidas en clases sociales y otras formas de asimetría política, de género, étnica, religiosa, etc., el régimen de administración de necesidades es también un conjunto de técnicas y dispositivos biopolíticos de administración de la vida, y por lo tanto, de la muerte. Estos dispositivos, en forma de normas, instituciones, saberes, regímenes de verdad, generalmente no son cuestionados por las discusiones que forman el ámbito formal de “lo político”, ya que se reproducen en espacios “productivos”, “domésticos”, “privados” o “disciplinarios” 48, pero que están profundamente arraigados como una “política de la vida” en el sentido común, es decir, esa visión 48
En una nota titulada “Racionalización de la producción y del trabajo”, (y en general en todas sus notas carcelarias sobre “americanismo y fordismo”, el pensador italiano reflexiona sobre estos mecanismos disciplinarios y su carácter (diríamos hoy) de dispositivos de poder en el espacio productivo desde el cual se construía una moralidad y una determinada concepción del mundo y de la sociedad. Captar el movimiento del pensamiento gramsciano su tendencia a escudriñar más allá de los límites sociales establecidos (lo político y lo económico, lo público y lo privado), supone extender su mirada crítica a todos los espacios sociales en que encontremos dispositivos de control y de disciplina, en lo que Gramsci se presenta como continuador de los maestros de la sospecha, de Marx principalmente, pero por su actitud también de Freud y de Nietzche, y punto de referencia para los cultores de esa actitud teórica y práctica crítica contemporánea: como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari y Antonio Negri. En dicha nota Gramsci sostiene que: “...los nuevos métodos de trabajo son inseparables de un determinado modo de vivir, de pensar y de sentir la vida;...En América la racionalización del trabajo y el prohibicionismo son cosas indudablemente relacionadas : las encuestas de los industriales sobre la vida íntima de los obreros, los servicios de inspección creados por algunas empresas para controlar la “moralidad” de los obreros, son necesidades del nuevo método de trabajo. El que se burle de estas iniciativas...y no vea en ellas más que un a hipócrita manifestación de “puritanismo”, se niega toda posibilidad de comprender la importancia, la significación y el alcance objetivo del fenómeno norteamericano, que es, entre otras cosas, el mayor esfuerzo colectivo realizado hasta ahora por crear, con rapidez inaudita y con una consciencia jamás vista en la historia, un nuevo tipo de trabajador y de hombre”. Gramsci, Antonio. Antología. Op.cit. pgs. 475/476.
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acrítica, fragmentaria, incoherente del mundo que los hombres recogen en los diversos ambientes intelectuales y morales en los que se desenvuelve su vida 49, sobre el que se cimienta y sedimenta la hegemonía social. Las posiciones que reducen la cuestión de la hegemonía a un problema que gira en torno de las ideologías políticas y el estado 50, no captan este tipo de mecanismos hegemónicos que trascienden las topografías simples de lo social y para los que necesitamos el nomadismo constante de una forma de pensar gramsciana, que sustenta la posibilidad de la praxis contrahegemónica en la disolución de esas cartografías estáticas y reductoras, mostrando que puede y 49
Pero por eso mismo potencialmente crítica. En ese sentido, Gramsci decía que “todos los hombres son filósofos”. “Conviene destruir el muy difundido prejuicio de que la filosofía es una cosa muy difícil por el hecho de ser actividad intelectual propia de una determinada categoría de científicos especializados o de filósofos profesionales y sistemáticos. Conviene, por tanto, demostrar preliminarmente que todos los hombres son “filósofos”, definiendo los límites y la categoría de esta “filosofía espontánea” propia de “todo el mundo”, o sea de la filosofía contenida: 1) en el mismo lenguaje, que es un conjunto de nociones y de conceptos determinados, y no ya sólo de palabras gramaticales vacías de contenido; 2)en el sentido común y en el buen sentido; 3)en la religión popular y también, por tanto, en todo el sistema de creencias, supersticiones, opiniones, modos de ver y de obrar que desembocan en lo que generalmente se llama “folklore”. Una vez demostrado que todos los hombres son filósofos...se pasa al segundo momento, al momento de la crítica y de la consciencia, o sea, a la cuestión ¿es preferible “pensar” soin tener consciencia crítica de ello, de un modo disgregado y ocasional, o sea, “participar” de una concepción del mundo “impuesta” mecánicamente por el ambiente externo...o es preferible elaborar uno su propia concepción del mundo conciente y críticamente...participar activamente en la historia del mundo...? Ver Gramsci, Antonio. Antología. Ibid. pgs. 364/365. 50 Enrique Dussel, desde la filosofía de la liberación, problematiza esta cuestión al criticar el trabajo de Laclau, quien, justamente, incurre en este tipo de reduccionismo politicista de la hegemonía. Dussell sostiene que “la reproducción de la vida de los participantes de la lucha hegemónica es la condición de posibilidad absoluta insubvertible de la misma hegemonía”. Compartiendo en general esta posición desde una perspectiva materialista, creemos que debe ser matizada: la hegemonía como régimen de administración de la vida y la muerte, puede suponer la invisibilización de segmentos o minorías de la población al margen del consenso ideológico hegemónico de la sociedad. Para esos sectores, la administración de la economía de la fórmula del estado ampliado, “hegemonía acorazada de coerción”, puede pasar mucho más por el segundo término, es decir, el de la coacción económica, moral o física incluso llevada hasta la administración ordinaria de la muerte en ese grupo social, como sucede por ejemplo, con los inmigrantes que cotidianamente se arriesgan a atravesar las fronteras militarizadas entre el Sur y el Norte a través, por ejemplo, del estrecho de Gibraltar o la frontera entre México y Estados Unidos. La clausura de los estados de bienestar es un régimen de administración de la muerte que se realiza, hasta ahora, sin alterar el consenso hegemónico de las sociedades de bienestar. De esta forma, Dussel, cuya crítica a Laclau compartimos, construye, sin embargo, una relación de exterioridad entre el “principio ético material de producción y reproducción de la vida”, y la hegemonía, con el efecto paradójico de que, por un camino diverso, termina también reduciendo la misma a lo político. El problema es que estas cuestiones, creemos, deben ser planteadas de forma histórica y relacional, desde la deconstrucción y contrapropuesta a partir de éticas materiales que surgen desde las coyunturas y situaciones reales. Una situación del tipo “o bien hegemonía y vida, o bien coacción y muerte”, es una disyuntiva abstracta. Cualquier sociedad que se plantee una disyuntiva de ese tipo, estará en un régimen de dominación abierto o en una guerra civil, más que en una situación de hegemonía. Ver Dussell, Enrique. Hacia una filosofía política crítica. Op.cit. pg. 206/207.
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debe cuestionarse la administración hegemónica de la producción y reproducción de la vida, que puede y debe democratizarse radicalmente el proceso de selección, jerarquización, imputación y satisfacción de necesidades. La globalización, sobredetermina todos los espacios de producción y reproducción de la vida y al hacerlo, jerarquiza autoritariamente las necesidades. Bajo el velo de la ideología neoliberal hegemónica se hallan las necesidades de la acumulación mundial de capital a las que se subsumen las de los pueblos, grupos y clases oprimidas. Los medios, formas y entornos de vida y satisfacción de necesidades, hasta ahora considerados comunes, como por ejemplo el agua y la tierra, los bienes y espacios públicos, como la salud, la educación, los lugares públicos, los conocimientos ancestrales de los poblaciones indígenas y tradicionales, están sometidos a un proceso expansivo que los subsume cada vez más como mercancías. El proceso de globalización hegemónica actual, para poder sostenerse sin transformaciones radicales, necesita, como demuestra Susan George en el Informe Lugano 51, una biopolítica que pasa por la reducción administrada de la producción y reproducción de la vida de millones de seres humanos. Pero la espacialidad absoluta de la globalización, al derribar muchas de las barreras y soluciones del pasado en la topografía del sistema mundial, provoca posibilidades inéditas para la construcción contrahegemónica de los grupos sociales cuyas necesidades radicales o radicalizadas 52, no pueden ser satisfechas en el actual contexto global. c) Las relaciones hegemónicas globales son articuladas por un bloque histórico que se expresa no solamente a través de una alianza de clases y fracciones de clases, las asimetrías del sistema interestatal y de instituciones nacionales e internacionales, sino también en relaciones y fuerzas de la “sociedad civil global”.
51
George, Susan. Informe Lugano. Icaria. 2001. Necesidades radicales o radicalizadas son aquellas que van surgiendo en interacción dinámica con el proceso de trabajo (en sentido amplio como actividad humana encaminada a la producción y reproducción de la vida en la interacción natural y social) y el proceso de valoración, es decir, de adscripción de preferencias sociales generalizadas, cuya puesta en práctica y reconocimiento se hace difícil para la lógica capitalista basada en la explotación, la miseria y la destrucción del hábitat. Cfr. Herrera Flores, Joaquín. Los derechos humanos desde la Escuela de Budapest. Tecnos. 1989. pg. 84 y ss. También de Heller, Agnes. Teoría de las necesidades en Marx. Catedra. 1998 y Una revisión de la teoría de las necesidades. Paidos.1996. 52
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La hegemonía es ejercida al interior de una amplia constelación social y política de fuerzas, o bloque histórico. Este concepto se refiere a la congruencia histórica de fuerzas materiales, institucionales e ideológicas, e incluye, aunque no se reduce a, una alianza de diferentes clases sociales. Iluminado desde su determinación sociológica, consistiría en un núcleo central transnacionalizado de sectores sociales de mayor o menor importancia relativa según cada “complejo estado-sociedad civil”, su posición central o periférica, etc. Estos sectores comparten una cultura y un estilo de vida comunes que es mucho mayor que la posibilidad de comunicación de esos sectores con sus coterráneos obreros, desempleados, campesinos o marginados53. El concepto de bloque en Gramsci, surge para designar la forma de unidad o relación entre lo económico, lo cultural y lo político en la hegemonía de grupos sociales en un momento histórico, impugnando de esta forma el reduccionismo y determinismo economicista que predominaba entonces en las Segunda y Tercera internacionales. 54 Es un concepto que no debemos imaginar como monolítico, sino como una estructura abierta, una articulación, suponiendo entonces una trama de relaciones con puntos fijos, o fijaciones más rígidas y duraderas (nunca perennes) y partes móviles o fluidas. Tenemos aquí una pista, para trazar una cierta y provisional, analítica y no ontológica, cartografía del bloque histórico que hegemoniza la globalización. La acumulación de capital y la función de dominio político conforman la trama institucional tejida entre alianzas político militares (Estados Unidos, OTAN) y relaciones económicas afianzadas por instituciones (FMI, BM, OMC, corporaciones multinacionales) que funcionalmente desempeñan en el bloque la función “fija” de comando, o dominio político, más directiva y coactiva, y de acumulación de capital. Mientras que la “cultura”, (que implica no sólo los mensajes, sino también los medios, los soportes materiales y técnicos de producción, reproducción y difusión de productos y objetivaciones culturales), 53
Cfr. Rubinstein, Juan Carlos. Revolución tecnológica, desempleo y debilitamiento de las sociedades civiles. En El Príncipe. Revista de Ciencia Política. Nro. 3-4. Primavera de 1995. pg.86. 54 “El bloque histórico, que no debe reducirse a una simple alianza entre clases sociales, expresa el vínculo orgánico que une la estructura económica con las superestructuras jurídico-política e ideológica..” Aguilera de Prat, Cesáreo Rodriguez. Gramsci y la vía nacional al socialismo. Akal.1984. Pg.47.
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supone la parte “móvil”, “fluida” de la articulación, de construcción de hegemonía por movilización del consenso 55. Por lo tanto, un bloque histórico es el vínculo orgánico entre la sociedad política y la sociedad civil, una fusión de capacidades materiales, institucionales, intersubjetivas, teóricas e ideológicas. Un bloque histórico exitoso se articula en torno a un conjunto de ideas hegemónicas que le dan alguna dirección y coherencia estratégica a sus elementos constitutivos 56. Este concepto es útil para analizar, en el terreno del orden mundial, sobre qué constelación histórica de fuerzas descansa el ejercicio de la hegemonía y cuáles son sus bases materiales, políticas e ideológicas de articulación. El orden hegemónico de postguerra, estuvo cimentado por un bloque histórico centrado en los Estados Unidos, que vino a ser la pieza sociopolítica fundamental de la alianza orgánica occidental de postguerra. El bloque se originó en la expansión de fuerzas emergentes desde el interior de los Estados Unidos. Los elementos sociales fundamentales en esta constelación de fuerzas buscaron internacionalizar los principios del New Deal y las formas asociadas a la acumulación fordista, es decir, un régimen de acumulación intensivo en capital y un patrón de consumo masivo, y extender las oportunidades para las exportaciones y/o la inversión extranjera directa, tanto en manufacturas como en industrias extractivas. El bloque también comprendía intereses financieros en Wall Street, que buscaban oportunidades de inversión más amplias en el mundo y un rol más importante para el dólar. Este bloque articulaba no solamente fracciones del capital financiero y productivo, sino también grupos en los aparatos de estado, partidos políticos centristas y sindicatos no comunistas en las principales naciones capitalistas, y algunos estados y grupos sociales periféricos. Pero además, descansaba sobre bases normativas, ideológicas e institucionales que estaban dados por el consenso neocorporativo de postguerra, el estado de bienestar, y la proliferación de instituciones internacionales con diferentes grados de eficacia, por
55
Pero al mismo tiempo, la que exhibe más contradicciones, ya que sus tópicos legitimadores, por ejemplo, democracia, derechos humanos, no pueden escapar a una diseminación y diferencia, a una polisemia y a una resignificación, teniendo puntos de fuga y tensionando en exceso respecto a los puntos nodales de la articulación que tienen que ver con la acumulación de capital y el dominio geopolítico del mundo. 56 Gill, Stephen y Law, David. Global hegemony and the structural power of capital. En: Gill, Stephen. Op.cit. pgs. 93/94.
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ejemplo, las instituciones de Bretton Woods, las del sistema ONU, etc. Según Cox57, luego de un proceso de erosión de ese bloque histórico que comenzó en los 70, durante los 90 comenzó a configurarse de forma cada vez más clara la emergencia de un nuevo bloque histórico y de un intento de recomposición de la hegemonía mundial, nuevamente centrado en los Estados Unidos. El contexto de aparición de este nuevo bloque tiene que ver con la popularidad de la “gobernancia global”. Bajo este término, pareciera subyacer una idea de control y orientación sin un poder coercitivo formalmente legitimado. Sin embargo, detrás de esta apariencia, emerge un bloque histórico nuevo, articulando las fuerzas económico-corporativas más poderosas, sus aliados en los gobiernos, y la variedad de redes que envuelven las líneas políticas principales y la propagación de la ideología de la globalización. Los estados juegan el rol de agencias de la economía global, con la tarea de ajustar las políticas y las prácticas económicas nacionales a las exigencias del liberalismo económico global 58. Esta estructura de poder es sostenida desde fuera de los estados a través de un consenso político global y la influencia de las finanzas globales sobre la política estatal, y desde dentro del estado por aquellas fuerzas sociales que se benefician de la globalización, los segmentos de la sociedad integrados dentro de la economía mundial. La competitividad en el mercado mundial es el criterio último de la política estatal, que justifica el ataque a las conquistas sociales que la lucha de
los
trabajadores
había
logrado
y
que
habían
sido
parcialmente
institucionalizadas en el período hegemónico anterior. El neoliberalismo es hegemónico en términos tanto ideológicos como de políticas. Donde la hegemonía ideológica y política no es suficiente para proteger la estructura de la gobernancia global, entonces la fuerza militar está disponible cuando un poder regional trata de ignorarla. El bloque histórico emergente, desde su centro articulatorio, polariza la totalidad de los grupos sociales de diferentes formas, integrando segmentos de
57
Cox, Robert. Civil Society at the turn of the millenium: prospects for an alternative word order. En: Review of International Studies. N° 25. 1999.pg.3 y ss. 58 Cox, Robert. Ibid. pg. 12.
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195
los mismos 59. En cuanto a los grupos dominantes, éstos se articulan a través de las corporaciones económicas y financieras transnacionales, los bancos comerciales internacionales, las instituciones formales e informales como el FMI, BM, OMC, Diálogo Empresario Transatlántico, Foro de Davos, etc. Gill y Law 60, sostienen que los patrones internacionales de interacción de las
elites,
funcionarios,
burócratas,
miembros
de
las
organizaciones
internacionales y las redes que generan, no han sido suficientemente investigadas o explicadas, al menos en comparación con las redes domésticas. Pero organizaciones como el Diálogo Empresario Transatlántico, el Foro de Davos, los encuentros de Bilderberg (que datan de 1954) o la Comisión Trilateral (que se inició en 1973), están explícitamente preocupadas en fomentar la cohesión de la “comunidad de las finanzas y los negocios”, incrementar las redes de relación y una perspectiva compartida por las elites de los mayores países capitalistas. Una interacción similar puede encontrarse en algunas instituciones interestatales, como por ejemplo, la OCDE, que organiza conferencias e investigaciones económicas. Para estos autores, lo que es importante es que hay elementos de una perspectiva común, al menos con respecto al rol de las empresas e “iniciativa privada” internacionales, que atraviesa todos estos foros e instituciones 61. 59
Cox identifica tres instancias en los grupos sociales polarizados por el bloque histórico, por un lado están las elites económicas, financieras, políticas e intelectuales dominantes en lo económico y que cumplen la tarea hegemónica de dirección intelectual y moral, a través de corporaciones, instituciones, aparatos ideológicos, think thanks, etc. Existe una “zona gris”, formada por lo que Cox llama el “mundo secreto”, o covert world, formado por grupos paraestatales o no estatales como los servicios de inteligencia, las mafias, el narcotráfico, el tráfico de armas y las sectas religiosas, que se relacionan de formas equívocas con las elites, algunos tienen vínculos directos con el aparato del estado pero sin responsabilidad democrática, están en una zona opaca y discrecional del poder. Otros se relacionan con las elites políticas a través de la corrupción y el financiamiento ilegal de campañas políticas, mientras que muchos de ellos, están en abierta oposición al mundo “oficial”. Finalmente están los sectores populares urbanos y rurales, de los cuales sólo se integran en el bloque los trabajadores altamente cualificados, que forman parte fundamental del diseño sobre qué y cómo se produce, o actúan en servicios tecnológicos, investigación y desarrollo, etc. Si hasta aquí el análisis de Cox se asemeja mucho al que realiza Susan Strange en La retirada del estado acerca de estos poderes no estatales, nos parece importante el énfasis que pone este autor en la relación funcional que existe entre ese “mundo secreto” y la hegemonía neoliberal que provoca el enflaquecimiento de los espacios públicos y posibilita la expansión de ese “mundo”. Ejemplos paradigmáticos son los procesos de crisis del estado en Rusia y América Latina, amplificados por las políticas de ajuste estructural, los servicios de inteligencia que bajo el amparo de la razón de estado actúan en una zona de sombras, la corrupción que vincula a las mafias y el tráfico de drogas y armas con las elites políticas. 60 Gill, Stephen y Law, David. Global hegemony and structural power of capital. Op.cit. pg. 103. 61 Gill, Stephen y Law, David. Global hegemony and structural power of capital. Ibid. pgs. 103/104.
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Por supuesto que hay matices y debates, pero en general, puede decirse que desde los 70 el énfasis en la política económica ha cambiado, desplazándose hacia definiciones que son más convergentes con los intereses del capital transnacional de amplia escala. Por otra parte, las elites activas en redes transnacionales comparten la lectura de periódicos internacionales como The Finantial Times, The Economist y The Wall Street Journal. Es indudable que el proceso de densificación e interacción creciente de las redes de las elites del capitalismo mundial, es importante a la hora de rastrear las fuentes de la agenda de políticas que favorecen la operación del capital transnacional62. Muchos autores sugieren que los elementos mencionados confluyen para producir una clase o fracción de clase capitalista transnacional, con sus propias formas de conciencia estratégica, que involucra un horizonte temporal de largo plazo y consideraciones sobre las condiciones generales bajo las que opera el capital transnacional. Pero también es cierto que con la creciente financierización de la economía mundial y el consiguiente poder de la fracción financiera, los horizontes temporales varían hacia el corto plazo y las operaciones especulativas, que incluso encuentran apoyos tácitos en funcionarios de la Reserva Federal de Estados Unidos y fondos en los bancos comerciales internacionales 63. La noción de “clima de confianza para los negocios y los inversionistas”, refleja el poder condicionante del capital transnacional sobre las políticas de los gobiernos. La ubicuidad y movilidad del capital y la universalización de sus pautas de valoración de las políticas económicas, hacen que el “clima para las inversiones” de un país sea juzgado con relación al clima que predomina en todas partes. Las corporaciones multinacionales valoran rutinariamente las libertades jurídicas (para extraer ganancias y remitir retornos), los costos de producción, las relaciones laborales, la estabilidad política y las concesiones financieras ofrecidas por muchos países diferentes. También examinan el tamaño y el crecimiento potencial del mercado de un país 64. Esta actividad es conocida como análisis del riesgo económico y político de las inversiones, y las corporaciones multinacionales en realidad lo delegan en las 62
Gill, Stephen y Law, David. Ibid. pg. 104. Al respecto, ver Gowan, Peter. La apuesta de la globalización. Op.cit. pgs. 86/139. 64 Gill, Stephen y Law, David. Op.cit. pg.105. 63
La Globalización como Trama Jerárquica
197
seis grandes firmas de consultoría internacional: Price Waterhouse, Peat Marwick Mc Clintock, Coopers y Librand, Ernst & Young, Deloitte Touche Tohmatsu y Arthur Andersen. Entre todas ellas, realizan la auditoría de 96 de las 100 mayores empresas británicas y de 494 de las 500 de Fortune. Sus ingresos mundiales solamente por emolumentos, sumaban a 1997, 30.000 millones de dólares, es decir el PBI de Irlanda o un poco menos del presupuesto nacional de Argentina para el 2002 65. Estas grandes empresas consultoras, que son descendientes gigantescos de las modestas funciones de contabilidad empresaria y auditoría privada en los procedimientos de quiebra de las empresas domésticas inglesas del siglo XIX, además de sus funciones de consultoría, cuando son contratadas por los gobiernos, tienden a estandarizar según criterios neoliberales de reducción de costos y gestión empresarial las políticas de reforma del estado y de los sistemas fiscales. Han contribuido a la concentración económica actuando como intermediarias de las grandes acuerdos de fusiones y adquisiciones en los que han participado grandes empresas internacionales. Además, como consultores fiscales de las empresas, han proporcionado consejos valiosos para evadir impuestos, diseñando la ingeniería jurídica financiera para reducir costos y desplazar precios de la manera más conveniente, limitando así la capacidad de los gobiernos nacionales para hacerse con una parte de la riqueza de los “grandes negocios”. Se han implicado en la financiación de empresas, operando casi como bancos y desempeñando un papel clave en la estructura financiera mundial66. Estas empresas consultoras desempeñan el papel de verdaderas “intelectuales orgánicas” o “capitalistas colectivas”, ya que, al asesorar a los gobiernos y a las empresas, destilan una cohesión y coherencia ideológica uniformizando los criterios de maximización de las ganancias de las grandes empresas y de lo que se consideran políticas económicas y fiscales que produzcan un “clima favorable para los negocios”. Al mismo tiempo, generan una simbiosis entre las capas gerenciales, los tecnócratas y burócratas de las empresas que solicitan sus servicios y los profesionales (abogados, economistas 65 66
Strange, Susan. La retirada del estado. Op.cit. pg. 195. Strange, Susan. Ibid. pg. 195.
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y contadores), que trabajan en las mismas, que son grupo de referencia y modelo de “éxito” en sus respectivas profesiones. Las calificaciones de “riesgo-país” 67, que se producen constantemente, hora tras hora, las 24 horas del día, son un mecanismo disciplinario para los gobiernos que pretendan desarrollar políticas que lesionen el “clima hospitalario” para los inversionistas 68. En ese sentido, las consultoras actúan como un panóptico global del neoliberalismo disciplinario. Por otra parte, en relación a las organizaciones internacionales, puede decirse que, en la medida en que aceptan la agenda o el marco de pensamiento que conviene a los intereses del capital, ejercen influencia e incluso presión y coacción económica a través de la gestión del crédito internacional sobre los estados nacionales, en sentido congruente a la ejercida por el capital mismo a través de su poder directo y de su poder estructural. En ese sentido, las organizaciones internacionales, en general, pero especialmente las instituciones económico-financieras, pueden ser vistas como “aparatos de hegemonía” 69, ya que funcionan de acuerdo a las siguientes pautas: 1.
Dan forma a las normas y reglas que facilitan la expansión de los
órdenes mundiales hegemónicos. 2.
Son, ellas mismas, el producto de un orden mundial hegemónico,
aunque sus funciones pueden cambiar con las transformaciones en las relaciones de poder del orden mundial. 3.
Legitiman ideológicamente las normas del orden mundial.
4.
Cooptan las elites de los estados periféricos.
67
Sobre los criterios que se utilizan para diseñar los indicadores de riesgo, ver Fidel, Gabriel. Riesgo país, estabilidad política y estabilidad económica en Argentina 1982-1995. En: Postdata. Revista de reflexión y análisis político, n°.1 Diciembre 1995. pg. 3 y ss. Faria, José Eduardo. El derecho en la economía globalizada. Trotta. 2001. Pgs. 85/88 68 En Argentina, por ejemplo, el principal grupo multimedia, propietario del periódico Clarín, Canal 13 de TV, radios y canales de cable, servicios de internet, desde hace algún tiempo y especialmente desde la crisis que afecta a ese país, informa en sus periódicos y noticieros de TV y radio constantemente de las variaciones del “riesgo país” que refleja las expectativas de las empresas, los inversionistas y los llamados mercados de capitales. Es notable como este tipo de indicadores que señalan el grado de aquiescencia de los gobiernos al consenso hegemónico, han ganado difusión y publicidad durante los 90 en detrimento de otros que eran más frecuentemente difundidos en los 70 y 80 y que tenían que ver con una economía de producción y de trabajo, como la relación entre el costo promedio de la canasta familiar tipo y el salario mínimo y la capacidad industrial instalada ociosa, que ahora han desaparecido de los noticieros ordinarios y solo pueden consultarse en publicaciones especializadas. Todo esto, en un país donde todos los días grupos familiares pertenecientes a la otrora distinguida clase media, pasan a integrar la creciente categoría de los “nuevos pobres”. 69 Cfr. Cox, Robert. Gramsci, hegemony and international relations. Op.cit. pg. 62.
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5.
Absorben, resignifican y funcionalizan ideas contrahegemónicas.
6.
Pueden ser, en algunos casos, un espacio de lucha.
Las instituciones y reglas internacionales son impulsadas por el estado que establece la hegemonía y en última instancia deben tener el apoyo de ese estado. También los estados asociados al hegemónico son consultados, y su consenso debe ser recabado para que el funcionamiento de esas instituciones sea posible. Al mismo tiempo, algunos estados periféricos pueden brindar su apoyo activo o pasivo. Además de la participación formal (que puede seguir criterios de poder político y militar, como en el Consejo de Seguridad de la ONU, de igualdad, como en la Asamblea General, donde cada estado tiene un voto, o de poder económico, como en el FMI y el BM, donde los países pesan en las decisiones en función del capital aportado), existe siempre una estructura informal de influencia reflejando los diferentes niveles del poder político y económico real que subyacen bajo los procesos formales. Las instituciones internacionales juegan un rol ideológico también. Ayudan a definir las principales líneas de política de los estados y a legitimar ciertas instituciones y prácticas en su terreno doméstico. Reflejan orientaciones favorables a las fuerzas económicas y sociales dominantes, la OCDE, por ejemplo, al recomendar en sus resoluciones e investigaciones en los 80 las políticas monetaristas para combatir la inflación, ayudó a reforzar la hegemonía ideológica del neoliberalismo en los estados del centro al mismo tiempo que en los de la periferia, cuyas elites las toman como ineludible referencia 70. Solamente cuando la representación en las instituciones internacionales está firmemente basada en un desafío político y social naciente a la hegemonía, puede tener consecuencias transformadoras 71. Por otra parte, las ideas originariamente
surgidas
de
movimientos,
intelectuales
y
ONG
contrahegemónicas, pueden ser absorbidas y resignificadas para legitimar las políticas fomentadas por las instituciones internacionales en sintonía con el consenso hegemónico, en ese sentido por ejemplo, los “derechos humanos”, el “desarrollo sustentable”,y la “participación local”, aparecen como fundamentos de 70 71
Cox, Robert. Gramsci, hegemony and international relations. Ibid. pg. 63. Cox, Robert. Ibid. pg. 63.
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las acciones del BM 72. d) En tanto un bloque histórico trasciende una mera descripción sociológica de una alianza de clases y fracciones de clases, para involucrar una dirección intelectual y moral como función hegemónica, una capacidad para movilizar el consenso, pero también las diferentes formas de coacción, todo esto en nombre de la universalidad de valores y normas, supone también una articulación polarizada de distintos grupos sociales y sus capacidades funcionales. Supone, en síntesis, una constitución material del bloque histórico. Constitución material, en el espacio absoluto de la sociedad global no debe entenderse en sentido jurídico-formal ya que en el actual período de transición paradigmática no existe una jerarquía clara de fuentes y sujetos de derecho, ni unidad y sistematicidad de un orden jurídico global, (tampoco lo hubo nunca). En relación a lo que se entiende como órdenes jurídicos formales en el terreno de los estados, puede decirse que el constitucionalismo, paralelo a la formalización, sistematización y racionalización del derecho, es una tendencia reciente, que data de los últimos doscientos años, aproximadamente. En cambio, el estudio de las configuraciones constitucionales materiales, se remonta a los clásicos greco-romanos, como Heródoto, Platón, Aristóteles, Polibio, Cicerón, y atraviesa toda la historia, teniendo altas cumbres de desarrollo en Maquiavelo y Spinoza, entre otros. En esta tradición, si despejamos de la ecuación los contenidos míticos, en realidad, la constitución tiene que ver con las formas de producción y reproducción material de la vida, con la estabilidad y cambio de las relaciones económicas y políticas entre clases sociales, y con los arreglos, o articulaciones que se pueden establecer entre esas clases. Es una tradición que, pese a hacerse secundaria frente al predominio del constitucionalismo formal, ha tenido voces tan brillantes como las del joven Carlos Marx, que en “La Cuestión Judía”, denuncia la contradicción inherente a la constitución burguesa, Ferdinand Lasalle, para quien la constitución consiste en los factores reales de poder subyacentes el orden jurídico formal73, en el siglo XX, 72
Ver O´Brien, Robert. Goetz, Anne Marie, Aart Scholte, Jan. Williams, Marc. Contesting global governance. Multilateral economic institutions and global social movements. Cambridge University Press. 2000. Stiles, Kendall. Global institutions and local empowerment. Competing theoretical perspectives. Mc Millan-St. Martin Press. 2000. George, Susan y Sabelli, Fabrizio. La religión del crédito. El Banco Mundial y su imperio secular. Intermón. 1996. 73 Lassalle, Ferdinand. ¿Qué es una constitución?. Ediciones Siglo Veinte. 1987.
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201
a Carl Schmitt, para quien la constitución, en sentido absoluto, es la concreta y existencial manera de ser resultante de la unidad política existente 74, y a Hermann Heller, para quien la constitución...es una forma abierta a través de la cual pasa la vida, vida en forma y forma nacida de la vida 75, entre otros. Contemporáneamente, algunos trabajos de Antonio Negri, pueden inscribirse, creemos, en esta tradición, a la que, además de actualizar su materialismo y realismo, agrega un contenido crítico, al trazar una genealogía de esa anomalía salvaje e inconmensurable que agrieta todas las certezas de la historia moderna: el poder constituyente de la multitud, y de los mecanismos políticos (soberanía, constitución formal), que han tratado de encauzarlo, sujetarlo, de limitar su productividad ontológica 76. Para nosotros, la idea de constitución material remite a una distribución fáctica de poder entre grupos social y funcionalmente diferenciados articulados en el bloque histórico, algunos de los cuales disponen de capacidad de dirección intelectual y moral, jerarquización y asignación de valores, es decir, preferencias sociales generalizadas, y capacidad de asegurar, en última instancia, el orden a través de la coacción. Esta capacidad no debe entenderse solamente como la que tienen los operadores jurídicos formales, sino que, abarcando este aspecto, va mucho más allá, es una capacidad material, ontológica, de construcción hegemónica. La constitución material del bloque histórico global, es una totalidad pero abierta e inconclusa, posee zonas grises, lagunas, pluralidad de formas de derecho, pero todas estas características ya no forman una arena exterior, no hay exterior absoluto, sino zonas que se mantienen articuladas al bloque a través de 74
Schmitt, Carl. Teoría de la constitución. Alianza. 1992. pgs.32/34. El trabajo de Heller, es el primer intento sistemático, desde nuestro punto de vista, para superar las visiones que, simplemente yuxtaponían constitución material y constitución formal (Jellinek), que subordinaban la constitución formal a la constitución material (Schmitt), o que reducían la constitución material a la constitución formal (Kelsen). Heller planteaba de forma relacional e histórica la dinámica entre constitución material y constitución formal. Esta concepción se aleja tanto de la kelseniana que “priva a las normas de su sentido ser-deber ser”, que obliga al jurista austríaco a “poner de relieve la importancia que tiene el momento de la observancia ordinaria para la positividad, o sea, en realidad para la validez y la existencia de las normas jurídicas”,como también de la de Schmitt, quien “incurre en el error opuesto...subestima completamente la normatividad exaltando, en oposición a ella, la existencialidad, de modo que viene a concebir la Constitución no como norma, sino sólo como “decisión”.Ver Heller, Hermann. Teoría del estado. Fondo de Cultura Económica. 1987. pgs. 268 y 271, respectivamente. 76 Negri, Antonio. El poder constituyente. Ensayo sobre las alternativas de la modernidad. Libertarias-prodhufi. 1994. 75
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una cierta economía de intercambios materiales y simbólicos, donde los límites, siempre difusos, se van desplazando constantemente. En ese sentido, cabe aquí la metáfora del “campo” propuesta por Capella, donde no se visualizan claramente agentes causales claros, sino tramas de relaciones. Esta constitución material no surge de un acto constituyente explícito, sino que se va produciendo como resultado de una trama de relaciones hegemónicas, que actúan en distintas áreas con diferentes cauces, ritmos y racionalidades. Esas relaciones distribuyen eficacias diferenciales entre las pluralidades normativas que se articulan en la constitución material y también al interior de las mismas. En este entendimiento, puede trasponerse a la constitución material del bloque histórico, lo que Clemerson Merlín Cleve dice sobre las constituciones nacionales, La constitución, actualmente, es el gran espacio, el gran “locus” donde se opera la lucha jurídico-política. El proceso constituyente es un proceso que se desenvuelve sin interrupción... 77 Al estar determinada su dinámica por el campo global de relaciones hegemónicas y al ser compleja y pluridimensional, resulta una estructura de historicidad abierta a los antagonismos de las fuerzas sociales que actualizan y proyectan ciertas posibilidades de su materialidad, al mismo tiempo que silencian, omiten o rechazan otras. La configuración de la constitución material global, ha sido descripta por Hardt y Negri, a través de la figura metafórica de una pirámide, por medio de la cual buscan explicar la articulación funcional de los actores estatales y no estatales de la globalización y el desplazamiento de escala de las funciones constitucionales materiales desde el estado hacia lo que nosotros llamamos el bloque histórico de la globalización hegemónica. De esta forma proponen ir más allá de la figura simple de “gobernancia sin gobierno” que nos plantean algunos estudiosos de la globalización 78. La descripción de la constitución material del bloque histórico global emergente que proponen, es una forma de resolver el interrogante sobre la trama jerárquica que articula los espacios de la globalización 77
Merlín Cleve, Clemerson. A teoria constitucional e o direito alternativo (para uma dogmatica constitucional emancipatoria). Conferencia pronunciada en el Seminario sobre uso alternativo del derecho”. Instituto dos Advogados Brasileiros. Rio de Janeiro. 7/9 de junio de 1993. mimeo. Pg. 40. Traducción propia. 78 Hardt, Michael y Negri, Antonio. Empire. Op.cit. pgs. 308/309.
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y le da entidad política material y real a la pretensión de vivir en una “aldea global”. A un golpe de vista, el nuevo marco constitucional mundial, nos dicen, aparece como un conjunto caótico y desordenado de controles y organizaciones representativas, distribuidas en un amplio espectro de cuerpos, divididos por funciones y contenidos, y atravesados por una variedad de actividades productivas. Pero por debajo de esta superficie, una mirada atenta descubre una cierta trama formada, más que por elementos ordenados, por matrices que delimitan horizontes relativamente coherentes en el desorden de la vida política y jurídica global 79. Cuando analizamos las configuraciones del poder global en sus varios cuerpos y organizaciones, se hace inteligible una pirámide compuesta de tres niveles. En el extremo superior del vértice, los Estados Unidos, que detentan la hegemonía sobre el uso global de la fuerza. Un superpoder que puede actuar solo pero prefiere actuar en colaboración con otros bajo el paraguas de la ONU. En un segundo plano inmediato, todavía en el primer nivel de la pirámide, un grupo de estados-nación controlan los instrumentos monetarios globales y tienen la habilidad de regular los intercambios internacionales. Estas naciones se articulan en una serie de organismos formales e informales, el G7, los Clubes de Londres y París, Davos, etc 80. Debajo de este primer nivel de dominio, a medida que la pirámide se ensancha, las funciones de comando aparecen ampliamente distribuidas, enfatizando en este caso, más que la unificación, la articulación. Este nivel está estructurado primariamente por las redes que las corporaciones capitalistas transnacionales han extendido a través del mercado mundial, redes que configuran espacios de flujos (de capital, de tecnología, de población, etc.). Estas organizaciones productivas que forman el mercado mundial se extienden transversalmente bajo el paraguas y la garantía del poder articulador que constituye el vértice de la pirámide. A través de la distribución global de capitales, tecnologías, bienes y poblaciones, las corporaciones construyen bastas redes de comunicación y proveen satisfacción de las necesidades. El mercado mundial 79 80
Hardt, Michael y Negri, Antonio. Ibid. pg.309. Hardt, Michael y Negri, Antonio. Ibid. pgs. 309/310.
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tanto homogeneiza como diferencia los territorios, rehaciendo el mapa global. En este segundo plano, reside el conjunto general de estados nación, que consisten en organizaciones territoriales, localizadas, y que desempeñan varias funciones: de mediación política con respecto a los poderes hegemónicos globales, de negociación con respecto a las corporaciones multinacionales, y de redistribución de recursos de acuerdo a necesidades biopolíticas al interior de sus propios territorios. Constituyen filtros de los flujos de circulación global y reguladores de la articulación del dominio global; capturan y distribuyen flujos de riqueza hacia y de el poder global, y disciplinan, en la medida de sus posibilidades, a sus propias poblaciones81. El tercer y más ancho escalón de la pirámide, consiste en grupos y organizaciones que representan los intereses populares en la constitución material global 82. La multitud no está articulada en el bloque hegemónico. No puede estarlo directamente, sino a través de una serie de mediaciones y mecanismos de representación que muestran el carácter de revolución pasiva del proyecto hegemónico de la globalización. Estos mecanismos de representación se producen en la Asamblea General de la ONU, a través de los estados. La mayoría numérica pero la minoría en términos de poder real, funciona como un límite simbólico e instancia de legitimación del bloque histórico. El sistema ONU con sus agencias especializadas y sus cumbres, es también la zona gris entre la interestatalidad y la sociedad civil global, donde proliferan las ONG de todo tipo, algunas cooptadas, otras buscando cambiar el sistema “desde dentro”, otras críticas, se manifiestan para impugnarlo. Las primeras, canalizan los deseos y necesidades de los grupos subalternos en formas que puedan ser representadas al interior del funcionamiento de las estructuras de poder global, a veces, logrando instalar acotados espacios de lucha y debate al interior de las organizaciones internacionales más permeables. En la sociedad civil global, también aparecen las iglesias de vocación ecuménica y sus organizaciones y las comunidades locales cuando dan a sus reivindicaciones alcance global, o cuando encuadran sus necesidades en el
81 82
Hardt, Michael y Negri, Antonio. Ibid. pg. 310. Hardt, Michael y Negri, Antonio. Ibid. pg. 311.
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205
escenario más amplio de la globalización jerárquica 83. Merced a la actuación de todos estos grupos y organizaciones, la agenda de la globalización se expande y cambia su sentido, apareciendo explícitamente los problemas que tienen que ver con la producción y reproducción de la vida, los bienes comunes, los derechos, la preservación del ambiente natural y de los espacios culturales, la autonomía, problemas que se vinculan a un sujeto genérico, metacolectivo de identificación: la humanidad. La humanidad se concreta en cada espacio, en cada situación, en distintas necesidades y grupos sociales y puede servir tanto a la legitimación de la hegemonía, como a los grupos sociales subalternos cuyas necesidades se radicalizan, de acuerdo a quien la invoque. Pero en la base de la pirámide la hegemonía ya no es monolítica y una pluralidad de voces humanas ascendentes pugnan por hacerse oír, por achicar la distancia con el vértice, por achatar la pirámide del poder global, desestabilizando, en ocasiones, la articulación del bloque histórico. E incluso, construyendo y demandando formas de relaciones sociales que transforman profundamente la constitución material de la globalización.
3. Conclusiones Provisionales En síntesis, y a título de conclusiones provisionales, podemos decir que la trama jerárquica de la globalización entraña un proceso complejo de hegemonía, que trasciende (al mismo tiempo que abarca), las relaciones interestatales. Primero, la hegemonía global articula lo político, lo económico y lo cultural en una espacialidad absoluta, no limitada por arenas territoriales, y frente a la cual ya no puede haber exterioridad total. Segundo, la globalización hegemónica, supone un régimen de producción y reproducción de la vida. Tercero, la globalización hegemónica no es un proceso sin sujeto: está guiada por un bloque histórico, cuyo centro articulador ejerce la función de dirección intelectual y moral, y de coacción, con un sentido de finalidad histórica y de universalidad. Cuarto, la ideología hegemónica de la globalización, (el neoliberalismo disciplinario), es
83
Hardt, Michael y Negri, Antonio. Ibid. pgs. 312/313.
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tanto consensual como coercitiva, ejerce una pluralidad de formas de dominación ideológica. Quinto, más que en presencia de una “gobernancia” sin gobierno, estamos ante una constitución material de la globalización hegemónica. Constatar la materialidad y realidad de la trama jerárquica de la globalización, exige una metodología relacional a la hora de considerar, por ejemplo, la posibilidad de alcanzar los objetivos cosmopolitas proclamados en la Carta de San Francisco de 1945, en la Declaración Universal de Derechos Humanos de 1948 y demás tratados internacionales y regionales de Derechos Humanos. La globalización supone la construcción de distintas formas de institucionalidad y juridicidad con objetivos contradictorios, velocidades y eficacias variables. Pero cada vez es mas profunda la brecha entre el objetivo de una globalización de los derechos y la democracia frente al imperativo sistémico de la acumulación de capital a escala mundial y las recetas neoliberales en las que se fundamenta. El escenario esta servido entonces para las cada vez más numerosas voces que desde redes de ONG y movimientos sociales, y desde los ámbitos más autónomos del sistema ONU, vuelven a poner en el centro de la escena la cuestión de una nueva forma de relación entre el Norte y el Sur, la necesidad de solución estructural al problema de la deuda externa, la regulación de las operaciones especulativas del capital financiero y el desarrollo sustentable como precondiciones para el avance de unos derechos humanos realmente universales, indivisible e interdependientes. Pero esas posibilidades no deben enunciarse en abstracto, sino que su afirmación es una tarea política que tiene como contexto el escenario adverso de los poderosos intereses atrincherados detrás de la trama jerárquica de la globalización.
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II. DIREITOS HUMANOS E INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos *
David Sánchez Rubio
Sumário: 1. Sobre la Defensa Internacional de los Derechos Humanos en Situaciones de Violaciones Graves y Masivas. 2. Ampliando y Abriendo Horizontes. 3. Dudas, Inquietudes, Premisas e Hipótesis de Trabajo en Torno a la “Intervención Humanitaria” a partir de la Articulación de Tramas Sociales. 4. ¿Qué se Entiende por “Intervención Humanitaria” y por “Intervención de Humanidad”? 5. Los Conceptos de “Intervención Humanitaria” y de “Intervención de Humanidad”. 5.1. El Concepto de “Intervención”. 5.2. Sobre el Concepto de “Asistencia Humanitaria” y el Problema de la Protección de los Derechos Humanos. 5.3. Activismo en Derechos Humanos y Asistencia Humanitaria: Un Ejemplo.
1. Sobre la Defensa Internacional de los En Situaciones De Violaciones Graves Y Masivas
Derechos
Humanos
La conformación de un mundo global ha provocado la conciencia de un destino común para toda la humanidad. La globalización y sus diversos procesos han posibilitado espacios de interconexión entre las personas pertenecientes a diferentes puntos de la Tierra. La convivencia entre los seres humanos ha alcanzado dimensiones planetarias, articulándose múltiples y heterogéneos ámbitos tanto de jerarquías y subordinaciones, como de horizontalidades y solidaridades. Vivimos en una sociedad global, distinta del pasado por su incrementada complejidad e integración. Hemos llegado a la conciencia de que el mundo es un lugar único en el que países, civilizaciones, pueblos y culturas en apariencia
separadas,
simultáneamente,
son
inseparables.
Asimismo,
desesperanza y esperanza, pesimismo y optimismo se unen y se funden para mostrar la contradictoriedad que tan perturbada y tan desorientada mantiene a la comunidad internacional.
*
Resumen: Este trabajo forma parte de um estudio más amplio que saldrá publicado en formato de libro, y que se centra en el concepto de “intervención de humanidad”, también comúnmente llamada “intervención humanitaria”. En ambos estudios pretendemos abordar esta figura política, ética y jurídica, intentando realizar una serie tanto de aclaraciones como de cuestionamientos terminológicos. Asimismo, discutismos sobre algunos de los más comunes y generalizados planteamientos que sobre los dos conceptos se estabelecen. El principal propósito es remarcar el rechazo del uso de la fuerza armada como instrumento de protección de los derechos humanos, y principalmente en su versión de violencia más cruda: la guerra.
Desesperanza no sólo porque el sistema económico dominante excluye y rechaza en su lógica de funcionamiento a millones de personas, sino también porque un gran número de conflictos y catástrofes de muy distinta naturaleza, ha incrementado el clima de perturbación de la comunidad internacional, al multiplicar las crisis humanitarias, con sus secuelas dramáticas de tragedia humanas y de víctimas. Gran parte de dichas situaciones provocan directamente violaciones graves y sistemáticas de los derechos humanos, que atentan contra obligaciones erga omnes del Derecho internacional. Los medios de comunicación se han hecho eco de tales acontecimientos, influyendo en la opinión pública, principalmente de los países desarrollados y, por ello, propiciando la reacciones políticas y jurídicas, con el establecimiento de mecanismos institucionales para la exigibilidad de una responsabilidad internacional penal individual, y con la actividad
tanto
humanitarismo”.
de
los
activistas
de
derechos
humanos
y
el
“nuevo
1
La esperanza viene marcada, entre otras cosas, por estas posibilidades de respuesta que parecen brindar los sentimientos solidarios de la gente en nuestro planeta, aunque no se hagan por el momento con la contundencia debida. Pero, sobre todo, esperanza porque existen unas instancias universalizadas de defensa y de protección de los seres humanos frente a determinadas agresiones a su dignidad. La lucha por los derechos humanos y su garantía, han abierto espacios y opciones hacia un mundo menos injusto, como mecanismo de apelación y enfrentamiento contra la adversidad consciente e/o inconscientemente provocada desde las múltiples expresiones del poder. Dentro de esos contextos de conflictos y catástrofes, y fruto del proceso de humanización del Derecho internacional con la internacionalización de los derechos humanos y la centralidad de la persona, se han propuesto nuevas formulaciones normativas tanto desde el punto de vista doctrinal, como institucional. Se habla y, hasta se exige, que la comunidad internacional tiene un derecho a reaccionar frente a situaciones que atentan contra la dignidad del hombre, y a interpelar violaciones graves y masivas de los derechos 1
Ver María del Carmen Márquez Carrasco, “La nueva dimensión humanitaria del mantenimiento de la paz: la práctica reciente del Consejo de Seguridad”, en Joaquín Alcaide, María del Carmen Márquez Carrasco y Juan Antonio Carrillo Salcedo, La asistencia humanitaria en el Derecho internacional contemporáneo, Universidad de Sevilla, Sevilla, 1997, p. 81-82.
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fundamentales que se producen al interior de un Estado y sobre sus ciudadanos. En los últimos tiempos, muchas de las reacciones internacionales a las situaciones de conflicto, incluyendo aquellas a las que se suma el uso de la fuerza armada, tienden a ser etiquetadas como “humanitarias”. En múltiples foros internacionales, medios de comunicación y reuniones entre gobernantes de Estados, se utilizan las expresiones “intervención” o “injerencia”, añadiéndoles el adjetivo
de
“humanitaria”.
Incluso
términos
aún
más
sorprendentes
y
contradictorios como “humanitarismo militar”, “guerra humanitaria” y “bombardeo humanitario”. Pocas personas se van a negar ante afirmaciones tales como que existen valores y principios universales que fundamentan y justifican una intervención directa en el territorio de un país soberano, cuando éste aplica decisiones contrarias a normas y convenios de la comunidad internacional; 2 o ante la vigencia de un núcleo duro mínimo de derechos humanos fundamentales imprescindibles y universales, como son los derechos a la vida y a la integridad física y moral, la comunidad internacional debe reaccionar, incluso con la fuerza, en el momento en que son vulnerados de manera grave, masiva y sistemática. 3
El hecho es que lo que aparentemente se presenta como una respuesta lógica, clara y justificada de la comunidad internacional para detener trágicos y denigrantes acontecimientos ocasionados por la acción agresiva del ser humano, en virtud de la defensa de unos valores universales aceptados por todas las naciones, ofrece fuertes dosis de conflicto, y una gran polémica y un intenso debate doctrinal. Guerras como la del Golfo Pérsico a principios de los 90 y la de los Balcanes (Bosnia-Herzegovina y Kosovo), así como la actual crisis de Irak en el marco de las guerras justas y/o preventivas y la defensa de la seguridad internacional dentro de la lucha contra el terrorismo, han provocado reacciones favorables y desfavorables de todo tipo ante la forma de actuar de las Naciones Unidas y de las grandes potencias, por medio de la OTAN. Observando 2
Véase Emma Bonino, “Las distintas formas de intervención”, Revista de Occidente, n° 236-237, p. 25. 3 Ver, en este sentido, Eusebio Fernández, “Lealtad cosmopolita e intervenciones bélicas humanitarias”, Revista de Occidente, n° 236-237, p. 63. También aparece este trabajo modificado, en su libro Dignidad humana y ciudadanía cosmopolita, Dykinson, Madrid, 2001; La cita no es literal. Nosotros la hemos construido líbremente, en función de la posición defendida por el autor.
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detenidamente el problema, que no es nuevo, poco sorprende tanta disparidad de criterios. Tampoco que tenga tantos detractores como defensores. Unos y otros para fundamentar y justificar sus posiciones, abordan toda una serie de elementos de carácter jurídico y ético, que giran en torno a los siguientes bloques temáticos: 1) Pese a que son muchos los que no se preocupan por el uso de los términos, hay quienes subrayan la importancia que tiene la utilización correcta de las palabras, pues ello evita confusiones innecesarias e impide la ocultación de la disparidad de significados, que suele diluirse cuando se produce la mezcla de esferas diferentes o la intromisión de unas en otras. La polémica se centra entre quienes defienden la conveniencia de mantener separadas la idea de asistencia humanitaria por un lado, propia del Derecho internacional humanitario, y el uso de la fuerza armada de protección, que se vincula más con el Derecho internacional de los derechos humanos y de coexistencia pacífica. 2) Asimismo, la convivencia tensa y conflictiva entre los dos troncos básicos del ordenamiento internacional: a) el Derecho internacional de coexistencia pacífica, vinculado a la estabilidad y a la seguridad internacionales; y b) el Derecho internacional de los derechos humanos, que se plasma en la tensión existente entre cuatro de los principios constitucionales del Derecho internacional: el principio de no intervención, junto con el principio de prohibición del uso de la fuerza, con los que se protege el principio de la soberanía de los Estados; y el principio de protección y/o salvaguarda de los derechos humanos. La doctrina polemiza sobre cuál de ellos prevalece, y en función de cuál adquiera un rango superior, se establece la legalidad o la ilegalidad de la “intervención humanitaria”.
Dada
la
dificultad
y
la
indeterminación
de
las
normas
internacionales, las dudas permean los argumentos. Como ejemplo, tenemos las reflexiones hechas por Yves Sandoz, 4 para quien por una parte, este concepto, en un sentido amplio, autoriza la intervención armada de un Estado en el territorio de otro Estado para poner término a las violaciones graves y masivas de los derechos humanos, pero a pesar de ello, este tipo de actuación no tiene cabida en el sistema previsto por la ONU. Incluso en su sentido restringido, la intervención armada para salvaguardar a sus propios ciudadanos en otros 4
Ver Yves Sandoz, “Derecho o deber de injerencia, derecho de asistencia: ¿de qué hablamos?”, en http://www.wfn.org, (The Wordwide Faith News Archives).
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Estados, también es rechazada por la doctrina como lícito. Pero por otra, considera razonable que los Estados deban tener derecho a abrir los ojos. La interdependencia cada vez más marcada entre los Estados, el desarrollo de los derechos humanos y la emergencia del principio de solidaridad, subraya el autor, permiten señalar que hoy los Estados no gozan del “derecho a la indiferencia”. Además, en el seno de estas discusiones, se suele destacar la ausencia de una jurisdicción y una autoridad planetaria capaz de hacer legalmente efectiva la protección y la garantía de los derechos humanos fundamentales. Pese a las posibilidades que ofrece la organización de Naciones Unidas y, en concreto, el sistema de seguridad colectivo establecido a partir de la Carta, los avances son exiguos y las dudas de actuaciones unilaterales o multilaterales, pero al margen de las decisiones del Consejo de Seguridad, están justificadas. Para algunos, la intervención bajo determinados requisitos llenaría esa laguna, para otros, sólo y exclusivamente se debe de intervenir dentro del sistema de seguridad colectiva establecido conforme a la Carta de Naciones Unidas. 3) En tercer lugar, otro de los bloques temáticos se refieren a la legitimidad o ilegitimidad ética y moral del uso de la fuerza armada. En este sentido, C. Beitz y Ernesto Garzón Valdés, comentan que el auténtico problema ético de las acciones bélicas humanitarias no es el conflicto entre los principios de no intervención y el de protección de los derechos humanos, sino que sean operaciones armadas que, como tales, pueden causar muertes y víctimas tanto en la población del país sobre el que se realiza la injerencia, como en los soldados de los propios actores de la intervención. Resulta un contrasentido que para proteger los derechos humanos de un grupo se tengan que lesionar los del otro. 5 Aparte de las opiniones sobre la proporcionalidad o desproporcionalidad de los medios, y de las consecuencias y resultados negativos o positivos provocados por este tipo de actuación, la cuestión de la centralidad de lo humano y del mantenimiento de la vida y su posible sacrificialidad se nos hace crucial. Se reactualizan doctrinalmente algunas de las teorías justificativas de las “guerras justas” desde las cuales se suelen situar quienes apuestan por la intervención. Aquí también entra a escena la discusión sobre las “nuevas guerras” en las que 5
Véase Ernesto Garzón Valdés, “Guerra e diritti humani”, Región Practica, n° 13, 1999, p. 47.a
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se presuponen unas categorías exclusivistas de seres humanos. Hechos como los ataques aéreos ocurridos en Kósovo, demostraron que las vidas de los occidentales tienen preferencias sobre otras, y entre los propios occidentales, también las vidas de unos son más valoradas que las de otros. Para evitar las bajas de la OTAN, se pusieron vidas de civiles en peligro, incluida la de aquellos a quienes supuestamente la operación debía proteger. 6 4) Finalmente, otro ámbito temático de reflexión importante gira en torno a la existencia o inexistencia de un mínimo moral planetario, y sobre la universalidad o no de un catálogo amplio o reducido, abierto o cerrado, de derechos humanos. Desde que Norberto Bobbio proclamara que la Declaración Universal es la más grande prueba histórica que jamás se haya dado del consensus omnium gentium sobre un determinado sistema de valores, y que demuestra, por primera vez, que toda la humanidad lo comparte universalmente, 7 desde diversas y múltiples instancias han salido a la palestra voces discrepantes sobre el alcance resaltado por tal tipo de aseveración. Para muchos, principalmente para personas pertenecientes a culturas no occidentales, los derechos humanos representan valores eurocéntricos, que son fruto de procesos colonizadores y hegemónicos. No sólo se trata de posiciones relativistas y escépticas en el peor sentido de la palabra, sino también de planteamientos que proponen construir dialógica y participativamente otros caminos de universalidad, que sean expresivos de una auténtica interculturalidad.
2. Ampliando y Abriendo Horizontes Desde nuestro punto de vista, uno de los principales defectos de los que adolecen las reflexiones y el tratamiento de la “intervención o injerencia humanitaria” o “de humanidad”, reside en la reducción, la unidimensionalidad, el perfil sesgado y la estrechez de las perspectivas. Para explicar algo mejor esto vamos a utilizar una idea de Joaquín Herrera Flores retomada de Douglas R.
6
En este sentido, ver Mary Kaldor, Las nuevas guerras. Violencia organizada en la era global, Tusquets, Barcelona, 2001, p. 207. 7 Norberto Bobbio, “Presente y futuro de los derechos del hombre”, que, entre otras de sus obras, aparece en El problema de la guerra y las vías de la paz, Gedisa, Barcelona, 1982, p. 133.
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Hofstadter en su libro Gödel, Escher, Bach. Un Eterno y Grácil Bucle: 8 El iusfilósofo español, mientras profundiza sobre el problema de si es posible o no es posible establecer una Constitución europea, se refiere a la dimensión “lagunar” de toda ideología en tanto que oculta y niega, sin negarlo explícitamente, determinados contenidos que son básicos, porque definen y marcan
sus
objetivos
más
concretos.
Entendida
como
sistema
de
representaciones y de normas que nos guían a la hora de conocer y de actuar, la ideología es “lagunar” porque en su pretensión de generalizarse, oculta su particularidad bajo el manto de un universalismo homogenizador. Al final, acaba mostrándose como un discurso al margen de los espacios sociales y políticos, sin historia y sin tiempo; además, termina expulsando cualquier aspecto subjetivo. La ideología liberal, señala Joaquín Herrera, junto a estos mecanismos, llega a autonombrarse como el paradigma del “género humano” y escamotea el conflicto, disimula la dominación y oculta la presencia de lo particular, en tanto que particular, dándole la apariencia de universalidad. 9 Dentro de este marco, ante la pregunta de la necesidad o no de una Constitución europea, el autor señala los límites y las insuficiencias de aquellas respuestas que se limitan a moverse entre un “sí” o un “no”, y que resultan insatisfactorias. La razón se debe a que el entendimiento del contexto de la pregunta, que en este caso suele situarse en el marco del Estado nacional, es demasiado pequeño para la utilidad de la respuesta, y debe ser matizado y ampliado. No se trata de un interrogante mal planteado, sino de una pregunta que oculta intencionalmente determinados elementos considerados fundamentales. Se necesita ampliar el contexto para poder entender mejor el problema que se debate. Y aquí entra la idea de Hofstadter que queremos proyectar sobre la “intervención de humanidad”. En su esfuerzo por mostrar la incompletud de los sistemas formales, este autor toma como ejemplo la dialéctica entre lo que en el arte se llama la relación entre figura y fondo. La primera muestra la significación explícita del fenómeno a estudiar o a contemplar (en nuestro caso, el fenómeno de la “intervención de humanidad” y de la “intervención humanitaria”). El fondo, en cambio, aparece como la significación 8
Tusquets, Barcelona, 1987; y Joaquín Herrera Flores, “Las lagunas de la ideología liberal”, en Joaquín Herrera Flores (ed.), El vuelo de Anteo. Derechos humanos y crítica de la razón liberal, Desclée de Brouwer, Bilbao, 2000, p. 151-152. 9 Ibid., p. 132-133.
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implícita del mismo, es decir, el marco, el contexto sin el cual la figura aparece carente de sentido. 10 Pone un ejemplo muy ilustrativo: tenemos la creencia ingenua y falsa de que el ruido es un efecto colateral, aunque necesario, de cualquier colisión entre dos objetos. No nos damos cuenta de que si chocan en el vacío, no se producirá ningún sonido. Al final atribuimos el ruido exclusivamente a la colisión, ignorando la gran importancia que tiene el medio, que hace de vehículo entre los objetos y el oído. En el caso que nos concierne, se suele incurrir en la costumbre de abordar tanto la “intervención de humanidad” como la “intervención humanitaria”, utilizando una perspectiva bastante reducida. Por lo general, se ubican las dos figuras desde un doble ámbito: a) uno referido al conflicto tradicional entre la guerra y la paz entre los Estados y, en concreto, con relación a las tradicionalmente llamadas “guerras justas”; b) el otro ámbito, se coloca dentro de la bifurcación del ordenamiento internacional que se plasma, a su vez, en sus dos ramas básicas: el Derecho internacional, de origen westfaliano, de coexistencia pacífica bajo el principio de soberanía, vinculado a la “estabilidad internacional” y a la “seguridad internacional”; y el Derecho internacional de los derechos humanos, dentro del cual hay que situar el Derecho internacional humanitario, pese a que sea considerado por muchos como un sistema normativo distinto. Estas dos ramas del ordenamiento internacional también se encuentran en una situación de tensión permanente. Pues bien, sobre este doble plano de guerra/paz y principio de soberanía/principio de salvaguardia de la dignidad humana, se delimitan los análisis tanto de la “intervención de humanidad” como de la “intervención humanitaria”, dándose prioridad a uno o a otro, en función de que se acentúe el carácter realista o idealista de los fenómenos interpretados. Asimismo, desde estas premisas ya se condiciona y disminuye el marco de explicación, al asociarse ambos conceptos con un tipo de intervención exclusivamente militar, en donde “quirúrgicamente” se utiliza un contingente bélico como medio para el uso de la fuerza con el propósito, bien de proteger a las víctimas de violaciones graves y masivas de derechos humanos, bien de hacer llegar la asistencia humanitaria internacional a quienes se encuentran en peligro de supervivencia. La 10
Ibid., p. 151.
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cultura
militarista
que
aspira
a
una
acción
directa
de
reacción,
se
sobredimensiona por encima de una cultura civil más atenta a las actividades de prevención y a las consecuencias de las medidas reactivas. No es que estos planteamientos sean equivocados y erróneos, pues tocan elementos imprescindibles para la comprensión de ambas realidades. El problema es que los estudios realizados sobre la “figura”, pensamos, suelen ignorar elementos del “fondo” que consideramos esenciales para su mayor y más profundo entendimiento. ¿En qué sentido? Por una parte, la “figura” sobre la “intervención humanitaria” y la “intervención de humanidad” se reduce a un plano dominado por el paradigma de los Estados nacionales, que son los sujetos por antonomasia del Derecho internacional tradicional. Los conflictos interestatales y las luchas por el poder internacional son los principales objetivos colocados en los puntos de mira de las investigaciones de corte político y autocalificado de realistas. La posible aparición de otros actores se supedita al molde del Estado nacional. Por otra parte, dada la peculiaridad del Derecho internacional, en el cual no existe ni un orden institucional más o menos centralizado con autoridad para ejercer legítimamente la coacción y la fuerza, ni un sistema de protección y garantía de los derechos humanos, las investigaciones jurídicas se centran en remarcar y subrayar sus deficiencias, y buscar salidas posibles con la proyección a nivel internacional, de la estructura jurídico-institucional interna que poseen los Estados constitucionales más avanzados. Siendo primordial la búsqueda de soluciones a partir de la normativa existente, al final todo se queda en una reducida interpretación de los artículos y disposiciones ofrecidas por los textos positivos internacionales (principalmente el artículo 2 y el capítulo VII de la Carta de San Francisco y las distintas resoluciones del Consejo de Seguridad y la Asamblea General de la ONU). Asimismo, la existencia de un núcleo duro y mínimo de valores universales, considerados reglas imperativas de ius cogens y obligaciones erga omnes, suele ser una de las principales fuentes de discusión. Dentro de ese debate, el concepto de “derechos humanos” desde el que se parte, por lo general es excesivamente formal y, al final, se utiliza como instrumento puntual de ingeniería institucional, perdiéndose el referente de los sujetos y, sobre todo, de los sujetos víctimas. Los derechos humanos quedan desgajados de los
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procesos de lucha que día a día desarrollan sus sujetos protagonistas, y se eterniza la gran separación que existe entre la dimensión normativa y la dimensión garantista y protectora del Derecho internacional. El inconveniente principal con el que también nos encontramos, radica en el aislamiento, la separación y la fragmentación de todos estos enfoques políticos y jurídicos. Síntomas éstos que se dan no sólo al interior de los estudios, sino también en relación con la apertura o cierre que adoptan con respecto a otras disciplinas y a otras dimensiones de lo real, a pesar de que, nominalmente o con una simple técnica de yuxtaposición, queden mencionadas. Por esta razón, pensamos que el “fondo” es mucho más amplio. Desde una metodología relacional, compleja y respectiva dirigida a interpretar la realidad, fenómenos como la “intervención de humanidad” y la “intervención humanitaria” implican elementos éticos, económicos, políticos, culturales, además de jurídicos, que forman parte de la “figura” y establecen un marco o “espacio en negativo” de fondo, más rico. En este sentido, el contexto histórico-concreto en el que nos encontramos está conformado por instancias y factores que trascienden el marco interestatal. Nos referimos a los tan mencionados, pero poco integrados en los estudios jurídicos, procesos de globalización. Procesos que en su lógica de desarrollo están poniendo en crisis tanto a los Estados, como a los ordenamientos jurídicos estatales sobre cuyos moldes se intentan regular los conflictos internacionales. La globalización es todo un reto para el Derecho nacional e internacional y para las concepciones tradicionales sobre la guerra y la paz. Más todavía cuando incrementa y conforma una estructura jerarquizada de la realidad. Si resulta que el orden internacional funciona sobre un sistema económico, político y cultural estructuralmente desigual y con tendencias claras de exclusión social, endémicas y normalizadas, en las cuales no se valora la vida de casi dos tercios de la humanidad, difícilmente se entiende cómo se puede legitimar sin discusión, actividades de intervención que, supuestamente, intentan remediar una situación anormal de violación grave y masiva de derechos humanos y recuperar la vida de las víctimas. Mucho menos cuando las medidas son adoptadas por quienes, de alguna manera, contribuyen al mantenimiento de un orden internacional injusto y excluyente, pese a los argumentos de legalidad que arguyen para justificar tales
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acciones. Las respuestas que desde el ámbito del Derecho pueden y deben hacerse para paliar estos efectos tan negativos, se hacen necesarias y urgentes. Un asunto con tantos problemas éticos y políticos implicados, y en el que las relaciones de poder colisionan con el respeto de los derechos humanos de las personas, tienen que ser regulados por normas y principios. Parafraseando a Victor Hugo, el derecho está por encima del poder. No se puede construir la paz y una sociedad internacional volcada en el reconocimiento de las personas humanas, si sus cimientos se asientan en incuestionados materiales de miseria y de opresión de los fuertes sobre los débiles. Dada la complejidad del fenómeno de la globalización, entre otras cosas, hay que tener en cuenta e incorporar los siguientes factores que tanto influyen en la “figura” como conforman el “fondo” de la intervención humanitaria: la nueva fase del capitalismo financiero no productivo con sus estrategias globalizadoras de expansión e imposición de un modelo de desarrollo supeditado y orientado al capital especulativo; la preponderancia de otros actores internacionales como las empresas y grandes corporaciones trasnacionales, organismos internacionales, entidades financieras y movimientos, colectivos o grupos pertenecientes a la sociedad civil; los impactos medioambientales y culturales provocados como consecuencia de los avances tecnológicos y científicos en materia de medios de comunicación, armamentos, salud... y los peligros ontológicos que conllevan; el incremento de la desigualdad internacional y las polarizaciones Norte/Sur y Occidente/No-Occidente; el predominio hegemónico de los Estados Unidos y el incremento de su nacionalismo militarista; la ruptura de las relaciones sociales más o menos solidarias subyugadas bajo una cultura sacrificial de la violencia; los desplazamientos interfronterizos de personas por razones de fuerza mayor; el problema del “terrorismo” y la seguridad internacional acentuados tras los acontecimientos del 11 de septiembre de 2001 11; el comercio de armas y el problema del narcotráfico, etc. 11
Sobre el incremento del nacionalismo militarista usamericano a partir de los sucesos del 11 de septiembre y el ascenso de un derecho militar y de una institucionalidad jurídica de cuartel cimentado en el unilateralismo y la razón de la fuerza de USA, ver el espléndido trabajo de Eduardo Saxe-Fernández, “Militarización de la crisis mundial: costos de la hegemonía, colapsos mundiales y pensamiento oficial”, Documentos de Estudio, n° 15, Universidad Nacional de Costa Rica, Heredia, 2002.
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3. Dudas, Inquietudes, Premisas e Hipótesis De Trabajo en Torno a la “Intervención Humanitaria” a partir de la Articulación de Tramas Sociales Las razones de subrayar la importancia que tiene la realización de una delimitación previa del “fondo”, además de hacerla con la “figura” de la intervención de humanidad nos permite situarla en un mundo concreto y específico de relaciones humanas. No se trata de realizar un ejercicio de laboratorio, aislando el objeto de investigación de toda impureza y de posibles distorsiones externas. Moviéndonos en la abstracción, la selección de elementos es inherente. Muchas cosas y muchos factores quedarán fuera, pero al menos, estamos sobre-avisados de determinadas circunstancias y, asimismo, abordamos el problema teniendo en cuenta una serie de hipótesis, intuiciones e inquietudes que en forma de premisas nos mueven a realizar estas reflexiones. Algunas de las premisas son las siguientes: En primer lugar, cuando se habla de los derechos humanos, nos encontramos constantemente con lo que Santo Tomás denomina habitus principiorum, es decir, la costumbre y el hábito que la cultura occidental tiene de proclamar principios para no tener que vivir según ellos. 12 La separación entre la dimensión normativa y formal de la dimensión efectiva y concreta de los derechos humanos se descubre principalmente a través de la manera de articularse y darle sentido a la acción humana. Por esta razón, es necesario en todo momento vincular los derechos humanos con las tramas sociales que los constituyen. En ellas se plasman y se reflejan los tipos inclusivos o exclusivos de reconocimientos, reciprocidades y conformaciones de los sujetos, dentro de las cuales se sitúan los ordenamientos jurídicos y las constituciones nacionales e internacionales,
que
pueden
establecer
límites
sustanciales
a
acciones
controladas por lógicas de rechazo y cosificación. Por muy bueno que sea cualquier principio, norma, criterio o institución, si está instalado en una lógica de dominación, inevitablemente operará como un dispositivo más de ésta. En este caso, el marco de los derechos humanos en tanto que internacionalizados, hay que establecerlo en el contexto de la globalización y en la relacionalidad en la que 12
Ver Boaventura de Sousa Santos, A crítica da razao indolente: contra o desperdício da experiencia, Cortez Editora, Sao Paulo, 200, p. 32. Existe traducción al castellano en la Editorial Desclée de Brouwer, Bilbao, 2003.
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se sitúa y se desarrolla toda la comunidad internacional. Jaime Oraa señala que la situación de los derechos humanos en el mundo contemporáneo experimenta una gran paradoja, en el sentido de que junto al avance innegable en el último lustro, tanto teórico-jurídico como institucional con el desarrollo de la legislación regional e internacional en materia de derechos humanos, asistimos simultáneamente a gravísimas violaciones de los mismos. Con sus palabras, no se trata solamente de que este siglo XX haya asistido posiblemente a las mayores masacres de la historia de la humanidad, sino que además existe una situación estructural de violación de estos derechos para las grandes mayorías. 13 El incremento de las tendencias destructivas de la vida social y natural tiene como resultado la creciente exclusión y pobreza de la población mundial, acompañada de la aniquilación del entorno natural de la vida humana. 14 ¿A qué se debe esto? ¿cuáles pueden ser las razones de esta gran contradicción, que refleja la separación que existe entre el reconocimiento institucional de los derechos humanos y su falta de aplicación y real reconocimiento para, al menos, dos tercios de la población del planeta que se muere de hambre? ¿Realmente existe una clara intención para que todo ser humano concreto y corporal, en tanto sujeto de necesidades, tenga reconocidas sus capacidades y potencialidades?, ¿o es que los discursos y las instituciones que los universalizan, únicamente hacen referencia a un sujeto abstracto, representativo de una específica manifestación de ejercer lo humano, de entre las múltiples posibilidades y manifestaciones que existen? La historia está llena de infinitud de contactos y conexiones, de vínculos e interrelaciones, de procesos y trayectos que son imposibles de reflejar en su totalidad desde un punto de vista científico. Eric Wolf afirma que todos estos elementos no se toman en consideración en la mayoría de las investigaciones históricas. Incluso suelen abundar los enfoques que narran la historia como si fuera un relato de éxito moral, sobre el desarrollo de la virtud en la que se cuenta cómo los buenos ganan a los malos y, por el hecho de esa victoria, son los
13
Jaime Oraa, “La gran paradoja de los derechos humanos en el mundo contemporáneo”, en Antonio Marzal (ed.), Los derechos humanos en el mundo, J.M. Bosch/ESADE, Barcelona, 200, p. 39 y 46. 14 Ver Germán Gutiérrez, Globalización, caos y sujeto en América Latina, DEI, San José, 2001, p. 220-221.
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verdaderamente virtuosos. 15 Asimismo, las narraciones quedan como una carrera en el tiempo en que cada corredor pasa la antorcha de la libertad al siguiente equipo. 16 Desde esa actitud se acaba por convertir los nombres con los que interpretamos la realidad, en cosas, con lo cual creamos falsos modelos de realidad. De esta forma, atribuimos a naciones, sociedades, culturas, la calidad de objetos internamente homogéneos y externamente diferenciados y limitados. El mundo termina por concebirse como una gran mesa de pool, en donde las entidades giran alrededor como bolas de billar, perdiéndose todo el sentido de la relacionalidad. 17 Algo parecido sucede con los estudios tanto diacrónicos como sincrónicos sobre los derechos humanos. Se suele olvidar un factor primordial sobre los cuales se construyen y articulan: las tramas sociales. 18 El carácter excesivamente formal de la mayoría de los discursos y de las concepciones modernas sobre los derechos humanos, adolecen de un excesivo carácter abstracto, tendencia que tiene su raíz y gestación en el orden burgués. De esta forma, se concibe al ser humano como “individuo”, y cada “individuo” pertenece a una idea de “humanidad” con independencia de las relaciones sociales que se establecen entre sí y de las lógicas que las animan. Ambas circunstancias se deshistorizan y se ignoran los concretos y complejos señalamientos sociales, que configuran las posiciones y las prácticas que protagonizan o sufren las diversas personas o grupos humanos. 19 Se puede hablar de “humanidad”, de “derechos humanos”, de “dignidad”, pero con independencia de las tramas sociohistóricas que dan una más completa medida de su operatividad y de su factibilidad. De ahí la importancia que tiene la atención a si se ponen o no se ponen los medios, y se facilitan o no se facilitan las condiciones para que los seres humanos puedan desplegarse como verdaderos sujetos. En función de cuáles sean las lógicas sobre las que se articulen las tramas
y
relaciones
sociales,
mayores
o
menores
serán
los
medios
proporcionados a los seres humanos para que el reconocimiento de sus derechos sea efectivo. Las lógicas bien pueden ser de dominación y marginación o de 15
Ver Eric R. Wolf, Europa y la gente sin historia, FCE, México, 1987, p. 16. Ibid., p. 17. 17 Ibid., p. 19. 18 Concepto e idea que hemos tomado de Helio Gallardo, Política y transformación social. Discusión sobre derechos humanos, Tierra Nueva, Quito, 2000. 19 Ibid., p. 132. 16
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imperio, bien de emancipación y de solidaridades. El mismo Helio Gallardo, refiriéndose al contexto internacional actual, afirma que la humanidad no aparece como un proyecto a realizar, en tanto que expresa la voluntad particular y generalizada de reproducir prácticas de imperio y discriminación, mediante formas que pueden incluir la adscripción a declaratorias sobre derechos humanos, e incluso a una estricta judicialización. El resultado es que se respaldan los derechos humanos con normas jurídicas que garantizan su vigencia jurídicoformal pero no su eficacia social. 20 En segundo lugar y en función de lo anterior, pero ya referido a la “figura” de la “intervención de humanidad”, resulta que si en condiciones normales predomina una situación general de no reconocimiento de los derechos humanos en donde, al menos, dos tercios de la humanidad no tienen elementos suficiente de subsistencia, parece un contrasentido tratar de argumentar, en abstracto, la justificación de la intervención en condiciones extremas, para salvar la vida de quienes son agredidos en sus derechos más fundamentales de forma grave y masiva. Da la sensación de que ante el drama de la exclusión, que es estructural, normalizado y también sistemático y masivo, pretendemos acercarnos a lo que se ha propuesto como una solución balsámica: la acción humanitaria sobrevenida y que se proporciona con el uso de la fuerza militar. Antes de entrar en las condiciones y en los requisitos legales y morales para poder intervenir por razones humanitarias (quién decide, quién ejecuta, cómo y con qué medios, cuándo y durante cuánto tiempo, etc.), si partimos de un contexto de desigualdad económica, de asimetría internacional, institucionalmente precario en democracia y en el reconocimiento de la capacidad de desarrollo de las potencialidades de los sujetos, controlado bajo una lógica de exclusión en la que predomina una racionalidad instrumental de cálculo medio/fin, en la que el capital está por encima de las personas y sus necesidades, nos encontramos con unas premisas que ya nos están avisando de la precariedad con la que pretendidamente pudiera justificarse un derecho de “intervención humanitaria” o “de humanidad”. Como en las situaciones del normal funcionamiento del sistema 20
Ibid., p. 103-104.
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socioeconómico global no se reconocen los derechos humanos, ni se valora la vida de todos los sujetos humanos como objetivo prioritario, la legitimidad de intervenir en situaciones de “anormalidad”, es decir, la “salvación” puntual y ocasional de vidas que se alega, posee todos los tintes de falsedad, hipocresía y cinismo. Al estar la situación del orden social imperante quebrada de raíz, también quedará rota y en entredicho cualquiera de las decisiones que a favor de la intervención de humanidad o humanitaria se tome. En tercer lugar, hay que subrayar otro hábito en el seno de nuestra cultura y que se plasma con el tema de la “intervención de humanidad”: sólo nos preocupamos por los efectos directos e inmediatos de las acciones directas e ignoramos los efectos indirectos de las acciones directas. La “intervención de humanidad”, entendida en su real intención de evitar violaciones de derechos humanos, implica una acción directa, la militar, con motivo de situaciones límites de eliminación grave, masiva, directa e inmediata de vidas humanas. Pero en una situación cotidiana y de normalidad, vivimos en un contexto en el que hay una eliminación indirecta, grave, masiva y mediata de las vidas. Sólo se piensa que es anormal la agresión directa contra la vida de determinadas personas, pero no se reacciona ante los efectos indirectos provocados por otras acciones directas que, aparentemente no tienen el propósito de aniquilar seres humanos. 21 Incluso hay víctimas directas e indirectas en toda acción armada para salvar vidas. Todo esto tiene mucho que ver con el problema de la responsabilidad y la legitimidad de quienes actúan a favor de los derechos humanos sistemática y masivamente violados. Quienes tienen la suficiente capacidad de intervenir –suelen ser las grandes potencias, los más fuertes, además de contribuir a mantener la cotidianidad de la exclusión, también suelen cerrar las puertas al reconocimiento humano con acciones muy directas: impidiendo la inmigración; no reconociendo los derechos económicos, sociales y culturales, que paradójicamente son los que permiten las condiciones mínimas vitales; manteniendo la deuda externa; proporcionando el armamento militar a los países y grupos del Tercer Mundo que están en guerra; etc. 21
Sobre los efectos indirectos de la acción directa, ver el trabajo de Franz Hinkelammert, “Los derechos humanos frente a la globalidad del mundo”, en El retorno del sujeto reprimido, Universidad Nacional de Colombia, 2002, p. 199 y ss.
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Finalmente, está la cuestión de la vida y de la muerte, y en qué grado se valora la vida de los seres humanos. Intervenir con medios de muerte para salvar vidas, implica todo un proceso de reflexión sobre la adecuación o no de la adopción de dichas medidas y de prudencia a la hora de hablar de un supuesto “derecho de intervención”. Asimismo, se hacer urgente abordar problemas relacionados con la necesidad de adoptar medidas preventivas, y con la articulación de acciones solidarias más integrales desde una cultura de pacifismo activo, cuyo juicios de existencia se cimenta sobre el “no matarás”. La vida se genera desde la vida y no desde la muerte. 22 Tal como señala Fernando Vallespín, la “intervención humanitaria” en general es un ejemplo de la tensión del sentido universal y las condiciones locales de realización de los derechos humanos, además de que representa un típico supuesto de hard choice o decisión difícil que no admite decisión limpia ni libre de cargas, de ahí que se deban evitar las autocomplaciencias y los espíritus autosatisfechos. 23 Por ello queremos insistir en lo siguiente: que no se den los requisitos para considerar legítima la “intervención de humanidad”, no quiere decir que en determinadas circunstancias se deban evitar situaciones graves de violación de derechos humanos fundamentales. No obstante, la acción bélica no es un mecanismo de garantía de los derechos humanos. Pensamos que, efectivamente, hay situaciones de hecho en las que la acción armada y violenta aparece y hay que emplearla transitoriamente, pero debemos quitarle el ropaje ideológico que legitima el uso de la fuerza y que lo bautiza y lo viste bajo el ropaje de una acción humanitaria. Nunca habrá por medio del uso de la fuerza armada una protección de derechos humanos, pues la utilización de instrumentos de muerte, también genera situaciones de muerte. El propio José María Mendiluce 22
Partimos de la consideración que el criterio y el principio de producción, reproducción y desarrollo de la vida humana son unas de las principales instancias de fundamentación de los derechos humanos, pues no hay situaciones más extremas que las provocadas por los actos de violación grave y masiva. En ellas es cuando se pone a prueba la capacidad de respuesta de la comunidad internacional, y resulta impactante que para salvar vidas humanas deba realizarse a través de un discutido uso de la fuerza. Sobre el criterio de vida como condición de posibilidad de todos los fines, ver la obra de Franz Hinkelammert. Entre muchos de sus libros: La fe de Abraham y el Edipo occidental, DEI, San José, 1991; El mapa del emperador, DEI, San José, 1996; El grito del sujeto, DEI, San José, 1998; Sacrificios humanos y sociedad occidental. Lucifer y la bestia, DEI, San José, 1998; y El retorno, del sujeto... También ver Enrique Dussel, Ética de la liberación en la edad de la globalización y la exclusión, Trotta, Madrid, 1998. 23 Ver Fernando Vallespín, “Intervención humanitaria: ¿moral o política?”, Revista de Occidente, n° 236-237, 2001, p. 59-60.
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subraya que toda guerra es atroz en sí misma y escenario propicio para actos especialmente atroces. La guerra no es nunca limpia ni inocente... 24 Con todo esto, además, lo que queremos también es llamar la atención sobre el hecho de que hay indicios muy claros para sospechar y cuestionar, en situaciones reales, sobre las verdaderas intenciones de quienes, en nombre de unos derechos que en lo cotidiano no reconocen a la mayoría de la población del planeta, usan la fuerza militar. Cuando el ser humano no cuenta, extraña manera es la de recuperarlo a base de bombas y/o armas humanitarias. Por último y como trasfondo, subyacen una inquietud y una duda adicionales, pero no por ello menores. La inquietud es la de si realmente la vida corporal y concreta de los sujetos humanos es el principal propósito de las medidas de asistencia; y la duda se centra en si la intervención armada, aún en casos extremos, es el medio más adecuado. Dentro de estas preocupaciones buscamos algunas de las razones que expliquen el por qué en situaciones de anormalidad se actúa con tanta contundencia, cuando en situaciones normales no se hace. Como anticipo de las conclusiones a las que hemos llegado tras el estudio del cual forma parte este trabajo, siempre incompleto de un tema tan complejo como éste, afirmamos que en ningún caso ni en ningún momento consideramos que en la historia de la humanidad pasada y presente, se ha realizado un supuesto acto de “intervención de humanidad” con el único, el exclusivo o, incluso, el principal propósito de evitar una situación de violación masiva y sistemática de los derechos humanos. Entendida la “intervención de humanidad” como la utilización de la fuerza armada para proteger frente a los criminales a las víctimas masivas y sistemáticas de sus derechos fundamentales, 25 y teniendo en cuenta el deber y la obligación de asistencia que toda la comunidad internacional tiene de proteger el derecho colectivo inderogable a la vida, consideramos que en ninguna ocasión se ha presentado una real y verdadera intención de salvar las vidas de las víctimas de 24
Ver José María Mendiluce, La nueva política. Por una globalización democrática, Planeta, Madrid, 2002, p. 50-51. 25 Véase Fernando M. Mariño Menéndez, “Algunas consideraciones sobre el derecho internacional relativo a la `intervención´ armada de protección de los derechos fundamentales”, Revista de Occidente, n° 236-237, 2001, p. 108.
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dichas violaciones. Es decir, si supuestamente con la protección y la garantía de los derechos humanos se pretende proteger las libertades y los espacios vitales de todos los seres humanos, sin excepciones, en los casos de un uso legítimo de la fuerza por razones de humanidad, en ningún momento se ha considerado a las personas, a los sujetos humanos concretos y corporales, como los principales destinatarios de dicho tipo de actuaciones. Antes se han valorado y priorizado otro tipo de razones o circunstancias como: intereses económicos, razones de seguridad bajo el principio del mantenimiento de la paz y la seguridad internacionales; la protección de intereses geoestratégicos y geopolíticos; la preocupación selectiva por los propios nacionales o por determinados colectivos más o menos afines ideológicamente; motivos religiosos... Es decir, en la balanza entre las mediaciones y las instituciones humanas junto a la racionalidad que las mueve por un lado, y los seres humanos reales, necesitados, concretos y corporales por otro, en todo momento ha habido una abdicación de lo humano no abstracto a favor de una idea sí abstracta de “civilización”, de “mercado”, de “libertad”, de “racionalidad instrumental calculadora”, de “riqueza”, de “eficiencia”, de “paz”, de “democracia”, de “equilibrio”, de “seguridad nacional o internacional”, de “seguridad del capital o del mundo de las finanzas”, de “derechos humanos” en abstracto, de “monopolio y control internacional del poder”, de “derecho o deber de injerencia”. La inquietud que se nos presenta va mucho más lejos. Profundizando un poco más y con ciertas dosis de temeridad en el fondo, de lo que se trata es de reconocer si realmente, en nuestras actuaciones no sólo extraordinarias, como las que se requieren en los casos de intervención de humanidad, sino también en las ordinarias y cotidianas, tanto las llevadas a nivel de lo público e institucional como en el nivel de lo privado, como decimos, es realmente la vida y/o la dignidad de todos los seres humanos el fin primario y último que nos empuja a actuar. No ya la vida de unos pocos o unos cuantos seres humanos, sino de todos los seres humanos sin excepciones. Por esta razón, partimos de la consideración de que la vida humana es el fundamento interno de la realidad. Funciona como criterio que juzga sobre toda acción, tanto sobre aquello que la produce, reproduce y desarrolla como sobre aquello que la aniquila o degrada. No nos referimos a ella como fin, ni como
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programa que se puede cumplir o en el que se fracasa. Se trata de la condición para cualquier cosa, acción o evento que esté dentro de los marcos de la realidad histórica del ser humano. A partir de este criterio, cuestionamos aquellos argumentos que, por ejemplo, con respecto a la justificación o el rechazo de determinadas guerras, ante la conciencia de exterminio global y total provocada por las armas nucleares, se condenan las situaciones de exterminio parcial y específico. 26 Ni éstas ni aquellas, en ningún caso, alcanzan cualquier grado de validación moral. Es decir, cualquier guerra no viene invalidada moralmente por la posibilidad de una “guerra final” en la que la humanidad queda eliminada, sino en la medida que cualquier guerra supone muerte –aunque sea la de un solo ser humano–, esto implica y es siempre el fracaso de todos. No existe un margen de muertos tolerable o sustentable. 27 La guerra, sea cual sea, es un infortunio, un drama y un fracaso para la humanidad, pues si valoramos la vida de todos lo seres humanos, sin excepciones, la muerte de una sola persona nos afecta a la totalidad de los miembros de la especie, implica también la “muerte” de todos y cada uno de los integrantes de la humanidad. Desde el punto de vista de la “intervención de humanidad”, tal como indica Tzvetan Todorov, ninguna acción que conlleva el uso de la fuerza armada y participa de una situación de guerra es un gesto humanitario, sean cuales sean las acrobacias verbales que utilicemos. 28 Por esta razón, dentro del ámbito de las relaciones internacionales, la acción bélica no es justificable en términos de legitimidad. Otra cosa es asumir el hecho de que en determinados casos se deba intervenir, pero nunca con el propósito de convertir el uso de la fuerza en un elemento de protección y garantía de los derechos humanos, porque la acción armada intrínsecamente es una violación de los derechos humanos. Esta hipótesis de trabajo también guarda una estrecha relación con el empleo de los términos. Sin ninguna duda nos encontramos con conceptos indeterminados de difícil delimitación. Por este motivo se hace muy ardua y
26
Ver por ejemplo, Norberto Bobbio, El problema de la guerra y las vías de la paz, Gedisa, Barcelona, 1982; y Alfonso Ruiz Miguel, La justicia de la guerra y de la paz, CEC, Madrid, 1988. 27 Ver Norman J. Solórzano Alfaro, Crítica de la imaginación jurídica. Una mirada desde la epistemología y la historia al Derecho moderno y su ciencia, Tesis de Doctorado, Universidad Pablo de Olavide, 1 de julio de 2002, p. 94 y 95, nota 43. 28 Tzvetan Todorov, Memoria del mal y tentación del bien. Indagación sobre el siglo XX, Península/HCS, Barcelona, 2002, p. 316.
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complicada la selección de una denominación precisa. Esto no será un impedimento para que, desde el principio, afirmemos nuestra disconformidad por el uso y la atribución de los rótulos “intervención de humanidad” e “intervención humanitaria” a los fenómenos implicados. Más adelante daremos más detalles de nuestras razones de por qué lo consideramos un error. Por ahora señalar que preferimos hablar de “intervención militar o armada”, ya sea considerada unilateral, multilateral o institucional en función de los actores internacionales intervinientes, y añadiéndole el adjetivo que corresponda en cada circunstancia. Es decir, si se trata de una intervención militar para proteger el desarrollo de la asistencia humanitaria, preferimos calificarlo de “intervención militar de protección de asistencia” en tanto que aplicación coercitiva de la función de asistencia internacional (que sería lo que se entiende por “intervención humanitaria” con el uso de la fuerza armada); si se pretende poner fin a una situación de violación grave y masiva de derechos humanos, preferimos llamarlo “intervención militar o armada de defensa del Derecho internacional” (equivalente a la “intervención de humanidad”). Debido a las utilizaciones generalmente admitidas, pese a las discrepancias, tanto de la “intervención humanitaria” como de la “intervención de humanidad” –incluso llegándose a incluir ésta en aquélla–, vamos a utilizar indistintamente estos términos con los dos que proponemos, pero poniéndolos entre comillas. Una vez hecha la delimitación de algunos elementos del “fondo” en el que consideramos hay que situar el problema de la “intervención de humanidad” y, por extensión, de los derechos humanos, a partir de ahora pondremos especial atención a la “figura” sobre la cual se desenvuelven todas estas reflexiones, sin renunciar ni dejar de hacer referencias a cuestiones vinculadas, de alguna u otra manera, con ambas dimensiones de lo real. A lo largo de las próximas páginas nos detendremos en la reflexión sobre cuestiones vinculadas con los conceptos de “intervención humanitaria” e “intervención de humanidad”, así como una justificación de las razones por las que consideramos inadecuada la utilización de dichos rótulos.
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4. ¿Qué se Entiende por “Intervención Humanitaria” y por “Intervención de Humanidad”? Lo primero que tenemos que decir es que el rótulo “intervención humanitaria” junto con el de “injerencia humanitaria” son los que, por lo general, más se utilizan para designar indistintamente y aglutinar diversas situaciones en las que se hace un uso de acción bélica por uno o varios Estados en el territorio de otro, como mecanismo de protección de los derechos humanos y/o de la asistencia humanitaria. Por ello, existe una gran imprecisión terminológica al hablarse de “intervención de humanidad”, “deber de injerencia”, “derecho de asistencia”, “derecho de intervención”, “intervención de urgencia”, etc. Todas estas expresiones se suelen usar para referirse a los mismos acontecimientos. No obstante, la noción de “intervención humanitaria”, como las demás, son conceptos jurídicos indeterminados. Pese a que desde hace mucho tiempo la doctrina de la “intervención humanitaria” ha sido objeto de controversia en el seno del Derecho y en las relaciones internacionales, y sigue siéndolo en la actualidad, no se ha hecho una clara definición de la misma hasta el momento. Además, tal como anticipamos, a ello hay que añadir que los aspectos tanto jurídicos como éticos aparecen tan unidos y vinculados que es difícil deslindar las propuestas que pertenecen a uno u otro orden. En todo caso, la indeterminación del concepto y la diversa terminología empleada han contribuido a crear confusión sobre su contenido. 29 Incluso hay quienes, como nosotros, cuestionamos tales términos. Por tanto, no existe una definición que goce de aceptación unánime o universal. En este sentido, el propio Yves Sandoz se lamenta de que muchas de las disputas sobre el tema del “derecho o deber de injerencia” malgaste demasiada energía con controversias provocadas sobre la base de equívocos. Entristece que los partidarios del humanitarismo, los “humanitarios”, busquen polémicas entre ellos. Para él, tres son los factores que conforman la causa de estos conflictos: a) los juristas se han encontrado con un concepto sin definir. Para hablar seriamente de Derecho es necesario hacerlo con definiciones, pues sin ellas se hace la empresa imposible; b) se ha oído de todo en el debate público lanzado 29
Ver María del Carmen Márquez Carrasco, Problemas actuales sobre la prohibición del recurso a la fuerza en derecho internacional, Tecnos, Madrid, 1998, p. 200.
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paralelamente; y c) se ha aplicado a este concepto sin definir dos entidades no comparables, los Estados y las organizaciones humanitarias. Esta es la razón de que el “derecho de injerencia” sea una contradicción en términos. 30 Asimismo, a pesar de los numerosos instrumentos normativos en los que se consagran los principios estructurales del Derecho internacional como son el principio de no intervención y el principio de prohibición del uso de la fuerza, frente a los cuales la “intervención humanitaria” y/o la “intervención de humanidad” serían una excepción, no se cuenta con ninguno en el cual se delimite con claridad y precisión la conducta prohibida por dichos principios, y tampoco en las escasas ocasiones en las que la jurisprudencia internacional se ha ocupado de eventuales supuestos de intervención, ha aportado una perfecta definición de esta conducta (como por ejemplo, en el asunto relativo al estrecho de Corfú y el referente a las acciones militares y paramilitares en y contra Nicaragua). En realidad, ha sido la doctrina internacional la encargada de definir y perfilar los elementos constitutivos de la intervención, que supone siempre una injerencia coactiva en los asuntos de un Estado. 31 Por nuestra parte, dentro de la dificultad, trataremos de aclarar un poco todo este mare mágnum terminológico. Pero vayamos por partes. Primero, siguiendo el consejo de Sandoz, vamos a reflejar una serie de conceptos que la doctrina internacionalista ha dado tanto sobre la “intervención humanitaria” como sobre la “intervención de humanidad”. Después, entraremos a aclarar algunos elementos de los significantes e ideas que más vinculados están con ambas definiciones, como son el concepto de “intervención”, la idea de “humanidad” en relación al tema de la “asistencia humanitaria”, y el propósito de “protección de los derechos humanos”.
30
Ver Yves Sandoz, “Derecho o deber de injerencia...” Fernando Pignatelli y Meca, “La intervención e injerencia humanitaria. ¿Un derecho, un deber, una excusa?”, Normativa reguladora del militar profesional en el inicio del siglo XXI y otros estudios jurídicos militares. III Jornadas sobre asesoramiento jurídico en el ámbito de la defensa, Ministerio de Defensa. Subsecretaría de Defensa, Madrid, 2001, p. 688-689. 31
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5. Los Conceptos de “Intervención Humanitaria” y de “Intervención de Humanidad”
En todas las definiciones sobre la “intervención humanitaria” y/o “de humanidad” realizadas a lo largo de la historia, se pueden encontrar algunos elementos básicos y recurrentes. Consuelo Ramón Chornet destaca a título de ejemplo: la apelación a la justicia o a la legitimidad de la “intervención de humanidad”; la existencia de leyes, principios o exigencias comunes a la noción de “humanidad”, cuya violación suspendería el derecho de soberanía, y que tendría como la concreción más típica el carácter irrenunciable de la defensa de los derechos humanos, etc. 32 A partir de la combinación de esos elementos recurrentes con otros adicionales, y teniendo en cuenta el actual contexto histórico en el que nos situamos, en principio y de manera provisional, consideramos que ambos términos se pueden utilizar, en un sentido general, para designar indistintamente,
aquellas acciones armadas realizadas por uno o varios Estados y/u organizaciones internacionales sobre el territorio de otro y sin su consentimiento, para proporcionar a la población de éste, o bien una protección de sus derechos humanos más elementales, que están siendo vulnerados de forma grave, masiva y sistemática, o bien para proporcionarle asistencia en aquellas situaciones de emergencia que ponen en peligro la vida, la seguridad, la dignidad o los bienes materiales indispensables para el ser humano. 33
De esta definición descriptiva inicial que proponemos, y en la que incluimos por igual ambos conceptos, deduciremos después las diferencias que existen
32
Consuelo Ramón Chornet, ¿Violencia necesaria? La intervención humanitaria en Derecho internacional, Trotta, Madrid, 1995, p. 58-59. 33 Ya en el año 1910, A. Rougier señaló en un sentido mucho más amplio que el aquí propuesto, que la doctrina de la “intervención humanitaria” reconoce como un derecho el ejercicio del control internacional de un Estado sobre los actos de soberanía interior de otro contrarios a las `leyes de humanidad´... siempre que los derechos humanos de un pueblo sean desconocidos por sus gobernantes, uno o varios Estados podrían intervenir en nombre de la Sociedad de Naciones, ya sea para pedir la anulación de los actos del poder público criticables, ya sea para impedir la reanudación de tales actos en el porvenir, ya sea para suplir la inacción del Gobierno tomando medidas cautelares urgentes y sustituir momentáneamente la soberanía misma del Estado controlado. “La théorie de l`intervention d`humanité, Revue General de Droit International Public, vol. XVII, 1910, p. 472. Referencia tomada de Luis Peral Fernández, Éxodos masivos, supervivencia y mantenimiento de la paz, Trotta, Madrid, 2001, p. 258.
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entre uno y otro. Tal como señala el internacionalista Fernando M. Mariño Menéndez, el régimen jurídico de una intervención armada para proteger los derechos humanos fundamentales vincula dos elementos: a) el uso de medidas de coerción armada por uno o varios Estados y/u organizaciones internacionales en el territorio de un tercer Estado sin su autorización; y b) para salvaguardar los derechos humanos fundamentales, esencialmente el derecho a la vida, a la integridad física y moral y la libertad de personas que allí habitan. 34 El medio empleado: la fuerza armada; los
objetivos:
la
salvaguarda
y
protección
de
los
derechos
humanos
fundamentales; y el hecho de la intromisión en la esfera de la soberanía de un tercer Estado sin su consentimiento, por tanto, son sus principales características. En el momento en el que se dé el consentimiento por parte del tercer Estado para intervenir con fines humanitarios, ya no tiene el debate relevancia jurídica al no haber violación de la soberanía territorial, ni tampoco hay intervención que, por definición, conforme una conducta no consentida. 35 Además, la profesora Pérez Vera afirma que por “intervención de humanidad” –que nosotros, reiteramos, ahora la asociamos con la “intervención humanitaria” sin establecer diferencias entre ambas–, se puede entender
la institución jurídica que, en el marco de la comunidad internacional de los Estados, trata de proteger a todo individuo, cualquiera que sea su nacionalidad, sus derechos fundamentales, es decir, aquellos que le pertenecen en cuanto que hombres, antes incluso de que forme parte de la sociedad política.
Y supone e implica la injerencia activa de uno o varios Estados en los asuntos internos de otro, con vistas a imponerle el respeto de los derechos fundamentales 34
Fernando M. Mariño Menéndez, “Algunas consideraciones sobre el Derecho internacional relativo a la “intervención” armada de protección de derechos fundamentales”, en Revista de Occidente, n° 236-237, p. 107. 35 Ibid., p. 109. W.D. Verwey entiende que sólo es “intervención humanitaria” aquella realizada de modo unilateral o multilateral por los Estados, y que no está autorizada por relevantes organismos de Naciones Unidas, además de por el Estado sobre el cual se interviene. La concibe como la protección de los derechos humanos fundamentales por un Estado o grupo de Estados, particularmente el derecho a la vida de la persona nacional de otro Estado, por medio del uso de la fuerza, sin autorización de autoridades del Estado que la soporta y sin la autorización de los órganos relevantes de NNUU. Referencia tomada de Jaume Ferrer Lloret, Responsabilidad internacional de los Estados y derechos humanos, Tecnos-Universidad de Alicante, Madrid, 1998, p. 287. La traducción es nuestra.
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de sus ciudadanos y, además, sólo se da en los supuestos que se realiza una intervención armada. 36 Por tanto, cualquier otro tipo de intervención que no sea ejecutada mediante el uso de la acción bélica, no se sitúan dentro del supuesto de la “intervención humanitaria” en el sentido general aquí propuesto. Entre los distintos grados de ejecución de la fuerza, sólo se tienen en cuenta las que se realizan con ataque armado. En el próximo apartado nos detendremos con más detalle sobre el particular. Asimismo, de la definición inicial, dos son los supuestos que pueden escindirse en contextos de crisis humanitarias, y a partir de los cuales haremos la distinción “intervención humanitaria”/“intervención de humanidad”: a) el primer supuesto se refiere a los casos de protección militar o apoyo logístico o bélico para asegurar la seguridad de los envíos humanitarios. En concreto, a la fuerza militar que se utiliza para asegurar que la “ayuda humanitaria” prestada por organismos internacionales u organizaciones privadas (ONGs) llegue a las poblaciones en peligro. 37 Nos encontramos con acontecimientos de grave crisis humanitaria que justifican el empleo de la fuerza armada para socorrer a las personas en situación de grave necesidad y, con ello, asegurarles la llegada y la distribución de la ayuda humanitaria; b) el segundo supuesto consiste en el uso de la fuerza armada para poner fin a violaciones graves, masivas y sistemáticas de los derechos fundamentales del ser humano, es decir, la utilización de la fuerza armada para proteger frente a los criminales a las víctimas de violaciones masivas y sistemáticas de sus derechos humanos fundamentales. 38 En el primer caso, nos encontramos con lo que entendemos por “intervención humanitaria”, actividad vinculada con el concepto de “asistencia humanitaria”. Aquella pretende abrir un espacio de seguridad que permita el ejercicio con ciertas garantías de las acciones de asistencia. La “intervención de humanidad”, en cambio, ya implica el propósito expreso de proteger a la población de un Estado que es víctima de violaciones masivas y sistemáticas de los
36
E. Pérez Vera, “La protection d`humanité en droit international”, Revue Belge de Droit International, 1969, p. 401-402. Traducción que hemos tomado de Consuelo Ramón Chornet, ¿Violencia necesaria?, p. 53. 37 Ver Fernando M. Mariño Menéndez, “Algunas consideraciones sobre el Derecho internacional...”, p. 108 38 Ibid. En el mismo sentido, ver Florentino Ruiz Ruiz, Derechos humanos y acción unilateral de los Estados, Universidad de Burgos, Burgos, 2000, p. 40 y 201.
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derechos humanos fundamentales. Según Cesareo Gutiérrez Espada, la primera consiste en imponer a un Estado (ante su silencio o aún contra su voluntad) la asistencia, cuando se dan circunstancias de catástrofe humanitaria. Para proporcionar tal ayuda, por lo general, no hace falta el uso de la fuerza armada, aunque se dan casos en los que es necesaria la aportación de elementos militares de apoyo logístico, pero con la única finalidad de facilitar y hacer segura la asistencia, por lo que el uso de la fuerza no sería dirigida directamente contra un Estado. Como ejemplos, pone el establecimiento de zonas de exclusión aérea, zonas protegidas o santuarios, operaciones de asistencia humanitaria, o incluso levantar Estados que se derrumban y caen en pedazos como sucedió en Somalia. Se trata de una injerencia limitada y no comparable con intervenciones armadas contra Estados que violan los derechos humanos, que sí sería la característica de la “intervención de humanidad”. Esta no supone una ayuda médica o sanitaria acompañada con un dispositivo militar de apoyo militar a los cooperantes, sino que pretende arrancar a las víctimas de las masacres de las garras de sus opresores. 39 De todas formas, ambas justificaciones aparecen unidas en todos los conflictos en los que se ha autorizado o empleado la fuerza armada en los últimos años. En la práctica, una situación conlleva a la otra, por lo que, en consecuencia, la distinción conceptual más que perder su sentido, 40 demuestra que tanto el Derecho humanitario internacional como el Derecho internacional de los derechos humanos deben ser considerados como partes ambos, de un concepto más general y más amplio de derechos humanos, de ahí el hecho de que, en muchas ocasiones, merezcan el mismo tratamiento. Como veremos, la prestación humanitaria puede considerarse hoy ya un derecho humano fundamental. 41 No obstante, ante la indeterminación y la indiferencia en el empleo de los términos, reiteramos el uso indistinto realizado por la doctrina. Así, por ejemplo, podemos encontrarnos con especialistas que usan el rótulo de “intervención humanitaria” en tanto derecho, para referirse a lo que nosotros entendemos por 39
Ver Cesáreo Gutiérrez Espada, “Uso de la fuerza, intervención humanitaria y libre determinación (la `Guerra de Kosovo´)”, en Antonio Blanc Altemir, La protección internacional de los derechos humanos a los cincuenta años de la Declaración Universal, Tecnos, Madrid, 2001, nota 26, p.198. 40 Así lo considera Florentino Ruiz Ruiz, Derechos humanos y acción unilateral..., p. 201. 41 Ibid.
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“intervención de humanidad”, como Romualdo García Bermejo que la define como
el derecho de los Estados de recurrir a la fuerza sobre el territorio de cualquier otro Estado con el fin de proteger o salvaguardar las personas de tratos inhumanos que está sometidas por este último Estado y que no pueden evitarse más que por un recurso a la fuerza. 42
O también Fernando Tesón, quien indica que como
la justificación última de los Estados es la protección y refuerzo de los derechos naturales de sus ciudadanos, un gobierno que incurra en violaciones sustanciales de los derechos humanos traiciona el objetivo real para el que existe, y así no sólo pierde su legitimidad interna sino también su legitimidad internacional. 43
Finalmente queremos terminar con una pequeña precisión referida a algunos supuestos más o menos afines a la “intervención de humanidad” e “intervención humanitaria”: El término “intervención por motivos de humanidad” es otro de los utilizados en el pasado para designar operaciones de asistencia e intervenciones en los asuntos internos de un tercer Estado, principalmente en el siglo XIX. Pero, sobre todo, y es el matiz diferencial que queremos resaltar, para referirse a la protección de sus propios ciudadanos por parte de un Estado en otro país. 44 Con anterioridad al régimen establecido por la Carta de San Francisco, ha sido considerado lícito el uso de la fuerza armada por el Derecho internacional general para la protección de nacionales en el extranjero. La prohibición aparece y es establecida por la misma Carta. 45 En este supuesto concurren dos circunstancias:
42
Ver Romualdo García Bermejo, “El derecho/deber de injerencia humanitaria en el derecho internacional actual”, en VV.AA., El derecho por razones humanitarias, III Jornadas de Derecho Internacional Humanitario, Cruz Roja Española, Universidad de Sevilla y Asociación para las Naciones Unidas en Sevilla, Sevilla, 1995, p. 57; y Fernando Pignatelli y Meca, “La intervención e injerencia humanitaria. ¿Un derecho, un deber, una excusa?”, p. 689. 43 Fernando R. Teson, Humanitarian intervention. An inquiry into Law and Morality, International Publishers, New York, 1988, p. 3. Para otras definiciones, ver Florentino Ruiz Ruiz, Derechos humanos y acción unilateral..., nota 167, p. 184; y Consuelo Ramón Chornet, ¿Violencia necesaria?, p. 59-60. 44 En este sentido ver Anne Ryniker, “La posición del CICR sobre la “intervención humanitaria”, en www.iciss.gc.ca/report-e.asp 45 Ver Florentino Ruiz Ruiz, Derechos humanos y acción unilateral..., p. 185-186. Romualdo Bermejo García, distingue tres teorías respecto a su justificación: una restrictiva (ante la prohibición de los artículos 2.4 y 51 de la Carta); otra realista (en virtud de los artículos 1, 55 y 56 y
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la violación de los derechos humanos fundamentales o de alguno de ellos en determinadas personas; y un conflicto entre la competencia territorial de un Estado y el personal de otro u otros. El predominio de los objetivos humanitarios, y la consideración como imperativa de la norma que reconoce los derechos humanos fundamentales que debe prevalecer sobre otras de la misma naturaleza, aporta la circunstancia adicional a la competencia personal sobre la territorial. 46 Por otro lado, hay que distinguir la “intervención de humanidad” y la “intervención humanitaria”, de las operaciones de mantenimiento de la paz y de las acciones humanitarias en conflictos bélicos que sí tienen el consentimiento del Estado receptor. Con respecto a la “intervención de humanidad”, coinciden en los sujetos que intervienen (las Naciones Unidas y/o algunos de los Estados miembros), como en los medios (el empleo de las fuerzas armadas), pero se diferencian por la ausencia del consentimiento de la parte intervenida y en la finalidad, que ni es la de garantizar el cese de hostilidades, ni tampoco la resolución pacífica de un conflicto, sino la de establecer una situación política que excluya las violaciones masivas de los derechos humanos. 47 Para Eusebio Fernández, el medio utilizado es pleno y abiertamente bélico en las “intervenciones de humanidad” –que él denomina “intervención humanitaria”–. La finalidad, no es la de lograr la paz, ni la salvaguarda de un básico humanitarismo en las actividades bélicas, sino la restauración de los derechos básicos previamente
violados
en
la
población
ayudada, 48
hecho
que
nosotros
el fracaso del sistema de seguridad colectiva previsto por la Carta); y otra basada en la legítima defensa (supone un ataque contra el propio Estado. Ibid., p. 186). En la práctica, existe una tendencia similar a las justificaciones de las “intervenciones de humanidad”. En realidad, en raras ocasiones las intervenciones de los Estados se justifican sobre la necesidad de proteger nacionales en el extranjero. Se acompaña con otros argumentos: como la legítima defensa y el estado de necesidad. Ibid., p. 187. 46 Ibid., p. 186. Según E. Spiry, los límites, una vez empleada la fuerza armada, son los siguientes: la proporcionalidad; un mínimo perjuicio al principio de autodeterminación y de no injerencia política; duración limitada a lo imprescindible; la comunicación inmediata a los organismos internacionales competentes. Para Antonio Remiro Brotons en cambio, son: una intervención puntual en el espacio y en el tiempo; que esté limitada y sea proporcional en los medios; que esté supeditada a la ineficacia del sistema de seguridad colectiva; que haya una carencia de colaboración del Estado territorial para resolver la situación; y que esté encaminada estrictamente a la protección de la vida de las personas. Se excluye, además, la protección de los bienes. Ibid., p. 188. 47 Ver Enrique Múgica, “¿Está justificada la intervención bélica humanitaria?”, Revista de Occidente, n° 236-237, p. 129, para quien es irrelevante el consentimiento. Tal como hemos dicho antes, para nosotros, la ausencia de consentimiento del Estado intervenido es fundamental. Si hay consentimiento, no estamos en el caso de una intervención. 48 Ver Eusebio Fernández, “Lealtad cosmopolita e intervenciones...”, p. 64 y 65.
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cuestionamos, tal como en su momento anticipamos y tal como más adelante profundizamos, porque no hay protección de derechos humanos que se logre a través de acciones armadas. Se puede hablar de “acción”, “medio” o “instrumento de apoyo” que de la misma manera que puede salvar vidas, también provoca situaciones de muerte. No obstante, retomando el razonamiento anterior sobre las operaciones de mantenimiento de la paz, idénticas diferencias se dan entre éstas con respecto a lo que entendemos por “intervención humanitaria”. En cuanto a las acciones humanitarias en conflictos bélicos, como veremos, no es lo mismo la actividad propia de la ayuda o asistencia, que no tiene nada que ver con el uso de contingente bélico pues se trata de una acción civil, que la actividad complementaria de apoyo militar que, ocasionalmente, pueda necesitarse para llevarla a cabo. Aunque no vamos a detenernos en precisar los elementos que caracterizan las figuras de “estado de necesidad”, “fuerza mayor”, “caso fortuito” y “peligro extremo”, sólo comentar que son supuestos distintos a los de “intervención de humanidad” e “intervención humanitaria”, aunque a veces puedan confundirse. 49
5.1. El Concepto de “Intervención” Tal como hemos señalado anteriormente, tanto la “intervención de humanidad” como la “intervención humanitaria” implican el uso de la fuerza armada. Pero en el ámbito de las relaciones interestatales, hay diversos grados de uso de la fuerza, y no todas conllevan el ejercicio de una acción bélica. Muchas de ellas entran dentro de la imposición de sanciones o de la práctica de recomendaciones. 50 Aunque en cierta forma, cada modalidad coactiva implica un determinado tipo de intervención o injerencia. En este sentido, Emma Bonino se queja de que el debate sobre el “derecho de intervención con fines humanitarios” se ha hecho más difícil, y hasta se ha distorsionado, por el previo supuesto de que las intervenciones son exclusivamente de carácter militar, olvidándose que, 49
Para mayor detalle véase Jaume Ferrer Lloret, Responsabilidad internacional de los Estados, p. 294-297; y Cesareo Gutiérrez Espada, El estado de necesidad y el uso de la fuerza en Derecho internacional, Tecnos, 1988, p. 44-59. 50 En este sentido, ver Federico Arcos Ramírez, ¿Guerras en defensa de los derechos humanos? Problemas de legitimidad de las intervenciones humanitarias, Dykinson, Madrid, 2002, p. 20.
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especialmente ahora, en tiempos de la globalización, hay muchas formas de traspasar las fronteras nacionales y las soberanías de los Estados sin apelar a las armas. 51 Pero ¿qué se entiende por el concepto de “intervención”? Tal como hemos señalado, los términos “injerencia” y/o “intervención” en el Derecho internacional no son tampoco unos conceptos jurídicos claros y determinados. Se suele denominar con ambos rótulos la acción de un Estado u organización internacional que procede al examen y solución de un asunto relevante de la competencia de otro u otros Estados. 52 Aunque para E. C. Stowell, el concepto de “intervención” queda reservado al uso de la fuerza en defensa del Derecho internacional, mientras que el concepto de “injerencia” es siempre contrario al Derecho internacional, por lo tanto siempre es ilegal. 53 Asimismo, Ernesto Garzón Valdés, en el ámbito de las relaciones internacionales, distingue dos tipos de intervención, uno de carácter más general y otro más estricto. En sentido general puede entenderse por intervención la influencia por parte de un agente externo en los asuntos internos de un país soberano. 54 El propio autor aclara que, dada la estrecha red de interdependencia que existe entre los Estados en el sistema internacional, en un contexto de interconexión global, y dado que esta influencia se puede llevar a cabo tanto por omisión como por acción, se hace difícil, por no decir imposible, que algún Estado se libre de este tipo de intervenciones. Una versión más restringida es la que subraya el aspecto de la injerencia coactiva en los asuntos internos de un país, y puede desenvolverse de múltiples maneras:
desde la imposición de programas educacionales o culturales, pasando por la presión diplomática, la aplicación de sanciones económicas, la incitación a la rebelión de algunos sectores de la población hasta la “amenaza o el uso de la fuerza (artículo 2, 4 de la Carta de Naciones Unidas) y el “ataque armado” o la “invasión por la fuerza armada” (Tratado Interamericano de Asistencia
51
Ver Emma Bonino, “Las distintas formas de intervención”, p. 26. Fernando Pignatelli y Meca, “La intervención e injerencia humanitaria...”, p. 690. 53 E. C. Stowell, La théorie et la pratique de lintervention”, en Recueil des Cours de l`Académie de Droit International de La Haye, vol. 40-II, 1932, p. 92 y ss. 54 Ver Ernesto Garzón Valdés, “Intervencionismo y paternalismo”, en Ernesto Garzón Valdés, Derecho, ética y política, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1993, p. 383. 52
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Recíproca de Río de Janeiro de 1947, artículo 9, a, b).
55
Por tanto tenemos, por un lado, las medidas que suponen el empleo de la fuerza armada y que entran dentro de la “intervención de humanidad” y la “intervención humanitaria”; y por otro lado, toda una gama de actividades coactivas e instrumentos de presión no armados, cuyos objetivos básicos son los de influir en determinados ámbitos que son de dominio interno de un tercer Estado. En este mismo sentido, Mario Bettati señala que la intervención o la injerencia puede ser de dos tipos: material o inmaterial. 56 La material comporta una incursión física sobre el territorio extranjero y que, además, sea calificada de intervención o agresión por otro Estado o una organización internacional. La inmaterial, consiste solamente en inmiscuirse en los asuntos internos de un Estado extranjero, tomando posición sobre su régimen político, económico o social, en orden a hacerlo cambiar por la movilización de los medios de comunicación, la deliberación de una organización internacional, la ruptura diplomática o la utilización de otras presiones diversas. No comportan acción física ni presencia de ninguna clase en el territorio del país en el que se interviene. Volviendo a Emma Bonino, ella distingue cinco tipos de intervención, aunque utiliza la denominación de injerencia: a) injerencia económica; b) injerencia mediática; c) injerencia judicial; d) injerencia militar; y e) injerencia humanitaria. 57 a) La intervención económica viene provocada por la globalización y la influencia que los países del Norte ejercen sobre los países del Sur en materia de expansión del mercado. La movilidad sin trabas de bienes, servicios y mercancías 55
Ibid., p. 384. Tres notas comunes que parecen constituir el núcleo firme de toda intervención en sentido estricto: 1) la ruptura manifiesta de las formas convencionales de interacción estatal; 2) el propósito de cambiar o preservar una determinada estructura política, económica, social o cultural del Estado en que se interviene y 3) la realización de la acción u omisión que configura la intervención, sin el consentimiento del gobierno del país intervenido. 56 Ver Mario Bettati, “Un droit d´ingérence?, Revue Générale de Droit International Public, Tome 95, n° 3, 1991, p. 644. Referencia tomada de José Antonio Pastor Ridruejo, Curso de Derecho internacional público y organizaciones internacionales, Tecnos, Madrid, 1996, p. 306; también ver Fernando Pignatelli y Meca, “La intervención e injerencia humanitaria..., p. 690. 57 Para una clasificación del concepto de intervención en el marco de las Naciones Unidas, ver Juan Francisco Escudero Espinosa, Aproximación histórica a la noción de intervención humanitaria en el derecho internacional, Universidad de León, 2002, p. 139 y ss.
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representan el bien supremo de esta forma de mundialización. Se celebra que todos estos productos lleguen a todas partes porque es sinónimo de progreso y libertad. No sucede lo mismo cuando se habla de seres humanos o de principios y valores universales con los que respetar la dignidad y la dimensión participativa del ser humano. Hay que romper con este problema y esta contradicción, buscando la coherencia de hacer efectivos tanto los derechos humanos como la democracia, promoviéndolos en todos los pueblos (y en todas las instancias), sin excepciones. Sólo entonces se conseguirá un desarrollo económico y social justo, integral y equitativo. 58 b) La intervención mediática desempeña una inapreciable labor de denuncia para despertar las conciencias tanto de los gobernantes como de los gobernados. Los medios de comunicación, junto con la colaboración de los “humanitaristas” y activistas de derechos humanos, sirven de testigos y de testimonios oculares de los actos de agresión y de los horrores causados por la guerra, y sucedidos en tantos otros y diversos escenarios de crisis. Periodistas y cooperantes movilizan a la opinión pública apelando al sentimiento moral de solidaridad y de compasión ante el sufrimiento humano. De esta manera, la política y la diplomacia no tienen más remedio que responder a estas demandas, antes que dejar en el olvido los efectos perversos tanto de la irracionalidad de los “señores de la guerra” y grupos sumergidos en la barbarie del aniquilamiento, como de las consecuencias provocadas por catástrofes naturales. El riesgo que conlleva nuestra cultura consumista es el de hacer de las imágenes del sufrimiento ajeno un “mercado de horror”, de convertir en mercancía el dolor del prójimo para acabar dentro de un completo estado de banalización y pasividad. 59 No obstante, para Emma Bonino, pese a esa “pornografía del dolor”, el auténtico escándalo reside en lo que reflejan esas imágenes insorportables, más que en la insuficiencia de nuestras acciones para impedirlo. Pone como ejemplo lo reacios que son los señores de la guerra no sólo respecto al Derecho internacional, al Derecho humanitario y los derechos humanos, sino también respecto a cualquier forma de testimonio transmitido por los media. 60 58
Emma Bonino, “Las distintas formas...”, p. 26-27. En este sentido, ver Michael Ignatieff, El honor del guerrero. Guerra étnica y conciencia moderna, Suma de Letras, Madrid, 2002, p. 45-48. 60 Emma Bonino, “Las distintas formas de intervención”, p. 28-29. 59
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A pesar de todo, tampoco hay que olvidar que los medios de comunicación están controlados por los intereses del gran capital, del mundo de los negocios y de las grandes potencias, y esto conlleva a que mediante sus noticias sean correa de transmisión de las llamadas “políticas de doble rasero” que se dan en el ámbito de los derechos humanos. Habrá lugares y acontecimientos denunciables, pero habrá otros que políticamente no es correcto sacar a la luz, todo ello en función de determinados intereses geoestratégicos. Según convenga, se invisibilizan masacres en unos sitios y se supervisibilizan en otros. Ejemplos claros en uno o en otro sentido los hemos tenido en Guatemala, Panamá, Timor Oriental, Irak, Afganistán, y tantos otros lugares. c) En cuanto a la intervención judicial, ésta expresa una modalidad de injerencia de Derecho a nivel global, más propia de la última década, y que culmina con la creación del Tribunal Penal Internacional Permanente en 1998, capacitado para juzgar los crímenes contra la humanidad, los crímenes de guerra y el genocidio. Los tribunales ad hoc constituidos por decisión del Consejo de Seguridad de la ONU en La Haya en 1993 para juzgar los crímenes cometidos en la antigua Yugoslavia, y en Arusha en 1994 para juzgar los crímenes cometidos en Ruanda han servido de antecedentes, junto a los tribunales que se crearon en Nuremberg y Tokio para juzgar a alemanes y japoneses con motivo de la II Guerra Mundial.
Para la autora italiana, la capacidad disuasiva del Tribunal Penal Internacional representa una justicia sin fronteras permanentemente activa, que intimidará a los reales y potenciales criminales de guerra, minando sus esperanzas de impunidad. 61
d) La intervención militar, en tanto derecho a emplear la fuerza como remedio extremo -por haber fracasado todas las demás formas de injerencia–, para impedir o interrumpir la comisión de un crimen contra la humanidad. La autora italiana en base a la existencia de unos valores fundamentales y universales como la paz, el pleno respeto de los derechos humanos y la cohabitación en la diferencia, defiende lo que nosotros entendemos como “intervención de humanidad” y así manifiesta su opinión favorable sobre la 61
Íbid., p. 30-31.
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actuación de la OTAN en la guerra de Kosovo. La soberanía del Derecho y de los derechos del individuo están siempre por encima de la soberanía estatal, y los crímenes contra la humanidad no deben quedar impunes. La defensa de los derechos humanos no tiene que considerarse como algo opcional y como instancia sólo aplicables por razones de oportunidad. 62 e) Finalmente está la modalidad de intervención humanitaria, que Emma Bonino califica, curiosamente, de “desarmada”, y que, aparte de que trataremos con mayor detenimiento en el próximo apartado, nos servirá de conexión, pues hace referencia a la cuestión de la “acción de asistencia humanitaria” y la relación que tiene con la defensa de los derechos humanos. Para ella, es artificiosa la separación de ambos supuestos. La acción humanitaria es en sí misma una forma de mantener, en situaciones de emergencia, algunos derechos fundamentales, empezando por el derecho a la vida y a la dignidad de las personas. Hoy en día, no hay catástrofe humanitaria que no venga acompañada de violaciones deliberadas y masivas de los derechos humanos. Por esta razón, la intervención humanitaria, en tanto acción de asistencia, no debe reducirse a una defensa de los derechos violados tardía, limitada y a posteriori. Hay que articular toda una política de conjunto que ponga la atención a la dimensión preventiva de los conflictos, antes de que sucedan, pero cimentada sobre los derechos humanos, en donde desde una injerencia humanitaria preventiva, se ponga coto a los focos potenciales generadores de víctimas. 63
5.2. Sobre el Concepto de “Asistencia Humanitaria” y el Problema de la Protección de los Derechos Humanos La “asistencia o acción humanitaria” guarda relación con la tendencia que el ser humano posee de moverse en una dolorosa y trágica contradicción. Tal como señala Xabier Etxeberria, anidan en las personas, simultáneamente, inclinaciones hacia la destrucción y la opresión de sus semejantes, y una espontánea tendencia que le empuja a compadecerse del que sufre y que le incita a prestarle ayuda. La acción humanitaria, desde la solidaridad con el sufriente, 62 63
Íbid., p. 31-34 Íbid., p. 27-28.
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expresa la lucha contra diversas expresiones del dolor humano y manifiesta el afianzamiento de un principio humanitario que no sólo incite a remediar o paliar los sufrimientos existentes, sino que vaya imponiéndose a nuestras tendencias destructivas y a las expresiones del poder personal y estructural en la que se encarnan. 64 En este sentido, el primero de los Principios Fundamentales del Movimiento Internacional de la Cruz Roja y de la Media Luna Roja es el principio humanidad, que insta a esforzarse en prevenir y aliviar el sufrimiento de las personas en todas las circunstancias, y lucha contra diversas expresiones del dolor humano. 65 La acción humanitaria es el lugar en el que el principio humanitario adquiere una progresiva precisión. En cuanto a su concreción, el concepto de “asistencia humanitaria” se expresa según el contexto en el que se ubique bien como asistencia, que consiste en la aportación de alimentos, ropa, atención médica, cobijo y socorro moral, intelectual y espiritual en situaciones extremas, bien como protección, que tiene como finalidad poner a los seres humanos fuera del alcance de la violencia o de la privación de sus derechos fundamentales. Este contexto es el propio de los derechos humanos en espacios sociales de normalidad. 66 Efectivamente, el código de las organizaciones no gubernamentales humanitarias concibe la acción humanitaria como ayuda de socorro que tiene por finalidad satisfacer las necesidades básicas, entendiéndose por éstas las referidas a las necesidades corporales más elementales y en sus niveles básicos. Pretende garantizar con ello la supervivencia de las poblaciones amenazadas por los desastres, además de servir de condición de posibilidad de otras necesidades no estrictamente asociadas a la supervivencia, como las vinculadas con determinadas vivencias de libertad e igualdad. 67 El caso es que, tanto en situaciones de conflicto o de emergencia como en situaciones de paz, la articulación de las tramas sociales para crear condiciones de existencia implican estas mismas acciones. La protección de derechos humanos y la asistencia humanitaria son realidades 64
Ver Xabier Etxeberria, Ética de la acción humanitaria, Universidad de Deusto, Bilbao, 1999, p. 9 y “El marco ético de la acción humanitaria”, en AA.VV., Los desafíos de la acción humanitaria, Icaria, Barcelona, 1999, p. 101-102 65 Ibidem; también en Yves Sandoz, “Derecho o deber de injerencia...” 66 A. Durand habla de dos aspectos de la “asistencia humanitaria”, pero nosotros preferimos hablar de dos contextos diferentes en los cuales se plasma. Ver su trabajo, “El CICR”, Revista Internacional de la Cruz Roja, n° 46, 1981, p. 13. 67 Véase Xabier Etxeberria, Ética de la acción humanitaria, p. 39 y 41.
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análogas, no diferentes tal como generalmente se entiende. Lo que cambian son los contextos (el “fondo”), no la “figura”. No obstante, el principio humanitario por medio del cual se resuelve la tensión trágica entre la tendencia a causar sufrimiento y la tendencia a aliviarlo, ha servido para ir superando, bajo su aspiración de universalidad, las limitaciones y el no reconocimiento que determinados seres humanos han experimentado como consecuencia del privilegio y la especial atención que se les ha dispensado a otros seres humanos. La práctica de auxiliar a un semejante en una situación de apuro, bien por circunstancias personales, bien por una catástrofe, una guerra o por una ruina económica, se ha dado en todos los tiempos y en todos los pueblos, pero no de manera universal. Históricamente se ha discriminado la tendencia a aliviar
el
sufrimiento,
considerados
verdadera
realizándose y
una
plenamente
separación humanos
entre quienes
-normalmente
eran
aquellos
pertenecientes al propio grupo–, frente a los que lo eran pero de una manera confusa, o incluso frente a quienes eran tachados de no-humanos o in-humanos – considerados los otros, los extraños, los extranjeros, los bárbaros, los homúnculos, etc. La solidaridad hacia nuestros congéneres, la empatía que nos hace “ser un sólido”, puede ser orgánica, sólo reducida hacia aquéllos que pertenecen y participan de nuestra identidad grupal (familia, grupo, pueblo, nación, comunidad de creencias, cultural o histórica...), pero también puede ser abierta, al estar dirigida a todo ser humano, independientemente de su nacionalidad o comunidad. Su ámbito y su pertenencia es la humanidad entera, no siendo nadie ajeno a ella. 68 Desde el punto de vista de la “asistencia humanitaria”, nos encontramos con este tipo de solidaridad universal que se abre a todos, pero desde la perspectiva de los más necesitados. El principio humanitario se expresa en ella con el compromiso hacia quienes se encuentran amenazados, en situaciones de precariedad existencial y doliente.
La solidaridad no se define tanto por su pura relación universal, cuanto por el compromiso respecto al amenazado, no se define por su imparcialidad sino por su “parcialidad” por el débil y oprimido, o, si se quiere, persigue la imparcialidad (igualdad) a 68
Ibid., p. 9 y 34-35.
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
245
través de esa parcialidad.
69
De ahí que todo ser humano tenga el derecho de ser asistido cuando lo necesite. Nos encontramos con una parcela relacionada con los derechos humanos
que
se
articula
en
determinadas
circunstancias
extremas
y
excepcionales. Pero desde el punto de vista de la realidad socio-política actual, el modelo de organización de los seres humanos ha sido el establecido por el Estado. De la misma manera que veíamos cuando hacíamos mención al proceso de internacionalización de los derechos humanos en su expresión institucional y normativa que los mayores niveles de protección de éstos se obtenían a nivel estatal e interno, lo mismo sucede con la ayuda solidaria. Es la ayuda intraestatal la que se ha considerado prioritaria. En cambio, las relaciones interestatales han sido vistas como relaciones de fuerza, de poder, que han obstaculizado en muchas ocasiones la universalización efectiva del principio humanitario. De nuevo el principio de soberanía ha supuesto una limitación a este proceso, aunque el deber de asistencia comienza con la responsabilidad de cada Estado de atender a sus ciudadanos. En el momento que, por diversas razones, no puede o no quiere proporcionar la ayuda, entran a escena los mecanismos establecidos por las normas del Derecho internacional humanitario. Por esta razón se habla de dos sistemas normativos diferentes: por un lado está el Derecho internacional humanitario, también llamado “derecho de los conflictos armados” y “derecho de guerra”, y que se aplica en situaciones de conflicto armado y de emergencia. 70 Por otro lado está el Derecho internacional de los derechos humanos, que se aplica en todo momento, tanto en la guerra como en la paz, y en la mayoría de las ocasiones se limita a hechos en los que sólo intervienen los Estados. Aunque la finalidad de ambos es proteger a la persona humana, lo hacen en circunstancias y según modalidades diferentes. 69
Ibid., p. 35. Sobre los distintos modelos de solidaridad, ver también Ernesto J. Vidal Gil, Los derechos de solidaridad en el ordenamiento jurídico español, (Cuadernos de solidaridad, n° 1), Tirant lo Blanch, Valencia, 2002, p. 93 y ss. 70 El Derecho internacional humanitario “es el conjunto de normas cuya finalidad, en tiempo de conflicto armado, es, por una parte, proteger a las personas que no participan, o han dejado de participar, en las hostilidades y, por otra, limitar los métodos y medios de hacer la guerra”. CICR, Derecho internacional humanitario. Respuestas a sus preguntas, Comité Internacional de la Cruz Roja, Ginebra, 1998, p. 1.
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Si el derecho humanitario tiene como objeto proteger a las víctimas procurando limitar los sufrimientos provocados por la guerra, los derechos humanos protegen a la persona y favorecen su completo desarrollo. 71
El caso es que al establecerse sistemas distintos, parece que nos encontramos con realidades distintas. Si observamos detenidamente, el principio de humanidad es el mismo que se manifiesta en la idea institucional de derechos humanos asociada generalmente a lugares sociales de normalidad. Lo único que cambian son los marcos espacio-temporales, las circunstancias, es decir, los contextos. La proyección del principio de humanidad, vinculado con la dignidad humana, se manifiesta de manera diversa cuando se encuentra en condiciones de conflicto o en condiciones de paz. Pero resulta que esta dualidad de contextos se interpreta como fenómenos e instituciones diferentes, cuando en realidad pensamos que la polémica sólo se ciñe a una cuestión terminológica, a problemas de denominaciones y de adecuación de palabras. En cierta medida, en este sentido viene dada la queja manifestada por Emma Bonino y que hemos mencionado antes. La autora italiana pone el dedo en la llaga cuando afirma que es artificiosa la separación que se traza entre la “asistencia humanitaria” y la protección de los derechos humanos. De esta forma aborda el aspecto crucial de toda esta problemática que estamos remarcando: que la “asistencia humanitaria” forma parte de lo que entendemos son los derechos humanos, entendidos en un sentido que, aunque lo engloba, va más allá de su componente institucional y jurídico-positivo, pese a la opinión generalmente aceptada que afirma la existencia de dos sistemas o regímenes normativos internacionales distintos (como son, por un lado, el Derecho internacional humanitario y, por otro, el Derecho internacional de los derechos humanos), aunque
sí reconoce la
complementariedad.
72
estrecha
relación
entre
ambos,
e incluso
su
Consideramos los derechos humanos como procesos de
apertura y consolidación de espacios de lucha por la dignidad humana, procesos que se dan tanto en situaciones de emergencia como en conflictos armados o en 71
Ibidem, p. 40. En este sentido, véase Thomas Buergenthal, Claudio Grossman y Pedro Nikken, Manual internacional de derechos humanos, Universidad de Santiago de Cali, 1995, p. 16; y AA.VV., Derecho internacional y ayuda humanitaria, Instituto de Derechos Humanos, Universidad de Deusto, Bilbao, 2000, p. 39. 72
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
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situaciones de “paz”. Es como si dijéramos que los derechos humanos y la asistencia humanitaria son procesos análogos que se desenvuelven en situaciones que no son idénticas ni similares. Ambos son dos manifestaciones de procesos de apertura y consolidación de espacios lucha por la dignidad humana. Además, en uno y otro contexto, uno de los principales dispositivos de activación que moviliza esos procesos guarda relación con ese “imperativo categórico” que echa por tierra todas las relaciones en que el hombre sea un ser humillado, sojuzgado, abandonado y despreciable. 73 Las consecuencias de esta separación artificiosa son múltiples y los principales
perjudicados
son
los
mismos
seres
humanos.
La
principal
consecuencia a efectos prácticos viene marcada por la paralización de la activación de los mecanismos que se adjudican a una y otra esfera, y que deben desarrollarse
conjuntamente.
Emma
Bonino,
por
ejemplo,
señala
el
desentendimiento de los gobiernos que descargan en las organizaciones humanitarias la gestión de los conflictos que no sabe o no quieren ocuparse, salvo para echar las culpas a éstas cuando no se ha eliminado el sufrimiento humano. 74 Asimismo, a través de esa separación, todo lo relacionado con el tema de la asistencia humanitaria se desmarca del uso de la fuerza, mientras que la protección de los derechos humanos se reduce a la intervención armada concreta, tardía y limitada. Sólo en situaciones calificadas de “extremas”, de violaciones graves y sistemáticas de los derechos humanos de una población se pueden proteger los mismos por medio de la acción bélica, en tanto “intervención de humanidad”. Ésta pasa a concebirse como un elemento de garantía de los derechos humanos, un acto puntual y quirúrgico que, en teoría, pretende sanar o curar una situación de enfermedad en fase terminal, de muerte. Se establece un símil con las medidas que adoptan los bomberos para apagar fuegos. 75 Como 73
Palabras de Carlos Marx tomadas de Franz Hinkelammert, “Plenitud y escasez: la subjetividad del reino de dios”, Pasos, n° 100, p. 9, que a su vez las retoma de Erich Fromm, Marx y su concepto de hombre. (Karl Marx: Manuscritos económicos-filosóficos), FCE, México DF, 1964, p. 230. 74 Ver “Las distintas formas de intervención”, p. 27-28. La Corte Internacional de Justicia en sentencia 9 de abril de 1949, relativa al asunto del Estrecho de Corfú se ha referido a ciertos principios bien reconocidos en el Derecho internacional humanitario, tales como elementales consideraciones de humanidad, que son más absolutos incluso en tiempos de paz que en tiempos de guerra. 75 En el primer sentido, dice Todorov: Han regresado de nuevo a nosotros, por ejemplo, las metáforas médicas aplicadas al cuerpo social, que podían considerarse prohibidas tras su uso
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consecuencia, se invisibiliza y se ignora que hay otras formas de evitar las violaciones masivas de los derechos y de reducir los riesgos que provocan situaciones de emergencia y catástrofe. Al respecto, Andrés Ortega denuncia el hecho de que se gane en capacidad de intervención pero se carezca de instrumentos para resolver situaciones antes de que se degraden, de ahí la importancia de las actuaciones de prevención antes que de “curación”. Y aunque también deben ofrecerse medios para reconstruir lo que previamente se ha destruido, primero hay que evitar aquello que provoca la destrucción. 76 Por parte de los defensores de una asistencia humanitaria diferenciada, se dice que la acción humanitaria está diseñada para contemplar las consecuencias, pero no las causas de los conflictos. No es su papel resolver conflictos. Su único objetivo es proteger la dignidad humana y salvar vidas (posee un carácter imparcial y neutral). No puede ser substituida por una acción política que estudie las raíces de los conflictos y que trate de solucionarlos. Son dos esferas que deben ser claramente distinguidas. Desde el punto de vista del CICR, por ejemplo, la acción humanitaria es inherentemente no coercitiva y no puede ser impuesta por la fuerza. La experiencia demuestra que cuando lo humanitario resulta enredado con una acción política o militar, contribuye más bien a sustentar los conflictos en vez de acabarlos. 77 El propio Jacques Forster, Vicepresidente del CICR, denuncia el peligro que lleva un uso de la ayuda de corte militarista, porque puede dar pie a que el Derecho internacional humanitario sea invocado para justificar una intervención armada. Además, abre la posibilidad a quienes invocan tal intervención armada para resolver una crisis humanitaria, para que puedan eximirse de un total acatamiento del Derecho internacional humanitario. Finalmente, tales expresiones
intensivo en los regímenes totalitarios: se habla de intervenciones quirúrgicas, se afirma que es mejor prevenir que curar, como si las taras de la sociedad se dejaran analizar en términos de enfermedad. La imagen del cuerpo sólo se impone si se concibe a la humanidad como un todo, con un cerebro y un corazón, con brazos que actúan (siempre los mismos) y, también, zonas de enfermedad y corrupción, contra las que es preciso saber protegerse, extirpándolas si es necesario. Ver Tzvetan Todorov, Memoria del mal..., p. 333. En el segundo sentido, Javier Solana habla de un trabajo de bomberos internacionales: reactivo, rápido y eficaz. Pese a que habla de ayuda humanitaria, la asocia a la “intervención de humanidad”. En “Introducción”, Revista de Occidente, n° 236-237, 2001, p. 13. 76 Andrés Ortega, “Antes mejor que después”, Revista de Occidente, n° 236-237, 2001, p. 153 y ss. 77 Ver Jacques Forster, “’Intervención Humanitaria’ y Derecho...”
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
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implican que la acción humanitaria pueda ser impuesta por la fuerza y aplicada con éxito por actores que persiguen otros objetivos no humanitarios, como pueden ser políticos y militares. 78 Por otra parte, el Derecho internacional humanitario no tiene nada que ver con el derecho de los Estados a utilizar la fuerza, mientras los derechos humanos, supuestamente, sí. El papel de aquél está estrictamente circunscrito a poner límites a la fuerza armada, sin entrar en consideraciones de la legitimidad de su uso. Sí se reconoce que en algunas circunstancias específicas, para que la acción humanitaria pueda llevarse a cabo con cierta efectividad, la acción militar puede realizarse para contribuir a mantener el espacio humanitario: por ejemplo la creación de corredores seguros para la entrega de la asistencia humanitaria. Pero posibilitar la acción humanitaria no debe ser el único objetivo de una intervención armada. Además, el “espacio humanitario” hace referencia a las condiciones que se crean para que la acción humanitaria pueda ser implementada con éxito, y los actores humanitarios pueda operar de acuerdo con sus propias reglas. De todas formas, cualquier intervención armada (“intervención de humanidad”) u operación de socorro humanitario con apoyo de la fuerza (“intervención humanitaria”), es en sí misma un resultado de una prevención fallida. 79 La intervención armada con fines humanitarios, a veces es necesaria, pero no una buena solución y seguirá siendo siempre un mal menor en situaciones extremas. Es el resultado de un doble fracaso: el primero de la solución de las diferencias por medios pacíficos, que corresponde a la comunidad internacional; el segundo fracaso es del Derecho humanitario, cuya finalidad es, en las guerras, hacer que se apliquen las normas humanitarias sobre una base consensual, sin necesidad de recurrir a la fuerza. Ésta hay que ejercerla como un último recurso y no como método satisfactorio para solucionar problemas humanitarios.
Erigir en sistema la intervención armada con fines humanitarios sería un desistimiento de la comunidad internacional frente a sus 78
En este sentido ver Jacques Forster, “’Intervención Humanitaria’ y Derecho internacional humanitario”, Discurso inaugural del Noveno Seminario Anual de DIH para Diplomáticos acreditados en las Naciones Unidas, marzo de 2000, en www.wfn.org, (The Wordwide Faith News Archives) 79 Ibid.
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verdaderos desafíos: prevenir los conflictos y promover los valores esenciales que encierra el derecho internacional humanitario. 80
Pues bien, nos encontramos con una falta de legitimidad de las fuerzas armadas como sujetos de la acción humanitaria y de los derechos humanos. El militarismo y su mediación institucional privilegiada, no podrán ser actores ni sujetos de la acción humanitaria y de protección de los derechos humanos.
Lo que ha sido y es causa fundante de violencia estructural –el militarismo– no podrá ser remedio ni antídoto para la herida más trágica de la globalización: las víctimas. El militarismo en su naturaleza constitutiva niega los derechos humanos al proponer como terapia frente a la fuerza del consenso (o disenso) y la palabra, la fuerza de las armas y la lógica de la violencia y la conscripción. 81
Por tanto, hay que rechazar la terminología empleada de “intervención de humanidad” y de “intervención humanitaria” como reacción y crítica a una cultura militarista global que reside y se aloja en toda pretensión de humanización emancipadora, y en toda forma de pensar y afrontar toda tentativa terapéutica para las heridas de la globalización. 82 Las garras del militarismo se extienden más allá de la esfera específicamente militar, apoderándose de todas las áreas del todo social. La acción humanitaria es civil, y también la lucha por los derechos humanos. Se trata de asumir la condición de las víctimas, desde los derechos humanos, englobando éstos tanto los momentos de emergencia y urgencia como los momentos de normalidad y de paz. Existe una contradicción inmanente cuando se habla de “intervención” añadiéndole el adjetivo de “humanitaria”, en el sentido que el término “humanitario” debe reservarse a la acción encaminada a mitigar el sufrimiento de las víctimas y a generar condiciones de posibilidad de existencia. 80
Ver Yves Sandoz, “Límites y condiciones del derecho de intervención humanitaria. Derecho de intervención y Derecho internacional en el ámbito humanitario. Hacia una nueva concepción de la soberanía nacional”, en Sesión pública de la Comisión de Asuntos Exteriores y Seguridad del Parlamento Europeo sobre el derecho de intervención humanitaria, Bruselas, 25 de enero de 1994, http://www.wfn.org 81 Ibid. 82 Ver Asier Martínez de Bringas, “Los derechos humanos como núcleo fundante de la acción humanitaria”, en David Sánchez Rubio, Joaquín Herrera Flores y Salo de Carvalho, Anuario Iberoamericano de Direitos Humanos, (2002/2003), Lumen/Juris, Río de Janeiro, 2002 (en prensa).
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
251
De ahí que Anne Ryniker prefiera hablar de “intervención armada en respuesta a violaciones graves de los derechos humanos y del derecho internacional humanitario”. Incluso no sólo se reducen a esto, porque también se realizan con motivo de la amenaza a la paz y a la seguridad internacionales. El ejercicio de la fuerza militar para matar no es ni un acto humanitario ni un acto de protección de los derechos humanos, dado que los tipos de acción humana implicadas se apoyan sobre valores como los de “humanidad”, “universalidad”, “neutralidad”, “imparcialidad” que cada contexto modula. Tienen como objetivo ayudar a la población en peligro de existencia, tanto en situaciones de normalidad como de anormalidad. El recurso a la fuerza militar, en cambio, incluso para apoyar esos objetivos, entraña inevitablemente atentados contra la población civil, de destrucción de bienes y otros actos de violencia deliberada. Cuando se hace referencia a la “intervención de humanidad” y a la “intervención humanitaria”, si acaso, podría hablarse de un “recurso a la fuerza militar para apoyar objetivos humanitarios en situaciones de crisis que resultan de violaciones en gran escala de los derechos humanos”. 83 La propia Comisión Internacional sobre intervención y soberanía de los estados, creada en septiembre del año 2000, a iniciativa del ex Ministro de Relaciones Exteriores del Canadá, Lloyd Axworthy, en un plazo de un año ha culminado un intento de instaurar un modelo jurídico de intervención. En su informe señala que ante la fuerte oposición expresada y manifestada por agencias, organizaciones y trabajadores humanitarios hacia cualquier tipo de militarización del mundo “humanitario”, considera inapropiado el uso de esta palabra para describir cualquier tipo de acción militar, pues se concibe como un anatema.
La
Comisión
ha
preferido,
para
evitar
malentendidos
y
susceptibilidades, utilizar el término de “intervención” a secas o “intervención militar con el objetivo de protección humanitaria”. 84 Por nuestra parte, calificamos de “intervención militar reactiva de protección de asistencia” a la “intervención humanitaria”; y de “intervención militar reactiva de protección del Derecho internacional” a la “intervención de humanidad”. Nunca se
83
Ibídem. The responsability to protect, report of the International Comission on Intervention and Estate Sovereignty, diciembre 2001, p. 13, www.iciss.gc.ca/report-e.asp 84
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David Sánchez Rubio
puede argumentar desde la legitimidad moral el uso de la fuerza, pues no hay protección de derechos humanos a través de instrumentos que matan pese a que se tenga la intención de salvar vidas. No se articulan tramas sociales con lógicas de emancipación y de autoconstitución de sujetos por medio de la acción bélica. Se pueden dar otras razones, pero no como medios que pretenden incorporar como un elemento de garantía de los derechos humanos a las fuerzas armadas que actúan por medio de la violencia, por mucho que se intente adjetivar con términos tales como “pacificación” y/o “humanitaria”. Además, en el ámbito de las relaciones internacionales, el referente de los derechos humanos y de los seres humanos son secundarios en la toma de decisiones y en las medidas adoptadas.
5.3. Activismo en Derechos Humanos y Asistencia Humanitaria: Un Ejemplo Veamos a continuación, y como finalización, un ejemplo de lo que consideramos representa esta postura que diferencia y confronta la “asistencia humanitaria” con los “derechos humanos”: Según David Rieff, los imperativos morales del “activista de derechos humanos” y del “humanitarista”, son totalmente diferentes. El primero es un absolutista moral por excelencia, que cree defender los patrones que rigen los derechos humanos y, sobre todo, la legislación sobre derechos humanos al pie de la letra si no quiere arriesgarse a ver cómo fracasa toda su empresa. 85 El segundo cree en el “meliorismo”, su labor principal es proporcionar la ayuda que tan desesperanzadamente se necesita y que a menudo sólo ellos pueden ofrecer a las poblaciones pobres y en peligro. Los “humanitaristas” no pueden ni deben ser unos “puristas” como los “activistas de derechos humanos”. Por otra parte, este autor indica que se cree que ambos deben y necesitan trabajar juntos, que las emergencias humanitarias se deben a crisis de los derechos humanos y que hay que enfrentarse a ellas antes de enfrentarse a una emergencia humanitaria. Pero a pesar de todo, lo que está en juego para Rieff es más complejo que una simple división de trabajo: un
85
Ver David Rieff, “¿Qué pasa cuando no todo lo bueno es compatible?”, en El País, sábado 13 de julio de 2002, p. 14.
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
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activista de los derechos humanos quiere ver derrocado a un régimen opresivo, cree que ésa es la única solución a largo plazo. Por el contrario, quien se dedica a labores humanitarias quiere dar de comer a un pueblo, aunque sabe perfectamente que la ayuda alimentaria podría fortalecer al régimen opresor.
Por tanto, se trata a menudo de un conflicto entre dos derechos diferentes, de ahí la trágica posibilidad de tener que elegir entre “buenas acciones” e “imperativos morales” que negamos, pues es como si nos obligaran a elegir la muerte sobre la vida. 86 Ante este razonamiento, al menos una cuestión nos planteamos: ¿acaso no nos encontramos con espacios de lucha por la dignidad y por un principio de humanidad plasmados en distintos niveles? En este caso, proporcionar alimentos es un tipo de garantía de los derechos vinculado con condiciones de vida y en una situación anormal, de conflicto y de urgencia, mientras que el imperativo moral para derrocar un gobierno es una manifestación de resistencia y apertura de espacios de lucha con los que obtener nuevas situaciones favorables para la dignidad humana (que son de cierre para quienes mueren en el camino). Y en ese proceso de lucha y resistencia, simultáneamente, hay que proporcionar asistencia a toda víctima que lo necesite. Si no se combinan como dos facetas de un mismo problema, la idea de sacrificialidad invadirá las acciones a favor o conforme a derechos, principalmente las que implican el uso de la fuerza armada, pues intrínsecamente el sacrificio está tanto en su justificación como en su modo de actuación y ejecución. Nunca habrá derechos humanos para quienes mueren mediante el empleo de la fuerza. Luchar contra el terrorismo o contra violaciones de derechos humanos en nombre de la libertad, la democracia, o los mismos derechos humanos sin importar que caigan vidas, o considerando que son inevitables, implica todo un bagaje ideológico que legitima un sistema u orden que está por encima de los sujetos que lo componen, más aún de quienes se le resisten y oponen. Mediante actos de fuerza armada se pueden salvar vidas pero sólo de manera indirecta, como un efecto secundario de una acción cuyo principal propósito es mantener la 86
Ibídem.
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David Sánchez Rubio
paz y la seguridad internacional, que legitima la estabilidad y el orden de quienes dominan el poder internacional, matando. No se pretende establecer unas condiciones de vida ni para quien se intenta “salvar”, ni para quienes forman parte de la humanidad, sin exclusión de nadie y sin prórrogas en el tiempo. El hecho es que tenemos ante nosotros una curiosa manifestación de una mentalidad simplista, reduccionista, posicional y oposicional, que establece la distinción entre “activistas de derechos humanos” y quienes desempeñan tareas humanitarias (“humanitaristas”). Detrás de esta postura subyace un imaginario de pureza por parte de quienes actúan en nombre de los derechos humanos, cuando de lo que se trata realmente es de que no nos veamos como la encarnación del derecho y la fuerza, y vencedores del mal absoluto. La tentación del bien es nefasta porque sustituye las personas particulares por objetivos abstractos. 87 Asimismo, implica una cultura de sacrificio, en cuyo razonamiento, hay personas prescindibles, sacrificables en nombre de los derechos humanos. Se trata de una posición que muestra un proceso de inversión ideológica y de reversibilidad de los derechos humanos. Además, se trata de una postura que legitima moralmente el uso de la fuerza armada, cuando los derechos humanos son procesos y tramas sociales por medio de las cuales nos podemos auto-constituir como sujetos. Las armas no son instancias que generen esas condiciones. Que se den casos en los que no haya más remedio que utilizarla, por pensarse que es necesario –aunque no inexorable, porque la necesidad ya contiene una toma de partido por parte de quien detenta el poder que declara tal necesidad–, no es una razón para tratar de incorporar el uso de la fuerza armada como un elemento más de protección y garantía de los derechos humanos. No hay dignidad humana que se afirme ni con la creación de situaciones de muerte, ni con la reacción frente a ellas por medio de mecanismos que también la provocan. En definitiva, si observamos los hechos reales en los cuales se ha actuado bajo el rótulo de “intervención de humanidad”, en ningún momento, ni en el contexto espacio-temporal previo a la situación de violación masiva y sistemática de derechos humanos, ni durante el acto de intervención con el uso de la fuerza armada, ni posteriormente, se pretende articular una respuesta relacional, un 87
Tzvetan Todorov, Memoria del mal..., p. 339.
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sistema de tramas de reconocimientos, autoestima y autoapropiación de las capacidades humanos, en donde todos/as sean tratados como sujetos humanos. Ni quien comete el genocidio, ni quien supuestamente salva a las víctimas por medio de la fuerza, pretenden establecer espiritual y materialmente una reapropiación de las condiciones bajo las cuales es posible la actividad de autoproducción humana como actividad particular y genérica, social e individual y universal. Para terminar, y frente a esta postura defendida por Rieff, comentar que existe un dicho popular que viene a decir que si te dan a elegir entre dos caminos, toma uno tercero. El propio Todorov, al respecto señala:
La vida política pocas veces se reduce a opciones tan brutales y no es cierto que sea preciso elegir entre la cobardía de la indiferencia y el caos de los bombardeos. Tal consecuencia se impone sólo si se decide de antemano que “actuar” significa “actuar militarmente”. Ahora bien, existen otras formas de intervención distintas a los ataques militares. No porque exista acuerdo sobre el fin existe, automáticamente, acuerdo sobre los medios. 88
Trabajar a favor de los derechos humanos, por el contrario, conlleva el desarrollo de actuaciones que establezcan condiciones de existencia y de vida para todos/as. La mejor forma para ello es la articulación tanto de medidas preventivas que eviten la aparición de situaciones de violaciones masivas y graves de los derechos humanos como de actuaciones reconstructivas dirigidas a establecer la paz y no a potenciar la guerra –entre las que se encuentra la cooperación al desarrollo y la ayuda humanitaria bajo una lógica de colaboración, dialogicidad, reciprocidad, horizontalidad y respeto mutuo.
88
Ibídem, p. 310.
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David Sánchez Rubio
Los Derechos Humanos como Núcleo Fundante de la Acción Humanitaria 1
Asier Martínez de Bringas
Sumario: 1. Marco de Comprensión y Punto de Partida. 2. ¿Puede el Humanitarismo Armado Ser Actor Humanitario? 3. Conclusiones. Referências Bibliográficas.
1. Marco de Comprensión y Punto de Partida El actual proceso de globalización envuelve y habilita todo ámbito de posibilidades de la acción humana. La proclamada autonomía de las esferas de valor por la que las cuestiones de hecho (ciencia), cuestiones de justicia (moral) y cuestiones de gusto (estética), proclamaban su libre determinación frente a direcciones religiosas, cosmológicas o historicistas, vuelven a quedar suturadas y entrelazadas por el manto demiúrgico de la globalización. La globalización vertebra Economía-Política-Cultura como un monolito inconsútil que no entiende de externalidades ni de ritmos autónomos y segregados. La globalización nos abre a nuevas dimensiones por causa y efecto de la interconexión e interactuación global. La internacionalización de los procesos, como mero momento agregativo de fenómenos y eventos, queda desbaratado por el eclipse de la simultaneidad: los nuevos desarrollos informacionales permiten una acción social global de tiempo inmediato y espacio ubicuo. Sin embargo, no se procede a explicar que esa simultaneidad de procesos que arrastra consigo la globalización tiene un lado oscuro y arredrado: la exclusión selectiva y la desconexión indiscriminada de la mayoría de la humanidad de un proceso integral de globalización. La globalización de la crisis, guerras y desgarros, tragedias, hambrunas y catástrofes, es ese reverso nunca referido en los discursos políticos y científicos, pero que inevitablemente caracterizan los procesos globales desde sus momentos constitutivos. Lo que hace eficaz y hábil a la globalización es oscurecer y silenciar su momento trágico: la caterva de víctimas que produce. El nuevo escenario que nos preocupa y aturde es el de la universalidad de
1
Este artículo debe mucho a la inestimable ayuda y a las oportunas sugerencias hechas por David Sánchez Rubio, profesor de la Universidad de Sevilla.
la tragedia humana que es inevitablemente global. Paralelamente a la globalización del mercado y del mundo administrativo que colonizan los corazones y sensibilidades de los mundos de la vida mediante la implementación de una política que se formatea como global a través de un multilateralismo difuso hegemonizado por USA; y la exposición de un modo de entender lo cultural que pone todo su potencial de significación al servicio y causa de la tiranía de los mercados y que pretende hacer plausible esa ideología práctica del “american way of life”; irrumpe el espectro que horripila a la ciudadanía y deja hirsuta la sensibilidad, como es el drama de la exclusión global de la materialidad antropológica, que es reciclada y calificada como las víctimas de la globalización. Asumiendo que el dinamismo de la globalización está atravesado por el drama de la exclusión, pretenderemos acercarnos a lo que se ha propuesto como solución balsámica en el paroxismo de la crisis: la acción humanitaria sobrevenida. Pretendemos desarrollar una crítica a una cultura militarista global que reside y se aloja en toda pretensión humanitaria y en la forma de pensar y afrontar toda tentativa terapéutica para las heridas de la globalización. El militarismo atraviesa todo intento de desarrollar modelos alternativos de seguridad humana y pervierte y distorsiona el contenido de prácticas vitales y significaciones de pacifismo activo, militarizándolas. El manto protector del militarismo no reduce nunca su influencia a la esfera específicamente militar; imbuye con su poderío y atracción el todo social. Nuestra crítica, asumiendo el carácter denso y estructural del militarismo en la globalización, se centrará en lo que son sus agentes privilegiados –los ejércitos– en un momento concreto de su actuación: la acción humanitaria. La trama humanitaria, tan urgentemente necesaria como susceptible de espectacularización y teatralidad, tiene el peligro de optar por una síntesis cómoda entre estas dos opciones tan mal avenidas por su inmanente repulsión. Si la tragedia de la humanidad necesitante y espoleada por una realidad que la devora, se trivializa con el gusto del sensacionalismo sardónico e irreverente, a la vez que se hace depositario privilegiado del rumbo de este barco a la deriva a las FF.AA, invertimos la realidad, la fetichizamos y caemos en la tentación de narcotizarla con los mismos bálsamos que la llevaron a su desgarramiento humano actual: el militarismo como estructura y su eje de dinamismo, la fuerza de
258
Asier Martínez de Bringas
las armas. Partiendo de la constatación de un diagnóstico: la existencia de una mal formación de nacimiento o una desviación en las raíces y gérmenes de la práctica humanitaria convencional; asumiendo también sus consustanciales problemas de aprendizaje 2 (inevitable,
por otro lado, en
cualquier práctica
humana);
adoptaremos una perspectiva en la consideración de las FF.AA. que sitúe su eje epistemológico, sus motivaciones morales y sus exigencias políticas en los derechos humanos. Los derechos humanos serán cabeza de puente, mediación privilegiada y propuesta última a la que deberá arribar necesariamente la acción humanitaria. La acción humanitaria guarda una posición restauradora y subsidiaria respecto a los derechos humanos, no pudiendo nunca sustituirlos ni desplazarlos; de ahí, que ésta se entronque y encuentre su sentido en aquellos. La defensa de un pacifismo bien entendido es aquél que hace aprehensión crítica y radical de los derechos humanos. Éstos serán criterio último, motivo fundante y condición de la acción humanitaria. Esta perspectiva supondrá entender los derechos humanos como desobediencia civil. Tomarse en serio la acción humanitaria supone entender ésta en un sentido estructural. No es posible proceder mediante la separación tajante con la que se expresa la dicotomía ayuda-intervención. Ello es un todo estructural con relaciones referidas y remitidas. La intervención es fruto de una ayuda no prevista o mal gestionada. Resultado de una comprensión militar de la seguridad que evita la implementación de mecanismos de alerta temprana, y de otras formas de comprender la seguridad humana, que sitúen a las víctimas como sus referencias prioritarias. En numerosas ocasiones se implementa la acción humanitaria cuando la crisis y el conflicto han eclosionado y deflagrado; o cuando éstos han alcanzado un grado alto de madurez y desarrollo. No hay un programa intencional de actuación anterior a la crisis y a su trágica irreversibilidad. Muchas veces, se accede a la acción humanitaria como la vía corta y abreviada para solucionar un conflicto; como sustitutiva de la acción política civil –la civilidad del poder–, lo que es inaceptable. Por tanto, habrá que sospechar necesariamente de toda intervención humanitaria por lo que tiene de vulneración y merma de los derechos 2
D. Sogge “Los subalternos en la cadena de ayuda” en Los desafíos de la acción humanitaria, Unidad de Estudios Humanitarios, Icaria, Barcelona, 1999, p. 154.
Los Derechos Humanos como Núcleo Fundante de la Acción Humanitaria
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humanos, frente a su supuesta pretensión restauradora; y por lo que, paralelamente, supone de mercantilización del escándalo y espectacularización del riesgo. Vivimos un mundo cuyas condiciones de normalidad y sosiego vienen caracterizadas por la extrema desigualdad: de 6000 millones de habitantes que habitan el planeta, 2800 viven con menos de 2$ al día y 1200 con menos de 1$; el ingreso medio de los 20 países más ricos es 37 veces mayor que el de las 20 naciones más pobres, cuestión que se ha duplicado en los últimos 40 años 3. Siendo esto así, ¿por qué interesa llegar a tildar una situación de crisis humanitaria cuando el momento de “ideológica normalidad” que vivimos ya supone una constante y perpetua crisis? Si la urgente normalidad que nos rodea no es motivo de concienciación y reacción humanitaria, ¿no será que la espectacularización de la tragedia y el clímax del riesgo son condiciones necesarias para inyectar dinero, interés y voluntad en un sector –el humanitario– cuyo principio y fundamento han dejado de ser las víctimas y que para enmascarar y solapar esta pretensión es necesario vestirlas de lentejuelas? ¿no estaremos ante un producto más –las víctimas– que sólo provocan y excitan un sospechoso interés en momentos de supuesta discontinuidad histórica, de crisis generadas y elaboradas por los medios de comunicación precisamente porque es en esos momentos cuando adquieren sumo interés y preponderancia para el mercado, momento en que las víctimas se convierten en posibilidades comerciales por efecto y gracia de su teatralización publicitaria?, ¿no serán las crisis humanitarias una construcción telemática más que tiene el peligro de hacer de las víctimas un fenómeno coyuntural, que reaparece de manera espasmódica en tiempos en que la moral del consumidor así lo exige, pero que conlleva a su vez el gran riesgo de invisibilizar a las víctimas y a los procesos de victimación como momentos estructurales, perennes y sistemáticos de la globalización? En el marco de la acción humanitaria, entender los derechos humanos como criterio de verdad, supondrá dar un estatuto de centralidad al hecho de producir, reproducir y desarrollar la vida de las víctimas con prioridad lógica, temporal y discriminada hacia los más vulnerables por ser su vida la que más 3
Informe sobre el desarrollo mundial 2000/2001. Lucha contra la pobreza, Banco Mundial, Ed. Mundi Press, p. 3.
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trágicamente exhorta a la conciencia internacional. Las víctimas, como criterio de existencia de toda acción y derecho humanitario 4; como el contenido que rellena y otorga sentido a una disciplina que sería pura formalidad si no se dejara desbordar y aleccionar por esta condición tan dramática como ubicua, tienen el peligro de quedar abstraídas y diluidas en su corporalidad sufriente y necesitante. La dignidad humana es victimada precisamente cuando se cuantifica y entra en competencia con otras variables. Para ello será necesario diluir y vaciar de contenido la materialidad que da consistencia a la dignidad humana, descorporalizándola y obviándola en sus necesidades materiales. En la medida que esto se realiza nos situamos ante cuerpos disponibles, fungibles, mecantilizables, que entran en competencia. Pero la dignidad humana en su corporalidad ni tiene competencia ni admite competencia. Sólo una racionalidad reproductiva que no reduzca la vida humana a un cálculo empresarial de costos, sino que considere que la pérdida de la vida humana es un costo infinito, pauta y criterio para valorar y considerar cualquier otro costo social5, permitirá rescatar la dignidad humana de su condición subalterna y de su calificación vejatoria: la de víctima. La consideración de víctima no es una denominación originaria y constitutiva que dignifique y ensalce al ser humano; es una calificación derivada y adjudicada, fruto de la infravaloración de la corporalidad humana; de un vaciamiento y sometimiento de ésta a la mera cuantificación estadística; el resultado de una consideración de la vida como mera variable y, por tanto, como un simple costo de mercado. Es la consecuencia irremediable de no haber tomado en serio la vida humana, de haberla subestimado en su potencialidad y profanado en su sacralidad. Cuando esto ocurre, acaece la victimación como proceso. Por tanto, la comprensión de las víctimas en el ámbito de la acción humanitaria deberá hacerse desde una habilitación de la razón reproductiva 6 que se revista y capacite mediante derechos para atender las necesidades físicobiológicas vulneradas; dando cobertura a estructuras psíquicas golpeadas y 4
Ese sería el tema del libro publicado por la Unidad de Estudios Humanitarios, Puertas cerradas. El acceso a las víctimas en la acción humanitaria, Icaria, Barcelona, 2001. 5 F. Hinkelammert y H. Mora, Coordinación social del trabajo: Mercado y reproducción de la vida humana, DEI, San José, 2001, p. 117-118. 6 O. c., p. 114 y ss.
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mancilladas; a memorias profanadas y desbaratadas que exigen un tratamiento específico para poder recuperar la dignidad de vivientes y poder desarrollar la vida con garantías. Derechos que atiendan a corporalidades indiscriminadamente abandonadas por la esfera pública y cruelmente perseguidas por el poder (como es el caso de los refugiados). Persecución y abandono son dos responsabilidades de las que tendrá que hacerse cargo el poder para poder restaurar la vida de las víctimas mediante derechos, que éste, entre otros y por influencia de otras variables, ha causado por acción u omisión. Las víctimas, al ser expresión y sintetizar el mayor grado de precariedad y necesidad humana, constituyen el momento más cualificado para el ejercicio y la fundamentación de los derechos humanos. Las víctimas son el lugar en que la universalidad de los derechos se expresa con más intensidad y cualidad. Si la universalidad de los derechos se encarna con verdadera radicalidad en las víctimas, es porque en ellas residen con más urgencia y de manera más explicita las condiciones que propiciaron históricamente el advenimiento de los derechos humanos: la necesidad de restaurar la condición humana de una situación agónica de precariedad, vulneración, inanición, presupuestos todos ellos que impiden la producción, reproducción y desarrollo de la vida. Si los derechos humanos surgen como instancias críticas que harán viable y sostenible la dignidad de los sujetos, éstos encuentran su lugar privilegiado en las víctimas cuya vulnerabilidad está a punto de desbordarse, siendo un derramamiento que no admite retorno. Afirmar esto no supone entrar en una dinámica competencial de derechos (los de las víctimas, como derechos más cualificados, frente a los derechos de las no-víctimas)7; sino enconar los esfuerzos para la implementación de una política de derechos que encauce la asimetría de quienes tienen más posibilidades de morir antes de tiempo. Las víctimas ofrecen los criterios para que el contenido de los derechos garantice realmente la dignidad de todos y no sólo la de aquellos que estaba a priori asegurada; son propedéutica para transitar hacia una situación transvictimaria. 7
La dialéctica victimas versus victimarios es un simplismo ortodoxo del que pretendemos evadirnos. No se trata de volver a poner en el centro de la lucha por la hegemonía el viejo tópico de pugna de contrarios -opresores contra oprimidos-, lo que cualificaría moral y políticamente un lado de la relación polar. Se trata de restaurar la dignidad de los sistemáticamente excluidos, situándolos a la misma altura de quines ya gozan y siempre han gozado de derechos.
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Asumir la condición de las víctimas desde esta perspectiva nos sitúa ante el moderno fenómeno biopolítico 8 en que la vida biológica, en su intensa corporalidad y vitalidad, se convierte el hecho político decisivo. El poder encuentra su potencialidad, sus nuevas formas de hegemonizarse y sus réditos más intensos, al aplicarse directamente sobre la vida humana ejercitando sobre ella controles precisos y regulaciones generales.
El poder reside y ejerce en el nivel de la vida, de la especie, de la raza y de los fenómenos masivos de población (...) Ahora es en la vida y a lo largo de su desarrollo donde el poder establece su fuerza; la muerte es su límite, el momento que no puede apresar 9.
La política moderna pivota y se mueve sobre un cambio de paradigma que no trata ya de hacer jugar la muerte en el campo de la soberanía, de atemorizar el espíritu humano con la coacción límite de la muerte; sino espaciar y regionalizar el material viviente humano en un dominio que posee valor y utilidad para el poder10. El
poder
se
enseñorea
y
se
legitima
produciendo,
administrando
e
institucionalizando los procesos de victimación. La biopolítica no es un fenómeno no-intencional, un simple efecto colateral del poder; sino el resultado de una estrategia que conlleva la aplicación de unas técnicas seriamente meditadas y ansiosamente buscadas. El eje de la moderna dominación y exclusión radica en la potencialidad sustraída y drenada de la vida humana. El mantenimiento de una 8
“Es característico de la dialéctica de la modernidad el que si bien sus tendencias principales desvalorizan el Cuerpo y tienden a expulsarlo de todos los sectores importantes de la vida social, fue precisamente la modernidad la que emancipó legalmente el cuerpo por primera vez en la historia escrita, al ampliar la ley de habeas corpus, antes privilegio del noble, y convertirla en un principio general para todos (...) Nadie que sea un simple cuerpo, dice el razonamiento, puede convertirse en una persona política y racional. Para conseguir esto último, hay que liberar al simple “Cuerpo” (en otras palabras, hay que acabar con la cautividad de un ser potencialmente racional); la saludable norma de lo espiritual no llega hasta después. Pero lo irónico del proceso moderno fue precisamente que este acto de liberación, cuyo objetivo proclamado era acabar con la corporeidad abstracta, preparase el camino para la biopolítica. No existía nada parecido a eso antes de la modernidad. Nada habría legitimado la búsqueda de una política diferenciada del Cuerpo en un mundo en que el Cuerpo (su autonomía y su supervivencia física) estaba de un modo u otro vinculado a todo tipo de política” en A. Héller y F. Fehér, Biopolítica. La modernidad y la liberación del cuerpo, Península, Barcelona, 1995, p. 18-19. 9 Foucault, Historia de la sexualidad. 1. La voluntad de saber, Siglo XXI, Madrid, 1984, p.166-167. Una versión prolongada y actualizada del pensamiento biopolítico de Foucault sería el magnífico libro de Giorgio Agamben, Homo Sacer. El poder soberano y la nuda vida, Pre-Textos, Valencia, 1998. 10 Foucault, “Del poder de soberanía al poder sobre la vida” en Genealogía del racismo, La Piqueta, Madrid, 1992, p. 247-273.
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vida en lo liminar, en los límites tolerables de la existencia, congelando y reteniendo su sostenibilidad reproductiva y haciendo de ésta una incertidumbre por la que hay luchar y movilizarse a diario, es el mayor ejercicio de dominación, por un lado, y de subyugación, por otro. Es la clave de la nueva hegemonía del poder. Por tanto, las víctimas como realidad palpitante no admiten ejercicios de hermenéutica, grados de comprensión variables y distintos de su condición, o matizaciones en su naturaleza por los señores de la ayuda. Por tanto, la política externa de los Estados-Nación por mediación de sus hegemonías políticas militares como instrumento privilegiado de intervención, no podrán moldear con pretensión legítima en ámbito de vivencias y de sentidos de las víctimas. Serán éstas las que autorizarán la nominación y jerarquización de los distintos actores humanitarios y nunca al revés. El sentido de la acción humanitaria destila desde las víctimas –vehiculadas por instituciones normativas privilegiadas, los derechos humanos– hacia el poder. El flujo de consentimiento desde el desgarro de las víctimas será el que nos habilitará competencialmente; cualquier subversión en su diagrama nos facultaría para ejercitar los derechos humanos como desobediencia. Por tanto, si un actor humanitario se constituye a priori y en abstracto, sin referencia a las urgencias, condiciones y exigencias de las víctimas, tendrá grandes posibilidades de olvidar los derechos humanos como criterios posibilitadores, y de caer en la mercantilización cosificante de aquellos con quienes se trabaja: los sujetovíctimas. Olvidar los sustratos que nos constituyen y nos impulsan a trabajar, puede llevar a convertir la acción humanitaria en un negocio que regatea recursos humanitarios, que comercia usureramente con aquello que posibilitará la vida, que distribuye sin criterios lo que exige una racionalidad extrema acompasada con solidaridad. Esta exhibición de amnesia puede hacer que las víctimas, por la acción confabulada de la ayuda y el poder de dominación de quienes la posibilitan, resultan domésticas y enjauladas. Se procede a una inversión de los marcos categoriales de los derechos humanos por la que se justifica la intervención en nombre de éstos, para acabar violando más derechos. La actitud reparadora patentada bajo el formato de la legitimidad que otorgan los derechos humanos,
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supone una estrategia muy sutil y bien pertrechada, que abre las puertas de la impunidad sobre todos los derechos de aquellos que han sido calificados, de forma irrefutable –ya que no cabe prueba en contrario–, como violadores y enemigos acérrimos de los derechos humanos 11. Eso ocurre cuando se militariza la ayuda humanitaria; cuando el ámbito militar de la acción humanitaria adquiere una preponderancia y omnipotencia tan hegemónica que oscurece y niega toda civilidad de las víctimas que es lo primario y fundante. Aunque lo desarrollado pueda resultar obvio a las conciencias, asumir los derechos humanos como momento crítico y radical para comprender la acción humanitaria supone que ésta quedará mediatizada, corregida y limitada desde aquellos. Si la producción, reproducción y desarrollo de la vida de las víctimas atraviesa el campo de posibilidades y exigencias que nos compete, ésta máxima será también quien determinará la legitimidad, o no, de proyectos, diseños humanitarios y actores. En este sentido consideramos que desde la misma lógica de los derechos humanos, el militarismo y su mediación institucional privilegiada – los ejércitos y las FF.AA.–, no podrán ser actores ni sujetos de acción humanitaria. Lo que ha sido y es causa y motivo fundante de violencia estructural –el militarismo–, no podrá ser remedio ni antídoto para la herida más trágica de la globalización: las víctimas. El militarismo en su naturaleza constitutiva niega los derechos humanos al proponer como terapia frente a la fuerza del consenso (o disenso) y la palabra, la fuerza de las armas y la lógica de la violencia y la conscripción. Admitiendo pocas inflexiones en este postulado, la de negar la capacidad para ser actor humanitario a los ejércitos, no nos podremos dejar llevar por la esperanza de una idea límite y trascendental como la de un mundo sin ejércitos ni conflictos –propuesta de la que tampoco se abdica como dinamismo utópico de la política–, y habrá que ubicar la presencia de éstos en la acción humanitaria, aunque de manera subalterna y contenida y nunca como actores y sujetos.
11
“Después de la guerra del Golfo, la defensa de los derechos humanos se ha transformado en un acto subversivo en contra del cual está la misma opinión pública. Y es que, de ahora en adelante, el movimiento a favor de la paz ha sido caracterizado como el verdadero peligro; la guerra, en cambio, es presentado como “Guerra para la Paz”, como “intervención humanitaria”, como el único camino realista para asegurar la paz”, F. Hinkelammert, “La proyección del monstruo: la conspiración terrorista mundial” en Pasos, n° 101, (mayo-junio) 2002, p. 33.
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2. ¿Puede el Humanitarismo Armado Ser Actor Humanitario?
La formulación retórica ya encierra una respuesta inevitable: la de la falta de legitimidad de las FF.AA. como sujetos de la acción humanitaria. Con ello no se pretende una crítica gratuita, enconada y sesgada contra la institución militar; se trata, fundamentalmente, de de-construir el falso busto con el que ha autoeregido el poder su vertiente militar al presentarlo como plataforma para una filantropía universal y escuela para la construcción de la paz y la libertad 12. El militarismo, para ganar espacio social y legitimidad, abandera, renovadamente, un estatuto que no le pertenece porque nunca lo ha cultivado, que le resulta extraño y lesivo y que, además, se instaura como una contradicción irrefrenable en el seno de su propia naturaleza constitutiva. Cultura de paz y militarismo lejos de abrazarse y enredarse afectivamente, han sido enemigos históricos. Por ello, la acción humanitaria es una disciplina que por principio resulta extraña al militarismo, lo que exigirá, por tanto, promocionar y fomentar la acción humanitaria civil por ser ésta quien más se interesa por conocer y mejor se informa para asistir a las víctimas; para conocer sus necesidades y urgencias; para diseñar planes estratégicos y de logística no derivados de la manera militar de comprenderse y entenderse con los conceptos de seguridad y riesgo. Una acción humanitaria civil siempre será más eficiente, frugal en recursos y fructífera desde el punto de vista de los derechos humanos. La inteligencia militar, su racionalidad y estructura, está sensibilizada y habilitada para la confrontación bélica; sin embargo, resulta agnóstica e inespecífica respecto a un humanitarismo centrado en las víctimas. La estructura militar, ni sabe ni pretende derivar y
12
Es muy significativo que tras las cruentas guerras centroamericanas, por ejemplo, tanto en El Salvador como en Guatemala, los grandes núcleos de población estuviesen florecidos y adornados con grandiosos carteles que rezaban “El ejército trabaja por la paz”, “El ejército es constructor de paz”. De manera muy similar se ha ataviado la propaganda con la que se quiere renovar y depurar las posibilidades y funciones del nuevo ejército profesional en España, sabiendo que su prestigio y respetabilidad gozaban de una debilidad endémica. La necesidad de legitimarse, exige abrazar la cultura de paz como el mejor barniz para ganar y hacerse con un espacio social hasta ahora desconocido para el militarismo, pero que le podrá reportar réditos de popularidad además de encauzarle para alcanzar una posición de privilegio en la acción humanitaria. Resulta paradójico un despliegue publicitario y propagandístico tan desorbitado como novedoso, para adherirse estéticamente a lo que ha sido la crítica más densa al militarismo: la cultura de paz y de los derechos humanos.
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facilitar sus recursos y capacidades al servicio de la civilidad del poder 13. La historia como dinamismo y como tradición nos ha mostrado que la legitimidad militar se ha revelado a través de dos rostros: uno, que se expresaba como legitimidad tradicional y constitutiva, por la que las FF.AA. jugaban un papel crucial en la modelación y conformación del espíritu y de la identidad nacional; otro, fruto del desgaste y desprestigio que la acción bélica había comunicado a las instituciones militares a lo largo del siglo XX, y que la acción crítica de los movimientos pacifistas, como filtración capilar, había conseguido oscurecer y declinar: sería la legitimidad instrumental, aquella que contempla al ejército y a las FF.AA. como mal necesario y tolerable y que desde perspectivas pacifistas se entiende sencillamente como mal innecesario. A través de la legitimidad militar tradicional se establecía el fertilizante necesario para conjugar de forma acompasada y rítmica la guerra con la construcción de la identidad nacional, desde el postulado de una legitimidad militar asentada y coercitivamente mantenida. Es decir, la legitimidad militar asumía un papel hegemónico en la construcción política del Estado por medio de la ritualización de la guerra 14. Se trataba de dar formato a la máxima de Clausewitz de continuar la política mediante otros medios. La conformación política de muchos Estados europeos se produce gracias al cedazo selectivo y homogeneizante que el poder militar aplica sobre la materia prima humana de un territorio, aglutinándolo en torno a una manera común de sentirse y comprenderse. Todo ello bajo la égida de un liderazgo autoritario soberanizado
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En este aspecto y corroborando nuestra posición, resulta enormemente revelador el informe desarrollado por el Development Assistance Committee de la OECD-OCDE en 1997, en donde procede a una auditoría contable y comparable entre los costos de la acción civil humanitaria y la acción militar humanitaria. La propuesta final, a partir de los resultados derivados de este análisis de campo, es la desmitificación y deslegitimación de las ventajas a priori de la intervención militar en cuestiones humanitarias. Éstas, ni son más efectivas, ni más eficaces, ni siquiera más económicas desde una perspectiva estrictamente de mercado. Los costos de la intervención militar son exponencialmente más altos que los de la acción civil; el problema está en que mientras los primeros se promocionan intensivamente, los segundos se desatienden intencional y cínicamente. La acción humanitaria no conoce una perspectiva que enfatice, con prioridad indiscutible, el lado civil de la acción e intervención, reduciéndose, muchas veces, a una consideración estrictamente militar de los costos y de la procedimentalidad de la acción. Cf. Conflict, Peace and Development Co-operation. Civilian and Military Means of Providing and Suporting Humanitarian Assistance During Conflict. Comparative Advantages and Costs, Report n° 1, en http://www.oecd.org/dac. 14 Anthony Smith “War and Ethnicity: The Role of Warfare in the Formation, Self-images and Cohesion of Ethnic Communities” en Ethnic and Racial Studies, vol. 4, n° 4, (octubre 1981), p. 65 y ss.
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desde la esfera militar 15. La preponderancia militar en el comando estatal y en el despliegue de la soberanía adherido a éste, alcanzaba su paroxismo en la guerra: expresión simbólica máxima para la expansión y establecimiento de la identidad. La guerra, como recurrencia sistemática del poder militar, ha sido la forma más eficaz para la construcción política de los Estados mediante la exhibición y conjugación dialéctica del par amigo-enemigo 16. Para ello, el aparato militar ha sido movilizador fundamental, haciendo participar a los sujetos en las guerras y cohesionando sus identidades mediante la participación colectiva; ello iba acompañado, a su vez, de una potente maquinaria de propaganda que eliminaba demagógicamente cualquier escrúpulo sobre el uso de la violencia como medio de acción política; a lo que habría que sumar la potencia cohesionadora y centralizadora que la estructura militar ha desplegado para evitar fracturas y pérdidas en la estructura hermética de su ámbito soberano, lo que evitaría tránsfugas en una solidaridad coercitivamente implantada, y un sentimiento de unidad constitutiva y originaria recogida bajo el concepto de Estado 17. Por tanto, la guerra ha fungido como forja de identidades nacionales a la vez que, paralelamente, coadyuvaba a la construcción nacional y a su materialización institucional en forma de Estado. Toda esta agresiva dirección ha sido monopolizada y adoctrinada desde la vertiente militar del poder. Conseguido esto, la legitimidad tradicional es subrogada por la legitimidad instrumental debido al desgaste sufrido por el factor militar. Una vez que la constitución política del Estado adquiere cierta consistencia y solvencia, a la vez que ciertas cotas de democracia, procede a una reubicación del estamento militar que no podrá seguir ocupando una posición expresamente hegemónica en el 15
Charles Tilly, Coerción, capital y los Estados europeos, 990-1990, Alianza, Madrid, 1992, cap. III.; X. Aguirre, Yugoslavia y los ejércitos. La legitimidad militar en tiempos de genocidio, Catarata, Madrid, 1997, p. 110-120. 16 “El enemigo político no necesita ser moralmente malo, ni estéticamente feo; no hace falta que se erija en competidor económico, e incluso puede tener sus ventajas hacer negocios con él. Simplemente es el otro, el extraño, y para determinar su esencia basta con que sea existencialmente distinto y extraño en un sentido particularmente intensivo”(57); “Enemigo no es pues cualquier competidor o adversario. Tampoco es el adversario privado al que se detesta por cuestión de sentimientos de antipatía. Enemigo es sólo un conjunto de hombres que siquiera eventualmente, esto es, de acuerdo con una posibilidad real, se opone combativamente a otro conjunto análogo. Sólo es enemigo el enemigo público, pues todo cuanto hace referencia a un conjunto tal de personas, o en términos más precisos a un pueblo entero, adquiere eo ipso carácter público” (p. 58-59), Carl Schmitt, El concepto de lo político, Alianza, Madrid, 1991. 17 R. Bañon y J.A. Olmeda La institución militar en el Estado contemporáneo, Alianza, Madrid, 1985, p. 284 y ss; X. Aguirre, Op. Cit., p. 112-113.
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Estado. El rostro civil del Estado irrumpe con fuerza, controlando y gestionando la estructura militar. Además, el ritmo progresivo con que se va asentando la cultura democrática junto con su blasón más férreo, los derechos humanos, incita el despertar de una conciencia pública cívica que difícilmente tolera la pertinencia de la presencia pública de lo militar en la vida cotidiana del ciudadano. Hoy el estamento militar trata de recuperar parte de la legitimidad perdida, de reforzar su añeja y altanera hegemonía, colonizando otras esferas y espacios de lo social hasta ahora ignotos para él. Las FF.AA. necesitan renovar e higienizar su expediente para ganar una posición política en la sociedad civil. Se trata de reconstruir la perdida legitimidad tradicional con rostros actualizados. De ahí que, ataviados con las posibilidades que otorga el mercado publicitario, la institución militar se invista como eje cualificado en la construcción y distribución de una cultura de paz como si de una mercancía más se tratara; como fuente dimanadora de virtudes cívicas y como correa de trasmisión de las mismas. La necesidad de ubicarse como sujeto activo y privilegiado de la acción humanitaria, constituye una nota más de este despliegue. La recepción de la legitimidad pasa necesariamente por nominarse sin ningún tipo de prejuicio, como actor humanitario al mismo nivel y en la misma calidad que cualquier otro actor. Por ello y conociendo la naturaleza con la que se ha identificado y reconocido la institución militar, y las estructuras comportamentales con la que se ha expresado y se expresa a lo largo de la historia, no podrá ser considerado actor humanitario en la perspectiva y desde la lógica con la que nos habilitan los derechos humanos. Ello no significa que, dada la conflictividad compleja de lo real, estén inhabilitados para desempeñar una función en este campo; sin embargo, ésta siempre estará subordinada al poder civil y ejercerá una función delegada respecto a lo que éste y demás agentes humanitarios dispongan. La naturaleza de la racionalidad militar se ha venido caracterizando por criterios de funcionalidad, de eficacia y de máxima rentabilidad a corto plazo. La intervención militar viene motejada por su carácter quirúrgico y epidérmico; por el oscurecimiento de intereses nacionales específicos y por la colonización de sectores civiles y recursos humanos. Es significativo, en este sentido, que bajo el criterio de máxima eficacia bélica, se actúe, a su vez, bajo el mandato de mínimas bajas militares, lo que ha exigido un cambio en la naturaleza de las intervenciones
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militares. Se ha sustituido la presencia territorial del ejército por la intervención aérea 18 mediante la pedagogía del bombardeo; lo que supone mínimo gravamen militar con máxima indiscreción sobre víctimas civiles. Se produce lo que habíamos anticipado: se invisibiliza la víctima, se la considera residuo del espectáculo humanitario al nominarla como daño colateral, y se abandona el núcleo fundante básico que había permitido y posibilitado la intervención: los derechos de las víctimas. Además, ciertos Estados, como es el caso de los EE.UU, desde el fiasco intervencionista de Somalia, recoloca la logística militar reduciendo su participación en futuras operaciones de paz de la ONU a aquellas que tuviesen importancia estratégica directa para sus intereses19. Se desenfoca y se desnaturaliza el objeto de la intervención, pervirtiendo la completa estructura de la acción humanitaria. Por ello, este carácter selectivo de la intervención hace de los medios fines, a la vez que el objetivo y el motivo fundante de la acción queda anulado y desplazado. Por ello, como venimos insistiendo, la acción humanitaria civil puede tener más ventajas comparativas que la militar si se la promociona económicamente 20. Someter la acción acción civil humanitaria a una prodigalidad indigna, constituye la clave para la reivindicación y justificación del protagonismo del sector militar en la ayuda humanitaria. De esta manera bregamos hacia el núcleo fuerte de nuestro argumento. Habíamos sostenido que el principio fundante básico que relata y da contenido último a la acción humanitaria, sería el respeto y la promoción inexcusable de los derechos de las víctimas. Sin embargo, ciertas prácticas humanitarias han relegado este factor por constituir un gravamen demasiado costoso y, por tanto, necesariamente dispensable 21. Las políticas estratégicas que ocultan las intervenciones
militares
18
(intereses
político-económicos
específicamente
A. Roberts El papel de las cuestiones humanitarias en la política internacional en los años noventa” en Los desafíos de la acción humanitaria, Op. Cit., p.66. 19 A. Ramsbotham y J. Raisin, “Ayuda, desarrollo e intervención humanitaria” en Op. Cit., p. 194 y ss. 20 Cf. Conflict, Peace and Development Co-operation. Civilian and Military Means of Providing and Supporting Humanitarian Assistance During Conflict. Comparative Advantages and Costs, OECDOCDE, DAC, 1997, Op. Cit. 21 Para Human Rights Watch, el desfase entre realidad e idealidad en la protección de los derechos humanos en las operaciones de paz de El Salvador, Camboya, Yugoslavia, Somalia e Irak, es tildada de “agenda perdida”. Se procede a una adulteración tal de los verdaderos motivos de intervención, que lo que acabó imperando fueron motivos domésticos, interesados e instrumentales. Las víctimas y los derechos humanos fueron la parte dispensable y olvidada de estas intervenciones. H.R.W., New York, 1993.
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identificados
con
Estados-Nacionales
concretos),
resultan
inversamente
proporcionales a la protección y promoción de los derechos humanos. El coste de éstos supone una minorización de los réditos y ventajas que impulsaban los verdaderos motivos de la intervención: intereses estratégicos de los Estados. Por ello es necesario sacrificar las víctimas para que las injerencias continúen siendo rentables según los criterios que evalúen los intereses de intervención de cada Estado; lo que, dramáticamente, no acaba coincidiendo con los intereses de las víctimas. Todo ello lleva a un quebrantamiento inadmisible de los principios de neutralidad e imparcialidad en que se debe fundamentar la ayuda humanitaria. Los ejércitos tienden a sustituir la imparcialidad por voluntad política. La agenda militar se metamorfosea en ayuda politizada 22. El máximo ejercicio de politización e inversión de la naturaleza de la acción humanitaria es presentar la acción militar bajo los velos de una prístina neutralidad que nunca es tal. El doble gravamen de esta ideologización de la neutralidad es que, no existiendo, se pretende también ocultar la naturaleza política de todo mandato militar. Los distintos mandos militares se autodeterminan respecto al mandato formal de la ONU, respondiendo exclusivamente a la voluntad política de sus propios gobiernos. Falsa neutralidad y técnicas de ocultación acompañan como fieles acólitos cualquier intervención militar. Por ello, la imparcialidad queda adulterada como principio. La acción militar se caracteriza por la revisión alevosa de los conceptos y categorías tal y como se dan en la nuda realidad. Procede a una revisión de los crímenes y de la impunidad acontecida, narrando medias verdades, diluyendo, muchas veces, la responsabilidad
de
los
verdaderos
perpetradores
y
desplazando
tal
responsabilidad, de manera injustificada, al barbarismo connatural de la población local 23. Invierte la relación amigo-enemigo para describir la historia bélica según 22
X. Etxeberría “Marco ético de la acción humanitaria” en Los desafíos de la acción humanitaria, Op. Cit., p. 122. 23 Como dejó escrito Hannah Arendt “La deliberada negación de la verdad fáctica –la capacidad de mentir- y la capacidad de cambiar los hechos –la capacidad de actuar– se hallan interconectados. Deben su existencia a la misma fuente: la imaginación” (13); “La sinceridad nunca ha figurado entre las virtudes políticas y las mentiras han sido siempre consideradas en los tratos políticos como medios injustificables” (12); “El desprecio a la realidad era inherente a la política”(50) en La crisis de la república, Taurus, Madrid, 1999. Piénsese en el peligro de la confabulación políticomilitar en ciertas intervenciones humanitarias, que se ha exhibido mediante técnicas de escamoteo y prácticas de invisibilización de datos, invirtiendo los hechos reales e interpretándolos al antojo de lo que las directrices político-militares exigían.
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convenga a los intereses de los Estados que determinan la intervención. Si no es pertinente, por todo lo expuesto, la investidura de las FF.AA. como actor de la acción humanitaria, ¿qué papel les corresponde desempeñar a éstas cuando la práctica humanitaria está inevitablemente tejida por la tragedia y la confrontación? Sabiendo, por tanto, que el conflicto y la violencia nos constituyen y atraviesan; que la militarización social es un proceso trágicamente presente y absolutamente dermático; que la existencia de los ejércitos se ensaya, lamentablemente, como la única manera viable y plausible de entender el polivalente concepto de seguridad; que la premura e inmediatez de la tragedia nos abraza y nos sacude cotidianamente, lo que embota la mente de actores sociales y políticos para diseñar procesos y marcos que conciencien, primero, y permitan accionar, después, modelos diferentes para entenderse con los conflictos y convulsiones sociales; parece dolorosamente inevitable la existencia de un ámbito militar en la acción humanitaria. Sin embargo, la acción humanitaria como acción estructural deberá ir acompañada siempre de una voluntad política que la dirija; de un momento fuerte de neutralidad: la acción humanitaria como acción imparcial. Es este momento el que dará razón ética a la ayuda humanitaria cuyo núcleo central será la preservación y promoción de los derechos humanos de las víctimas. La actividad militar, por tanto, no podrá jugar un papel estructural en la acción humanitaria, sino derivado y donado. Deberá ser la civilidad del poder, con voluntad política civil, la que imponga su mando sobre el poder militar desde las necesidades de las víctimas. Dado el potencial bélico que encierra el bloque militar, su capacidad operativa deberá ser siempre ejecutiva, plegada a los mandos de una autoridad civil previamente informada y conformada por las prospecciones de las ONG’s y la ONU; nunca, por tanto, legislativa, autónoma y autodeterminada. Todo vacío en la civilidad del poder supone un riesgo enorme para la construcción y el mantenimiento de la paz. Toda delegación de la civilidad del poder en manos militares, una negligencia inexcusable. Reconocer al poder militar como sujeto y actor de la acción humanitaria, supondría abrir las puertas a la totalización militar de la realidad como ha venido ocurriendo en el pasado. El germen de muchos conflictos ha tenido y tiene su sustrato germinal en las procelosas aguas que agita el militarismo. Dado el
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recorrido y expediente con que las FF.AA. se han presentado en la escena de la historia, no podrá otorgarse un papel activo y determinante en la acción humanitaria a aquellos sectores que guardan un potencial altísimo de responsabilidad en las causas y sostenibilidad de los conflictos.
3. Conclusiones La acción humanitaria entronca su esencia en la dignidad de las víctimas vulneradas, lo que queda referido y recogido normativamente por medio de los derechos humanos 24. Sería necesario que esta acción humanitaria, consciente y sensibilizada por la fundamentalidad de los derechos humanos en toda praxis humanitaria, sea vehiculada mediante una acción política (salpicada y modulada en un segundo momento por la acción de las ONG’s) a la protección y promoción de los derechos humanos de las víctimas, lo que trasciende la mera acción humanitaria convencional. La acción humanitaria como voluntad política, deberá ser estructural; ello supone asumir el cotinium ayuda-desarrollo de manera unitaria, de tal manera que se recombine la ayuda exógena con la promoción de un desarrollo local sostenible. Por ello, la perspectiva de los derechos humanos no puede conformarse con el mero mantenimiento de la vida e integridad física (derechos civiles y políticos); sino que para garantizar el desarrollo, será necesario la capacitación mediante derechos sociales: promoción cultural, educativa, lingüística... Todo ello inserto y formando parte de un programa estructural de Cultura de Paz que deberá, necesariamente, interpretarse localmente. Si se habla, por tanto, de Derecho a la Paz, sus habilitadores materiales primeros serán los derechos sociales. A esta lógica ineluctable de los derechos humanos tendrá que plegarse, adherirse y subordinarse las disciplinas 24
En este sentido defendemos la utilización de los derechos humanos como mecanismo de desobediencia civil que permitirá la constante movilización, dinamismo y crítica respecto a lo que es criterio único y fundamento de la acción humanitaria: las víctimas con sus derechos. Por ello, lo que podría resultar legítimo y plausible para el Derecho internacional, puede que no sea tal desde la perspectiva de los derechos humanos. Esta dualidad de legitimidades –Derecho internacional versus Derechos humanos- tiene la virtualidad de desplazar el hontanar de la legitimidad desde los derechos humanos al Derecho internacional. Sin embargo, la arquitectónica de procesos, normas e instituciones que ensamblan el derecho internacional, deben someterse a lo que es su criterio posibilitante y legitimante: los DD.HH. Desde ahí, y frente a estos desplazamientos de sentido, tendría sentido formular una utilización de los derechos humanos como desobediencia civil.
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militares, que nunca podrán ser agentes decisorios por estar inhabilitados específicamente para conocer las dinámicas civiles y sociales. Ello es una cuestión de inespecificidad. Hablar de derechos humanos supone hablar fundamentalmente de capacitación en recursos. Cuando se menta a los derechos humanos como una causa perdida, o se refiere a su imposibilidad de aplicación por su carácter gravoso, se está haciendo referencia a dos planos distintos que se interpretan unitariamente: el existencial y el económico. La auditoria contable de un programa de derechos humanos centrado en las víctimas, es costoso en sí mismo por lo que supone de habilitación material en recursos por medio de derechos; y es costoso, también, por lo que supone de promoción de una política de Cultura de Paz que desmovilice conciencias y cosmovisiones, remueva instituciones, sujete a las partes armadas en conflicto, congele y reforme la potencia bélica-militar del (los) ejército(s). La neutralidad e imparcialidad, como principios de la acción humanitaria, se conectan aquí con la independencia financiera. Una política estructural de derechos humanos en el marco de la acción humanitaria, exigiría recursos no politizados que ni condicionen ni narcoticen las posibilidades de hacer justicia. Una subvención y promoción de derechos humanos interesadamente politizada, puede llevar a su más rotunda neutralización. Sin voluntad política real de situar en el centro de la acción humanitaria los derechos humanos, todo el universo de medios que suponen éstos (los derechos) –tribunales, personal, instituciones, recursos en general– estarán sujetos a la voluntad de los sufragadores; de no ser así, no se sufragarán. La centralidad de una Cultura de Paz como acción humanitaria, supone invertir este sentido. Suele ser traumático, también, el carácter gravoso de los derechos humanos por los costos reales que suponen. Una política de derechos para ser factible exige una inversión grande que no pierda la centralidad que ocupa el sujeto humano. Es aquí donde la legitimidad de lo militar, como la partida financiera estrella en el marco de cualquier acción humanitaria y operación de paz, exige también transformación. Es incoherente y perverso que los gastos militares gocen de un despliegue de recursos desorbitado, siendo una partida más dentro del monto total de la acción humanitaria, cuando, muchas veces, la acción
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humanitaria no puede ser desarrollada por falta de asignación de recursos a aquellos sectores que constituyen el núcleo y razón de ser del ejercicio humanitario: los derechos humanos. Constituye una dramática ironía el hecho de que los medios militares para la instauración y sostenimiento de la Paz, gocen de una subvención tan abultada que inhabiliten y veten una política de derechos humanos entendida como capacitación. Hoy, el sostenimiento de los gastos militares impide habilitar una acción humanitaria eficaz y rápida. Mientras los Tribunales Penales Internacionales han sufrido importantes mermas en sus presupuestos, auténticas agonías financieras que condicionaban su viabilidad, el estamento militar –en bloque– de la acción humanitaria ha gozado de una fuerte e ininterrumpida financiación 25. Ello exigiría un cambio político conciencial que estableciendo como prioridad los derechos humanos, permitiese la transferencia de recursos de la estructura militar hacia la acción humanitaria en consonancia con los principios y motivos que inspiran la práctica humanitaria. Ello denota que la actividad y práctica militar es mucho más costosa que la actividad y práctica civil. El carácter monumental de los gastos militares impide la rehabilitación de los ciudadanos-víctimas por inexistencia de presupuestos sociales orientados a políticas de derechos. El par gastos militares-gastos sociales exige una revisión muy crítica que se concrete en inversión social y disminución de la presencia y pertinencia de lo militar para la solución de los conflictos y rehabilitación de las poblaciones. Si esto no se produce, será necesario reclamar la centralidad de los derechos humanos como una estrategia más de desobediencia civil. Pero, ¿qué supone esto? Supone un esfuerzo serio por situar en el centro de la convivencia humana el imperio de la justicia y las garantías democráticas necesarias para conseguirlo. El objetivo último de una utilización de los derechos humanos como estrategia de la desobediencia civil será incrementar la realización práctica, la intensidad garantista e inalienabilidad de los derechos humanos para todos, incluyendo muy especialmente ese sector hasta ahora arredrado: las víctimas de la globalización. No se trata de poner en riesgo la virtualidad liberadora de los derechos humanos, sino de proceder a una protección y 25
Así por ejemplo, el presupuesto anual del Tribunal especial para Yugoslavia equivalía, en 1994, a dos semanas de gasto militar destinado a UNPROFOR.
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promoción más intensa de los mismos. La realización estructural y no ideológica de los derechos humanos es el objetivo de la apelación a la desobediencia civil como estrategia. Por ello, cuando los derechos humanos son regateados, adelgazados e ideologizados en su comprensión; cuando se juega y especula estratégicamente con la indivisibilidad de los derechos (prioridad de los derechos civiles sobre los derechos sociales, por ejemplo) para leninizar su potencialidad, será posible la utilización de la desobediencia civil desde exigencias legítimas: aquellas que exigen la restauración de los derechos humanos en su total corporalidad y estructura, por ser estos el corazón y la garantía más cualificada para la supervivencia del Estado de derecho y de cualquier exigencia democrática. Hablamos de una utilización legítima y fundante de la desobediencia civil ya que su sentido explicativo y la secuencia en la que encuentra su razón de ser es la siguiente: partiendo de una consideración de los derechos humanos como núcleo fundante básico de todo proceso de convivencia social en un Estado de derecho, y sabiendo que estos encierran dentro de sí una vocación universalizante como ideal a alcanzar –la de abrazar y hacerse extensivo al mayor número de población posible con prioridad sobre aquellos núcleos de población más vulnerados; sabiendo que por otro lado la realidad cotidiana es conflictiva y viene caracterizada por la sistemática y constante violación de derechos humanos en muchas regiones de nuestra geografía global; será legítima la utilización de la desobediencia civil como modo para recuperar y restaurar aquellos medios jurídicos que son condición necesaria para poder producir, reproducir y desarrollar la vida: los derechos humanos. No se da, por tanto, una primordialidad y principalidad de la estrategia de la desobediencia civil sobre los derechos humanos; sino que serán los derechos humanos los que funden la desobediencia civil para restaurar las garantías democráticas y el compromiso de la ley con el mantenimiento de una vida humana digna para sus ciudadanos, lo que tiene una aplicación directa en el caso de la acción humanitaria. El ejercicio de la desobediencia civil no podrá exigir, como condición previa y como prueba de su certera legitimidad, agotar las vías legales existentes en un Estado de derecho; es decir, estimar que la desobediencia sólo será legítima cuando sea el último recurso viable para la restauración de la democracia. Si de
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hecho es necesario apelar a la desobediencia, es porque el carácter formal de la democracia ha pervertido y truncado las posibilidades de vida de los sujetos haciendo abstracción de sus necesidades. Ha encerrado a los sujetos en una jaula coercitiva de leyes que difícilmente velarán por el mantenimiento y sostenibilidad de una vida digna de ser vivida. Se produce, por tanto, una adulteración de la naturaleza democrática del Estado de derecho por la que las propias estructuras estatales coadyuvan a invisibilizar y a desfondar la vigencia real de los derechos humanos. Se da una situación en la que el propio Estado brega con intensidad y malicia para esquivar las voces críticas que reclaman una urgente aplicación de los derechos humanos. En este sentido, lo que es legal y legítimo según el derecho internacional y la práctica interior de un Estado, puede que no lo sea según el estricto espíritu y la letra de los derechos humanos. La legalidad ilegítima de un Estado que diseña todo un cuerpo legal para sancionar la impunidad, no puede saltar por encima de esa barrera crítica e insobornable como son los derechos humanos. Ante la sibilina violación y perversión de los derechos humanos se exige una reacción eficaz y no instrumental como es la desobediencia civil. Lo que está en juego con la puesta en práctica de la desobediencia civil como estrategia crítica frente a la legalidad vigente, son los derechos humanos negados de las víctimas que nunca serán satisfechos por displicencia o ignorancia del valor de esta cualidad humana (la de las víctimas) para el sistema, todo ello sin merma de los derechos de aquellos que ya los tienen garantizados. La desobediencia civil tiene una voluntad extensiva e inclusiva; a la vez que una pasión desatada y fundamental por la integración de los excluidos.
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A Intervenção Armada por Razões Humanitárias e a Questão de Kosovo: Lições e Paradigmas
Ielbo Marcus Lobo de Souza
Sumário: Introdução. I. A Questão de Kosovo no Conselho de Segurança. II. A Legitimidade ou Legalidade do Exercício de um Direito de Intervenção Humanitária na Questão de Kosovo. Conclusão.
Introdução
Este artigo abordará uma questão nova, pulsante, dentro do direito internacional contemporâneo: a prática da intervenção armada, por razões humanitárias, em favor de nacionais de outros Estados. O tema é complexo, porque coloca em questão algumas normas fundamentais do sistema jurídico internacional e a própria arquitetura e funcionamento do sistema de segurança coletiva universal do pós-guerra. Como pano de fundo, como se verá, está a problemática da dimensão axiológica do direito internacional. Embora referências sejam feitas a outros casos, esse estudo irá se concentrar no caso da ação armada efetuada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) contra a República Federal da Iugoslávia (Iugoslávia), em 1999. Desde logo, esclareça-se que não se pretende avaliar ou julgar a legalidade da ação armada da OTAN. A preocupação é mais ampla: muito embora a OTAN tenha apresentado uma série de justificativas legais para a sua ação armada (e talvez elas devessem ser consideradas no seu conjunto), o que será examinado é a adequação do argumento da intervenção armada por razões humanitárias naquele contexto e quais as repercussões dessa prática sobre o desenvolvimento do direito internacional.
I. A Questão de Kosovo no Conselho de Segurança
O desenrolar da situação de Kosovo, que deu lugar ao conflito armado de 1999, pode ser examinado à luz das resoluções respectivas do Conselho de
Segurança da ONU. A primeira resolução de relevância foi a Res. 1160, de 31/03/98, aprovada pelo Conselho de Segurança sob o calor de um conflito intenso entre as forças militares e paramilitares sérvias e o Exército de Libertação de Kosovo (KLA). A Resolução, adotada com base no Cap. VII da Carta, condena o uso de força excessiva por forças policiais sérvias contra civis e os atos de terrorismo do KLA; afirma o compromisso de todos os Estados membros com a soberania e a integridade territorial da Iugoslávia; requer que a Iugoslávia inicie negociações substantivas com os representantes da comunidade albanesa kosovense, incluindo a participação de representantes externos; exige a retirada das forças policiais especiais sérvias da região e a cessação de atos contra a população civil; requer a aceitação de uma missão da OSCE de verificação e mediação; estabelece um embargo de armas contra a Iugoslávia, incluindo Kosovo; e enfatiza que, na ausência de progresso construtivo para uma solução pacífica da situação, haverá medidas adicionais. Na época, já estavam envolvidos no processo de solução pacífica do conflito a União Europeia, o chamado Grupo de Contato (composto pela Alemanha, Estados Unidos, França, Itália, Reino Unido, Rússia) e a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Na Resolução seguinte, a de número 1199, de 23/09/98, o Conselho de Segurança, novamente com base no Cap. VII da Carta, manifesta sua preocupação com a intensificação da luta em Kosovo e particularmente com o excessivo e indiscriminado uso da força por forças de segurança sérvias e o exército iugoslavo, “que tem causado numerosas vítimas civis e, de acordo com a estimativa do Secretário-Geral, o deslocamento de mais de 230.000 pessoas de suas casas”; mostra-se preocupado com a “rápida deterioração de situação humanitária em Kosovo”; expressa seu alarme com a“iminente catástrofe humanitária” descrita no relatório do Secretário-Geral, enfatizando a necessidade de prevenir que isso aconteça; e afirma que a deterioração da situação em Kosovo, Iugoslávia, “constitui uma ameaça à paz e segurança na região”. Três conclusões podem ser tiradas dessa resolução: 1) o processo de solução pacífica do conflito não estava produzindo resultados satisfatórios; 2) uma grave crise humanitária estava se desenvolvendo; 3) as partes em conflito não estavam cumprindo as determinações mandatórias do Conselho (tanto que a Resolução,
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ao final, indica que se as medidas concretas exigidas na resolução e na resolução 1160 não fossem adotadas, o Conselho iria considerar a tomada de ações ou medidas adicionais para manter ou restaurar a paz na região). Em 24 de março de 1999, a OTAN iniciou uma ação militar contra a República Federal da Iugoslávia (Iugoslávia), que terminou em 10 de junho de 1999, com a assinatura de um acordo entre a Iugoslávia e a OTAN. Com o fim do conflito, o Conselho adotou a Resolução 1244, de 10/06/99, que, com base no Cap. VII da Carta, ratifica os princípios gerais estabelecidos pelo Grupo G-8 de Ministros das Relações Exteriores (França, Alemanha, Itália, Rússia, Reino Unido, Estados Unidos, Canadá e Japão) para a solução política da crise de Kosovo, e que incluiriam as seguintes ações: imediato e verificável fim da violência e repressão em Kosovo; retirada de Kosovo de todas as forças militares, paramilitares e policiais da Iugoslávia; emprego em Kosovo, sob os auspícios da ONU, de uma presença civil e de seguranças internacionais capazes de garantir a consecução de objetivos comuns; o retorno seguro e livre dos refugiados e pessoas deslocadas e acesso desimpedido a Kosovo por organizações de ajuda humanitárias; o estabelecimento de uma administração interina para Kosovo; e um processo político para o estabelecimento de um Governo autônomo e democrático, tendo em conta os acordos de Rambouillet, os princípios da soberania e integridade territorial da Iugoslávia e de outros países da região, e a desmilitarização do KLA. Em consonância com as resoluções do Conselho de Segurança, especialmente a Res. 1199/98, a OTAN afirmou reiteradas vezes, de forma oficial, que a ação militar contra a Iugoslávia era necessária e justificada para evitar uma catástrofe humanitária na região de Kosovo, envolvendo especialmente a população local de etnia/origem albanesa, embora detentora da nacionalidade da Iugoslávia. Por exemplo, no dia 30 de janeiro de 1999, a OTAN emitiu um Comunicado Oficial de Imprensa, no qual afirmava que estava pronta para tomar todas as medidas necessárias “[...] para evitar uma catástrofe humanitária [...]” 1. A mesma justificativa foi repetida em outros comunicados oficiais à imprensa, emitidos
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Press Release (99)12.
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inclusive depois que o conflito teve início 2. A OTAN também procurou fundamentar sua ação nas Resoluções emitidas pelo Conselho de Segurança da ONU sobre a situação no Kosovo. Em Comunicado Oficial à Imprensa, datado de 30 de janeiro de 1999, deixou claro que
[...] está pronta para agir e não descarta nenhuma opção para assegurar o [...] cumprimento de todas as resoluções relevantes do Conselho de Segurança, especialmente as disposições das Resoluções 1160, 1199 e 1203. 3
II. A Legitimidade ou Legalidade do Exercício de um Direito de Intervenção Humanitária na Questão de Kosovo A grande questão que o conflito de Kosovo tem suscitado atualmente é se o direito internacional contemporâneo admite o uso da força nas relações internacionais por parte de um Estado ou Estados, ou organização internacional de cunho regional, ou multilateral, contra outro Estado por razões humanitárias. No plano da prática dos Estados, existem numerosos exemplos em que os Estados usaram da força contra outro Estado sob a alegação de proteger os seus nacionais residentes ou situados no território do outro Estado. O direito de intervenção armada do Estado em favor de seus nacionais que estão no território de outro Estado tem sido objeto de antigo debate doutrinário, de tal forma que não se pode concluir com segurança pela sua existência. O receio de alguns é que Estados mais poderosos usem, como teria ocorrido no passado em numerosas ocasiões, a justificativa da proteção de seus nacionais no exterior para encobrir verdadeiras intervenções armadas com objetivos políticos, econômicos ou estratégicos. Vale citar a posição do Prof. Brownlie a respeito:
As ocasiões em que Estados invocaram considerações humanitárias para justificar o uso da força dentro e contra um outro Estado não inspiram confiança na nova doutrina. Tais intervenções são comumente baseadas numa agenda política 2
Veja, inter alia, Press Release (1999)040, de 23/03/99, e Press Release (1999)042, de 25/03/99. Nesta última, o Secretário-Geral afirma: “Permita-me reiterar que estamos determinados a continuar até que tenhamos alcançado nossos objetivos: interromper a violência e impedir uma catástrofe humanitária adicional”. 3 Press Release (99) 12, de 30/01/99.
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colateral e envolvem uma perda considerável de vidas, cuja existência é obscurecida pela manipulação da mídia 4.
Para citar apenas um exemplo, uma das justificativas apresentadas pelos Estados Unidos para a ação armada realizada contra o Panamá, em dezembro de 1989, foi a necessidade de “proteger vidas americanas” 5. Quando a defesa do seu nacional está em jogo, os Estados procuram enquadrar a ação como um exercício do direito de autodefesa, reconhecido no art. 51 da Carta da ONU, vez que os nacionais do Estado comporiam a dimensão pessoal do Estado. Essa, naturalmente, não foi a única justificativa legal apresentada, mas é significativo que a ação armada dos Estados Unidos tenha sido condenada num foro político regional: o Conselho Permanente da OEA 6. A experiência de Kosovo, no entanto, é ainda mais controversa e complexa, pois os supostos beneficiados pela ação armada são nacionais do Estado vítima da ação armada, embora possuam etnia diferenciada. Cuida-se, pois, não de intervenção armada do Estado em favor de seus nacionais que estão no território de outro Estado, mas do uso da força por parte de Estados contra um Estado e em favor dos nacionais desse Estado que estão sendo vítimas das ações militares. A questão que se coloca é se o direito internacional atual reconheceria aos Estados uma espécie de direito de ação armada contra um Estado quando este viola (talvez de forma grave) os direitos humanos de seus nacionais. Se examinada a questão sob o ponto de vista do direito convencional, em especial da Carta da ONU, fica claro que o princípio proibitivo do uso da força e as exceções ao princípio lá previstas não abarcam expressamente a hipótese de uso da força por razões humanitárias. Como se sabe, a Carta da ONU veio a estabelecer uma proibição geral da ameaça ou uso da força nas relações internacionais (art. 2(4)), abrindo uma exceção para os casos de legítima defesa individual ou coletiva, ou em cumprimento de decisão do órgão competente das Nações Unidas. Essa última possibilidade situa-se dentro do sistema de 4
Brownlie, Ian. General Course on Public International Law. Recueil des cours de l’académie de droit international, vol. 255 p.207, 1995. 5 Cf. Yearbook of the United Nations 1989, p.174. 6 Cf. Consejo Permanente, Acta de la Sesion Extraordinaria Celebrada el 20, 21 y 22 de diciembre de 1989, OEA/Ser.G, CP/Acta 800/89, p.11-15, 125-126.
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segurança coletiva universal instituído pela Carta, que cria um monopólio centralizado do uso da força e o coloca sob a gerência do Conselho de Segurança. Cabe ao Conselho administrar o monopólio da força tendo em vista a manutenção da paz e segurança internacionais. A possibilidade de intervenção humanitária, tal qual ocorreu em Kosovo, não poderia ser justificada com base no exercício de legítima defesa, seja individual ou coletiva, previsto no art. 51 da Carta, uma vez que não se trata de proteção de nacionais próprios que estariam sendo vítimas de um ataque armado. A inadequação dessa justificativa é evidenciada pelo fato de os Estados que participaram da ação armada em nome da OTAN, assim como a própria OTAN, não terem invocado essa justificativa legal. Vale referir uma manifestação da Corte Internacional de Justiça no caso Nicarágua (1986), que exclui a hipótese de associação entre a legítima defesa coletiva e a intervenção armada por razões de direitos humanos:
A Corte conclui que o argumento derivado da preservação dos direitos humanos na Nicarágua não pode fornecer uma justificativa legal para a conduta dos Estados Unidos, e não pode em qualquer caso ser reconciliado com a estratégia legal do Réu, que está baseada no direito de autodefesa coletiva. 7
No mesmo caso Nicarágua (1986), a Corte Internacional de Justiça parece rejeitar a existência de um direito geral de intervenção humanitária. Lembre-se que, neste caso, os Estados Unidos invocaram inter alia como base para as suas ações contra a Nicarágua, a descoberta, por parte do Congresso norteamericano, de que a Nicarágua estava violando os direitos humanos de seus próprios nacionais. A Corte assim se manifestou sobre a alegação:
Em todo caso, enquanto os Estados Unidos podem fazer sua própria avaliação da situação quanto ao respeito aos direitos humanos na Nicarágua, o uso da força não poderia ser o método apropriado para monitorar ou assegurar tal respeito. Com relação aos passos realmente dados, a proteção dos direitos humanos, um objetivo estritamente humanitário, não pode ser compatível com a minagem dos portos, a destruição das instalações petrolíferas, ou novamente com o treinamento, ou o fornecimento 7
Cf. Military and paramilitary activities in and against Nicaragua (Nicaragua v. United States of America): Merits, judgement. ICJ Reports 1986, p.134-135, par. 268.
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de armas e equipamentos aos contras.
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O entendimento manifestado pela Corte em nenhum momento refere-se à Carta da ONU, o que indicaria que essa posição teria feito referência ao direito internacional geral (ou direito costumeiro internacional) 9. A possibilidade de intervenção armada por motivos humanitários deveria então ser estudada como uma medida tomada sob o sistema de segurança coletiva das Nações Unidas. Nessa hipótese, uma situação interna que configurasse uma grave crise humanitária poderia ser enfrentada pelo Conselho de Segurança da ONU na perspectiva de uma situação que recai sob o Cap. VII da Carta. Para tal fim, o Conselho faria uma determinação no sentido de que a situação humanitária dentro de um Estado está colocando em risco a paz e segurança internacionais (com esteio no art. 39 da Carta), autorizando, com base no Cap. VII da Carta, o uso da força contra o Estado que insistisse em descumprir resoluções prévias do Conselho sobre a questão, ou estabelecendo uma operação de paz das Nações Unidas autorizada a usar da força para salvaguardar ações humanitárias tópicas. Se colocada a possibilidade de intervenção humanitária armada como um mecanismo de ação compreendido dentro do sistema de segurança coletiva da ONU, não haveria necessidade de se considerar o direito de intervenção humanitária como o desenvolvimento normativo de uma nova exceção ao princípio proibitivo do art. 2(4) da Carta da ONU. Na realidade, não seria desejável que se criasse essa exceção fora do sistema de segurança coletiva, pois o risco de tal direito ser exercido de forma abusiva pelos Estados mais fortes, ou organizações regionais, seria considerável, como bem pondera o Prof. Schachter: A relutância dos Governos em legitimar a invasão estrangeira no interesse do humanitarismo é compreensível à luz dos abusos passados por Estados poderosos. Estados fortes o suficiente para intervir e suficientemente interessados em fazê-lo tendem a ter uma solução política no seu próprio interesse nacional. A maioria 8
Ibid. A Corte estava impedida de julgar o caso com base em tratados multilaterais, por força da reserva formulada pelos Estados Unidos na sua declaração de aceitação da jurisdição da Corte. Tal reserva excluía da jurisdição da Corte os mais relevantes tratados multilaterais, entre os quais a própria Carta da ONU. Seu julgamento, portanto, apoiou-se explicitamente no direito costumeiro internacional.
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dos Governos está atualmente sensível a esse perigo e não mostra disposição em abrir o Artigo 2(4) a uma exceção ampla para intervenção humanitária através da força armada 10.
A relação direta entre uma crise humanitária, gerada por graves violações dos direitos humanos, e a paz e segurança internacionais, foi identificada pelo Conselho de Segurança em várias ocasiões. Por exemplo, cite-se o caso da profunda crise humanitária constatada na Somália. Em sua sessão de 23 de janeiro de 1992, o Conselho de Segurança adotou a Resolução 733, que expressa o alarme do Conselho com a rápida deterioração da situação na Somália e a pesada perda de vidas humanas, e a sua preocupação de que a continuação da situação constituiria uma ameaça à manutenção da paz e segurança internacionais, tomando, a seguir, decisões com base no Cap. VII da Carta. O Conselho veio a adotar, subsequentemente, inúmeras resoluções que afirmaram a mesma ameaça e estabeleceram medidas com base no Cap. VII da Carta. Um outro caso de interesse foi o do Haiti. Seguindo o mesmo padrão da resolução relativa à Somália, na Resolução 940 (1994), o Conselho, após manifestar sua preocupação com a “deterioração significativamente ainda maior da situação humanitária no Haiti”, determinou que “a situação no Haiti continua a constituir uma ameaça à paz e segurança na região”, e, com base no Cap. VII da Carta, autorizou os Estados membros a formarem uma força multinacional sob um comando unificado para “usar todos os meios necessários”, facilitando a saída da liderança militar do Haiti... e o retorno imediato do Presidente eleito legitimamente 11. O Conselho de Segurança também fez uma relação entre graves violações de direitos humanos no interior de um País e a manutenção da paz e segurança internacionais no caso do Iraque. Na Resolução 688, de 5 de abril de 1991, o Conselho condenou a “repressão da população civil iraquiana em muitas partes do Iraque”, e manteve que as consequências dessa prática “ameaçam a segurança e paz internacional na região”, exigindo que o Iraque pusesse um fim à 10
Schachter, Oscar. International law in theory and practice. Recueil des Cours de l´académie de droit international, v. 178, p.144. 11 Cf. S/RES/940 (1994), de 31 de julho de 1994.
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repressão. Na questão de Kosovo, o Conselho de Segurança realmente adotou várias resoluções que trataram da questão humanitária sob a ótica da manutenção da paz e segurança internacionais. De especial relevância foi a Resolução 1.199 (1998), na qual o Conselho manifestou preocupação com a “iminente catástrofe humanitária em Kosovo” e com os “relatórios de crescentes violações de direitos humanos e do direito humanitário”, e, afirmando que a deterioração da situação em Kosovo “constitui uma ameaça à paz e segurança na região”, tomou decisões com base no Cap. VII da Carta, que são obrigatórias a todos os Estados. Como já sublinhado antes, a citada resolução afirmou, ao final, que “medidas adicionais” para manter ou restaurar a paz e estabilidade na região seriam consideradas, caso as medidas concretas exigidas naquela resolução e na Resolução 1.160 (1998) não fossem tomadas. Lembre-se que, anteriormente, a Res. 1.160/98 havia adotado medidas provisórias sob o art. 40 da Carta, e imposto embargos de material militar contra a Iugoslávia (art. 41 da Carta). Essa Resolução 1.199 (1998), portanto, apresentou quase todos os requisitos para um primeiro e autêntico caso de intervenção humanitária sob os auspícios da ONU. Faltava apenas um: a autorização ou determinação expressa do Conselho de Segurança, que poderia ser dada numa outra resolução. Tal, entretanto, não ocorreu, pois não havia o consenso dos membros permanentes do Conselho. A atuação inicial e posterior omissão (ou silêncio) do Conselho de Segurança indicam que houve um patente conflito entre o direito material e uma regra de procedimento. Por um lado, o Conselho de Segurança estabeleceu sua competência para considerar a questão e decidir a respeito, conforme atestam as resoluções adotadas. Chegou ao ponto de identificar a questão como uma situação que recai sob o Cap. VII da Carta, o que não apenas representa um reconhecimento da gravidade da situação, mas também que os poderes lá previstos poderiam ser utilizados para a manutenção da paz e segurança internacionais (como, de fato, o foram). Ao agir, o Conselho estava também promovendo uma das finalidades das Nações Unidas, prescritas no art. 1(3) da Carta da ONU, e colocando em movimento a roda do sistema de segurança coletiva. Por outro lado, o procedimento previsto no art. 27 da Carta para o processo decisório impediu a materialização da decisão mais importante – na
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opinião de alguns membros do Conselho – para o restabelecimento da situação humanitária e a cessação da ameaça à paz e segurança internacionais: aquela que autorizaria o uso dos “meios necessários” para fazer cumprir as resoluções anteriores. Claro, os defensores do processo decisório do Conselho, estabelecido no art. 27 da Carta, imediatamente poderão ressaltar a importância da regra de procedimento. Poderão argumentar que a regra é fruto de uma concertação política que sustenta o atual sistema de segurança coletiva universal. O objetivo político da regra decisória, poder-se-ia argumentar, é assegurar que o Conselho de Segurança, em deferência às realidades do poder mundial, atuará de forma eficaz, contando com o apoio e eventual participação das grandes potências, que são os seus membros permanentes, e jamais agirá contra o interesse nacional de uma grande potência, sob pena de desencadear um holocausto nuclear. A regra procedimental do art. 27 também impediria ações unilaterais por parte de uma grande potência, que teria que se submeter a um processo de acomodação de interesses com as outras (e com os membros não permanentes do Conselho) para obter a autorização legal e mesmo legitimar o eventual uso da força armada. Todas essas considerações em favor do respeito à regra procedimental do art. 27 são relevantes, especialmente se pensadas à luz do contexto histórico da guerra fria e das experiências da Liga das Nações. O problema é que o sistema político internacional mudou sobremaneira com o fim da guerra fria. Entre as mudanças, vale mencionar uma apontada pelo Secretário-Geral da ONU no documento An Agenda for Peace: aumentaram os conflitos intraestatais em comparação com os conflitos interestatais, e uma das características desses conflitos intraestatais é justamente a ocorrência de graves e sistemáticas violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário 12. A nova dimensão do sistema político internacional, e a dialética entre os interesses do Estado e os do ser humano, foi bem sistematizada pelo SecretárioGeral da ONU no seu Relatório sobre os Trabalhos da Organização, apresentado na 54a sessão da Assembleia Geral da ONU. Os trechos mais relevantes do Relatório são a seguir transcritos:
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Cf. UN Doc. A/50/60-S/1995/1, de 3 de janeiro de 1995.
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O fato de que as melhores estratégias de prevenção podem falhar significa que nós nunca podemos escapar completamente do flagelo da guerra. Segue-se que, para o futuro previsível, a comunidade internacional deve estar preparada para engajar-se politicamente – e se necessário, militarmente – para conter, administrar e finalmente resolver os conflitos que escaparam do controle. Isso demandará um funcionamento melhor do sistema de segurança coletiva do que existe no momento. Será preciso, acima de tudo, uma maior disposição para intervir com o fim de prevenir violações graves dos direitos humanos. Com relativamente poucas guerras interestatais, as justificativas tradicionais para a intervenção têm se tornado cada vez menos relevantes, enquanto que os princípios dos direitos humanos e humanitário têm sido frequentemente invocados para justificar o uso da força nas guerras internas, nem sempre com a autorização do Conselho de Segurança. A década passada tem sido também um período de tensão e dificuldade para as Nações Unidas, quando tem buscado cumprir o seu mandato de segurança coletiva. Defensores das interpretações tradicionais do direito internacional salientaram a inviolabilidade da soberania do Estado; outros salientaram o imperativo moral de agir com força em caso de graves violações dos direitos humanos. Os erros e acertos morais dessa questão complexa e controversa serão objeto de debate por anos, mas o que está claro é que ações coercitivas sem a autorização do Conselho de Segurança ameaçam a núcleo mesmo do sistema de segurança internacional fundado sobre a Carta das Nações Unidas 13.
O novo contexto internacional estaria, portanto, a reclamar uma mudança no atual direito internacional (ou, mais especificamente, na estrutura ou nas regras de procedimento do Conselho de Segurança) para que, mediante processos políticos legítimos, se assegurasse o respeito aos novos padrões internacionais de proteção dos direitos humanos e do direito internacional humanitário. Uma das teses atualmente mais discutidas, proposta por Huntington e outros, é a de que, na nova ordem mundial, o sistema político internacional seria multipolar e multicivilizacional, e que haveria um novo paradigma a orientar o entendimento da política internacional: o paradigma civilizacional. Huntington sugere que desenvolvimentos importantes do mundo do pós-guerra fria poderiam ser melhor compreendidos à luz do paradigma civilizacional, tais como a ocorrência de conflitos tribais e étnicos dentro de civilizações assim como de conflitos entre Estados e grupos de diferentes civilizações, e estes últimos seriam, na sua opinião, aqueles que potencialmente maiores consequências danosas 13
Cf. General Assembly, Official Records, Fifty-fourth Session, Supplement n. 1 (A/54/1).
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poderiam trazer para a humanidade. Nessa perspectiva, a reformulação da composição do Conselho de Segurança, que está sendo discutida no âmbito das Nações Unidas, deveria refletir não apenas o aumento extraordinário do número de Estados desde a fundação da ONU, a nova configuração do poder mundial, e as regiões do mundo, mas também as mais importantes civilizações14. Esse debate, no entanto, ainda não foi concluído, e a tarefa da comunidade internacional é fazer o Conselho cumprir de forma satisfatória a sua principal missão: manter a paz e a segurança internacionais. Na ausência de vontade política por parte dos Estados membros da ONU para efetuar a pura e simples aplicação do procedimento previsto no Cap. XVIII da Carta da ONU para a sua emenda, quais as alternativas possíveis para situações com a de Kosovo? Diante da relevância dos valores humanos que estavam em jogo na questão de Kosovo, poderia ser sugerido que a regra procedimental prevista no art. 27(3) da Carta – relativa ao processo decisório – devesse ser relegada ao segundo plano, isto é, não aplicada naquele caso específico, por produzir um resultado moralmente inaceitável: a inação ou omissão frente a uma catástrofe humanitária. Em tal circunstância excepcional, a regra não perderia sua validade, apenas deixaria de ser aplicada, e, em seu lugar, por exemplo, seria observada a regra do art. 27(2), que exclui o poder de veto. Essa proposição insere-se na discussão entre o direito internacional e a moral, pois, em outras palavras, pretende traduzir o sentimento de que o uso do veto não deveria ser reconhecido como um direito em casos de graves violações dos direitos humanos. Por conseguinte, os Estados estariam desobrigados a respeitar uma disposição de natureza procedimental moralmente reprovável naquela situação 15. Caberia, aqui, a analogia com a crítica que se faz a um dos elementos essenciais da concepção de justiça: o princípio segundo o qual se deve tratar de igual forma os casos iguais. Hart considera que esse princípio corresponde à justiça na administração do direito e não à justiça do direito 16. Se, para os casos iguais, a “justiça 14
Huntington, Samuel. The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order. New York: Touchstone, 1997, p.21-39. 15 Entenda-se “desrespeitar” no sentido de evitar o veto mediante o não encaminhamento de uma proposta de resolução que autoriza o uso da força, ou a aplicação da regra procedimental contida no art. 27(2) da Carta. 16 Hart, H.L. Essays in Jurisprudence and Philosophy. Oxford: Clarendon Press, 1983, p.81.
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procedimental” não assegura a justiça do direito, imagine em situações distintas e específicas, como a de Kosovo! Concretamente, tal proposta geral não foi aduzida por nenhum membro permanente do Conselho de Segurança, embora o argumento moral tivesse sido utilizado em diversas ocasiões por praticamente todos os membros. A dificuldade em se encontrar a boa vontade (política) dos membros permanentes do Conselho para tal proposta é que a vantagem moral pode mudar de lado: no futuro, em determinada questão, os papéis e interesses dos membros permanentes poderão estar invertidos. A ideia também pode ser o início de uma proposição maior: a extinção do poder de veto, e os membros permanentes do Conselho dificilmente concordarão com ela, pois o status quo lhes serve muito bem, perpetuando o privilégio. Se examinada a proposta sob o aspecto meramente técnico, a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (1969), é verdade, admite a suspensão da execução de uma parte determinada de um tratado, mas as hipóteses previstas (arts. 57-60) seguramente não se enquadrariam no caso. Uma segunda possibilidade, relacionada com a anterior, porém mais refinada, é interpretar o silêncio do Conselho durante o conflito, conjugado com a ratificação posterior dos princípios propugnados pelo Grupo G-8, como uma emenda (ou interpretação) à regra procedimental do art. 27, introduzida pela prática do Conselho (aliás, tal como ocorreu com o entendimento de que a abstenção ou ausência não seria considerada como veto). A emenda seria no sentido de que
a não oposição ou condenação expressa do Conselho à ação armada, efetuada por Estados em situações previamente definidas pelo Conselho como graves violações dos direitos humanos que ameaçam a paz e segurança internacionais, caracterizaria esse uso da força como uma ação que está em consonância com o sistema de segurança coletiva da ONU 17.
Na prática, essa seria uma forma de passar ao largo de um provável veto, 17
Esta se aproxima, em linhas gerais, de uma das sugestões do Prof. Louis Henkin, expressa em Henkin, L. Kosovo and the Law of “Humanitarian Intervention”. The American Journal of International Law, vol 93, 1999, p.827-828. No mesmo sentido, Charney, Jonathan. Anticipatory Humanitarian Intervention in Kosovo. The American Journal of International Law, vol 93, 1999, p.838-839.
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tornando desnecessário o encaminhamento de um projeto de resolução. O problema com essa proposta é que ela pressupõe algo que pode estar ausente: a aquiescência do Conselho de Segurança com respeito à ação armada. A prática do Conselho na questão de Kosovo leva à conclusão de que se, por um lado, o Conselho não manifestou expressamente sua oposição à ação armada, por outro lado, tampouco manifestou expressamente sua concordância com a ação. De fato, as manifestações dos Estados membros durante os debates do Conselho demonstram que uma proposta de resolução num ou noutro sentido encontraria o veto de pelo menos um dos membros permanentes. Cite-se, por exemplo, a não aprovação da resolução apresentada conjuntamente pela Rússia e a China, condenando a ação armada da OTAN18. Há, ainda, um risco produzido por essa proposta que merece ser apontado: ela implicaria a transferência do ônus da prova da legalidade ou legitimidade da ação armada. Assim, o ônus da prova caberia não mais ao Estado que recorreu primeiramente à força armada sem a autorização expressa do Conselho (e que potencialmente está agindo em desacordo com a Carta da ONU 19), mas aos outros Estados, especialmente a vítima da ação armada. Num sistema internacional que se caracteriza pela anarquia e alto grau de descentralização, essa perspectiva favoreceria bastante os Estados mais fortes e constituiria uma ameaça ao princípio do não uso da força nas relações internacionais. Mesmo que, por força do argumento, essa emenda viesse a ser adotada pelo Conselho, isso poderia gerar uma contramedida de ordem prática que obstacularizaria a ação do Conselho de igual modo: bastaria que um membro permanente vetasse a adoção da resolução prévia que atesta a situação de crise humanitária e a sua ameaça à paz e segurança internacionais. O perigo, portanto, é que se crie um círculo vicioso que não impeça a paralisia do Conselho. Uma circunstância que, na questão de Kosovo, poderia ser invocada em defesa de legitimidade da ação armada de Estados membros da OTAN contra a Iugoslávia foi a tentativa, por parte desses Estados, de previamente conciliarem 18
Para acesso ao projeto, ver UN Security Council Doc. S/1999/328. Veja, nesse sentido, que a Resolução 3.314 da Assembleia Geral da ONU, que define o conceito de agressão, estabelece a presunção de que o primeiro uso das forças armadas por o parte de um Estado (numa das formas previstas no art. 3 ) configuraria um ato de agressão armada. Cf. Lobo de Souza, I.M. O Conceito de Agressão Armada no Direito Internacional. Revista de Informação Legislativa, n 129, 1996, p.145-156. 19
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suas posições com as preocupações e interesses da Rússia, um dos membros permanentes do Conselho e um dos integrantes do Grupo de Contato. Em artigo publicado no Washington Post, Richard Holbrook, Ex-Embaixador dos Estados Unidos nas Nações Unidas durante o Governo Clinton, descreveu os esforços dos Ministros das Relações Exteriores dos demais países do Grupo de Contato (Reino Unido, França, Alemanha, Itália, Estados Unidos) para conseguirem a concordância da Rússia com uma resolução do Conselho que autorizasse o uso da força. O encontro, realizado na sala VIP do aeroporto de Heathrow (proximidades de Londres), teria durado cerca de quatro horas. Diante das insistentes ponderações e pedidos dos demais Chanceleres, o Ministro das Relações Exteriores da Rússia (Igor Ivanov) manteve sua firme posição no sentido de que a Rússia não poderia concordar com essa resolução. Ao final do encontro, porém, os Ministros europeus, o Embaixador norte-americano e a Secretária de Estado norte-americano teriam ficado com a impressão de que a Rússia sabia que não poderia impedir uma ação militar pela OTAN, mas não poderia formalmente endossá-la. Segundo Holbrook, Ivanov parecia estar dizendo “vão em frente, mas não com a aprovação explícita da Rússia”20. Realmente, é provável que, em certas ocasiões, o veto seja utilizado para resguardar
um
determinado
interesse
ou
posição
política
que
não
é
verdadeiramente fundamental para o Estado. O Estado que recorre ao veto pretende apenas manifestar sua solidariedade política a um aliado seu, mas jamais chegaria ao ponto de mobilizar, ou ameaçar a mobilização, de suas forças armadas em defesa daquele aliado. Nesses casos, poderia ser argumentado que a aplicação da regra de procedimento prevista no art. 27(3) representaria apenas uma mera formalidade, e que, substancialmente, o equilíbrio de interesses dos membros permanentes – alicerce do sistema de segurança coletiva – estaria assegurado. Por outro lado, pode-se argumentar que, na questão de Kosovo, os países do Grupo de Contato na verdade não teriam procurado conciliar ou transigir sua posição com a da Rússia, mas, ao contrário, simplesmente convencer a Rússia a aceitar a sua posição. A falta de flexibilidade negocial poderia também ser 20
Cf. Holbrooke, Richard. Give Diplomacy More Time. The Washington Post, Washington, 7 de Setembro de 2002. Disponível em: http://washingtonpost.com. Acesso em 02/10/2002.
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argumentada nos encontros havidos entre o representante norte-americano e os representantes da Iugoslávia. Tanto assim que a Rússia chegou a propor um projeto de resolução condenatória ao Conselho de Segurança, mesmo sabendo que não seria aprovado, como de fato não foi. Se o que se procura na tentativa de conciliação é apenas a ratificação de um curso de ação que já foi decidido, a legitimidade do processo de negociação prévia fica em dúvida. Por fim, há que se considerar que seria muito ingênuo pensar que os Estados estariam sempre dispostos a intervirem militarmente contra outro Estado por razões puramente humanitárias, isto é, sem qualquer vinculação com algum interesse nacional, seja de caráter econômico, político (interno ou externo), militar ou estratégico. A falta de intervenção armada externa no caso do genocídio ocorrido
em
Ruanda,
a
despeito
dos
apelos
das
organizações
não
governamentais e outras, prova o ponto. Talvez o mais razoável seja supor que, quando ocorre uma intervenção humanitária por parte de Estados, a despeito do discurso diplomático dos Estados, existe uma convergência entre determinados interesses nacionais dos Estados e a necessidade humanitária. Falk critica a ausência de um senso de responsabilidade e de vontade política, por parte dos Estados, para responder às graves e sistemáticas violações de direitos humanos em outros Estados, e aponta como causas principais a orientação de cunho realista na política externa dos Estados mais poderosos, que agiriam somente com base em considerações de poder, e a debilidade das instituições de governança global na implementação das normas fundamentais de direitos humanos. Analisando casos como o da Bosnia e Ruanda, conclui que a relutância em intervir às vezes se explica por razões logísticas (isto é, militares), mas muitas vezes se deve ao peso de interesses geopolíticos21. O curioso é que, não raro, os Estados procuram ocultar a existência de interesses nacionais imediatos, atrás de um discurso externo que justifica a ação pela defesa de valores maiores, notadamente a moral e a democracia, e a promoção do bem comum internacional22. O problema maior é quando uma situação humanitária não existe, ou foi provocada, ou pode ser resolvida por 21
Falk, Richard. The challenge of genocide. In: Dunne, Tim e Wheeler, Nicholas (eds). Human Rights in Global Politics. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2001, p.178-186. 22 Este seria o caso dos Estados Unidos, desde a Presidência do “idealista” Woodrow Wilson, na opinião de Kissinger. Kissinger, Henry. Diplomacy. New York: Touchstone, 1994, p.45-55.
A Intervenção Armada por Razões Humanitárias e a Questão de Kosovo
295
meios pacíficos, e é apenas uma justificativa para o atingimento do interesse nacional de um grupo de Estados. Deve-se atentar também se os meios utilizados vão além dos necessários para a consecução do fim humanitário – porque no fundo se almejava algo a mais – ou os danos colaterais à população civil são de tal monta a caracterizar uma violação do direito internacional humanitário. Nunca é demais, entretanto, postular, como o fez Lauterpacht, por processos
ordenados
e
pacíficos
dentro
uma
comunidade
organizada
politicamente que sejam livres da “precariedade e anarquia da força” e que propiciem a eficácia dos sacrifícios de interesses nacionais em prol do bem último (preservação da paz) 23.
Conclusão A ação armada levada a cabo por países membros da OTAN contra a Iugoslávia em 1999 tem suscitado um debate intenso nos meios acadêmicos sobre a necessidade e opções de reformulação do sistema de segurança coletiva universal, estabelecido na Carta da ONU para responder adequadamente à nova realidade internacional. Há seguramente, na opinião pública mundial, uma maior preocupação com o que acontece no interior dos Estados, especialmente com o tratamento dado pelos Governos aos seus nacionais, incluindo as minorias étnicas. A globalização tem produzido uma crescente exposição das políticas internas dos Estados na mídia internacional, e uma participação mais acentuada dos atores não estatais no processo de difusão e promoção do respeito pelos direitos humanos. Como, no entanto, achar o equilíbrio entre as necessidades prementes de natureza humanitária e a estabilidade do sistema político internacional? A premissa para qualquer solução que venha a ser pensada é privilegiar o ser humano como a preocupação central da ordem jurídica internacional.
23
Laeterpacht, Hersch. International Law. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1975, vol 2, p.8990.
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Ielbo Marcus Lobo de Souza
III. DIREITOS HUMANOS, INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO E GARANTISMO
O Começo da História A Nova Interpretação Constitucional e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro 1 Luís Roberto Barroso 2 Sumário: Introdução: A pré-história constitucional brasileira. Parte I: A nova interpretação constitucional. I. Tradição e modernidades: uma nota explicativa. II. Pós-positivismo e a ascensão dos princípios. III. Princípios e regras, ainda uma vez. IV. Ponderação de interesses, valores e normas. V. Teoria da argumentação. Parte II: Princípios constitucionais. I. Princípios instrumentais de interpretação constitucional. II. Princípios constitucionais materiais: uma classificação. III. As modalidades de eficácia dos princípios. IV. Algumas aplicações concretas dos princípios materiais. Conclusão.
Introdução – A Pré-História Constitucional Brasileira A experiência política e constitucional do Brasil, da independência até 1988, é a melancólica história do desencontro de um país com sua gente e com seu destino. Quase dois séculos de ilegitimidade renitente do poder, de falta de efetividade das múltiplas Constituições e de uma infindável sucessão de violações da legalidade constitucional. Um acúmulo de gerações perdidas. A ilegitimidade ancestral materializou-se na dominação de uma elite de visão estreita, patrimonialista, que jamais teve um projeto de país para toda a gente 3. Viciada pelos privilégios e pela apropriação privada do espaço público, produziu uma sociedade com deficit de educação, de saúde, de saneamento, de habitação, de oportunidades de vida digna. Uma legião imensa de pessoas sem acesso à alimentação adequada, ao consumo e à civilização, em um país rico, uma das maiores economias do mundo. A falta de efetividade das sucessivas Constituições brasileiras decorreu do não reconhecimento de força normativa aos seus textos e da falta de vontade 1
Este trabalho é dedicado a Raymundo Faoro. No geral, pelo papel que desempenhou na transição democrática brasileira. No particular, por ter ajudado a evitar que estudantes da UERJ sofressem violências no Departamento de Polícia Política e Social – DPPS, no final da década de 70. 2 Os tópicos IV (Ponderação de interesses, valores e normas) e V (Teoria da argumentação) da Parte I, e o tópico I (Modalidades de eficácia dos princípios) da Parte III foram escritos com a colaboração de Ana Paula de Barcellos, Professora Assistente de Direito Constitucional da UERJ e doutoranda em Direito Público. 3 a Sobre o tema v.Raymundo Faoro, Os donos do poder, 2000 (a 1 edição é de 1957).
política de dar-lhes aplicabilidade direta e imediata 4. Prevaleceu entre nós a tradição europeia da primeira metade do século, que via a Lei Fundamental como mera ordenação de programas de ação, convocações ao legislador ordinário e aos poderes públicos em geral. Daí porque as Cartas brasileiras sempre se deixaram inflacionar por promessas de atuação e pretensos direitos que jamais se consumaram na prática. Uma história marcada pela insinceridade e pela frustração. O desrespeito à legalidade constitucional acompanhou a evolução política brasileira como uma maldição, desde que D. Pedro I dissolveu a primeira Assembleia Constituinte. Das rebeliões ao longo da Regência ao golpe republicano, tudo sempre prenunciou um enredo acidentado, cuja força bruta diversas vezes se impôs sobre o Direito. Foi assim com Floriano Peixoto, com o golpe do Estado Novo, com o golpe militar, com o impedimento de Pedro Aleixo, com os Atos Institucionais. Intolerância, imaturidade e insensibilidade social derrotando a Constituição. A Constituição de 1988 foi o marco zero de um recomeço, da perspectiva de uma nova história. Sem as velhas utopias, sem certezas ambiciosas, com o caminho a ser feito ao andar. Mas com uma carga de esperança e um lastro de legitimidade sem precedentes, desde que tudo começou. E uma novidade. Tardiamente, o povo ingressou na trajetória política brasileira, como protagonista do processo, ao lado da velha aristocracia e da burguesia emergente. Nessa história ainda em curso, e sem certeza de final feliz, é fato, quanto à ilegitimidade ancestral, que a elite já não conserva a onipotência e a insensibilidade da antiga plutocracia. Seus poderes foram atenuados por fenômenos políticos importantes, como a organização da sociedade, a liberdade de imprensa, a formação de uma opinião pública mais consciente, o movimento social e, já agora, a alternância do poder. A legalidade constitucional, a despeito da compulsão com que se emenda a Constituição, vive um momento de elevação: quinze anos sem ruptura, um 4
Sobre o conceito de “força normativa” v. Konrad Hesse, A força normativa da Constituição, 1991 (trata-se da aula inaugural proferida por Konrad Hesse na Universidade de Freiburg em 1959). V. também, sobre o tema: José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 1998 (1ª edição de 1969) e Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 2002.
O Começo da História
299
verdadeiro recorde em um país de golpes e contragolpes. Ao longo desse período, destituiu-se um Presidente, afastaram-se Senadores e chegou ao poder um partido de esquerda, sem que uma voz sequer se manifestasse pelo desrespeito às regras constitucionais. Nessa saudável transformação, não deve passar despercebido o desenvolvimento de uma nova atitude e de uma nova mentalidade nas Forças Armadas. E a efetividade da Constituição, rito de passagem para o início da maturidade institucional brasileira, tornou-se uma ideia vitoriosa e incontestada. As normas constitucionais conquistaram o status pleno de normas jurídicas, dotadas de imperatividade, aptas a tutelar direta e imediatamente todas as situações que contemplam. Mais do que isso, a Constituição passa a ser a lente através da qual se leem e se interpretam todas as normas infraconstitucionais. A Lei Fundamental e seus princípios deram novo sentido e alcance ao direito civil, ao direito processual, ao direito penal, enfim, a todos os demais ramos jurídicos 5. A efetividade da Constituição é a base sobre a qual se desenvolveu, no Brasil, a nova interpretação constitucional 6. A seguir, expõem-se algumas ideias a propósito dessa fase de efervescente criatividade na dogmática jurídica e de sua aproximação com a ética e com a realização dos direitos fundamentais. O debate é universal, mas a perspectiva é brasileira. Um esforço de elaboração teórica a serviço dos ideais de avanço social e de construção de um país justo e digno. Que possa derrotar o passado que não soube ser.
Parte I A Nova Interpretação Constitucional I.Tradição e Modernidades: uma Nota Explicativa A
ideia
de
uma
5
nova
interpretação
constitucional
liga-se
ao
O direito civil, em especial, tem desenvolvido toda uma nova perspectiva de estudo a partir da Constituição. V., dentre outros, Gustavo Tepedino (coord.), A parte geral do novo Código Civil. Estudos na perspectiva civil-constitucional, 2002; Luiz Edson Fachin, Repensando os fundamentos do direito civil, 1998; Judith Martins-Costa (org.), A reconstrução do direito privado, 2002; Renan Lotufo (coord.), Direito civil constitucional, cad. 3, 2002. 6 Sobre o tema, Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 2002.
300
Luís Roberto Barroso
desenvolvimento de algumas fórmulas originais de realização da vontade da Constituição. Não importa desprezo ou abandono do método clássico – o subsuntivo 7, fundado na aplicação de regras – nem dos elementos tradicionais da hermenêutica: gramatical, histórico, sistemático e teleológico. Ao contrário, continuam eles a desempenhar um papel relevante na busca de sentido das normas e na solução de casos concretos 8. Relevante, mas nem sempre suficiente. Mesmo no quadro da dogmática jurídica tradicional, já haviam sido sistematizados diversos princípios específicos de interpretação constitucional, aptos a superar as limitações da interpretação jurídica convencional, concebida, sobretudo, em função da legislação infraconstitucional, e mais especialmente do direito civil. A grande virada na interpretação constitucional se deu a partir da difusão de uma constatação que, além de singela, sequer era original: não é verdadeira a crença de que as normas jurídicas em geral – e as normas constitucionais em particular – tragam sempre em si um sentido único, objetivo, válido para todas as situações sobre as quais incidem. E que, assim, caberia ao intérprete uma atividade de mera revelação do conteúdo pré-existente na norma, sem desempenhar qualquer papel criativo na sua concretização. A nova interpretação constitucional assenta-se no exato oposto de tal proposição: as cláusulas constitucionais, por seu conteúdo aberto, principiológico e extremamente dependente da realidade subjacente, não se prestam ao sentido unívoco e objetivo que certa tradição exegética lhes pretende dar. O relato da norma, muitas vezes, demarca apenas uma moldura dentro da qual se desenham diferentes possibilidades interpretativas. À vista dos elementos do caso concreto, dos princípios a serem preservados e dos fins a serem realizados é que será determinado o sentido da norma, com vistas à produção da solução constitucionalmente adequada para o problema a ser resolvido.
7
Nessa perspectiva, a interpretação jurídica consiste em um processo silogístico de subsunção dos fatos à norma: a lei é a premissa maior, os fatos são a premissa menor e a sentença é a conclusão. O papel do juiz consiste em revelar a vontade da norma, desempenhando uma atividade de mero conhecimento, sem envolver qualquer parcela de criação do Direito para o caso concreto. 8 Sobre esta temática, vejam-se no direito brasileiro, dentre outros, Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 2003 (a 1ª edição é de 1995), Juarez de Freitas, A interpretação sistemática do direito, 2002 (a 1ª edição é de 1995) e Inocêncio Mártires Coelho, Interpretação constitucional, 1997.
O Começo da História
301
Antes de avançar no tema, cabe ainda uma nota de advertência. Muitas situações subsistem em relação às quais a interpretação constitucional envolverá uma operação intelectual singela, de mera subsunção de determinado fato à norma. Tal constatação é especialmente verdadeira em relação à Constituição brasileira, povoada de regras de baixo teor valorativo, que cuidam do varejo da vida. Alguns exemplos de normas que, de ordinário, não dão margem a maiores especulações teóricas: (i) implementada a idade para a aposentadoria compulsória, o servidor público deverá passar para a inatividade (CF, art. 40, § 1°, II); (ii) o menor de trinta e cinco anos não é elegível para o cargo de Senador da República (CF, art. 14, § 3°, VI, a); (iii) não é possível o divórcio antes de um ano da separação judicial (CF, art. 226, § 6°). Portanto, ao se falar em nova interpretação constitucional, normatividade dos princípios, ponderação de valores, teoria da argumentação, não se está renegando o conhecimento convencional, a importância das regras ou a valia das soluções subsuntivas. Embora a história das ciências se faça, por vezes, em movimentos revolucionários de ruptura, não é disso que se trata aqui. A nova interpretação constitucional é fruto de evolução seletiva, que conserva muitos dos conceitos tradicionais, aos quais, todavia, agrega ideias que anunciam novos tempos e acodem a novas demandas. No fluxo das modernidades aqui assinaladas, existem técnicas, valores e personagens que ganharam destaque. E outros que, sem desaparecerem, passaram a dividir o palco, perdendo a primazia do papel principal. Um bom exemplo: a norma, na sua dicção abstrata, já não desfruta da onipotência de outros tempos. Para muitos, não se pode sequer falar da existência de norma antes que se dê a sua interação com os fatos, tal como pronunciada por um intérprete 9. É claro que os fatos e o intérprete sempre estiveram presentes na interpretação constitucional. Mas nunca como agora. Faça-se uma anotação sumária sobre cada um:
9
A não identidade entre norma e texto normativo, entre o “programa normativo” (correspondente ao comando jurídico) e o “domínio normativo” (a realidade social), é postulado básico da denominada metódica “normativo-estruturante” de Friedrich Müller (Discourse de la méthode a juridique, 1996; a 1 . ed. do original Juristische Methodik é de 1993). Sobre o tema, v. também. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, 2001, p. 1.179.
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Luís Roberto Barroso
(i) Os fatos subjacentes e as consequências práticas da interpretação. Em diversas situações, inclusive e notadamente nas hipóteses de colisão de normas e de direitos constitucionais, não será possível colher no sistema, em tese, a solução adequada: ela somente poderá ser formulada à vista dos elementos do caso concreto, que permitam afirmar qual desfecho corresponde à vontade constitucional 10. Ademais, o resultado do processo interpretativo, seu impacto sobre a realidade não pode ser desconsiderado 11: é preciso saber se o produto da incidência da norma sobre o fato realiza finalisticamente o mandamento constitucional 12. (ii) O intérprete e os limites de sua discricionariedade. A moderna interpretação constitucional envolve escolhas pelo intérprete, bem como a integração subjetiva de princípios, normas abertas e conceitos indeterminados. Boa parte da produção científica da atualidade tem sido dedicada, precisamente, à contenção da discricionariedade judicial, pela demarcação de parâmetros para a ponderação de valores e interesses e pelo dever de demonstração fundamentada da racionalidade e do acerto de suas opções.
Feita a advertência, passa-se à discussão de alguns dos temas que têm mobilizado o universo acadêmico nos últimos tempos e que, mais recentemente, vêm migrando para a dogmática jurídica e para a prática jurisprudencial.
II. Pós-Positivismo e a Ascensão dos Princípios 13 O jusnaturalismo moderno, que começou a formar-se a partir do século XVI, dominou por largo período a filosofia do Direito. A crença no direito natural – isto é, na existência de valores e de pretensões humanas legítimas que não 10
Qual o bem jurídico de maior valia: a liberdade de expressão ou a liberdade de ir e vir? Quando será legítima uma manifestação política que paralise o trânsito em uma via pública? Se for o comício de encerramento da campanha presidencial do candidato de um partido político nacional, parece razoável. Mas se vinte estudantes secundaristas deitarem-se ao longo de uma larga avenida, em protesto contra a qualidade da merenda, seria uma manifestação legítima? 11 Eduardo García de Enterría, La constitucion como norma y el tribunal constitucional, 1994, p. 183 e ss. 12 Pode acontecer que uma norma, sendo constitucional no seu relato abstrato, produza um resultado inconstitucional em uma determinada incidência. Por exemplo: o STF considerou constitucional a lei que impede a concessão de antecipação de tutela contra a Fazenda Pública (RTJ 169:383, ADC-MC 4, Rel. Min. Sydney Sanches), fato que, todavia, não impediu um Tribunal de Justiça de concedê-la, porque a abstenção importaria no sacrifício do direito à vida da a requerente (AI 598.398.600, TJRS, 4 . CC, Rel. Des. Araken de Assis). Veja-se o comentário dessa decisão em Ana Paula Ávila, Razoabilidade, proteção do direito fundamental à saúde e antecipação da tutela contra a Fazenda Pública, Ajuris 86/361. 13 Sobre o tema, v. Luís Roberto Barroso, Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo), in Temas de direito constitucional, t. II, p. 3 e ss.
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decorrem de uma norma emanada do Estado – foi um dos trunfos ideológicos da burguesia e o combustível das revoluções liberais. Ao longo do século XIX, com o advento do Estado liberal, a consolidação dos ideais constitucionais em textos escritos e o êxito do movimento de codificação, o jusnaturalismo chega ao seu apogeu e, paradoxalmente, tem início a sua superação histórica. Considerado metafísico e anticientífico, o direito natural é empurrado para a margem da história pela onipotência positivista do final século XIX 14. O positivismo filosófico foi fruto de uma crença exacerbada no poder do conhecimento científico. Sua importação para o Direito resultou no positivismo jurídico, na pretensão de criar-se uma ciência jurídica, com características análogas às ciências exatas e naturais. A busca de objetividade científica, com ênfase na realidade observável e não na especulação filosófica, apartou o Direito da moral e dos valores transcendentes. Direito é norma, ato emanado do Estado com caráter imperativo e força coativa. A ciência do Direito, como todas as demais, deve fundar-se em juízos de fato, que visam ao conhecimento da realidade, e não em juízos de valor, que representam uma tomada de posição diante da realidade. Não é no âmbito do Direito que se deve travar a discussão acerca de questões como legitimidade e justiça 15. Sem embargo da resistência filosófica de outros movimentos influentes nas primeiras
décadas
do
século
XX 16,
a
decadência
do
positivismo
é
emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e 14
Bobbio, Matteucci e Pasquino, Dicionário de política, 1986, p. 659; Ana Paula de Barcellos, As relações da filosofia do direito com a experiência jurídica. Uma visão dos séculos XVIII, XIX e XX. Algumas questões atuais, Revista Forense 351/10; e Viviane Nunes Araújo Lima, A saga do zangão: uma visão sobre o direito natural, 2000, p. 181. 15 V. Norberto Bobbio, O positivismo jurídico, 1995, p. 223-4, e também Michael Löwy, Ideologias e ciência social – elementos para uma análise marxista, 1996, p. 40: O positivismo, que se apresenta como ciência livre de juízos de valor, neutra, rigorosamente científica, (...) acaba tendo uma função política e ideológica. 16 Como por exemplo, a jurisprudência dos interesses, iniciada por Ihering, e o movimento pelo direito livre, no qual se destacou Ehrlich.
304
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da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha mais aceitação no pensamento esclarecido 17. A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais 18, edificada sobre o fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios, sua incorporação,
explícita
ou
implícita,
pelos
textos
constitucionais
e
o
reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre Direito e Ética. Gradativamente, diversas formulações antes dispersas ganham unidade e consistência, ao mesmo tempo em que se desenvolve o esforço teórico que procura transformar o avanço filosófico em instrumental técnico-jurídico aplicável aos problemas concretos. O discurso acerca dos princípios, da supremacia dos direitos fundamentais e do reencontro com a Ética – ao qual, no Brasil, se deve agregar o da transformação social e o da emancipação – deve ter repercussão sobre o ofício dos juízes, advogados e promotores, sobre a atuação do Poder Público em geral e sobre a vida das pessoas. Trata-se de transpor a fronteira da reflexão filosófica, ingressar na dogmática jurídica e na prática jurisprudencial e, indo mais além, produzir efeitos positivos sobre a realidade. Os tópicos que se seguem têm a ambição de servir de guia elementar para a construção da normatividade e da efetividade do pós-positivismo.
17
Carlos Santiago Nino, Etica y derechos humanos, 1989, p. 3 e ss.; e Ricardo Lobo Torres, Os direitos humanos e a tributação – imunidades e isonomia, 1995, p. 6 e ss. 18 Sobre o tema, vejam-se: Antônio Augusto Cançado Trindade, A proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos, 1991; Ingo Wolfgang Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, 1998; Flávia Piovesan, Temas de direitos humanos, 1998; Ricardo Lobo Torres (org.), Teoria dos direitos fundamentais, 1999; Willis Santiago Guerra Filho, Processo constitucional e direitos fundamentais, 1999; e Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, 2000.
O Começo da História
305
III. Princípios e Regras, ainda uma vez Na trajetória que os conduziu ao centro do sistema, os princípios tiveram de conquistar o status de norma jurídica, superando a crença de que teriam uma dimensão puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e imediata. A dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas em geral, e as normas constitucionais em particular, enquadram-se em duas grandes categorias diversas: os princípios e as regras. Antes de uma elaboração mais sofisticada da teoria dos princípios, a distinção entre eles fundava-se, sobretudo, no critério da generalidade 19. Normalmente, as regras contêm relato mais objetivo, com incidência restrita às situações específicas às quais se dirigem. Já os princípios têm maior teor de abstração e incidem sobre uma pluralidade de situações. Inexiste hierarquia entre ambas as categorias, à vista do princípio da unidade da Constituição. Isso não impede que princípios e regras desempenhem funções distintas dentro do ordenamento. Nos últimos anos, todavia, ganhou curso generalizado uma distinção qualitativa ou estrutural entre regra e princípio, que veio a se tornar um dos pilares da moderna dogmática constitucional, indispensável para a superação do positivismo legalista, cujas normas se cingiam a regras jurídicas. 20 A Constituição passa a ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as ideias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central. A mudança de paradigma nessa matéria deve especial tributo às concepções de Ronald Dworkin 21 e aos desenvolvimentos a ela dados por Robert Alexy 22. A conjugação das ideias desses dois autores dominou a teoria jurídica e passou a constituir o
19
Josef Esser, Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho privado, 1961, p. 66. 20 Rodolfo L. Vigo, Los principios jurídicos – perspectiva jurisprudencial, 2000, p. 9-20. O autor apresenta um interessante panorama dos critérios distintivos entre princípios e regras já propostos pela doutrina. 21 a Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1997 (a 1 . edição é de 1977). O texto seminal nessa matéria, do próprio Dworkin, foi “The model of rules”, University of Chicago Law Review, 35/14 (1967). 22 a Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, 1997 (a 1 . ed. do original Theorie der Grundrechte é de 1986).
306
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conhecimento convencional na matéria 23. Regras são, normalmente, relatos objetivos, descritivos de determinadas condutas e aplicáveis a um conjunto delimitado de situações. Ocorrendo a hipótese prevista no seu relato, a regra deve incidir, pelo mecanismo tradicional da subsunção: enquadram-se os fatos na previsão abstrata e produz-se uma conclusão. A aplicação de uma regra se opera na modalidade tudo ou nada: ou ela regula a matéria em sua inteireza ou é descumprida. Na hipótese do conflito entre duas regras, só uma será válida e irá prevalecer 24. Princípios, por sua vez, contêm relatos com maior grau de abstração, não especificam a conduta a ser seguida e se aplicam a um conjunto amplo, por vezes indeterminado, de situações. Em uma ordem democrática, os princípios frequentemente entram em tensão dialética, apontando direções diversas. Por essa razão, sua aplicação deverá se dar mediante ponderação: à vista do caso concreto, o intérprete irá aferir o peso que cada princípio deverá desempenhar na hipótese, mediante concessões recíprocas, e preservando o máximo de cada um, na medida do possível. Sua aplicação, portanto, não será no esquema tudo ou nada, mas graduada à vista das circunstâncias representadas por outras normas ou por situações de fato 25. Pois bem: ultrapassada a fase de certo deslumbramento com a 23
O consenso vem sendo, todavia, progressivamente rompido pelo surgimento de trabalhos críticos de qualidade. V. na doutrina nacional, Humberto Ávila, Teoria dos princípios (da definição à aplicação dos princípios jurídicos), 2003, mimeografado (livro no prelo, original gentilmente cedido pelo autor); na doutrina estrangeira, Klaus Günther, The sense of appropriateness – Application discourses in morality and law, 1993. Para uma defesa das posições de Alexy, v. Thomas da Rosa Bustamante, A distinção estrutural entre princípios e regras e sua importância para a dogmática jurídica, 2003, mimeografado (original gentilmente cedido pelo autor). 24 V. Luís Roberto Barroso, Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro, in Temas de direito constitucional, t. II, p. 32: “O Direito, como se sabe, é um sistema de normas harmonicamente articuladas. Uma situação não pode ser regida simultaneamente por duas disposições legais que se contraponham. Para solucionar essas hipóteses de conflito de leis, o ordenamento jurídico se serve de três critérios tradicionais: o da hierarquia – pelo qual a lei superior prevalece sobre a inferior –, o cronológico – cuja lei posterior prevalece sobre a anterior – e o da especialização – em que a lei específica prevalece sobre a lei geral. Esses critérios, todavia, não são adequados ou plenamente satisfatórios quando a colisão se dá entre normas constitucionais, especialmente entre princípios constitucionais, categoria na qual devem ser situados os conflitos entre direitos fundamentais.” 25 Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, 1997, p. 86: “Princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Por isso, são mandados de otimização, caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida devida de seu cumprimento não só depende das possibilidades reais, mas também das jurídicas. O âmbito do juridicamente possível é determinado pelos princípios e regras opostas.”
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redescoberta dos princípios como elementos normativos, o pensamento jurídico tem se dedicado à elaboração teórica das dificuldades que sua interpretação e aplicação oferecem, tanto na determinação de seu conteúdo quanto no de sua eficácia. A ênfase que se tem dado à teoria dos princípios deve-se, sobretudo, ao fato de ser nova e de apresentar problemas ainda irresolvidos. O modelo tradicional, como já mencionado, foi concebido para a interpretação e aplicação de regras. É bem de ver, no entanto, que o sistema jurídico ideal se consubstancia em uma distribuição equilibrada de regras e princípios, nos quais as regras desempenham o papel referente à segurança jurídica – previsibilidade e objetividade das condutas – e os princípios, com sua flexibilidade, dão margem à realização da justiça do caso concreto 26. É de proveito aprofundar o tema da distinção entre princípios e regras, especialmente no que diz respeito às potencialidades que oferecem para a atuação do intérprete constitucional. Sem embargo da multiplicidade de concepções na matéria, há pelo menos um consenso sobre o qual trabalha a doutrina em geral: princípios e regras desfrutam igualmente do status de norma jurídica e integram, sem hierarquia, o sistema referencial do intérprete. Dos múltiplos critérios distintivos possíveis 27, três deles são aqui destacados: (i) o conteúdo; (ii) a estrutura normativa; (iii) as particularidades da aplicação. Quanto ao conteúdo, destacam-se os princípios como normas que identificam valores a serem preservados ou fins a serem alcançados. Trazem em si, normalmente, um conteúdo axiológico ou uma decisão política. Isonomia, 26
V. Ana Paula de Barcellos, Ponderação de normas: alguns parâmetros jurídicos. Projeto de tese de doutoramento aprovado no programa de Pós-Graduação em Direito Público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro: “É possível identificar uma relação entre a segurança, a estabilidade e a previsibilidade e as regras jurídicas. Isso porque, na medida em que veiculam efeitos jurídicos determinados, pretendidos pelo legislador de forma específica, as regras contribuem para a maior previsibilidade do sistema jurídico. A justiça, por sua vez, depende em geral de normas mais flexíveis, à maneira dos princípios, que permitam uma adaptação mais livre às infinitas possibilidades do caso concreto e que sejam capazes de conferir ao intérprete liberdade de adaptar o sentido geral do efeito pretendido, muitas vezes impreciso e indeterminado, às peculiaridades da hipótese examinada. Nesse contexto, portanto, os princípios são espécies normativas que se ligam de modo mais direto à idéia de justiça. Assim, como esquema geral, é possível dizer que a estrutura das regras facilita a realização do valor segurança, ao passo que os princípios oferecem melhores condições para que a justiça possa ser alcançada” (texto ligeiramente editado). 27 Sobre o tema, vejam-se Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, 1997; Claus-Wilhelm Canaris, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, 1996. Na doutrina brasileira, v. o importante estudo de Humberto Ávila, Teoria dos princípios (da definição à aplicação dos princípios jurídicos), cit.
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moralidade e eficiência são valores. Justiça social, desenvolvimento nacional, redução das desigualdades regionais são fins públicos. Já as regras limitam-se a traçar uma conduta. A questão relativa a valores ou a fins públicos não vem explicitada na norma porque já foi decidida pelo legislador, e não transferida ao intérprete. Daí se possível afirmar-se que regras são descritivas de conduta, ao passo que princípios são valorativos ou finalísticos. Com relação à estrutura normativa, tem-se que o relato de uma regra especifica os atos a serem praticados para seu cumprimento adequado. Embora a atividade do intérprete jamais possa ser qualificada como mecânica, pois a ele cabe dar o toque de humanidade que liga o texto à vida real, a aplicação de uma regra normalmente não envolverá um processo de racionalização mais sofisticado. Ocorre o fato previsto em abstrato, produz-se o efeito concreto prescrito. Já os princípios indicam fins, estados ideais a serem alcançados. Como a norma não detalha a conduta a ser seguida para sua realização, a atividade do intérprete será mais complexa, pois a ele caberá definir a ação a tomar. Pode ocorrer ainda, em relação aos princípios, uma dificuldade adicional: o fim a ser atingido ou o estado ideal a ser transformado em realidade pode não ser objetivamente determinado, envolvendo uma integração subjetiva por parte do intérprete. Um princípio tem um sentido e alcance mínimos, um núcleo essencial, no qual se equiparam às regras. A partir de determinado ponto, no entanto, ingressa-se em um espaço de indeterminação, no qual a demarcação de seu conteúdo estará sujeita à concepção ideológica ou filosófica do intérprete. Um exemplo é fornecido pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Além de não explicitar os comportamentos necessários para realizar a dignidade humana – essa, portanto, é a primeira dificuldade: descobrir os comportamentos – poderá haver controvérsia sobre o que significa a própria dignidade a partir de um determinado conteúdo essencial, conforme o ponto de observação do intérprete 28. Quanto ao modo ou particularidades de sua aplicação, a doutrina que se desenvolveu sobre as premissas teóricas de Dworkin e Alexy traça a distinção entre princípios e regras na forma já registrada acima e que se reproduz 28
Essa característica dos princípios, aliás, é que permite que a norma se adapte, ao longo do tempo, a diferentes realidades, além de permitir a concretização do princípio da maioria, inerente ao regime democrático. Há um sentido mínimo, oponível a qualquer grupo que venha a exercer o poder, e também um espaço cujo conteúdo será preenchido pela deliberação democrática.
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sumariamente, para fins de encadeamento do raciocínio. Regras são proposições normativas aplicáveis sob a forma de tudo ou nada (“all or nothing”). Se os fatos nela previstos ocorrerem, a regra deve incidir, de modo direto e automático, produzindo seus efeitos. Uma regra somente deixará de incidir sobre a hipótese de fato que contempla se for inválida, se houver outra mais específica ou se não estiver em vigor. Sua aplicação se dá, predominantemente, mediante subsunção. Princípios contêm, normalmente, uma maior carga valorativa, um fundamento ético, uma decisão política relevante, e indicam uma determinada direção a seguir. Ocorre que, em uma ordem pluralista, existem outros princípios que abrigam decisões, valores ou fundamentos diversos, por vezes contrapostos. A colisão de princípios, portanto, não só é possível, como faz parte da lógica do sistema, que é dialético. Por isso a sua incidência não pode ser posta em termos de tudo ou nada, de validade ou invalidade. Deve-se reconhecer aos princípios uma dimensão de peso ou importância. À vista dos elementos do caso concreto, o intérprete deverá fazer escolhas fundamentadas, quando se defronta com antagonismos inevitáveis, como os que existem entre a liberdade de expressão e o direito de privacidade, a livre iniciativa e a intervenção estatal, o direito de propriedade e a sua função social. A aplicação dos princípios se dá, predominantemente, mediante ponderação 29. É certo que, mais recentemente, já se discute tanto a aplicação do esquema tudo ou nada aos princípios como a possibilidade de também as regras serem ponderadas. Isso porque, como visto, determinados princípios – como o princípio da dignidade da pessoa humana e outros – apresentam um núcleo de
29
Partindo da ideia original de Dworkin, o autor alemão Robert Alexy (Teoria de los derechos fundamentales, 1997, p. 81 e ss.) deu novos desenvolvimentos analíticos ao tema, nos termos a seguir resumidos. As regras veiculam mandados de definição, ao passo que os princípios são mandados de otimização. Por essas expressões se quer significar que as regras (mandados de definição) têm natureza biunívoca, isto é, só admitem duas espécies de situação, dado seu substrato fático típico: ou são válidas e se aplicam ou não se aplicam por inválidas. Uma regra vale ou não vale juridicamente. Não são admitidas gradações. A exceção da regra ou é outra regra, que invalida a primeira, ou é a sua violação. Os princípios se comportam de maneira diversa. Como mandados de otimização, pretendem eles ser realizados da forma mais ampla possível, admitindo, entretanto, aplicação mais ou menos intensa de acordo com as possibilidades jurídicas existentes, sem que isso comprometa sua validade. Esses limites jurídicos, capazes de restringir a otimização do princípio, são (i) regras que o excepcionam em algum ponto e (ii) outros princípios de mesma estatura e opostos que procuram igualmente maximizar-se, impondo a necessidade eventual de ponderação.
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sentido ao qual se atribui natureza de regra, aplicável biunivocamente 30. Por outro lado, há situações em que uma regra, perfeitamente válida em abstrato, poderá gerar uma inconstitucionalidade ao incidir em determinado ambiente ou, ainda, há hipóteses em que a adoção do comportamento descrito pela regra violará gravemente o próprio fim que ela busca alcançar 31. Esses são fenômenos de percepção recente, que começam a despertar o interesse da doutrina, inclusive por seu grande alcance prático. Princípios – e, com crescente adesão na doutrina, também as regras – são ponderados, à vista do caso concreto. E, na determinação de seu sentido e na escolha dos comportamentos que realizarão os fins previstos, deverá o intérprete demonstrar o fundamento racional que legitima sua atuação. Chega-se, assim, aos dois temas que se seguem: a ponderação e a argumentação jurídica.
IV. Ponderação de Interesses, Bens, Valores e Normas 32 Durante muito tempo, a subsunção foi a única fórmula para compreender a aplicação do direito, a saber: premissa maior – a norma – incidindo sobre a
30
Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa humana, 2002, p. 191 e ss. 31 V. Humberto Ávila, Teoria dos princípios (da definição à aplicação dos princípios jurídicos), cit., p. 28 e ss. O STF, no julgamento do Habeas Corpus 7703-PE (Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 11.09.98), considerou ser essa a hipótese e afastou, no caso concreto, a aplicação do art. 1° do Decreto-Lei n° 200/67 para conceder a ordem e trancar ação penal proposta contra Ex-Prefeita. A questão era a seguinte. Determinado Município contratou, sem concurso público, um gari por cerca de nove meses; posteriormente, o gari ingressou na justiça trabalhista exigindo um conjunto de direitos. A reclamação foi julgada improcedente pelo Juízo trabalhista, que acolheu a alegação do Município de nulidade da relação por falta de concurso público e determinou a remessa de peças ao Ministério Público para responsabilização da autoridade que dera causa ao descumprimento da regra constitucional. Com fundamento nesses fatos, o Ministério Público propôs a ação penal em face da Ex-Prefeita. O STF, no entanto, considerou que o evento era insignificante, que a Municipalidade não teria sofrido prejuízo e que o fim da norma prevista no art. 1° do Decreto-Lei n° 200/67 não fora afetado e, por essas razões, determinou o trancamento da ação penal. 32 Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1997; Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, 1997 e os seguintes textos mimeografados: Colisão e ponderação como problema fundamental da dogmática dos direitos fundamentais (1998) e Constitutional rights, balancing, and rationality (2002) (textos gentilmente cedidos por Margarida Lacombe Camargo); Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, 1997; Daniel Sarmento, A ponderação de interesses na Constituição Federal, 2000; Ricardo Lobo Torres, Da ponderação de interesses ao princípio da ponderação, in Urbano Zilles (coord.), Miguel Reale. Estudos em homenagem a seus 90 anos, 2000, p. 643 e ss; Aaron Barak, Foreword: a judge on judging: the role of a Supreme Court in a Democracy, Harvard Law Review 116/1 (2002); Marcos Maselli Gouvêa, O controle judicial das omissões administrativas, 2003; Humberto Ávila, Teoria dos princípios (da definição à aplicação dos princípios jurídicos), cit.
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premissa menor – os fatos – e produzindo como consequência a aplicação do conteúdo da norma ao caso concreto. Como já se viu essa espécie de raciocínio continua a ser fundamental para a dinâmica do direito. Mais recentemente, porém, a dogmática jurídica deu-se conta de que a subsunção tem limites, não sendo por si só suficiente para lidar com situações que, em decorrência da expansão dos princípios, são cada vez mais frequentes. Não é difícil demonstrar e ilustrar o argumento. Imagine-se uma hipótese em que mais de uma norma possa incidir sobre o mesmo conjunto de fatos – várias premissas maiores, portanto, para apenas uma premissa menor –, como no caso clássico da oposição entre liberdade de imprensa e de expressão, de um lado, e os direitos à honra, à intimidade e à vida privada, de outro 33. Como se constata singelamente, as normas envolvidas tutelam valores distintos e apontam soluções diversas e contraditórias para a questão. Na sua lógica unidirecional (premissa maior – premissa menor), a solução subsuntiva para esse problema somente poderia trabalhar com uma das normas, o que importaria a escolha de uma única premissa maior, descartando-se as demais. Tal fórmula, todavia, não seria constitucionalmente adequada: por força do princípio instrumental da unidade da Constituição (v. infra), o intérprete não pode simplesmente optar por uma norma e desprezar outra em tese também aplicável, como se houvesse hierarquia entre elas. Como consequência, a interpretação constitucional viu-se na contingência de desenvolver técnicas capazes de lidar com o fato de que a Constituição é um documento dialético – que tutela valores e interesses potencialmente conflitantes – e que princípios nela consagrados frequentemente entram em rota de colisão. A dificuldade que se acaba de descrever já foi amplamente percebida pela doutrina; é pacífico que casos como esses não são resolvidos por uma subsunção simples. Será preciso um raciocínio de estrutura diversa, mais complexo, que seja capaz de trabalhar multidirecionalmente, produzindo a regra concreta que vai reger a hipótese a partir de uma síntese dos distintos elementos normativos incidentes sobre aquele conjunto de fatos. De alguma forma, cada um desses 33
Há diversos estudos sobre esse conflito específico. Veja-se, por todos, o trabalho de Edilsom Pereira de Farias, Colisão de direitos. A honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação, 1996.
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elementos deverá ser considerado na medida de sua importância e pertinência para o caso concreto, de modo que na solução final, tal qual em um quadro bem pintado, as diferentes cores possam ser percebidas, ainda que uma ou algumas delas venham a se destacar sobre as demais. Esse é, de maneira geral, o objetivo daquilo que se convencionou denominar de técnica da ponderação. A ponderação consiste, portanto, em uma técnica de decisão jurídica 34 aplicável a casos difíceis 35, em relação aos quais a subsunção se mostrou insuficiente, especialmente quando uma situação concreta dá ensejo à aplicação de normas de mesma hierarquia que indicam soluções diferenciadas 36. A estrutura interna do raciocínio ponderativo ainda não é bem conhecida, embora esteja sempre associada às noções difusas de balanceamento e sopesamento de interesses, bens, valores ou normas. A importância que o tema ganhou no dia a dia da atividade jurisdicional, entretanto, tem levado a doutrina a estudá-lo mais cuidadosamente 37. De forma simplificada, é possível descrever a ponderação como um processo em três etapas, relatadas a seguir. Na primeira etapa, cabe ao intérprete detectar no sistema as normas relevantes para a solução do caso, identificando eventuais conflitos entre elas. Como se viu, a existência dessa espécie de conflito – insuperável pela subsunção – é o ambiente próprio de trabalho da ponderação 38. Assinale-se que norma não se confunde com dispositivo: por vezes uma norma será o resultado da conjugação de mais de um dispositivo. Por seu turno, um dispositivo isoladamente
34
José Maria Rodríguez de Santiago, La ponderación de bienes e intereses en el derecho administrativo, 2000. 35 Do inglês hard cases, a expressão identifica situações para as quais não há uma formulação simples e objetiva a ser colhida no ordenamento, sendo necessária a atuação subjetiva do intérprete e a realização de escolhas, com eventual emprego de discricionariedade. 36 A ponderação também tem sido empregada em outras circunstâncias, como na definição do conteúdo de conceitos jurídicos indeterminados (a definição dos que sejam os “valores éticos e sociais da pessoa e da família”, referidos no art. 221, IV, da Constituição, envolverá por certo um raciocínio do tipo ponderativo) ou na aplicação da equidade a casos concretos, embora este último caso possa ser reconduzido a um confronto de princípios, já que a eqüidade tem como fundamento normativo específico o princípio constitucional da justiça. 37 Ricardo Lobo Torres, Da ponderação de interesses ao princípio da ponderação, in Urbano Zilles (coord.), Miguel Reale. Estudos em homenagem a seus 90 anos, 2000, p. 643 e ss. 38 É bem de ver que algumas vezes o conflito se estabelece mais claramente entre interesses que se opõem, quando então será preciso verificar se esses interesses podem ser reconduzidos a normas jurídicas (normas que, por sua vez, podem ter como fundamento regras e/ou princípios, explícitos ou implícitos).
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considerado pode não conter uma norma ou, ao revés, abrigar mais de uma 39. Ainda nesse estágio, os diversos fundamentos normativos – isto é: as diversas premissas maiores pertinentes – são agrupados em função da solução que estejam sugerindo. Ou seja: aqueles que indicam a mesma solução devem formar um conjunto de argumentos. O propósito desse agrupamento é facilitar o trabalho posterior de comparação entre os elementos normativos em jogo. Na segunda etapa, cabe examinar os fatos, as circunstâncias concretas do caso e sua interação com os elementos normativos. Relembre-se, na linha do que já foi exposto anteriormente, a importância assumida pelos fatos e pelas consequências práticas da incidência da norma na moderna interpretação constitucional. Embora os princípios e regras tenham uma existência autônoma em tese, no mundo abstrato dos enunciados normativos, é no momento em que entram em contato com as situações concretas que seu conteúdo se preencherá de real sentido. Assim, o exame dos fatos e os reflexos sobre eles das normas identificadas na primeira fase poderão apontar com maior clareza o papel de cada uma delas e a extensão de sua influência. Até aqui, na verdade, nada foi solucionado nem sequer há maior novidade. Identificação das normas aplicáveis e compreensão dos fatos relevantes fazem parte de todo e qualquer processo interpretativo, sejam os casos fáceis ou difíceis. É na terceira etapa que a ponderação irá singularizar-se, em oposição à subsunção. Relembre-se, como já assentado, que os princípios, por sua estrutura e natureza, e observados determinados limites, podem ser aplicados com maior ou menor intensidade, à vista de circunstâncias jurídicas ou fáticas, sem que isso afete sua validade 40. Pois bem: nessa fase dedicada à decisão, os diferentes grupos de normas e a repercussão dos fatos do caso concreto estarão sendo examinados de forma conjunta, de modo a apurar os pesos que devem ser atribuídos aos diversos elementos em disputa e, portanto, o grupo de normas que deve preponderar no caso. Em seguida, é preciso ainda decidir quão intensamente esse grupo de normas – e a solução por ele indicada – deve prevalecer em detrimento dos demais, isto é: sendo possível graduar a 39
Sobre o tema, v. Humberto Ávila, Teoria dos princípios (da definição à aplicação dos princípios jurídicos), cit., p. 13. 40 Essa estrutura em geral não se repete com as regras, de modo que a ponderação de regras será um fenômeno muito mais complexo e excepcional.
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intensidade da solução escolhida, cabe ainda decidir qual deve ser o grau apropriado em que a solução deve ser aplicada. Todo esse processo intelectual tem como fio condutor o princípio instrumental da proporcionalidade ou razoabilidade (v. infra). Da exposição apresentada extrai-se que a ponderação ingressou no universo da interpretação constitucional como uma necessidade, antes que como uma opção filosófica ou ideológica 41. É certo, no entanto, que cada uma das três etapas descritas acima – identificação das normas pertinentes, seleção dos fatos relevantes e atribuição geral de pesos, com a produção de uma conclusão – envolve avaliações de caráter subjetivo, que poderão variar em função das circunstâncias pessoais do intérprete e de outras tantas influências 42. É interessante
observar
que
alguns
dos
principais
temas
da
atualidade
constitucional no Brasil tem seu equacionamento posto em termos de ponderação de valores, podendo-se destacar:
(i) o debate acerca da relativização da coisa julgada, na qual se contrapõem o princípio da segurança jurídica e outros valores socialmente relevantes, como a justiça, a proteção dos direitos da personalidade e outros 43; (ii) o debate acerca da denominada “eficácia horizontal dos direitos fundamentais”, envolvendo a aplicação das normas constitucionais às relações privadas, na qual se contrapõem a autonomia da vontade e a efetivação dos direitos fundamentais 44; 41
Há, na verdade, quem critique essa necessidade e a própria conveniência de aplicar-se a ponderação a temas constitucionais que, por seu caráter fundamental, não deveriam estar sujeitos a avaliações tão subjetivas como as que ocorrem em um processo de ponderação: v. tb. Alexander Aleinikoff, Constitutional law in the age of balancing, Yale Law Journal 96, 1987, p. 943 e ss. 42 Para o exame de algumas situações concretas de ponderação na nossa perspectiva, vejam-se em Luís Roberto Barroso, Temas de direito constitucional, 2002: Liberdade de expressão, direito à informação e banimento da publicidade de cigarro, p. 243 e ss. (sobre liberdade de expressão e informação versus políticas públicas de proteção à saúde); Liberdade de expressão, censura e controle da programação de televisão na Constituição de 1988, p. 341 e ss. (sobre liberdade de expressão versus proteção aos valores éticos e sociais da pessoa e da família). E em Temas de direito constitucional, t. II, 2003: A ordem constitucional e os limites à atuação estatal no controle de preços, p. 47 e ss. (sobre livre iniciativa e livre concorrência versus proteção do consumidor); e Banco Central e Receita Federal. Comunicação ao Ministério Público para fins penais. Obrigatoriedade da conclusão prévia do processo administrativo, p. 539 e ss. (sobre proteção da honra, imagem e privacidade versus repressão de ilícitos). 43 V. Cândido Rangel Dinamarco, Relativizar a coisa julgada material in Carlos Valder do Nascimento (coord.), Coisa julgada inconstitucional, 2002, p. 33 e ss. 44 Ingo Wolfgang Sarlet, Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, in Ingo Wolfgang Sarlet (org.), A Constituição concretizada. Construindo pontes com o público e o privado, 2000, p. 107 e ss. Vejam-se, também, dois projetos de doutoramento em curso perante a Pós-Graduação em Direito
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(iii) o debate acerca do papel da imprensa, liberdade de expressão e direito à informação em contraste com o direito à honra, à imagem e à vida privada.
Algumas observações finais sobre o tema. A metáfora da ponderação, associada ao próprio símbolo da justiça, não é imune a críticas, se sujeita ao mau uso e não é remédio para todas as situações. Embora tenha merecido ênfase recente, por força da teoria dos princípios, trata-se de uma ideia que vem de longe 45. Há quem a situe como um componente do princípio mais abrangente da proporcionalidade 46 e outros que já a vislumbram como um princípio próprio, autônomo, o princípio da ponderação 47. É bem de ver, no entanto, que a ponderação, embora preveja a atribuição de pesos diversos aos fatores relevantes de uma determinada situação, não fornece referências materiais ou axiológicas para a valoração a ser feita. No seu limite máximo, presta-se ao papel de oferecer um rótulo para voluntarismos e soluções ad hoc, tanto as beminspiradas como as nem tanto 48. O risco de tal disfunção, todavia, não a desmerece como técnica de decisão nem priva a doutrina da possibilidade de buscar parâmetros melhor definidos para sua aplicação. No estágio atual, a ponderação ainda não atingiu o padrão desejável de objetividade, dando lugar a ampla discricionariedade judicial. Tal discricionariedade, no entanto, como regra, deverá ficar limitada às hipóteses em que o sistema jurídico não tenha sido capaz de oferecer a solução em tese, elegendo um valor ou interesse que deva prevalecer. A existência de ponderação
Público da UERJ: Daniel Sarmento, Direito humanos e relações privadas: a eficácia horizontal dos direitos fundamentais na Constituição brasileira, 2002, e Jane Reis Gonçalves Pereira, O sistema de interpretação dos direitos fundamentais, 2002. 45 Roscoe Pound, Interpretations of legal history, 1923 é citado como grande impulsionador da moderna técnica de ponderação, no âmbito da “jurisprudência sociológica”. V. Murphy, Fleming e Harris, II, American constitutional interpretation, 1986, p. 309. 46 Robert Alexy, Constitutional rights, balancing, and rationality, 2002, mimeografado, p. 6. 47 Ricardo Lobo Torres, Da ponderação de interesses ao princípio da ponderação, in Urbano Zilles (coord.), Miguel Reale. Estudos em homenagem a seus 90 anos, 2000, p. 643 e ss. 48 Antônio Henrique Corrêa da Silva, em monografia de final de curso na Pós-Graduação em Direito Público da UERJ, significativamente denominada de Colisão de princípios e ponderação de interesses: solução ruim para problema inexistente, 2002, faz densa crítica à ideia de ponderação em si e, considerando artificiais as distinções entre regra e princípio, concluiu: a) a distinção entre regra e princípio é inócua do ponto de vista funcional, uma vez que o princípio não pode operar por si só, mas apenas através de uma regra que dele se extraia; b) a ”colisão de princípios” é, na verdade, um conflito de regras extraídas de princípios, que podem ou não ser solucionáveis (rectius: solucionável) pelos critérios tradicionais de superação de antinomias.
316
Luís Roberto Barroso
não é um convite para o exercício indiscriminado de ativismo judicial. O controle de legitimidade das decisões obtidas mediante ponderação tem sido feito através do exame da argumentação desenvolvida. Seu objetivo, de forma bastante simples, é verificar a correção dos argumentos apresentados em suporte de uma determinada conclusão ou ao menos a racionalidade do raciocínio desenvolvido em cada caso, especialmente quando se trate do emprego da ponderação. O próximo tópico será dedicado a esse tema.
V. A Teoria da Argumentação49 Após um primeiro momento de perplexidade, os iniciantes no estudo do Direito passam a encarar com naturalidade um fenômeno que causa estranheza a uma pessoa leiga: a existência de decisões em sentidos opostos acerca de uma mesma matéria, posições doutrinárias divergentes e até mesmo votos conflitantes em um mesmo julgado 50. Isto é: considerados os mesmos fatos e os mesmos elementos normativos, pessoas diferentes poderão chegar a conclusões diversas. A principal questão formulada pela chamada teoria da argumentação 51 pode ser facilmente
visualizada
nesse
ambiente:
se
há
diversas
possibilidades
interpretativas acerca de uma mesma hipótese, qual delas é a correta? Ou, mais
49
Sobre o tema, v. Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, Tratado da argumentação: a nova a retórica, 1996 (1 . edição do original Traité de l’argumentation: la nouvelle rhétorique, 1958); Stephen E. Toulmin, The uses of argument, 1958; Neil Maccormick, Legal reasoning and legal a theory, 1978; Robert Alexy, Teoria de la argumentación jurídica, 1989 (1 . edição do original Theorie der juristischen Argumentation, 1978); Manuel Atienza, As razões do direito. Teorias da argumentação jurídica, 2002; Antônio Carlos Cavalcanti Maia, Notas sobre direito, argumentação e democracia, in Margarida Maria Lacombe Camargo (org.), 1988-1998: uma década de Constituição, 1999. 50 O HC 73662/MG (STF, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 20.09.96) é um exemplo interessante e emblemático do que se afirma. A discussão envolvia a interpretação dos arts. 213 e 224, alínea “a”, do Código Penal, e em particular da presunção de violência nos casos de relação sexual com menor de 14 anos, para o fim de tipificar-se o crime de estupro. O voto do Relator defendeu que a presunção deveria ser compreendida como relativa, tanto pelas circunstâncias do caso concreto (a menor levava vida promíscua, aparentava maior idade e consentiu com a relação sexual), como por força da norma constitucional que prevê deva ser conferida especial proteção à família (art. 226). Isso porque, segundo o Ministro Relator, 5 (cinco) anos já se haviam passado do evento e, nesse ínterim, o paciente no habeas corpus, condenado por estupro, havia casado e constituído família. Os votos vencidos, por outro lado, e afora outros argumentos, defendiam a presunção absoluta de violência no caso com fundamento no art. 227, § 4°, da Constituição, pelo qual “a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”. 51 Na verdade, há várias teorias sobre a argumentação, mas suas preocupações concentram-se em elementos comuns, de modo que se fará referência a elas de forma unificada.
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humildemente, ainda que não se possa falar de uma decisão correta 52, qual (ou quais) delas é (são) capaz(es) de apresentar uma fundamentação racional consistente? Como verificar se uma determinada argumentação é melhor do que outra? Existem diversas teorias acerca dos parâmetros que a argumentação deve observar para ser considerada válida e não se pretende aqui discutir suas complexidades, cujo exame forma por si só um ramo novo e autônomo de estudo 53. Mesmo sem ingressar nelas, no entanto, é possível sistematizar três parâmetros elementares de controle da argumentação que, a despeito de sua simplicidade, serão especialmente úteis quando a técnica da ponderação esteja sendo utilizada. Em primeiro lugar, a argumentação jurídica deve ser capaz de apresentar fundamentos normativos (implícitos que sejam) que a apoiem e lhe deem sustentação. Ou seja: não basta o bom senso e o sentido de justiça pessoal – é necessário que o intérprete apresente elementos da ordem jurídica que referendem tal ou qual decisão. Embora óbvia essa exigência tem sido deixada de lado com mais frequência do que se poderia supor, substituída por concepções pessoais embaladas em uma retórica de qualidade. Não custa lembrar que, em um Estado democrático de direito, o Judiciário apenas pode impor coativamente determinada conduta a alguém com fundamento em lei. A argumentação jurídica deve preservar exatamente seu caráter jurídico – não se trata apenas de uma argumentação lógica ou moral. Nessa mesma linha, ao menos como orientação prima facie, um conflito normativo deve ser resolvido em favor da solução que apresente em seu suporte o maior número de normas jurídicas 54. Nesse ponto, é oportuno fazer uma observação de caráter geral. Apenas será possível controlar a argumentação do intérprete se houver uma argumentação explicitamente apresentada. Essa evidência conduz ao problema da motivação das decisões que envolvam a técnica da ponderação, 52
Com efeito, praticamente todas as teorias que se têm desenvolvido acerca dos parâmetros que a argumentação deve observar para ser considerada válida reconhecem que, muitas vezes, não haverá uma resposta certa, mas um conjunto de soluções plausíveis e razoáveis. V. Manuel Atienza, As razões do direito. Teorias da argumentação jurídica, 2002, p. 40 e ss. 53 Manuel Atienza, em As razões do direito. Teorias da argumentação jurídica, 2002, faz uma apresentação do pensamento dos principais autores sobre o assunto. 54 Humberto Ávila, Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico, Revista de Direito Tributário 79/178 e ss.
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Luís Roberto Barroso
particularmente as decisões judiciais. Como é corrente, toda e qualquer decisão judicial deve ser motivada quanto aos fatos e quanto ao direito, mas quando uma decisão judicial envolve a técnica da ponderação, o dever de motivar torna-se ainda mais grave. Nesses casos, como visto, o julgador percorre um caminho muito mais longo e acidentado para chegar à conclusão É seu dever constitucional guiar as partes por essa viagem, demonstrando, em cada ponto, porque decidiu por uma direção ou sentido e não por outro. Nada obstante o truísmo do que se acaba de afirmar, provavelmente nunca se motivou tão pouco e tão mal 55. Há uma série de explicações para esse fenômeno, que vão do excesso de trabalho atribuído aos juizes, passam pela chamada “motivação concisa”, autorizada pela jurisprudência das Cortes superiores56, e pelas recentes reformas do Código de Processo Civil, que admite agora como fundamentação de determinadas decisões a mera referência a súmulas 57. Não é o momento aqui de examinar cada uma dessas questões. Ainda que se possam admitir motivações concisas em muitos casos, certamente isso não é possível quando se trate de decidir adotando a técnica de ponderação. Nessas hipóteses, é absolutamente indispensável que o julgador exponha analítica e expressamente o raciocínio e a argumentação que o conduziram a uma determinada conclusão, permitindo assim que as partes possam controlá-la. Feita a digressão, e retornando ao ponto, um segundo parâmetro útil para o controle da argumentação jurídica, em especial quando ela envolva a
55
A ausência de motivação chega, às vezes, a ser tautológica, como registrou o Ministro Sepúlveda Pertence no acórdão que segue: “Sentença condenatória: o acórdão que improvê apelação: motivação necessária. A apelação devolve integralmente ao Tribunal a decisão da causa, de cujos motivos o teor do acórdão há de dar conta total: não o faz o que – sem sequer transcrever a sentença – limita-se a afirmar, para refutar apelação arrazoada com minúcia, que ‘no mérito, não tem os apelantes qualquer parcela de razão’, somando-se ao vazio dessa afirmação a tautologia de que ‘a prova é tranquila em desfavor dos réus’: a melhor prova da ausência de motivação válida de uma decisão judicial – que deve ser a demonstração da adequação do dispositivo a um caso concreto e singular – é que ela sirva a qualquer julgado, o que vale por dizer que não serve a nenhum.” (STF, HC 78013/RJ, DJ 19.03.99, Rel. Min. Sepúlveda Pertence). 56 STF, AI(AgR) 310272-RJ, DJ 28.06.02, Rel. Min. Maurício Corrêa: “A fundamentação concisa atende à exigência do artigo 93, IX da Constituição Federal, não implicando a invalidação da decisão que a utiliza”. 57 CPC, art. 557: “O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo Tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior. § 1° - A Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com a súmula ou com a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso.
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ponderação, diz respeito à possibilidade de universalização dos critérios adotados pela decisão. Por força do imperativo de isonomia, espera-se que os critérios empregados para a solução de um determinado caso concreto possam ser transformados em regra geral para situações semelhantes. Esse exercício de raciocínio – verificar a possibilidade de generalizar o critério de decisão que se pretende adotar no caso concreto – projeta a argumentação desenvolvida para o caso concreto em um conjunto maior de hipóteses, facilitando a visualização de desvios e inconsistências. Por fim, um último parâmetro capaz de balizar de alguma forma a argumentação jurídica, especialmente a constitucional, é formado por dois conjuntos de princípios: o primeiro, composto de princípios instrumentais ou específicos de interpretação constitucional; o segundo, por princípios materiais propriamente ditos, que trazem em si a carga ideológica, axiológica e finalística da ordem constitucional. Ambas as categorias de princípios orientam a atividade do intérprete, de tal maneira que, diante de várias soluções igualmente plausíveis, deverá ele percorrer o caminho ditado pelos princípios instrumentais e realizar, tão intensamente quanto possível, à luz dos outros elementos em questão, o estado ideal pretendido pelos princípios materiais. Aqui vale fazer uma nota. Os três parâmetros de argumentação expostos acima estão relacionados com um dos problemas suscitados pela teoria da argumentação, talvez o principal deles: a verificação da correção ou validade de uma argumentação que, consideradas determinadas premissas fáticas e a incidência de determinadas normas, conclui que uma consequência jurídica deve ser aplicada ao caso concreto. Isto é: cuida-se aqui do momento final da aplicação do direito, quando os fatos já foram identificados e as normas pertinentes selecionadas. Isso não significa, porém, que esses dois momentos anteriores – seleção de fatos e de enunciados normativos – sejam autoevidentes. Ao contrário. Desse modo, fica apenas o registro de que, além da questão posta acima, outros dois problemas que têm ocupado os estudiosos da argumentação jurídica envolvem exatamente a seleção das normas e dos fatos que serão considerados em uma determinada situação. Com efeito, não é incomum, diante de um caso, que alguns fatos sejam considerados relevantes e outros ignorados. Que critérios
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levam o intérprete a dar relevância jurídica a alguns eventos e ignorar outros58? Também a seleção da norma ou normas aplicáveis, isto é, o estabelecimento da premissa normativa, nem sempre é um evento simples. A pergunta aqui, que muitas vezes não terá uma resposta unívoca, pode ser formulada nos seguintes termos: que normas são pertinentes ou aplicáveis ao caso 59? Em suma, o controle da racionalidade do discurso jurídico suscita questões diversas e complexas, que se tornam tanto mais graves quanto maior seja a liberdade concedida a quem interpreta. No caso da interpretação constitucional, a argumentação assume, muitas vezes, um papel decisivo: é que o caráter aberto de muitas normas, o espaço de indefinição de conduta deixado pelos princípios e os
conceitos
indeterminados
conferem
ao
intérprete
elevado
grau
de
subjetividade. A demonstração lógica adequada do raciocínio desenvolvido é vital para a legitimidade da decisão proferida 60. 58
Um exemplo dessa espécie de problema pode ser observado na decisão do Supremo Tribunal Federal que considerou legítima a aplicação de aumento da alíquota do imposto de renda, publicado ao longo de determinado ano, ao fato gerador que se consolidou em 31 de dezembro daquele mesmo ano. Na hipótese, era possível considerar ao menos dois fatos aparentemente relevantes: (i) o fato gerador já estava em curso quando do incremento da alíquota; e (ii) o fato gerador se consolida no dia 31 de dezembro. O intérprete que tomasse em consideração apenas o primeiro fato poderia concluir pela inconstitucionalidade do aumento, tendo em conta o princípio constitucional da anterioridade tributária. Por outro lado, aquele que apenas considerasse relevante o segundo, como fez o STF, entenderia constitucional a incidência do aumento desde logo. Confira-se: “Tratava-se, nesse precedente, como nos da súmula, de Lei editada no final do ano-base, que atingiu a renda apurada durante todo o ano, já que o fato gerador somente se completa e se caracteriza, ao final do respectivo período, ou seja, a 31 de dezembro” (STF, RE 194.612-1, DJ 08.05.98, Rel. Min. Sydney Sanches). 59 Nos casos, e.g., em que o conteúdo de matérias jornalísticas se pode opor à honra e à privacidade, há autores que procuram solucionar o problema afirmando que a liberdade de expressão assegurada constitucionalmente é aplicável apenas às pessoas naturais, individualmente consideradas, e não às empresas que exploram meios de comunicação. Estas gozariam apenas da liberdade de empresa e de iniciativa, direitos também assegurados pela Constituição, mas que poderiam ser restringidos com mais facilidade que a liberdade de expressão, prevista, afinal, como uma cláusula pétrea. Essa é a posição do professor Fábio Konder Comparato, expressa em obra coletiva em homenagem a Paulo Bonavides (A democratização dos meios de comunicação de massa, in Eros Roberto Grau e Willis Santiago Guerra Filho, Direito constitucional. Estudos em homenagem ao Paulo Bonavides, 2001). Ora, o fato de a liberdade de expressão ser ou não um elemento normativo relevante no caso é fundamental para sua solução. 60 Comentando a absolvição do ex-presidente Collor em artigo publicado no Jornal do Brasil (O avesso do Direito) e reproduzido parcialmente na Revista Consulex v. I, nº 19, 1998 (Juristas analisam a candidatura Collor), escreveu Luís Roberto Barroso: “A decisão do STF que absolveu o Ex-Presidente Fernando Collor comporta mais de uma leitura. É possível alguém supor, em boafé, que os cinco ministros que consideraram o Presidente inocente simplesmente não se convenceram de sua culpabilidade. Provavelmente, além de Suas Excelências, dos advogados de defesa e da estranha gente que recebe a alcunha de ‘tropa de choque’, não teria sido possível contabilizar outras cinco pessoas no País inteiro que pensassem igual. (...) Mas há outra leitura possível da decisão majoritária do STF. A teoria convencional do Direito sustenta que o juiz é um mero aplicador da lei. Seu papel consiste tão somente em apurar os fatos e sobre eles fazer incidir
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Em desfecho dessa parte do trabalho, faz-se a seguir, para ilustrar as ideias desenvolvidas, um exercício singelo de ponderação e argumentação. Suponha-se o seguinte fato: o ocupante de um importante cargo político na República é visto na saída de um motel, acompanhado de uma senhora que não é sua esposa. Um jornalista que se encontrava na calçada em frente fotografa o casal, ainda sob a placa identificadora do estabelecimento. A foto irá ilustrar a capa de uma importante revista semanal, que circulará no sábado seguinte, trazendo
ampla
matéria
intitulada
“A
infidelidade
no
poder”.
Tomando
conhecimento do fato, a autoridade propõe medida judicial de natureza cautelar com o fim de impedir a publicação de sua foto e de referências à sua pessoa, invocando seu direito de privacidade (CF, art. 5º, X) e alegando que: estava em seu carro particular, fora do horário do expediente e que não há qualquer interesse legítimo em divulgar fatos de sua vida pessoal e sexual. Os direitos contrapostos, como intuitivo, são os da liberdade de expressão (CF, art. 5º, IX) e o da informação (CF, arts. 5º, XIV, e 220). Não é um caso fácil, por envolver um conflito entre direitos fundamentais, sem que o ordenamento jurídico forneça, em tese, a solução constitucionalmente adequada. O juiz, portanto, terá de fazer a ponderação entre os valores em conflito e efetuar escolhas. E, reconheça-se, pessoas esclarecidas e de boa-fé poderão produzir soluções diferentes para o problema. Veja-se a demonstração argumentativa de uma delas. Apreciando a matéria, o juiz de primeiro grau nega a liminar, fundamentando sua decisão em um teste tríplice:
a) O fato é verdadeiro. Argumento: somente em situações de rara excepcionalidade deve o Judiciário impedir, mediante interferência prévia, a divulgação de um fato que incontroversamente ocorreu; b) O conhecimento do fato foi obtido por meio lícito. Argumento: O Judiciário pode e deve interferir para impedir a divulgação de uma notícia se ela tiver sido produto, por exemplo, de um crime, como uma interceptação telefônica clandestina ou uma invasão de o comando da norma. Mecanicamente. Acriticamente. Vive-se a ficção implausível de que o Estado é inteiramente neutro e seus agentes são totalmente imparciais. O terceiro-mundismo tem dessas hipocrisias. Na verdade, por um processo que é frequentemente inconsciente, o que se constata é que por trás do discurso aparentemente jurídico o que existe é o compromisso ideológico, o sentimento de classe. Os afortunados e os não afortunados. O que acontece no dia a dia da Justiça se materializou de forma emblemática na decisão do Supremo: a classe dominante brasileira – e seus intérpretes conscientes e inconscientes nos tribunais – não consegue condenar os seus pares, os seus iguais.”
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Luís Roberto Barroso
domicílio. Não sendo esse o caso, não deve fazê-lo; c) Há interesse público potencial no conhecimento do fato. Suponha-se que a autoridade em questão exercesse seu cargo no Ministério dos Transportes, na qual uma importante licitação estivesse por ser decidida. E que a senhora que o acompanhava estivesse a serviço de um dos licitantes, utilizando argumentos – como dizer – não previstos no edital.
Em sua fundamentação, portanto, o juiz levou em conta as normas constitucionais relevantes, os elementos do caso concreto e a existência ou não de interesse público legitimador de uma determinada opção. Essa solução não era a única possível, pois o domínio dos conflitos de direitos fundamentais não é de verdades ou certezas absolutas. Mas a argumentação desenvolvida é suficientemente lógica e racional para pretender conquistar a adesão de um universo de pessoas bem intencionadas e esclarecidas.
Parte II 61 Princípios Constitucionais
I. Princípios Instrumentais de Interpretação Constitucional As normas constitucionais são normas jurídicas e, como consequência, sua interpretação serve-se dos conceitos e elementos clássicos da interpretação em geral.
Todavia,
as
normas
constitucionais
apresentam
determinadas
especificidades que as singularizam, dentre as quais é possível destacar: a) a superioridade jurídica 62; b) a natureza da linguagem 63; c) o conteúdo específico 64; 61
A Parte II do presente texto sintetiza e consolida ideias expostas em Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 2003 e Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídicas dos princípios constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa humana, 2001. 62 A Constituição é dotada de superlegalidade, de superioridade jurídica em relação às demais normas do ordenamento. Tal característica faz dela o parâmetro de validade, o paradigma pelo qual se afere a compatibilidade de uma norma com o sistema como um todo. Adiante se voltará ao tema. 63 A natureza da linguagem constitucional, própria à veiculação de normas principiológicas ou esquemáticas, faz com que estas apresentem maior abertura, maior grau de abstração e, consequentemente, menor densidade jurídica. Cláusulas gerais e conceitos indeterminados conferem à Constituição uma adaptabilidade às mudanças operadas na realidade e ao intérprete um significativo espaço de discricionariedade. 64 As normas materialmente constitucionais podem ser classificadas em três grandes categorias: a) as normas constitucionais de organização, que contêm as decisões políticas fundamentais, instituem os órgãos de poder e definem suas competências; b) as normas constitucionais definidoras de direitos, que identificam os direitos individuais, políticos, sociais e coletivos de base
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d) o caráter político 65. Em razão disso, desenvolveram-se ou sistematizaram-se categorias doutrinárias próprias, identificadas como princípios específicos ou princípios instrumentais de interpretação constitucional. Impõe-se, nesse passo, uma qualificação prévia. O emprego do termo princípio, nesse contexto, prende-se à proeminência e à precedência desses mandamentos dirigidos ao intérprete, e não propriamente ao seu conteúdo, à sua estrutura ou à sua aplicação mediante ponderação. Os princípios instrumentais de interpretação constitucional constituem premissas conceituais, metodológicas ou finalísticas que devem anteceder, no processo intelectual do intérprete, a solução concreta da questão posta. Nenhum deles encontra-se expresso no texto da Constituição, mas são reconhecidos pacificamente pela doutrina e pela jurisprudência. Embora toda classificação tenha um componente subjetivo, a sistematização que se segue parece ter resistido ao teste do tempo 66.
I.1. Princípio da Supremacia da Constituição Do ponto de vista jurídico, o principal traço distintivo da Constituição é a sua supremacia, sua posição hierárquica superior sobre as demais normas do constitucional; e c) as normas programáticas, que estabelecem valores e fins públicos a serem realizados. As normas definidoras de direitos têm, como regra, a estrutura típica das normas de conduta, presentes nos diferentes ramos do Direito: preveem um fato e a ele atribuem uma consequência jurídica. Mas as normas de organização e as normas programáticas têm características singulares na sua estrutura e no seu modo de aplicação. 65 A Constituição é o documento que faz a travessia entre o poder constituinte originário – fato político – e a ordem instituída, que é um fenômeno jurídico. Cabe ao direito constitucional o enquadramento jurídico dos fatos políticos. Embora a interpretação constitucional não possa e não deva romper as suas amarras jurídicas, deve ela ser sensível à convivência harmônica entre os Poderes, aos efeitos simbólicos dos pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal e aos limites e possibilidades da atuação judicial. 66 Esta foi a ordenação da matéria proposta em nosso Interpretação e aplicação da Constituição, a cuja 1 . edição é de 1995. Autores alemães e portugueses de grande expressão adotam sistematizações diferentes, mas o elenco acima parece o de maior utilidade, dentro de uma perspectiva brasileira de concretização da Constituição. Na doutrina brasileira mais recente, embora de forte influência germânica, destaca-se o tratamento dado ao tema por Humberto Ávila, em seu livro Teoria dos princípios (da definição à aplicação dos princípios jurídicos), cit. Propõe ele a superação do modelo dual de separação regras-princípios pela criação de uma terceira categoria normativa: a dos postulados normativos aplicativos. Seriam eles “instrumentos normativos metódicos” que imporiam “condições a serem observadas na aplicação das regras e dos princípios, com eles não se confundindo”. Em alguma medida, tal categoria se aproxima daquilo que temos denominado de princípios instrumentais de interpretação constitucional. Todavia, sua classificação é bem distinta, nela se identificando o que denomina de postulados inespecíficos (ponderação, concordância prática e proibição de excesso) e postulados específicos (igualdade, razoabilidade e proporcionalidade).
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Luís Roberto Barroso
sistema. As leis, atos normativos e atos jurídicos em geral não poderão existir validamente se incompatíveis com alguma norma constitucional. A Constituição regula tanto o modo de produção das demais normas jurídicas como também delimita o conteúdo que possam ter. Como consequência, a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo poderá ter caráter formalou material. A supremacia da Constituição é assegurada pelos diferentes mecanismos de controle de constitucionalidade. O princípio não tem um conteúdo próprio: ele apenas impõe a prevalência da norma constitucional, qualquer que seja ela. É por força da supremacia da Constituição que o intérprete pode deixar de aplicar uma norma inconstitucional a um caso concreto que lhe caiba apreciar – controle incidental de constitucionalidade – ou o Supremo Tribunal Federal pode paralisar a eficácia, com caráter erga omnes, de uma norma incompatível com o sistema constitucional (controle principal ou por ação direta).
I.2. Princípio da Presunção de Constitucionalidade das Leis e Atos do Poder Público A Constituição contém o código de conduta dos três Poderes do Estado, cabendo a cada um deles sua interpretação e aplicação no âmbito de sua competência. De fato, a atividade legislativa destina-se, em última análise, a assegurar os valores e a promover os fins constitucionais. A atividade administrativa, tanto normativa quanto concretizadora, igualmente se subordina à Constituição e destina-se a efetivá-la. O Poder Judiciário, portanto, não é o único intérprete da Lei Maior, embora o sistema lhe reserve a primazia de dar a palavra final. Por isso mesmo, deve ter uma atitude de deferência para com a interpretação levada a efeito pelos outros dois ramos do governo, em nome da independência e harmonia dos Poderes. O princípio da presunção de constitucionalidade, portanto, funciona como fator de autolimitação da atuação judicial: um ato normativo somente deverá ser declarado inconstitucional quando a invalidade for patente e não for possível decidir a lide com base em outro fundamento.
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I.3. Princípio da Interpretação Conforme a Constituição A interpretação conforme a Constituição pode ser apreciada como um princípio de interpretação e como uma técnica de controle de constitucionalidade. Como princípio de interpretação, decorre ele da confluência dos dois princípios anteriores:
o
da
supremacia
da
Constituição
e
o
da
presunção
de
constitucionalidade. Com base na interpretação conforme a Constituição, o aplicador da norma infraconstitucional, dentre mais de uma interpretação possível, deverá buscar aquela que a compatibilize com a Constituição, ainda que não seja a que mais obviamente decorra do seu texto. Como técnica de controle de constitucionalidade, a interpretação conforme a Constituição consiste na expressa exclusão de uma determinada interpretação da norma, uma ação “corretiva” que importa em declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto. Em qualquer de suas aplicações, o princípio tem por limite as possibilidades semânticas do texto, para que o intérprete não se converta indevidamente em um legislador positivo.
I.4. Princípio da Unidade da Constituição A ordem jurídica é um sistema, o que pressupõe unidade, equilíbrio e harmonia. Em um sistema, suas diversas partes devem conviver sem confrontos inarredáveis. Para solucionar eventuais conflitos entre normas jurídicas infraconstitucionais utilizam-se, como já visto, os critérios tradicionais da hierarquia, da norma posterior e o da especialização. Na colisão de normas constitucionais, especialmente de princípios – mas também, eventualmente, entre princípios e regras e entre regras e regras – emprega-se a técnica da ponderação. Por força do princípio da unidade, inexiste hierarquia entre normas da Constituição, cabendo ao intérprete a busca da harmonização possível, in concreto,
entre
comandos
que
tutelam
valores
ou
interesses
que
se
contraponham. Conceitos como os de ponderação e concordância prática são instrumentos de preservação do princípio da unidade, também conhecido como princípio da unidade hierárquico-normativa da Constituição.
326
Luís Roberto Barroso
I.5. Princípio da Razoabilidade ou da Proporcionalidade 67 O princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade, termos aqui empregados de modo fungível 68, não está expresso na Constituição, mas tem seu fundamento nas ideias de devido processo legal substantivo e na de justiça. Trata-se de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, por permitir o controle da discricionariedade dos atos do Poder Público e por funcionar como a medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema. Em resumo sumário, o princípio da razoabilidade permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado (adequação); b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação do excesso); c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito). O princípio pode operar, também, no sentido de permitir que o juiz gradue o peso da norma, em uma determinada incidência, de modo a não permitir que ela produza 67
Sobre o tema, v. Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 2002, p. 213 e ss., no qual se faz amplo levantamento da bibliografia na matéria. 68 A ideia de razoabilidade remonta ao sistema jurídico anglo-saxão, tendo especial destaque no direito norte-americano, como desdobramento do conceito de devido processo legal substantivo. O princípio foi desenvolvido, como próprio do sistema do common law, através de precedentes sucessivos, sem maior preocupação com uma formulação doutrinária sistemática. Já a noção de proporcionalidade vem associada ao sistema jurídico alemão, cujas raízes romano-germânicas conduziram a um desenvolvimento dogmático mais analítico e ordenado. De parte disso deve-se registrar que o princípio, nos Estados Unidos, foi antes de tudo um instrumento de direito constitucional, funcionando como um critério de aferição da constitucionalidade de determinadas leis. Já na Alemanha, o conceito evoluiu a partir do direito administrativo, como mecanismo de controle dos atos do Executivo. Sem embargo da origem e do desenvolvimento diversos, um e outro abrigam os mesmos valores subjacentes: racionalidade, justiça, medida adequada, senso comum, rejeição aos atos arbitrários ou caprichosos. Por essa razão, razoabilidade e proporcionalidade são conceitos próximos o suficiente para serem intercambiáveis. Esse é o ponto a de vista que tenho sustentado desde a 1 . edição de meu Interpretação e aplicação da Constituição, que é de 1995. No sentido do texto, v. por todos Fábio Corrêa Souza de Oliveira, Por uma teoria dos princípios. O princípio constitucional da razoabilidade, 2003, p. 81 e ss. É certo, no entanto, que a linguagem é uma convenção. E se nada impede que se atribuam significados diversos à mesma palavra, com muito mais razão será possível fazê-lo em relação a vocábulos distintos. Basta, para tanto, qualificar previamente a acepção com que se está empregando um determinado termo. É o que faz, por exemplo, Humberto Ávila (Teoria dos princípios, cit.), que explicita conceitos diversos para proporcionalidade e razoabilidade. Ainda na mesma temática, Luís Virgílio Afonso da Silva (O proporcional e o razoável, RT 798/23) investe grande energia procurando demonstrar que os termos não são sinônimos e critica severamente a jurisprudência do STF na matéria.
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um resultado indesejado pelo sistema, assim fazendo a justiça do caso concreto.
I.6. Princípio da Efetividade Consoante doutrina clássica, os atos jurídicos em geral, inclusive as normas jurídicas, comportam análise em três planos distintos: os da sua existência, validade e eficácia. No período imediatamente anterior e ao longo da vigência da Constituição de 1988, consolidou-se um quarto plano fundamental de apreciação das normas constitucionais: o da sua efetividade. Efetividade significa a realização do Direito, a atuação prática da norma, fazendo prevalecer no mundo dos fatos os valores e interesses por ela tutelados. Simboliza a efetividade, portanto, a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever ser normativo e o ser da realidade social 69. O intérprete constitucional deve ter compromisso com a efetividade da Constituição: entre interpretações alternativas e plausíveis, deverá prestigiar aquela que permita a atuação da vontade constitucional, evitando, no limite do possível, soluções que se refugiem no argumento da não autoaplicabilidade da norma ou na ocorrência de omissão do legislador.
II. Os Princípios Constitucionais Materiais: Uma Classificação Uma classificação que tem se mostrado útil e parece ter resistido ao teste do tempo é a que procura singularizar os princípios – princípios materiais, notese, e não mais instrumentais – de acordo com o seu destaque no âmbito do sistema e a sua abrangência 70. Os princípios, ao expressar valores ou indicar fins a serem alcançados pelo Estado e pela sociedade, irradiam-se pelo sistema, interagem entre si e pautam a atuação dos órgãos de poder, inclusive a do Judiciário na determinação do sentido das normas. Nem todos os princípios, todavia, possuem o mesmo raio de ação. Eles variam na amplitude de seus efeitos e mesmo no seu grau de influência. Por essa razão, podem ser agrupados em três categorias diversas, que identificam os princípios como fundamentais, 69
Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 2002. Luís Roberto Barroso, Princípios constitucionais brasileiros (ou de como o papel aceita tudo), RTDP 1/168.
70
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Luís Roberto Barroso
gerais e setoriais.
II.1. Princípios Fundamentais Os princípios fundamentais expressam as principais decisões políticas no âmbito do Estado, aquelas que vão determinar sua estrutura essencial. Veiculam, assim, a forma, o regime e o sistema de governo, bem como a forma de Estado. De tais opções resultará a configuração básica da organização do poder político 71. Também se incluem nessa categoria os objetivos indicados pela Constituição como fundamentais à República 72 e os princípios que a regem em suas relações internacionais 73. Por fim, merece destaque em todas as relações públicas e privadas o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), que se tornou o centro axiológico da concepção de Estado democrático de direito e de uma ordem mundial idealmente pautada pelos direitos fundamentais.
II.2. Princípios Gerais Os princípios constitucionais gerais, embora não integrem o núcleo das decisões políticas que conformam o Estado, são importantes especificações dos princípios fundamentais. Têm eles menor grau de abstração, sendo mais facilmente determinável o núcleo em que operam como regras. Por tal razão, prestam-se de modo corrente à tutela direta e imediata das situações jurídicas que contemplam. Por serem desdobramentos dos princípios fundamentais, irradiam-se eles por toda a ordem jurídica 74. A maior parte dos princípios gerais 71
E.g., princípio republicano (art. 1º, caput), princípio federativo (art. 1º, caput), princípio do Estado democrático de direito (art. 1º, caput), princípio da separação de Poderes (art. 2º), princípio presidencialista (art. 76), princípio da livre iniciativa (art. 1º, IV). 72 CF, art. 3º: construção de uma sociedade livre, justa e solidária, garantia do desenvolvimento nacional, erradicação da pobreza e da marginalização, redução das desigualdades sociais e regionais, promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 73 E.g., soberania, independência, autodeterminação dos povos, não intervenção e igualdade entre os Estados (art. 4º, I, III, IV, V), defesa da paz, de solução pacífica dos conflitos e repúdio ao terrorismo e ao racismo (art. 4º, VI, VII e VIII), prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II). 74 Exemplos de princípios gerais são: legalidade (art. 5°, II), liberdade (art. 5°, II e diversos incisos do art. 5°, como IV, VI, IX, XIII, XIV, XV, XVI, XVII, etc), isonomia (art. 5°, caput e inciso I), autonomia estadual e municipal (art. 18), acesso ao Judiciário (art. 5°, XXXV), juiz natural (art.5°, XXXVII e LIII), devido processo legal (art. 5°, LIV). O elenco, naturalmente, não é exaustivo e comportaria significativa ampliação, de acordo com o ponto de observação de cada um. Há
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concentra-se no art. 5º da Constituição, dedicado aos direitos e deveres individuais e coletivos, o que apenas ratifica a equiparação doutrinária que se costuma fazer entre direitos fundamentais e princípios 75.
II.3. Princípios Setoriais Princípios setoriais ou especiais são aqueles que presidem um específico conjunto de normas afetas a determinado tema, capítulo ou título da Constituição. Eles se irradiam limitadamente, mas no seu âmbito de atuação são supremos. Por vezes, são mero detalhamento dos princípios gerais, como os princípios da legalidade tributária ou da reserva legal em matéria penal. Outras vezes são autônomos, como o princípio da anterioridade em matéria tributária ou o do concurso público para provimento de cargos na administração pública. Há princípios especiais em domínios diversos, como os da Administração Pública 76, organização dos Poderes 77, tributação e orçamento 78, ordem econômica 79 e ordem social80.
características peculiares a esses princípios, em contraste com os que se identificam como fundamentais. Notadamente, não têm caráter organizatório do Estado, mas sim limitativo de seu poder, resguardando situações individuais. 75 Robert Alexy, Colisão e ponderação como problema fundamental da dogmática dos direitos fundamentais, cit., p. 10: “As colisões dos direitos fundamentais acima mencionadas devem ser consideradas segundo a teoria dos princípios como uma colisão de princípios. O processo para a solução de colisões de princípios é a ponderação.” 76 E.g., legalidade administrativa (art. 37, caput), impessoalidade (art. 37, caput), moralidade (art. 37, caput), publicidade (art. 37, caput), concurso público (art. 37, II) e prestação de contas (arts. 70, parágrafo único, 34, VII, d, e 35, II); 77 E.g., majoritário (arts. 46 e 77, § 2°), proporcional (arts. 45, e 58, § 1°), publicidade e motivação das decisões judiciais e administrativas (art. 93, IX e X), independência e imparcialidade dos juízes (arts. 95 e 96) e subordinação das Forças Armadas ao poder civil (art. 142). 78 E.g., capacidade contributiva (art. 145, § 1°), legalidade tributária (art. 150, I), isonomia tributária (art. 150, II), anterioridade da lei tributária (art. 150, III), imunidade recíproca das pessoas jurídicas de direito público (art. 150, VI, a), anualidade orçamentária (art. 165, III), universalidade do orçamento (art. 165, § 5°) e exclusividade da matéria orçamentária (art. 165, § 8°). 79 E.g., garantia da propriedade privada (art. 170, II), função social da propriedade (art. 170, III), livre concorrência (art. 170, IV), defesa do consumidor (art. 170, V) e defesa do meio ambiente (art. 170, VI). 80 E.g., gratuidade do ensino público (art. 206, IV), autonomia universitária (art. 207) e autonomia desportiva (art. 217, I).
330
Luís Roberto Barroso
III. Modalidades de Eficácia dos Princípios 81 Examina-se, nesse tópico, os diferentes comportamentos exigíveis com base nos princípios materiais. A eficácia é um atributo associado às normas e consiste na consequência jurídica que deve resultar de sua observância, podendo ser exigida judicialmente se necessário. A percepção de que também aos princípios constitucionais deve ser reconhecida eficácia jurídica é fenômeno relativamente recente, em comparação com as regras. De toda sorte, a doutrina tem procurado expandir a capacidade normativa dos princípios através de dois movimentos: aplicando, com as adaptações necessárias, a modalidade convencional de eficácia jurídica das regras também aos princípios – é a eficácia positiva
ou
simétrica
referida
abaixo
–
e
desenvolvendo
modalidades
diferenciadas, adaptadas às características próprias dos princípios – de que são exemplo as três outras modalidades de eficácia apresentadas na sequência 82.
III.1. Eficácia Positiva ou Simétrica Eficácia jurídica positiva ou simétrica é o nome pelo qual se convencionou designar a eficácia associada à maioria das regras. Embora sua enunciação seja bastante familiar, a aplicação da eficácia positiva aos princípios ainda é uma construção recente. Seu objetivo, no entanto, seja quando aplicável a regras, seja quando aplicável a princípios, é o mesmo: reconhecer àquele que seria beneficiado pela norma, ou simplesmente àquele que deveria ser atingido pela realização de seus efeitos, direito subjetivo a esses efeitos, de modo que seja possível obter a tutela específica da situação contemplada no texto legal. Ou seja: se os efeitos pretendidos pelo princípio constitucional não ocorreram – tenha a norma sido violada por ação ou por omissão –, a eficácia positiva ou simétrica pretende assegurar ao interessado a possibilidade de exigi-los diretamente, na via judicial se necessário. Como se vê, um pressuposto para o funcionamento 81
Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios. O princípio da dignidade da pessoa humana, 2002, p. 59 e ss. 82 Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, 1999, p. 254; Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 2000, p. 146; e Ruy Samuel Espíndola, Conceito de princípios constitucionais, 1999.
O Começo da História
331
adequado dessa modalidade de eficácia é a identificação precisa dos efeitos pretendidos por cada princípio constitucional. A esse ponto se retornará adiante.
III.2. Eficácia Interpretativa A eficácia interpretativa significa, muito singelamente, que se pode exigir do Judiciário que as normas de hierarquia inferior sejam interpretadas de acordo com as de hierarquia superior a que estão vinculadas. Isso acontece, e.g., entre leis e seus
regulamentos
e
entre
as
normas
constitucionais
e
a
ordem
infraconstitucional como um todo. A eficácia interpretativa poderá operar também dentro da própria Constituição, em relação aos princípios, embora eles não disponham de superioridade hierárquica sobre as demais normas constitucionais, é
possível reconhecer-lhes
uma
ascendência axiológica
sobre
o texto
constitucional em geral, até mesmo para dar unidade e harmonia ao sistema 83. A eficácia dos princípios constitucionais, nessa acepção, consiste em orientar a interpretação das regras em geral (constitucionais e infraconstitucionais), para que o intérprete faça a opção, dentre as possíveis exegeses para o caso, por aquela que realiza melhor o efeito pretendido pelo princípio constitucional pertinente.
III.3. Eficácia Negativa A eficácia negativa 84, por sua vez, autoriza que sejam declaradas inválidas todas as normas ou atos que contravenham os efeitos pretendidos pela norma 85. É claro que para identificar se uma norma ou ato viola ou contraria os efeitos pretendidos pelo princípio constitucional é preciso saber que efeitos são esses. Como já referido, os efeitos pretendidos pelos princípios podem ser relativamente
83
José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 1998, p. 157 e ss; e Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 2000, p. 141 e ss. 84 Sobre essa modalidade de eficácia, vejam-se: Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, vol. II, 1990, p. 220 e ss., e German J. Bidart Campos, La interpretacion y el control constitucionales en la jurisdiccion constitucional, 1987, p. 238 e ss.; Celso Antônio Bandeira de Mello, Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social, RDP n° 57-58/243 e ss.; e José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 1998, p. 158 e ss. 85 No caso das normas, elas poderão ser consideradas revogadas ou não recepcionadas, casos anteriores à promulgação da Constituição.
332
Luís Roberto Barroso
indeterminados a partir de certo núcleo; é a existência desse núcleo, entretanto, que torna plenamente viável a modalidade de eficácia jurídica negativa. Imaginese um exemplo. Uma determinada empresa rural prevê, no contrato de trabalho de seus empregados, penas corporais no caso de descumprimento de determinadas regras. Ou sanções como privação de alimentos ou proibição de avistar-se com seus familiares. Afora outras especulações, inclusive de natureza constitucional, não há dúvida de que a eficácia negativa do princípio da dignidade da pessoa humana conduziria tal norma à invalidade. É que nada obstante a relativa indeterminação do conceito de dignidade humana há consenso de que em seu núcleo central deverão estar a rejeição às penas corporais, à fome compulsória e ao afastamento arbitrário da família.
III.4. Eficácia Vedativa do Retrocesso A vedação do retrocesso, por fim, é uma derivação da eficácia negativa 86, particularmente ligada aos princípios que envolvem os direitos fundamentais. Ela pressupõe que esses princípios sejam concretizados através de normas infraconstitucionais (isto é: frequentemente, os efeitos que pretendem produzir são especificados por meio da legislação ordinária) e que, com base no direito constitucional em vigor, um dos efeitos gerais pretendidos por tais princípios é a progressiva
ampliação
dos
direitos
fundamentais 87.
Partindo
desses
pressupostos, o que a vedação do retrocesso propõe se possa exigir do Judiciário é a invalidade da revogação de normas que, regulamentando o princípio, concedam ou ampliem direitos fundamentais, sem que a revogação em questão seja acompanhada de uma política substitutiva ou equivalente. Isto é: a invalidade, por inconstitucionalidade, ocorre quando se revoga uma norma infraconstitucional concessiva de um direito, deixando um vazio em seu lugar 88. Não se trata, é bom observar, da substituição de uma forma de atingir o fim 86
A vedação do retrocesso enfrenta ainda alguma controvérsia, especialmente quanto à sua extensão. Para uma visão crítica dessa construção, confira-se José Carlos Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, 1998, p. 307-311. 87 Na Carta brasileira, esse propósito fica claro tanto no art. 5°, § 2°, como no caput do art. 7°. 88 Cármen Lucia Antunes Rocha, O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social, IP 4/41: “De se atentar que prevalece, hoje, no direito constitucional, o princípio do não-retrocesso, segundo o qual as conquistas relativas aos direitos fundamentais não podem ser destruídas, anuladas ou combalidas (...)”.
O Começo da História
333
constitucional por outra, que se entenda mais apropriada. A questão que se põe é a da revogação pura e simples da norma infraconstitucional, pela qual o legislador esvazia o comando constitucional, exatamente como se dispusesse contra ele diretamente 89. A atribuição aos princípios constitucionais das modalidades de eficácia descritas acima tem contribuído decisivamente para a construção de sua normatividade. Entretanto, como indicado em vários momentos no texto, essas modalidades de eficácia somente podem produzir o resultado a que se destinam se forem acompanhadas da identificação cuidadosa dos efeitos pretendidos pelos princípios e das condutas que realizem o fim indicado pelo princípio ou que preservem o bem jurídico por ele protegido.
IV. Algumas Aplicações Concretas dos Princípios Materiais Não é possível, à vista do objetivo do presente estudo e das circunstâncias de tempo e espaço, analisar o sentido, alcance, propriedades e particularidades de cada uma das categorias e espécies de princípios assinalados acima. Tampouco investigar o núcleo no qual cada um deles operará como regra e o espaço remanescente no qual deverão ser ponderados entre si. Mas para ilustração, antes do desfecho das ideias desenvolvidas, faz-se o destaque da aplicação concreta dos princípios da dignidade humana 90 e do devido processo legal 91, concluindo com breve apreciação do papel desempenhado pelo princípio
89
Sobre o tema, v. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição, 1999, p. 327. 90 Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana, 2002; Ingo Wolfgang Sarlet, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, 2002; Fernando Ferreira dos Santos, O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, 1999; Cleber Francisco Alves, O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: o enfoque da doutrina social da Igreja, 2001; Fábio Konder Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos, 2003; Alexandre de Moraes, Direitos humanos fundamentais, 2002; Lúcia de Barros Freitas de Alvarenga, Direitos humanos, dignidade e erradicação da pobreza; uma dimensão hermenêutica para a realização constitucional, 1998; Joaquim B. Barbosa Gomes, O poder de polícia e o princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência francesa (ADVSJ 12-96/17); Cármen Lúcia Antunes Rocha, O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social (IP 4/23); Antonio Junqueira de Azevedo, Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana (RT 797:11); Valter Shuenquener de Araújo, Hierarquização axiológica de princípios – relativização do princípio da dignidade da pessoa humana e o postulado da preservação do contrato social (RPGERJ 55/82). 91 Ada Pellegrini Grinover, Antônio Carlos de Araújo Cintra e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 1998, p. 56.
334
Luís Roberto Barroso
da razoabilidade no âmbito do sistema. O princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito à criação, independentemente da crença que se professe quanto à sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de subsistência. Não tem sido singelo, todavia, o esforço para permitir que o princípio transite de uma dimensão ética e abstrata para as motivações racionais e fundamentadas das decisões judiciais. Partindo da premissa anteriormente estabelecida de que os princípios, a despeito de sua indeterminação a partir de certo ponto, possuem um núcleo no qual operam como regras, tem-se sustentado que no tocante ao princípio da dignidade da pessoa humana esse núcleo é representado pelo mínimo existencial. Embora existam visões mais ambiciosas do alcance elementar do princípio 92, há razoável consenso de que ele inclui pelo menos os direitos à renda mínima, saúde básica, educação fundamental e acesso à justiça 93. A percepção da centralidade do princípio chegou à jurisprudência dos tribunais superiores, onde já se assentou que “a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado democrático de direito, ilumina a interpretação da lei ordinária” 94. De fato, tem ela servido de fundamento para decisões de alcance diverso, como o fornecimento compulsório de medicamentos pelo Poder Público 95, a nulidade de cláusula contratual limitadora do tempo de internação hospitalar 96, a rejeição da prisão por dívida motivada pelo não pagamento de juros absurdos97, o levantamento do FGTS para tratamento de familiar portador do vírus HIV 98, dentre muitas outras. Curiosamente, no tocante à sujeição do réu em ação de investigação de paternidade ao exame compulsório de DNA, há
92
Como, por exemplo, a que inclui no mínimo existencial o atendimento às necessidades que deveriam ser supridas pelo salário mínimo, nos termos do art. 7°, IV, da Constituição, a saber: moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. 93 Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da dignidade da pessoa humana, 2002, p. 247 e ss.. 94 STJ, HC 9.892-RJ, DJ 26.3.01, Rel. orig. Min. Hamilton Carvalhido, Rel. para ac. Min. Fontes de Alencar. 95 STJ, ROMS 11.183-PR, DJ 4.9.00, Rel. Min. José Delgado. 96 TJSP, AC 110.772-4/4-00, ADV 40-01/636, n° 98859, Rel. Des. O. Breviglieri. 97 STJ, HC 12547/DF, DJ 12.2.01, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar. 98 STJ, REsp. 249026-PR, DJ 26.06.00, Rel. Min. José Delgado.
O Começo da História
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decisões em um sentido 99 e noutro 100, com invocação do princípio da dignidade humana. Quanto ao princípio do devido processo legal, embora seus corolários mais diretos já estejam analiticamente previstos no texto constitucional e na legislação infraconstitucional, tem sido aplicado de modo a gerar a exigibilidade de outros comportamentos não explicitados. O princípio foi invocado para considerar, com base nele, inválido o oferecimento de denúncia por outro membro do Ministério Público, após anterior arquivamento do inquérito policial 101, entender ilegítima a anulação de processo administrativo que repercutia sobre interesses individuais sem observância do contraditório 102, reconhecer haver constrangimento ilegal no uso de algemas quando as condições do réu não ofereciam perigo 103, para negar extradição à vista da perspectiva de inobservância do devido processo legal no país requerente 104 e para determinar fosse ouvida a parte contrária na hipótese de embargos de declaração opostos com pedido de efeitos modificativos, a despeito de não haver previsão nesse sentido na legislação 105. Por fim, merece uma nota especial o princípio da razoabilidade, que tem sido fundamento de decidir em um conjunto abrangente de situações, por parte de juízes e tribunais, inclusive e especialmente o Supremo Tribunal Federal. Com base nele tem-se feito o controle de legitimidade das desequiparações entre pessoas, de vantagens concedidas a servidores públicos106, de exigências desmesuradas formuladas pelo Poder Público 107 ou de privilégios concedidos à Fazenda
Pública 108.
O
princípio,
referido
na
jurisprudência
como
da
proporcionalidade ou razoabilidade (v. supra), é por vezes utilizado como um parâmetro de justiça – e, nesses casos, assume uma dimensão material –, porém, 99
STF, HC 71.373-RS, DJ 10.11.94, Rel. Min. Marco Aurélio. TJSP, AC 191.290-4/7-0, ADV 37-01/587, n. 98580, Rel. Des. A. Germano. 101 STJ, HC 6.802-RJ, RT 755/569, Rel. Min. Vicente Leal. 102 STF, AI 199.620-55, DJ 14.8.97. 103 TJRS, RT 785/692, HC 70.001.561.562, Rel. Des. Silvestre Jasson Ayres Torres. 104 STF, Extr. 633-China, DJ 6.4.01, Rel. Min. Celso de Mello. 105 STF, AI 327728-SP, DJ 19.12.01, Rel. Min. Nelson Jobim. 106 STF, ADIn 1.158-8-AM, RDA 200/242, Rel. Min. Celso de Mello. A norma legal que concede ao servidor vantagem pecuniária cuja razão de ser se revela absolutamente destituída de causa (gratificação de férias) ofende o princípio da razoabilidade. 107 STF, ADIn 855-2-PR, RDA 194/299, Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Viola o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade lei estadual que determina a pesagem de botijões de gás à vista do consumidor. 108 STF, ADInMC 1.753-DF, DJ 12.6.98, Rel. Min. Sepúlveda Pertence. 100
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Luís Roberto Barroso
mais comumente, desempenha papel instrumental na interpretação de outras normas. Confira-se a demonstração do argumento. O princípio da razoabilidade faz parte do processo intelectual lógico de aplicação de outras normas, ou seja, de outros princípios e regras. Por exemplo: ao aplicar uma regra que sanciona determinada conduta com uma penalidade administrativa, o intérprete deverá agir com proporcionalidade, levando em conta a natureza e a gravidade da falta. O que se estará aplicando é a norma sancionadora, sendo o princípio da razoabilidade um instrumento de medida. O mesmo se passa quando ele é auxiliar do processo de ponderação. Ao admitir o estabelecimento de uma idade máxima ou de uma altura mínima para alguém prestar concurso para determinado cargo público 109, o que o Judiciário faz é interpretar o princípio da isonomia, de acordo com a razoabilidade: se o meio for adequado, necessário e proporcional para realizar um fim legítimo, deve ser considerado válido. Nesses casos, como se percebe intuitivamente, a razoabilidade é o meio de aferição do cumprimento ou não de outras normas 110. Uma observação final. Alguns dos exemplos acima envolveram a não aplicação de determinadas regras porque importariam em contrariedade a um princípio ou a um fim constitucional. Essa situação – aquela em que uma regra não é em si inconstitucional, mas em uma determinada incidência produz resultado inconstitucional – começa a despertar interesse da doutrina 111. O fato de uma norma ser constitucional em tese não exclui a possibilidade de ser inconstitucional in concreto, à vista da situação submetida a exame. Portanto, uma das consequências legítimas da aplicação de um princípio constitucional 109
STF, RE 140.889-MS, DJ 15.12.00, Rel. Min. Marco Aurélio. V. tb. STF, RE 150.455-MS, DJ 7.5.99, Rel. Min. Marco Aurélio. 110 No mesmo sentido, v. Humberto Ávila, Teoria dos princípios (da definição à aplicação dos princípios jurídicos), cit., p. 71: “[N]o caso em que o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional uma lei estadual que determinava a pesagem de botijões de gás à vista do consumidor, o princípio da livre iniciativa foi considerado violado, por ter sido restringido de modo desnecessário e desproporcional. Rigorosamente, não é a proporcionalidade que foi violada, mas o princípio da livre iniciativa, na sua inter-relação horizontal com o princípio da defesa do consumidor, que deixou de ser aplicado adequadamente.” 111 Normalmente, na linha da doutrina de Dworkin e Alexy, a ponderação se dá entre princípios. Trata-se aqui, no entanto, de uma hipótese menos típica, mas possível, de ponderação entre princípio e regra. Usualmente, a regra já espelhará uma ponderação feita pelo legislador e deverá ser aplicada em toda a sua extensão, desde que seja válida. Mas a ponderação feita em tese pelo legislador, assim como a pronúncia em tese de constitucionalidade pelo STF, pode não realizar a justiça do caso concreto.
O Começo da História
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poderá ser a não aplicação da regra que o contravenha 112. Mas esse já é o começo de uma outra história.
Conclusão Ao final dessa exposição, é possível compendiar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposições que se seguem. I. A interpretação constitucional tradicional assenta-se em um modelo de regras, aplicáveis mediante subsunção, cabendo ao intérprete o papel de revelar o sentido das normas e fazê-las incidir no caso concreto. Os juízos que formula são de fato, e não de valor. Por tal razão, não lhe toca função criativa do Direito, mas apenas uma atividade de conhecimento técnico. Essa perspectiva convencional ainda continua de grande valia na solução de boa parte dos problemas jurídicos, mas nem sempre é suficiente para lidar com as questões constitucionais, notadamente a colisão de direitos fundamentais. II. A nova interpretação constitucional assenta-se em um modelo de princípios, aplicáveis mediante ponderação, cabendo ao intérprete proceder à interação entre fato e norma e realizar escolhas fundamentadas, dentro das possibilidades e limites oferecidos pelo sistema jurídico, visando à solução justa para o caso concreto. Nessa perspectiva pós-positivista do Direito, são ideias essenciais a normatividade dos princípios, a ponderação de valores e a teoria da argumentação. III. Pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem o resgate dos valores, a distinção qualitativa entre princípios e regras, a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre o Direito e a Ética. A estes elementos devem-se agregar, em um país como o Brasil, uma perspectiva do Direito que permita a superação da ideologia da desigualdade e a incorporação à cidadania da parcela da população deixada à margem da civilização e do consumo. É preciso transpor a fronteira da reflexão filosófica, ingressar na prática jurisprudencial e produzir efeitos positivos sobre a 112
Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, post scriptum, 2003. Para uma importante reflexão sobre o tema, v. Ana Paula Oliveira Ávila, Razoabilidade, proteção do direito fundamental à saúde e antecipação de tutela contra a Fazenda Pública, Ajuris 86/361.
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realidade. IV. A ponderação de valores, interesses, bens ou normas consiste em uma técnica de decisão jurídica utilizável nos casos difíceis, que envolvem a aplicação de princípios (ou, excepcionalmente, de regras) que se encontram em linha de colisão, apontando soluções diversas e contraditórias para a questão. O raciocínio ponderativo, que ainda busca parâmetros de maior objetividade, inclui a seleção das normas e dos fatos relevantes, com a atribuição de pesos aos diversos elementos em disputa, em um mecanismo de concessões recíprocas que procura preservar, na maior intensidade possível, os valores contrapostos. V. A teoria da argumentação tornou-se elemento decisivo da interpretação constitucional, nos casos em que a solução de um determinado problema não se encontra previamente estabelecida pelo ordenamento, dependendo de valorações subjetivas a serem feitas à vista do caso concreto. Cláusulas de conteúdo aberto, normas de princípio e conceitos indeterminados envolvem o exercício de discricionariedade por parte do intérprete. Nessas hipóteses, o fundamento de legitimidade da atuação judicial transfere-se para o processo argumentativo: a demonstração racional de que a solução proposta é a que mais adequadamente realiza a vontade constitucional. VI. A interpretação constitucional serve-se das categorias da interpretação jurídica em geral, inclusive os elementos gramatical, histórico, sistemático e teleológico. Todavia, as especificidades das normas constitucionais levaram ao desenvolvimento de um conjunto de princípios específicos de interpretação da Constituição, de natureza instrumental, que funcionam como premissas conceituais, metodológicas ou finalísticas da aplicação das normas que vão incidir sobre a relação jurídica de direito material. Esses princípios instrumentais são os da supremacia da Constituição, da presunção de constitucionalidade, da interpretação
conforme
a
Constituição,
da
unidade,
da
razoabilidade-
proporcionalidade e da efetividade. VII. Os princípios constitucionais materiais classificam-se, em função do seu status e do grau de irradiação, em fundamentais, gerais e setoriais. Dentre as modalidades de eficácia dos princípios, merecem destaque a interpretativa – que subordina a aplicação de todas as normas do sistema jurídico aos valores e fins neles contidos – e a negativa, que paralisa a incidência de qualquer norma que
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339
seja com eles incompatível. É possível acontecer de uma norma ser constitucional no seu relato abstrato, mas revelar-se inconstitucional em uma determinada incidência, por contrariar o próprio fim nela abrigado ou algum princípio constitucional. VIII. A jurisprudência produzida a partir da Constituição de 1988 tem progressivamente se servido da teoria dos princípios, da ponderação de valores e da argumentação. A dignidade da pessoa humana começa a ganhar densidade jurídica e a servir de fundamento para decisões judiciais. Ao lado dela, o princípio instrumental da razoabilidade funciona como a justa medida de aplicação de qualquer norma, tanto na ponderação feita entre princípios quanto na dosagem dos efeitos das regras. IX. A Constituição de 1988 tem sido valiosa aliada do processo histórico de superação da ilegitimidade renitente do poder político, da atávica falta de efetividade das normas constitucionais e da crônica instabilidade institucional brasileira. Sua interpretação criativa, mas comprometida com a boa dogmática jurídica, tem se beneficiado de uma teoria constitucional de qualidade e progressista. No Brasil, o discurso jurídico, para desfrutar de legitimidade histórica, precisa ter compromisso com a transformação das estruturas, a emancipação das pessoas, a tolerância política e o avanço social.
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Luís Roberto Barroso
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição: Breve Balanço Crítico nos quinze anos da Constituição Brasileira
Lenio Luiz Streck
Sumário: 1. A Pré-Compreensão Hermenêutica em Terra Brasilis: de como pré-juízos inautênticos acerca do sentido da Constituição acarretam prejuízos ao intérprete. 2. Sage mir Deine Einstellung zur Verfassungsgerichtsbarkeit und ich sage Dir, man für einen Verfassungsbegriff Du hast. 3. Em aportes finais: o constitucionalismo que não morreu. A Constituição que (ainda) constitui. A necessidade de um processo de resistência constitucional como compromisso ético dos juristas.
1. A Pré-Compreensão Hermenêutica em Terra Brasilis: de como pré-juízos inautênticos acerca do sentido da Constituição acarretam prejuízos ao intérprete No inesquecível romance “Cem Anos de Solidão”, Gabriel Garcia Marquez relata que, na pequena Macondo, o mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las precisava-se apontar com o dedo. Nossa Constituição também é muito recente. Olhando a imensidão de seu texto, colhese a nítida impressão de que algumas coisas ainda não têm “nome”; os juristas limitam-se – quando o fazem – a apontá-las com o dedo... Parecem “significantes” à espera de “significações”! Isso ocorre pela ausência de uma adequada précompreensão, que é condição de possibilidade para todo e qualquer processo interpretativo. Esse déficit pré-compreensivo, representado pela impossibilidade de “atribuir-a-adequada-significação-ao-novo”, impede o acontecer (Ereignen) do sentido (da Constituição). É nesse sentido que não podemos esquecer a valiosa lição de Hans-Georg Gadamer, que sempre nos ensinou que a compreensão implica uma pré-compreensão que, por sua vez, é pré-figurada por uma tradição determinada em que vive o intérprete e que modela os seus pré-juízos! Desse modo, o intérprete do direito (aqui entendido como o jurista lato sensu) falará (d)o Direito a partir dos seus pré-juízos, enfim, de sua pré-
compreensão. Falará, com efeito, de sua situação hermenêutica 1. Essa précompreensão é produto da relação intersubjetiva que o intérprete tem no mundo e com o mundo. O intérprete não interpreta do alto de uma relação sujeito-objeto. Estará, sim, inserido sempre em uma situação hermenêutica, isto é, estará sempre no entremeio de uma “situação linguística”, no interior da qual a linguagem não é algo que esteja à sua disposição, circunstância que inexoravelmente transformaria a atividade de interpretar em um ato voluntarista. Ao contrário disso, o intérprete “pertence” a essa linguisticidade. Ele é refém da linguagem. A atividade hermenêutica ex-surge desse processo de (auto) compreensão. Por isso, se hermenêutica é modo-de-ser e não um procedimento, sendo antes de tudo, filosofia, ela não se limita, nas palavras de Gadamer 2, a prestar conta dos procedimentos que a ciência aplica. Trata das questões que determinam todo o saber e o fazer humanos, essas questões “máximas” que são decisivas para o ser humano enquanto tal e para sua escolha do “bem”. Em definitivo, o mestre alemão vai dizer que a hermenêutica não é uma mera disciplina auxiliar das ciências românticas do espírito. Nesse ponto, nada melhor do que deixar o próprio Gadamer colocar o dedo na ferida narcísica da(s) metodologia(s): não se trata de averiguar o fundamento último do entendimento, porque isso denunciaria com mais vigor a obsessão cartesiana das ciências metodológicas contra as quais se põe em guarda a obra “Verdade
e
Método”.
Ao
contrário,
trata-se
de
tomar
consciência
da
insondabilidade de qualquer tipo de experiência. Uma experiência hermenêutica não é algo que podemos planejar e controlar em um laboratório, porque é algo que nos ocorre, derruba-nos e obriga a pensar de outro modo 3. Na contramão e à revelia dessa verdadeira revolução copernicana que ocorreu no campo da filosofia (linguistic turn) e no Direito (advento do paradigma do Estado Democrático de Direito, no interior do qual o Direito assume um papel
1
Conforme explicitado no decorrer da obra de Gadamer, o conceito de situação caracteriza-se porque alguém não se encontra frente a ela e, portanto, não pode ter um saber objetivo dela; se está nela, este alguém se encontra sempre em uma situação cuja iluminação é uma tarefa que não pode ser desenvolvida por inteiro. Cfe. Gadamer, Hans-Georg. Verdad y Método I. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1994, p. 377 e segs. 2 Cfe. GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode II. Tubingen: Mohr, 1990, p. 318-319. 3 Cfe. Gadamer, Hans-Georg. Una biografia. Barcelona: Herder, 2002, p. 376.
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de transformação da realidade social, superando os paradigmas do Estado Social e Liberal),
o estudo da hermenêutica jurídica no Brasil continuou – e continua – atrelado aos cânones da hermenêutica clássica, no interior da qual a linguagem é relegada a uma terceira coisa que se interpõe entre um sujeito cognoscente (sic) e um objeto a ser conhecido (sic). 4
Nesse paradigma (metafísico), a linguagem resume-se a algo que fica à “disposição” do sujeito-intérprete. É, tão somente, veículo de conceitos (por isso, para o senso comum teórico dos juristas, a Constituição – e sua linguagem normativa – não constitui 5; é apenas uma ferramenta manipulável pelos operadores do Direito). Foi essa questão, aliás, que levou Gadamer a fazer uma crítica ao processo interpretativo clássico, que entendia a interpretação como sendo produto de uma operação realizada em partes (subtilitas intelligendi, subtilitas explicandi, subtilitas applicandi, isto é, primeiro conheço, depois interpreto, para só então aplicar). Daí que a ruptura com o pensamento metafísico que sustenta a hermenêutica clássica dá-se pela ideia de antecipação de sentido, que ocorre no interior do círculo hermenêutico – ideia chave na hermenêutica filosófica – no interior do qual o intérprete fala e diz o ser na medida em que o ser se diz a ele, e cuja compreensão e explicitação do ser já exige uma compreensão anterior. Consequentemente, a noção de círculo hermenêutico torna-se absolutamente incompatível com a assim denominada – como quer a dogmática jurídica – “autonomia” (sic) de métodos, cânones ou técnicas de interpretação e/ou de seu desenvolvimento em partes ou em fases. Para ser mais claro: o processo interpretativo não acontece aos pedaços, em partes, em fatias. Interpretar é sempre aplicar 6. Não há uma subtilitas intelligendi, que antecederia a uma subtilitas explicandi, para só então ocorrer “o coroamento do processo hermenêutico” por intermédio dessa “terceira fase”
4
Para uma melhor compreensão acerca desta problemática, consultar STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma Nova Crítica do Direito. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, em especial cap. 5. 5 Sobre o constituir da Constituição, consultar Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, op. cit. 6 Para uma discussão mais aprofundada sobre a hermenêutica de matriz gadamerianaheideggeriana, ver meu Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 4ª. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
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denominada de subtilitas applicandi. Definitivamente, não! Fazer hermenêutica é um ato de applicatio. Interpretar não é realizar um ato reprodutivo, em que o intérprete desacopla sentidos de textos (Auslegung), mas, sim, um ato de produção de sentido (Sinngebung). Assim, o entendimento de que o processo interpretativo é feito por etapas (fases ou “fatias”) implica inexoravelmente a crença em uma metodologia, o que, a toda evidência, vai remeter-nos ao paradigma epistemológico da filosofia da consciência 7. Não é por acaso que o senso comum teórico dos juristas (habitus) inicia todas as discussões sobre hermenêutica jurídica reportando-se a um “método” capaz de “garantir” uma espécie de “supervisão epistemológica” no processo de compreensão. Dito de outro modo: o pensamento dogmático do direito (sentido comum teórico) continua acreditando na ideia de que o intérprete extrai o sentido da norma, como se este estivesse contido na própria norma, enfim, como se fosse possível extrair o sentido-em-si-mesmo. Trabalha, pois, com os textos no plano meramente epistemológico, olvidando o processo ontológico da compreensão. Clássico exemplo disso é a tese de Aníbal Bruno 8 (que é repetida em dezenas de manuais e livros doutrinários), para quem interpretar a lei é penetrar-lhe o verdadeiro e exclusivo sentido, sendo que, quando a lei é clara, a interpretação é instantânea (in claris fit interpretatio). Conhecido o texto, diz Bruno, apreende-se imediatamente o seu conteúdo, acreditando, assim, na busca do sentido primevo da norma (texto jurídico), na medida em que falava na possibilidade de o intérprete apreender “o sentido das palavras em si mesmas”. Por trás (e/ou próximo) da concepção defendida por Bruno, que – ínsito – ainda impera no interior do sentido comum teórico dos juristas, está, entre outras questões, a teoria correspondencial da verdade e a crença de que existe uma natureza intrínseca da realidade, tese que também pode ser encontrada em autores como
7
Entretanto, há que se ficar atento: no plano do sentido comum teórico existe um “algo mais” do que a filosofia da consciência, representado pelo paradigma metafísico aristotélico-tomista, de cunho dedutivista, ambos consubstanciando as práticas argumentativas dos operadores jurídicos. Assim, na medida em que o processo de formação dos juristas tem permanecido associado a tais práticas, tem-se como consequência a objetificação dos textos jurídicos, circunstância que, para a interpretação constitucional, constitui forte elemento complicador/obstaculizador do acontecer (Ereignen) da Constituição. 8 BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Tomo I. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 198.
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Maximiliano. Nesse caso, a linguagem tem um papel secundário, qual seja, a de servir de veículo para a busca da verdadeira “essência” do Direito ou do texto jurídico. Aliás, a tradição hermenêutica inaugurada no Brasil por autores como Maximiliano guarda similitude com a hermenêutica normativa de Emilio Betti, isto é, uma hermenêutica que dá regras para a interpretação, as quais dizem tanto ao objeto como ao sujeito da interpretação. Mais contemporaneamente, Maria Helena Diniz 9 vai dizer que interpretar é descobrir o sentido e o alcance da norma, procurando a significação dos conceitos jurídicos. Assim, para ela, interpretar é explicar, esclarecer, dar o verdadeiro significado ao vocábulo; extrair, da norma, tudo o que nela se contém, revelando seu sentido apropriado para vida real e conducente a uma decisão. Daí ser facilmente perceptível nessa “busca do verdadeiro sentido da norma” (sic) e na “revelação que deve ser feita pelo intérprete” a (forte) presença da dicotomia sujeito-objeto, própria da filosofia da consciência. De uma forma mais genérica, é possível afirmar que, explícita ou implicitamente, parcela expressiva da doutrina brasileira sofre influência da hermenêutica de cunho objetivista de Emilio Betti, baseada na forma metódica e disciplinada da compreensão, em que a própria interpretação é fruto de um processo triplo que parte de uma abordagem objetivo-idealista. A interpretação é sempre produto de um processo reprodutivo, pelo fato de interiorizar ou traduzir para a sua própria linguagem objetificações da mente, através de uma realidade que é análoga à que originou uma forma significativa. Assim, a atribuição de sentido e a interpretação são tratados separadamente, uma vez que Betti acredita que só isso vai garantir a objetividade dos resultados da interpretação. Ora, uma hermenêutica que ainda se calque em métodos ou técnicas interpretativas fica, sobremodo, debilitada no universo da viragem linguística. Daí ser possível exprimir a firme convicção da fragilidade dos assim denominados métodos ou técnicas de interpretação. Entre tantas críticas, vale lembrar a contundente observação de Dallari, para quem o juiz/intérprete, ao utilizar “tantos modelos de interpretação da lei”, considera-se exonerado de responsabilidade, 9
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 384 e segs.
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atribuindo ao legislador as injustiças que decorrem de suas sentenças. Vê-se nessa assertiva de Dallari uma clara denúncia do alheamento provocado pela objetificação metodológica. Com efeito, os assim denominados métodos ou técnicas de interpretação tendem a objetificar o Direito, impedindo o questionar originário da pergunta pelo sentido do Direito em nossa sociedade. Assim, se o ato de interpretar depende de uma prévia compreensão e esta tem como condição de possibilidade a pré-compreensão (Vorverständnis), que é produto da condição de ser-no-mundo (faticidade e historicidade), parece óbvio concluir que o intérprete/operador do Direito, quando fala do Direito ou sobre o Direito, fala a partir do seu “desde-já-sempre”, o “já-sempre-sabido” sobre o Direito, enfim, como o Direito sempre-tem-sido (é como ele “é” e tem sido estudado
nas
faculdades,
reproduzido
nos
manuais
e
aplicado
quotidianamente)10. O mundo jurídico é, assim, pré-dado (e predado!) por esse 10
Não se pode ignorar o papel reprodutor desempenhado pelos cursos jurídicos, que continuam assentados no dualismo “teoria e prática”. Assim, a teoria seria aquela “feita” nas academias, enquanto a prática seria a atividade realizada na “efetiva aplicação do Direito”. Isso é facilmente detectável nas salas de aula dos cursos jurídicos: os alunos desdenham as matérias ditas “teóricas”, como filosofia, introdução ao estudo do Direito, sociologia jurídica etc., preferindo as disciplinas “práticas” (direito processual civil, penal etc.). A proliferação dos “manuais práticos” dá mostras da gravidade e da dimensão dessa problemática. Na verdade, o pensamento dogmático do Direito não conseguiu escapar ainda do elemento central da tradição kantiana: o dualismo. É por ele que fomos introduzidos no período da modernidade em uma separação entre consciência e mundo, entre palavras e coisas, entre linguagem e objeto, entre sentido e percepção, entre determinante e determinado, entre teoria e prática. Heidegger vai dizer que esses dualismos somente puderam ser instalados através do esquecimento do ser, através da introdução de um universo de fundamentação filosófica conduzida apenas pelo esquema da relação sujeito-objeto. É essa relação sujeito-objeto que sustenta as dicotomias ou os dualismos que povoam o imaginário dos juristas. Do mesmo modo, essa dualização metafísica dá azo à tese de que as faculdades devem se dedicar, preferentemente, à formação de técnicos (o que isso significa ninguém consegue explicar). Para isso, engendrou-se um imaginário positivista-normativista-formalista que sustenta que o Direito é uma (mera) técnica (racionalidade instrumental). Esse processo é, sobremodo, retroalimentado pelas escolas de preparação para concursos públicos de carreiras jurídicas e pelo formato das provas desses concursos. Afinal, os “cursinhos” procuram ensinar o que será perguntado nos concursos públicos. Forma-se, nesse contexto, um círculo vicioso, não sendo temerário afirmar que aquele que não frequentar curso de preparação tem as suas chances de aprovação sensivelmente reduzidas. Essa problemática repete-se nas provas de “Exame de Ordem” realizadas pela OAB. Não se pode olvidar um outro fator que colabora para a crise do ensino jurídico. Trata-se do alarmante aumento do número de faculdades de Direito no Brasil, a ponto de existirem faculdades em cidades com não mais do que cinco mil habitantes. Muito embora essa expansão ainda encontre respaldo no “mercado”, há um visível déficit no número de docentes com capacidade para o adequado enfrentamento das demandas das salas de aula dos mais de seiscentos cursos espalhados por todo o Brasil. Na medida em que o mercado necessita, por determinação da LDB, de docentes com formação mínima em nível de mestrado, ocorre igualmente um aumento no número de programas de pós-graduação. Por outro lado, os órgãos institucionais, em face do aumento da demanda por mestres e doutores, diminuem drasticamente os prazos para a defesa das dissertações de mestrado (vinte e quatro meses) e teses de doutorado (trinta e seis meses), fatores que terão consideráveis reflexos na qualidade dos novos docentes, que, muitas vezes, ingressam na carreira acadêmica com pouquíssima experiência.
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sentido comum teórico, que é, assim, o véu do ser autêntico do Direito! Isso tudo implica a necessidade de se ter claro que, diferentemente de outras disciplinas (ou ciências), o Direito possui uma especificidade, que reside na relevante circunstância de que a interpretação de um texto normativo – que sempre ex-surgirá como norma – depende de sua conformidade com um texto de validade superior. Trata-se da Constituição, que, mais do que uma matriz privilegiada de sentido, é um fenômeno construído historicamente como produto de um pacto constituinte, enquanto explicitação do contrato social. Como os juristas respondem à pergunta “o que é isto, a Constituição?” A resposta é complexa, porque vai depender das condições pré-compreensivas do intérprete, de sua situação hermenêutica, enfim, de sua condição-de-ser-nomundo (faticidade e historicidade) e da capacidade de separar pré-juízos autênticos de pré-juízos inautênticos. Ora, a tradição nos lega vários sentidos de Constituição. Contemporaneamente, a evolução histórica do constitucionalismo no mundo (mormente no continente europeu) trás à lume a noção de Constituição enquanto detentora de uma força normativa, dirigente, programática e compromissária. Desse modo, é exatamente a partir das possibilidades hermenêuticas de compreensão desse fenômeno que poderemos dar sentido à Constituição e à ligação umbilical desta com o Estado e a Sociedade no Brasil, por exemplo. Mais do que isso, do sentido que temos de Constituição dependerá o processo de interpretação dos textos normativos do sistema. Não fica difícil concluir, a partir do que até aqui foi dito, que, sendo um texto jurídico – cujo sentido, repita-se, estará sempre contido em uma norma que é produto de uma atribuição de sentido – válido tão somente se estiver em conformidade com a Constituição, a aferição dessa conformidade exige uma précompreensão (Vorverständnis) acerca do sentido de (e da) Constituição, que já se
Desse modo, forja-se um imaginário no interior do qual o ensino jurídico (de graduação e pósgraduação) tem a finalidade precípua de atender as demandas (imediatas) dos operadores (leia-se “mercado”). Esse processo estabelece-se a partir da prática de uma “metodologia didáticocasuística”, que produz uma cultura estandardizada, dentro da qual o jurista vai trabalhar no seu dia a dia com soluções e conceitos lexicográficos (que são transformados em “categorias”, como se fossem “universais”, aptos ao exercício “dedutivo-subsuntivo” do “intérprete”), recheando, desse modo, metafisicamente, suas petições, pareceres e sentenças com ementas (verbetes) jurisprudenciais ahistóricas e atemporais. A proliferação de manuais jurídicos não pode ser subestimada, uma vez que consubstanciam tanto as disciplinas jurídicas ministradas nas faculdades de Direito como o processo de aplicação quotidiana do Direito.
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encontra, em face do processo de antecipação de sentido, numa co-pertença entre faticidade-historicidade do intérprete e Constituição–texto infraconstitucional. Sob hipótese alguma, interpreta-se um texto jurídico (um dispositivo, uma lei etc.) desvinculado da antecipação de sentido representado pelo sentido que o intérprete tem da Constituição. É preciso, assim, des-cobrir o óbvio: o intérprete já trás consigo o sentido de Constituição, com o que a norma que ex-surge do texto (infraconstitucional) já vem filtrada hermeneuticamente (de forma adequada ou inadequada, dependendo dos pré-juízos do intérprete)! Ou, dizendo de outro modo: o intérprete não vislumbra textos infraconstitucionais nús (carentes de sentido), para depois acoplar-lhes “capas de sentido originárias da Constituição”. Não! Pensar assim é resvalar em direção aos dualismos próprios da metafísica (essência e aparência, teoria e prática, palavra e coisa, questão de fato e questão de direito etc). Em síntese, pensar assim é retornar à hermenêutica clássica (lembremos, aqui, os três “momentos” representados pelas subtilitas intelligendi, subtilitas explicandi, subtilitas applicandi de que fala Gadamer). O ato interpretativo é (sempre) um ato aplicativo, que não ocorre por subsunção e tampouco por dedução, 11 mas, sim, em uma síntese hermenêutica, no interior do círculo hermenêutico. Isso significa poder afirmar que uma “baixa compreensão” acerca do sentido da Constituição – naquilo que ela significa no âmbito do Estado Democrático de Direito – inexoravelmente acarretará uma “baixa aplicação”, problemática que não é difícil de constatar nas salas de aula de expressiva maioria dos cursos jurídicos do país e na quotidianidade das práticas dos operadores do Direito 12. Por isso, pré-juízos inautênticos (no sentido de que fala 11
Nesse sentido, ver o livro “Jurisdição Constitucional”, op.cit., em especial 5.8. Alerte-se que até mesmo algumas posturas consideradas críticas do Direito, muito embora procurem romper com o formalismo normativista (para o qual a norma é uma mera entidade linguística), acabam por transferir o lugar da produção do sentido do objetivismo para o subjetivismo; da coisa para a mente/consciência (subjetividade assujeitadora e fundante); da ontologia (metafísica clássica) para a filosofia da consciência (metafísica moderna). Não conseguem, assim, alcançar o patamar da viragem linguístico/hermenêutica, no interior da qual a linguagem, de terceira coisa, de mero instrumento e veículo de conceitos, passa a ser condição de possibilidade. Permanecem, desse modo, prisioneiros da relação sujeito-objeto (problema transcendental), refratária à relação sujeito-sujeito (problema hermenêutico). Sua preocupação é de ordem metodo-lógica e não ontológica (no sentido heideggeriano-gadameriano). A revolução copernicana provocada pela viragem linguístico-hermenêutica tem o principal mérito de deslocar o locus da problemática relacionada à “fundamentação” do processo compreensivo-interpretativo do “procedimento” para o “modo de ser”. Muito embora a recepção da hermenêutica pelas diversas concepções da teoria do direito é com a hermenêutica da faticidade de Gadamer, caudatário da 12
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Gadamer) acarretam sérios prejuízos ao jurista! As condições de possibilidades para que o intérprete possa compreender um texto implicam – sempre e inexoravelmente – a existência de uma précompreensão (seus pré-juízos) acerca da totalidade (que a sua linguagem lhe possibilita) do sistema jurídico-político-social. Desse belvedere compreensivo, o intérprete formulará (inicialmente) seus juízos acerca do sentido do ordenamento (repita-se, o intérprete jamais interpreta em tiras, aos pedaços, como bem alerta Eros Grau). E sendo a Constituição o fundamento de validade de todo o sistema jurídico – e essa é a especificidade maior da ciência jurídica –, de sua interpretação/aplicação (adequada ou não) é que exsurgirá a sua (in)efetividade. Calham, pois, aqui, as palavras de Konrad Hesse, para quem “resulta de fundamental importância para a preservação e a consolidação da força normativa da
Constituição
a
interpretação
constitucional,
a
qual
se
encontra
necessariamente submetida ao mandato de otimização do texto constitucional.” Trata-se, pois, de problema fundamentalmente hermenêutico, muito bem detectado, aliás, por Paulo Bonavides, para quem,
para agravar a crise das Constituições, verificou-se o emprego de uma metodologia interpretativa que caiu prisioneira do formalismo e do jusprivatismo. Foi, portanto, um equívoco, segundo Müller, a recepção de regras artificiais de interpretação elaboradas pelo positivismo e recolhidas da herança romanista de Savigny, fazendo da realização do Direito e da concretização da norma simples operação interpretativa de textos de norma.
Desse modo, partindo da tese de que hermenêutica é condição de ser no mundo, de que hermenêutica é existência e de que o processo de interpretação tem como condição de possibilidade a compreensão, em que o sentido já vem antecipado pela pré-compreensão, a pergunta que se impõe é: antimetafísica heideggeriana, que se dará o grande salto paradigmático, porque ataca o cerne da problemática que, de um modo ou de outro, deixava a hermenêutica ainda refém de uma metodologia, por vezes atrelada aos pressupostos da metafísica clássica e, por outras, aos parâmetros estabelecidos pela filosofia da consciência (metafísica moderna). Enquanto tentativa de elaboração de um discurso crítico ao normativismo, a metodologia limita-se a procurar traçar as “regras” para uma “melhor” compreensão dos juristas (v.g. autores como Coing, Canaris e Perelman), sem que se dê conta daquilo que é o calcanhar de Aquiles da própria metodologia (que tem um cunho normativo): a da absoluta impossibilidade da existência de uma regra que estabeleça o uso dessas regras, portanto, da impossibilidade da existência de um Grundmethode (ver, nesse sentido, o livro “Jurisdição Constitucional”, op.cit, em especial cap. 5). Daí o contraponto hermenêutico: o problema da interpretação é fenomenológico, é existencialidade.
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Como é possível olhar o novo (texto constitucional de 1988) se os nossos pré-juízos (pré-compreensão) estão dominados por uma compreensão inautêntica do Direito, na qual, no campo do direito constitucional, pouca importância tem sido dada ao estudo da jurisdição constitucional?
Com efeito, nossos pré-juízos (campo jurídico ou habitus dogmaticus brasileiro) estão tomados por um histórico de jurisdição constitucional pouco favorável. Explicando melhor essa questão 13: tornado independente de Portugal, a primeira Constituição brasileira – outorgada pelo Imperador D. Pedro I – não estabeleceu controle de constitucionalidade stricto sensu. Inspirados (sic) no modelo revolucionário francês, foi deixada ao Poder Legislativo a tarefa de controlar a legalidade/constitucionalidade das leis. Consta que, em todo o período colonial-imperial, que durou mais de 70 anos, somente em duas oportunidades foi feito o referido “controle”. A mais alta Corte de justiça do Império era o Supremo Tribunal de Justiça, composto de 17 juízes, que, na sua primeira composição, teve cinco juízes portugueses de nascimento, e somente sete brasileiros natos. Todos eles vieram das Cortes de Relação, consoante o disposto no art. 163 da Constituição de 1824 e tinham o título de Conselheiros. A competência do Tribunal estava restrita a conceder ou denegar recursos de revista, decidir conflitos de jurisdição e conhecer os delitos e erros de ofício que cometessem os seus ministros, os das Relações, os empregados no corpo diplomático e os Presidentes das Províncias.
Desnecessário dizer que a falta da instituição de uma forma de controle de constitucionalidade colocava a Constituição em um plano secundário, sendo absolutamente ineficaz e inoperante o modelo de “controle” legislativo por ela estabelecido.
Agregue-se a isso a forma de provimento dos cargos de Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, mormente nos primeiros anos: o Brasil tornara-se independente, adotara uma nova Constituição, e os membros do mais alto tribunal de justiça do Império eram originários das Cortes de Relação, isto é, eram instituídos pelo colonizador! 13
Questão essa melhor constatada no livro “Jurisdição Constitucional e Hermenêutica”, op. cit., onde explicito o histórico do desenvolvimento do Direito e das instituições jurídicas brasileiras, do descobrimento aos dias atuais.
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Como se isso não bastasse, com o advento da República, importamos o sistema de controle difuso jurisdicional vigorante nos Estados Unidos. Lamentavelmente, os republicanos brasileiros não atentaram para o relevante fato de que os Estados Unidos dispunham de uma fórmula advinda da tradição inglesa – o stare decisis – de conceder efeito erga omnes, próprio do sistema jurídico da common law, às decisões da Suprema Corte julgadas em grau de recurso. Por incrível que possa parecer, em plena República, durante quarenta e três anos ficamos sob os auspícios de um sistema de controle jurisdicional difuso que somente funcionava inter partes. Não se deve deixar de registrar que, muito embora tenhamos ingressado na República, o Supremo Tribunal Federal, que veio a substituir o Supremo Tribunal de Justiça do Império, foi composto por juízes do velho regime, sem conhecimento e experiência acerca do que era o controle jurisdicional de constitucionalidade. Os ministros do novo Supremo Tribunal Federal foram nomeados quarenta e oito horas após a promulgação da Constituição e instalados quatro dias após no edifício da Relação, na rua do Lavradio, no Rio de Janeiro. Aproveitou-se a maior parte do Supremo Tribunal de Justiça da Monarquia, inclusive quatro Conselheiros septuagenários, sete sexagenários e apenas quatro com menos de sessenta anos. Alguns deles eram Viscondes e Barões (sic) 14. O avanço representado pela Constituição de 1934 tão somente teve o condão de fazer com que as decisões do STF em sede de controle difuso fossem remetidas ao Senado (como ocorre hoje com o art. 52, X), cuja consequência era de, uma vez suspensa a execução da lei, conceder eficácia erga omnes à decisão. Ademais, tirante o período da ditadura Vargas, no qual houve retrocesso no campo do controle de constitucionalidade – o Poder Legislativo podia, por voto de dois terços, revogar a decisão de inconstitucionalidade tomada pelo Supremo Tribunal Federal –, a Constituição de 1946 não trouxe qualquer avanço no plano da jurisdição constitucional. Tivemos que esperar até o ano de 1965 para que passássemos a ter um modo de conceder efeito erga omnes às decisões em
14
Ver, para tanto, BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal. Esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 22 e segs.
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ações (representações) de inconstitucionalidade (EC 16/65) 15. Ou seja, muito embora no final dos anos 50 já se falasse em controle direto de constitucionalidade do direito estadual naquilo que diz respeito aos princípios sensíveis, somente no ano de 1965 inaugura-se o controle objetivo concentrado de constitucionalidade no país. Em face de tudo isso, fazendo um breve inventário, não é temerário afirmar que não há muito a comemorar em termos de jurisdição constitucional no Brasil. Afinal de contas, excluindo o período imperial (1822-1889), em que sequer falouse em controle de constitucionalidade, os primeiros cinquenta anos da República não representaram contribuição significativa para o aprimoramento da jurisdição constitucional. A isso se deve agregar que mesmo a inovação consistente na remessa da decisão do Supremo Tribunal Federal para o Senado (1934) não representou grandes avanços, mormente se compararmos os modelos brasileiros com os sistemas de controle de constitucionalidade vigorantes no resto do mundo. Com isso, explica-se parte da crise constitucional brasileira, isto é, a pouca importância dada ao direito constitucional e ao próprio texto constitucional, mormente se levarmos em conta o novo modelo de Estado Democrático de Direito estabelecido pela Constituição de 1988, que seguiu os modelos de Constituições dirigentes e compromissárias do segundo pós-guerra. A partir disso, é possível afirmar que, no campo jurídico brasileiro, esses pré-juízos, calcados em uma história que tem relegado o direito constitucional a um plano secundário, constituem um fenômeno que se pode denominar de “baixa constitucionalidade”, que, hermeneuticamente, estabelece o limite do sentido e o sentido do limite de o jurista dizer o Direito, impedindo, consequentemente, a manifestação do ser (do Direito). Um dos fatores que colabo(ra)ram para a pouca importância que se dá à Constituição deve-se ao fato de que as Constituições brasileiras, até o advento da atual, sempre haviam deixado ao legislador a tarefa de fazer efetivos os valores, direitos ou objetivos materiais contidos no texto constitucional, que, com isso, transformava-se, porque assim era entendida, em 15
Ressalvo, por óbvio, a assim denominada ação “direta de inconstitucionalidade” destinada a proceder a intervenção nos Estados (ação direta interventiva), que tinha, como se verá mais adiante, limites e contornos bem definidos, não servindo, nem de longe, para solucionar o problema em debate.
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mero programa, uma mera lista de propósitos. O legislador ordinário erigia-se em dono absoluto dos conteúdos da Constituição, podendo desenvolvê-los com maior ou menor amplitude, ou, inclusive, desconhecê-los, sem que nem os cidadãos e nenhum outro órgão do Estado pudessem ser capazes de reprovar tais comportamentos. Na prática – e isso não é difícil de constatar – em que pese as várias Constituições que tivemos, sempre prevaleceram os Códigos (Civil, Comercial, Penal etc.). Mesmo com o advento da Constituição de 1988, ainda é considerável o movimento de refração ao novo texto, mormente naquilo que ele tem de ab-rogante e no seu papel de filtragem hermenêutica. Nesse sentido, veja-se a importância que teve o processo de derrogação das normas fascistas (anteriores a 1948) feito pelo Tribunal Constitucional italiano 16. É por isso que Hesse vai dizer que não é possível interpretar sem uma prévia teoria da Constituição, isso porque para compreender a norma é preciso uma teoria constitucional. Na verdade, esta resulta igualmente necessária para compreender, caso a caso, a realidade em que deve ser aplicado o texto da Constituição. 17 Em síntese: não há como negar que a ausência de uma adequada compreensão do novo paradigma do Estado Democrático de Direito torna-se fator decisivo para a inefetividade dos valores constitucionais. Acostumados com a resolução de problemas de índole liberal-individualista e com posturas privatísticas que ainda comandam os currículos dos cursos jurídicos (e os manuais jurídicos), os operadores do Direito não conseguiram, ainda, despertar para o novo. O novo (Estado Democrático de Direito) continua obscurecido pelo velho paradigma, sustentado por uma dogmática jurídica entificadora. Dizendo de outro modo: ocorreu uma verdadeira revolução copernicana na filosofia, no direito constitucional e na ciência política, que ainda não foi suficientemente recepcionada pelos juristas brasileiros.
16
Conferir em BONIFÁCIO, Francisco P. Constitucionalidad, legislacion regresiva y civilidad jurídica. In: Division de poderes e Interpretacion. Hacia una teoria de la prazis constitucional. Madrid: Tecnos, 1987, p. 81. Também em La Quadra, op. cit., p. 134. 17 Cfe. HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983.
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2. Sage mir Deine Einstellung zur Verfassungsgerichtsbarkeit und ch sage Dir, man für einen Verfassungsbegriff Du hast 18 A frase título foi dita por Werner Kägi, no longínquo ano de 1945. Contudo, tal advertência ainda hoje encontra ressonância quando se pretende discutir a problemática referente à (in)efetividade da Constituição no Brasil. A tradição de “baixa constitucionalidade” está diretamente relacionada com uma prática self restraint de jurisdição constitucional em nosso país. Com efeito, já no nascedouro da República, era possível identificar claramente a dificuldade com que a nossa Suprema Corte lidava com o controle de constitucionalidade das leis, valendo para tanto acompanhar os passos da luta travada por Rui Barbosa na busca desse desiderato. Ao depois, a insistência do STF em entender que a Constituição de 1891 não lhe outorgara um judicial control pleno, mas apenas um judicial control restrito à apreciação de inconstitucionalidades de leis estaduais:
O Supremo Tribunal Federal brasileiro em parte obedeceu às lições do seu paradigma norte-americano. Mas, no regime instituído em 1889, e sem que houvesse formal determinação daquele atributo na Carta Federal, não podia esse tribunal que herdara a tradição do judiciário do Império, criar e engrandecer um princípio que se não harmonizava com as nossas praxes políticas... qual o da jurisprudência a derrubar a lei, contra a autoridade, em favor dos direitos individuais 19.
Por isso, chegou-se a pensar que essa “anomalia” (judicial control restrito à apreciação de leis estaduais) somente teria sido corrigida em 1894, com a promulgação da Lei n° 221, que, em seu art. 13, § 10, dizia que “os juízes e tribunais apreciarão a validade das leis e regulamentos e deixarão de aplicar aos casos ocorrentes as leis manifestamente inconstitucionais e os regulamentos manifestamente incompatíveis com as leis ou a Constituição”. Ocorre que a competência de apreciar inconstitucionalidades de leis estaduais e federais,
18
“Diz-me tua posição quanto à jurisdição constitucional e eu te direi o que entendes por Constituição”. Cfe. KÄGI, Werner. Die Verfassung als rechliche Grundordnung des Saates. Untersuchungen über die Entwicklungstendenz im modernen Verfassungsrecht. Zurich: Polygraphischer Verlag, 1945, p. 147. 19 Cfe. CALMON, Pedro. Curso de Direito Constitucional Brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1937, p. 187.
354
Lenio Luiz Streck
outorgada ao Supremo Tribunal e aos juízes 20, já estava expressa no preâmbulo do Decreto nº 848, que criou a Justiça Federal. Isto é, antes mesmo de o Supremo Tribunal ser criado, essa prerrogativa já existia, baseada no caso Marbury versus Madison. Além das dificuldades dos primeiros anos, decorrentes, dentre outras razões, da própria formação dos seus membros, outro problema assolou o Supremo Tribunal, que, lamentavelmente, somente foi solucionado com a reforma de 1926. Com efeito, em face da inexistência de uma clara explicitação na Constituição, o Supremo Tribunal entendeu que a ele não competia uniformizar a interpretação do direito substantivo, quando do exame dos recursos que lhe chegassem dos tribunais. No fundo, com essa posição, o Supremo Tribunal pouco diferia do Supremo Tribunal de Justiça do Império, ficando indiferente às múltiplas e contraditórias interpretações que às leis uniformes do país davam as Relações revisoras, decidindo em última e derradeira instância. Releva notar que os próprios defensores dessa tese restritiva confessavam os males que esse procedimento causava ao país, tornando os tribunais locais onipotentes. Essa discussão já aparece no início do século XX. A respeito do tema, dizia Rui: Seria um absurdo que, reservando-se a função de legislar acerca do direito civil, comercial e penal, entregasse a União esse direito, criação sua, à variedade de interpretações da justiça dos Estados, sem lhe opor ao menos, em última instância, um corretivo, uma garantia de unificação 21. 20
Mesmo já sob a vigência da Lei nº 221, o exercício do controle difuso de constitucionalidade custou ao juiz gaúcho Alcides de Mendonça Lima uma condenação, em primeira instância, por ter deixado de aplicar a Lei nº 10, de 16.12.1895, na parte referente às recusas de jurados e ao voto a descoberto, mandando observar em tais pontos a lei antiga. Denunciado pelo crime previsto no o o o art. 207, §1 , do Código Penal, com as agravantes do art. 39, §§ 2 e 4 , Mendonça Lima foi condenado à pena de nove meses de suspensão do cargo, em acórdão lavrado na sessão de 10.02.1897, pelo Superior Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apreciando a matéria, rendeu-se o Supremo Tribunal Federal à argumentação de seu advogado, Rui Barbosa: reconheceu que o acusador, declarando nula, em parte, por inconstitucional, a lei rio-grandense, e deixando de aplicá-la, não excedera os limites das funções de seu cargo; pelo contrário, exerceraas regularmente: “Os juízes estaduais, assim como os federais, têm faculdade para, no exercício das funções deixarem de aplicar as leis inconstitucionais, como é expresso na Constituição da o República, art. 59, nº 3, Lei n. 221, de 20 de novembro de 1895, art. 8 (...)”. Cfe. NEQUETE, Lenine. O Poder Judiciário no Brasil a partir da Independência. II – república. Porto Alegre: Sulina, 1973, p. 20 e segs. 21 É necessário referir que juristas como Carlos Maximiliano, muito embora crítico contumaz do uso da interpretação literal, optou por este método, ao sustentar que não havia autorização no texto da Constituição de 1891 para a uniformização da jurisprudência. Nesse sentido, ver seu Commentários à Constituição de 1891. Rio de Janeiro: Forense, 1930, p. 660 e segs.
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição
355
Em acórdão de 11.07.1908, o Ministro Pedro Lessa votou vencido, acatando a tese de Rui. O Supremo Tribunal, entretanto, não anuiu à doutrina. Ainda em 28.08.1918, o Tribunal deixou assentado que, se a justiça local interpretava os preceitos da lei substantiva, quaisquer que fossem os defeitos dessa interpretação (sic), não se ensejava o recurso extraordinário. Essa posição foi ratificada em 30.12.1922, sendo necessário que o país aguardasse a reforma de 1926, para que se pudesse ter a uniformização da jurisprudência 22. Vê-se, assim, que aquilo que desde o nascedouro da República estava implícito no Decreto nº 848 e que, mais do que qualquer coisa, era ingrediente importante para a afirmação do sistema federativo, somente ganhou forma a partir de uma emenda constitucional. Dito de outro modo, o Supremo Tribunal Federal, criado pelos republicanos para ser uma instituição para a manutenção da união nacional, como um autêntico tribunal da federação23, ao não elaborar um processo hermenêutico mais “agressivo/criativo” pelo qual se autoconcedesse a competência para uniformizar a jurisprudência, colaborou para o enfraquecimento institucional do País 24. Nesse sentido, a denúncia do Ministro Pedro Lessa (que votava vencido, entendendo que essa prerrogativa estava estampada na ideia de federação e na própria exposição de motivos do Decreto nº 848), dizendo que se estava diante de um “manifesto desacato ao Poder Legislativo da União” e de um “desrespeito
a
autoridade
22
da
Federação”.
De
fato,
é
absolutamente
Ver, para tanto, NEQUETE, O Poder Judiciário, op. cit., p. 26 e segs; SODRÉ, Moniz. O Poder Judiciário na Reforma Constitucional, 1943, p. 180 e segs; NUNES, Castro. Teoria e Prática do Poder Judiciário. 1929, p. 20 e segs. 23 Daí a nítida inspiração que o constituinte brasileiro de 1890 buscou no judicial review norteamericano, que, muito embora não estivesse previsto como figura constitucional stricto sensu, nasce da própria lógica que preside a natureza da Constituição, uma vez que o pacto federativo que ela exprimia reclamava um tertius para a limitação dos poderes exercidos por cada “departamento do governo” ao lado da proteção das “liberdades” dos Estados, implicando que o governo de leis assumisse a forma de um complexo empreendimento entre diferentes competências e prerrogativas. Cfe. VIANNA, Luiz Werneck. Revolução processual do Direito e democracia progressiva. In: VIANNA, Luiz Werneck (Org.). A democracia e os três poderes. Rio de Janeiro: UFMG, IUPERJ, FAPERJ, 2002, p. 365. 24 Muito embora tais fatos apontem para o enfraquecimento do sistema federativo, autores como Leda Boechat Rodrigues apontam na direção contrária. Nesse sentido, diz a autora, num momento em que o Presidente Campos Sales inaugurava a chamada política dos governadores e proclamava a soberania dos Estados ao lado da soberania da União, o STF, através do exercício do controle da constitucionalidade das leis estaduais, funcionou de certo modo como um fator de equilíbrio do sistema federal: “Sem a sua ação vigilante e corretiva – entregues como estavam os Estados aos desmandos de uma legislação antinacional e perturbadora do livre fluxo do comércio interestadual – provavelmente o federalismo, como a democracia, teria também funcionado de maneira ainda mais defeituosa no Brasil e se teriam agravado ainda mais os problemas econômicos, já excepcionalmente graves, de todo o País”.
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incompreensível que o sistema federativo convivesse com um sistema jurídico que não contemplasse uma instância de concentração, de reparação, de uniformização da jurisprudência. Parafrazeando as palavras de Rui: sendo o direito entre nós obra da União, ele não podia, sob qualquer hipótese, sob pena de colocar em risco o sistema federativo, ficar sem reserva à mercê dos Estados. Apesar disso – e não são poucas as críticas feitas ao Supremo Tribunal Federal no decorrer de sua história 25 –, não se pode olvidar a importante atuação da Suprema Corte no campo da defesa das liberdades civis, mormente se forem levados em conta os tempos sombrios dos primeiros anos da República, que, já sob a vigência da nova Constituição, sofreu o primeiro golpe de Estado em 3 de novembro de 1891 – comandado pelo mesmo militar que fora um dos corifeos da Proclamação da República – e um contra-golpe do Marechal Floriano, vinte dias depois 26.
Afinal de contas, séculos de escravidão e de exclusão social, aliados à ausência, durante o período imperial, de um sistema judiciário que pautasse suas ações na defesa dos direitos individuais, forjaram uma sociedade autoritária, cujas sequelas podem ser sentidas ainda na aurora do século XXI.
De qualquer sorte, releva notar que, em vários momentos, as decisões do ainda jovem Tribunal causaram a ira dos governantes27. 25
Assim, veja-se, por todos, as críticas de João Mangabeira, para quem o STF foi o poder que mais falhou na República, e de José Honório Rodrigues, ao asseverar que, dentre os Poderes no Brasil, “o Executivo foi sempre mais progressista e mais receptivo às aspirações populares; o Congresso mais antirreformista e mais retardatário; a Justiça esteve sempre a favor das forças dominantes”. Cfe. RODRIGUES, José Honório. História do Supremo Tribunal, op. cit., p. 5; e, do mesmo autor, Conciliação e Reforma no Brasil. Um desafio histórico-político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 14 e 125. 26 Observe-se a complexidade da situação, a partir do fato de dois Ministros do STF, Barão de Lucena e Tristão de Araripe, terem apoiado o golpe de Estado chefiado pelo Marechal Deodoro. 27 Com efeito, quando o STF, em 1893, declarou a nulidade do Código Penal da Marinha, Aristides Lobo, líder governista, escreveu que o Tribunal incorrera em crime de abuso de autoridade. E tendo o Tribunal despertado a ira política de Floriano Peixoto, em razão daquele julgamento, ficou meses sem funcionar, porque Floriano não provia as vagas que iam ocorrendo, além de recusarse a dar posse ao Presidente eleito do Tribunal. No final do quatriênio do Presidente Prudente de Morais, ao firmar, em rumoroso habeas corpus, o princípio das imunidades parlamentares durante o estado de sítio, não somente o STF foi criticado em mensagem presidencial, como sofreu violenta campanha da imprensa governista. Acontecimentos ligados à revolução federalista iniciada no Rio Grande do Sul, em fevereiro de 1893, ensejariam novos julgamentos de enorme repercussão pela Suprema Corte. Em 19.09.1895, julgando a apelação cível nº 112, em que era apelado o Mal. José de Almeida Barreto, reformado contra a sua vontade, o STF estabeleceu que “é nulo o ato do Poder Executivo que reforma forçadamente um oficial militar, fora dos casos previstos em lei.” De forma similar, o acórdão proferido na Apelação Cível nº 148, do mesmo ano
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição
357
Entretanto, como anteriormente referido, já no nascedouro da República havia um problema que afetava, sobremodo, as possibilidades do florescimento de uma jurisdição constitucional mais efetiva no Brasil: a ausência de um mecanismo para dar efeito erga omnes às decisões oriundas do controle de constitucionalidade, problema que somente foi percebido no processo constituinte de 1933/34, sem, contudo, a necessária suficiência 28, uma vez que sanado tão somente no ano de 1965, com a implantação (tardia) do controle concentrado de constitucionalidade. Afora
esses
problemas,
muitos
deles
originários
de
uma
baixa
funcionalidade do sistema jurídico, imbricados com um histórico déficit de democracia decorrente de sucessivos golpes de Estado,
é necessário ressaltar que mais contemporaneamente não é mais possível colocar a culpa na falta de democracia ou em um virtual déficit funcional da forma de controle de constitucionalidade, isso porque a Constituição de 1988 colocou à disposição da comunidade jurídica talvez o mais rico e completo sistema de controle de constitucionalidade do mundo, bastando para tanto examinar os múltiplos mecanismos aptos para o exercício do controle difuso e concentrado da constitucionalidade das leis.
O Brasil, junto com Portugal, é um dos poucos países que adotam o controle difuso misto com o concentrado. Assim, no controle difuso, qualquer juiz pode deixar de aplicar uma lei (até mesmo emenda constitucional) se entendê-la inconstitucional; nos tribunais, o controle difuso funciona a partir da suscitação do respectivo incidente de inconstitucionalidade 29. Nesse sentido, não se pode de 1895. Outro julgamento de repercussão diz respeito à inconstitucionalidade do Decreto Legislativo nº 310, de 21.10.1895, que concedeu anistia, com restrições, às pessoas envolvidas em movimentos revolucionários ocorridos até 23.08.1895, o que fez com que o parlamento, em 1898, editasse lei suprimindo as aludidas restrições. O STF também cuidou do fortalecimento da liberdade de reunião e dos limites do poder de polícia, quando concedeu habeas corpus a favor dos membros do Centro Monarquista de São Paulo, no ano de 1897. Cfe. RODRIGUES, História do Supremo Tribunal, I, op. cit., p. 5 e segs.; também COSTA, Edgard. Os grandes julgamentos do STF. 1892 a 1962. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964. 28 Não considero que a instituição do mecanismo da remessa ao Senado das decisões de inconstitucionalidade proferidas pelo STF no controle difuso – e só havia essa modalidade de controle até 1965 – tenha representado o avanço que muitos constitucionalistas proclamavam. Na verdade, é pífio o número de decisões remetidas pelo STF ao Senado nesses quase 70 anos, do mesmo modo como é inexpressivo o número de Resoluções suspensivas expedidas por aquela Casa legislativa. 29 Observe-se a dispensa dessa suscitação em alguns casos, consoante previsão do art. 481, parágrafo único, do CPC. Quanto à constitucionalidade dessa previsão legal, remeto o leitor ao livro “Jurisdição Constitucional e Hermenêutica”, op.cit., cap. 10.
358
Lenio Luiz Streck
olvidar o expressivo leque de ações constitucionais aptas à provocação do exame da inconstitucionalidade de atos normativos in concreto (mandado de segurança, ação civil pública, habeas corpus, mandado de injunção, para citar algumas). Para o exercício do controle concentrado, há a ação direta de inconstitucionalidade, a ação
de
inconstitucionalidade
por
omissão,
a
ação
declaratória
de
constitucionalidade – inserida na CF por emenda constitucional – e a arguição de descumprimento de preceito fundamental. Muito embora todo esse elenco de possibilidades de controle de constitucionalidade, a jurisdição constitucional ainda está longe de assumir o papel que lhe cabe no Estado Democrático de Direito, mormente se entendermos que a Constituição brasileira tem um nítido perfil dirigente e compromissário. Desse modo, fazer jurisdição constitucional não significa restringir o processo hermenêutico ao exame da parametricidade formal de textos infraconstitucionais com a Constituição. Trata-se, sim, de compreender a jurisdição constitucional como processo de vivificação da Constituição na sua materialidade, a partir desse novo paradigma instituído pelo Estado Democrático de Direito. Esse paradigma toma forma quando a liberdade de conformação do legislador, pródiga em discricionariedade no Estado-Liberal, passa a ser contestada de dois modos: de um lado, os textos constitucionais dirigentes, apontando para um dever de legislar em prol dos direitos fundamentais e sociais; de outro, o controle por parte dos tribunais, que passaram não somente a decidir acerca da forma procedimental da feitura das leis, mas acerca de seu conteúdo material, incorporando os valores previstos na Constituição. Há, assim, a prevalência do princípio da constitucionalidade sobre o princípio da maioria, o que significa entender a Constituição como um remédio contra maiorias. Portanto, a noção de um terceiro modelo de Direito, o do Estado Democrático de Direito, leva em conta a noção de Constituição como valores a serem realizados, exsurgentes do contrato social. A Constituição surge, nesse terceiro modelo/paradigma, não somente como a explicitação do contrato social, mas, mais do que isso, com a sua força normativa de constituir-a-ação do Estado. Assim, quando aqui se afirma que a Constituição é a explicitação do contrato social, está-se afirmando o caráter discursivo que assume a noção de Constituição, enquanto produto de um processo constituinte. A noção de
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição
359
Constituição do Estado Democrático de Direito e da função da justiça constitucional como garantidora da força normativa substancial 30 do texto constitucional está umbilicalmente ligada à noção de contrato social. Daí ser necessário advertir para o fato de que a Constituição, entendida como explicitação do contrato, não pode ser entendida (meramente) como um “contrato” que se estabelece como uma terceira coisa entre o Estado, o Poder, o Governo, e os destinatários; antes disso, a linguagem constituinte passa a ser condição de possibilidade do novo, na medida em que, na tradição do Estado Democrático de Direito, o constitucionalismo não é mais o do paradigma liberal, mas, sim, passa por uma revolução copernicana (Jorge Miranda) mediante o constituir da Sociedade. Em face do que foi exposto, entendo que o Poder Judiciário não pode assumir uma postura passiva diante da sociedade. Na perspectiva aqui defendida, reserva-se ao Poder Judiciário (lato sensu, entendido aqui como justiça constitucional) uma nova forma de inserção no âmbito das relações dos poderes de Estado, levando-o a transcender as funções de checks and balances, mediante uma atuação que leve em conta a perspectiva de que os valores constitucionais têm precedência mesmo contra textos legislativos produzidos por maiorias eventuais.
Entendo, assim, que a justiça constitucional deve assumir uma postura intervencionista, longe da postura absenteísta própria do modelo liberalindividualista-normativista que permeia a dogmática jurídica brasileira 31. Ou seja, como bem aduz Vianna 32, se a judicialização da política 30
No embate entre as posturas substancialistas e procedimentalistas, claramente posiciono-me ao lado do substancialismo, conforme melhor explicitado no livro Jurisdição Constitucional, op. cit., em especial cap. 4. 31 Como bem assinala Ackerman, ao tratar da problemática norte-americana, declarando inconstitucional um determinado dispositivo legal, o Tribunal está desempenhando uma função dualista crítica. Ele está indicando à massa de cidadãos privados que algo especial está ocorrendo nos corredores do poder; que seus pretendidos representantes estão tratando de legislar com pouca credibilidade; e que, uma vez mais, há chegado o momento de determinar se nossa geração responderá fazendo o esforço político requerido para redefinir, como cidadãos privados, nossa identidade coletiva. Cfe. ACKERMAN, Bruce. La política del diálogo liberal. Barcelona: Gedisa, 1999, p. 203. 32 Cfe. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia – entre facticidade e validade. v. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 126 e segs.; CABRAL PINTO, Luiza Marques da Silva. Os limites do poder constituinte e a legitimidade material da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1994, p. 126 e segs.; e BUBNER, R. Filosofia moderna Alemanha. Madrid: Cátedra, 1984, p. 228 e ss.
360
Lenio Luiz Streck
significar a delegação da vontade do soberano a um corpo especializado de peritos na interpretação do Direito e a ”substituição” de um Estado benfeitor por uma justiça providencial e de moldes assistencialistas, não será propícia à formação de homens livres e nem à construção de uma democracia de cidadãos ativos. Contudo, a mobilização de uma sociedade para a defesa dos seus interesses e direitos, em um contexto institucional em que as maiorias efetivas da população são reduzidas, por uma estranha alquimia eleitoral, em minorias parlamentares, não se pode desconhecer os recursos que lhe são disponíveis a fim de conquistar uma democracia de cidadãos. Do mesmo modo, uma vida associativa ainda incipiente, por décadas reprimida no seu nascedouro, não se pode recusar a perceber as novas possibilidades, para a reconstituição do tecido da sociabilidade, dos lugares institucionais que lhe são facultados pelas novas vias de acesso à justiça.
Quando
falo
em
“intervencionismo
substancialista”,
refiro-me
ao
cumprimento dos preceitos e princípios ínsitos aos Direitos Fundamentais Sociais e ao núcleo político do Estado Social previsto na Constituição de 1988, no qual é possível afirmar que, na inércia dos poderes encarregados precipuamente de implementar as políticas públicas, é obrigação constitucional do Judiciário, através da jurisdição constitucional, propiciar as condições necessárias para a concretização dos direitos sociais-fundamentais. É evidente que tais questões podem esbarrar naquilo que se denomina de “financeiramente possível” e na (de)limitação do âmbito (político) de esfera de competência. Cristina Queiroz33 enfatiza que,
quando existe um direito, este mostra-se sempre como justiciável. Sucede é que, por vezes, no caso dos direitos de natureza econômica e social, estes necessitam ainda de uma configuração jurídica particular a levar a cabo pelo legislador. A ”reserva do possível”, ”no sentido daquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade” (BverfGE 33, 303, 333; 43, 291, 314), não tem como conseqüência a sua ineficácia jurídica. Essa cláusula expressa unicamente a necessidade da sua ponderação. Konrad Hesse fala, a esse propósito, de uma “obrigação positiva” de 33
Cfe. QUEIROZ, Cristina. Interpretação e Poder Judicial – sobre a epistemologia da construção constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 65. Veja a esse propósito o seguinte acórdão do Tribunal Constitucional de Portugal: “Todo este complexo normativo, que não é meramente programático e contém antes uma vinculação para o legislador ordinário, não pode desprender-se de princípios fundamentais consagrados na Constituição como seja o empenhamento da República ‘na construção de uma sociedade livre, justa e solidária’, o objectivo da ‘realização da democracia econômica, social e cultural’, as tarefas fundamentais do Estado de promover ‘a efectivação dos direitos econômicos, sociais e culturais’ e assegurar ‘o ensino e a valorização permanente’”. Ac. TC 148/94.
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição
361
”fazer tudo para a realização dos direitos fundamentais, ainda quando não exista a esse respeito nenhum direito subjectivo por parte dos cidadãos”.
Muito embora tais teses/perspectivas, um olhar – mesmo que perfunctório – sobre o agir quotidiano dos juristas mostra-nos que estamos longe de uma postura mais interventiva (portanto, menos self restraint) do Poder Judiciário, o que pode ser verificado pela inefetividade da expressiva maioria dos direitos sociais previstos na Constituição 34 e da postura assumida pelo Poder Judiciário na apreciação de institutos como o mandado de injunção, a ação de inconstitucionalidade por omissão, além da falta de uma adequada filtragem hermenêutico-constitucional das normas anteriores e posteriores a Constituição. Assim: a)
mecanismos
como
a
interpretação
conforme
a
Constituição
(verfassungskonforme Auslegung) e a nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohne Normtext Reduzierung) têm sido pouco utilizados para a adequação do enorme contingente de leis e atos normativos ao texto da Constituição. Até mesmo o entendimento acerca do sentido e alcance desses institutos tem recebido uma interpretação self restraint 35. b) O exercício do controle difuso de constitucionalidade, nestes quinze anos, tem-se mostrado aquém das expectativas. No primeiro grau de jurisdição, ainda são poucos os magistrados que lançam mão desse (poderoso) mecanismo, que, saliente-se, não fica restrito à (mera) rejeição (não aplicação) de leis inconstitucionais, podendo, à toda evidência, alcançar a interpretação conforme e a nulidade parcial sem redução de texto, para citar apenas essas duas modalidades
de
decisões
denominadas
pela
tradição
de
“decisões
interpretativas” 36. Nos tribunais, continua reduzido o número de incidentes de inconstitucionalidade.
34
Nesse sentido há que se levar em conta a advertência de Alexy, que fala da justiciabilidade plena como um dos tesouros da Constituição, lembrando que “quem pretenda escrever na Constituição ideais políticos não justiciáveis, deve ser consciente do que está em jogo. Com uma só disposição da Constituição não controlável judicialmente abre-se o caminho para a perda de sua obrigatoriedade.” Cfe. ALEXY, Robert. Los derechos fundamentales en el Estado Constitucional Democrático. In: CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalimo(s). Madrid: Trotta, 2003, p. 33. 35 Para tanto, consultar Streck, Jurisdição Constitucional, op. cit., em especial cap. 11. 36 Idem ibidem, em especial capítulos 10, 11 e 12.
362
Lenio Luiz Streck
c) Diversas leis, apenas em parte incompatíveis com a Constituição, têm permanecido intactas no sistema, pela timidez hermenêutica dos operadores. Veja-se
a
recente
Lei
n°
10.259/01,
que,
de
forma
inconstitucional,
(des)classificou delitos como abuso de autoridade, fraude em licitação, fraude processual, porte ilegal de arma, sonegação de tributos, desobediência, atentado ao pudor mediante fraude, crimes contra a honra, para ficar apenas nos principais, como “infrações de menor potencial ofensivo” (soft crimes), utilizando para tanto o critério horizontal da quantidade da pena 37. Do mesmo modo, o Código Penal está eivado de inconstitucionalidades; dezenas de tipos penais não recepcionados pela Constituição continuam sendo aplicados; as penas não guardam relação com o princípio da proporcionalidade (para se ter uma ideia, furto qualificado tem pena maior que sonegação de tributos e lavagem de dinheiro; adulteração de chassis de automóvel acarreta pena maior do que a do homicídio praticado ao volante etc.); nessa linha, não causa nenhum espanto à comunidade jurídica o fato de que a sonegação de tributos tenha um tratamento absolutamente privilegiado em relação aos crimes contra o patrimônio, como o furto, a apropriação indébita etc. 38; a falta de filtragem é tão grande que o sistema jurídico convive com o paradoxo representado pelo fato de os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, elevados à condição de hediondos na década de 90 39, continuarem a ser considerados “crime de ação privada” (sic). d) A dimensão da crise de baixa constitucionalidade pode ser aquilatada por alguns casos emblemáticos, como o ocorrido com a edição da Lei n° 37
Em termos de filtragem hermenêutico-constitucional, o problema decorrente da indevida inserção desses crimes no rol dos soft crimes pode ser resolvida por intermédio da aplicação da técnica da nulidade parcial sem redução de texto. Para tanto, ver STRECK, Lenio Luiz. Os juizados especiais criminais à luz da jurisdição constitucional. Caderno Jurídico. Ano 2, v. 2, n. 5. São Paulo: Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, out/2002, p. 63-100. 38 A recente Lei n° 10.684/03, repisando a matéria já sedimentada, possibilita que os sonegadores façam parcelamento (REFIS) de seus “débitos”. Com isso, extingue-se a punibilidade (sic). Antes dessa Lei, já havia casos de financiamentos que ultrapassavam os 500 anos! Enquanto isso, em completa violação ao princípio da isonomia, ao cidadão que pratica crime contra o patrimônio não é dada qualquer possibilidade de parcelamentos e, tampouco, a possibilidade de extinção da punibilidade pelo ressarcimento do prejuízo! Isso mostra a dura face da crise de paradigmas que atravessa a dogmática jurídica brasileira. 39 Veja-se que a comunidade jurídica, inserida no senso comum teórico, convive pacificamente com dispositivos como art. 107, VIII, do Código Penal, pelo qual se extingue a punibilidade do crime de estupro ou atentado violento ao pudor pelo “casamento da ofendida com terceiro” (sic), dicção que o STF chegou a estender ao “concubinato da vítima com terceiro”. Ora, tal disposição legal afronta a Constituição Federal, conforme sustentei em parecer que exarei nos autos da ª Apelação-Crime nº 70006451827 - 5 Câmara Criminal, TJRS).
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição
363
9.639/98. Com efeito, a importância desse episódio assume uma transcendência ímpar, porque simboliza a crise paradigmática que atravessa a operacionalidade do Direito em nosso país. Explico: o Poder Executivo enviou projeto de lei ao Congresso Nacional, concedendo anistia aos agentes políticos responsabilizados pela prática dos crimes previstos na alínea d do art. 95 da Lei n° 8.212/91 e no art. 86 da Lei n° 3.807/60 (retenção de contribuições previdenciárias dos segurados da previdência social, sem que fosse atribuição legal sua). Tal matéria constou no art. 11 do projeto, que foi votado, aprovado e enviado para sanção do Presidente da República. Ocorre que, de forma “fantasmagórica”, foi introduzido um parágrafo único “pirata” ao citado art. 11, estendendo a anistia aos “demais responsabilizados pela prática dos crimes previstos na alínea d do art. 95 da Lei n° 8.212/91 e no art. 86 da Lei n° 3.087/60, isto é, o dispositivo “acrescentado” estendia de forma irrestrita a citada anistia. Surpreendentemente, a Lei foi sancionada
com
a
inclusão
do
parágrafo
único
“pirata”.
Ora,
parece
desnecessário dizer que um dispositivo não votado e não aprovado pelo parlamento jamais existiu no mundo jurídico. Constatado o manifesto equívoco, de imediato foi enviada mensagem ao Presidente da República comunicando o fato, o que ensejou a republicação da lei, o que veio a ocorrer no dia seguinte ao da publicação original. Pois bem: com base na “vigência” (sic) do aludido parágrafo único do art. 11, começaram a ser concedidas anistias a todas as pessoas envolvidas nos crimes de retenção de contribuições sociais, sob os mais variados argumentos, tais como “em nome da segurança jurídica, o texto foi publicado, apesar do erro, existe e entra em vigor, devendo ser protegidos os direitos decorrentes dessa vigência...”, aduzindo-se, ainda, citações doutrinárias acerca da interpretação do art. 1°, §4°, da Lei de Introdução ao Código Civil... Em face disso, o Ministério Público Federal passou a recorrer das (centenas de) decisões judiciais concessivas das anistias irrestritas baseadas no inexistente parágrafo único, tendo que a matéria ser, finalmente, decidida pelo Supremo Tribunal Federal, que, em decisão plenária de 4.11.98 (HC n° 77724-3, Rel. Min. Marco Aurélio), julgou inconstitucional o citado parágrafo único do art. 11 da Lei n° 9.639, em sua publicação no Diário Oficial da União de 26.5.98, explicitando o STF que a decisão tinha caráter ex tunc, atingindo todas as decisões concessivas anteriores. A argumentação do Supremo Tribunal Federal foi singela – porque
364
Lenio Luiz Streck
singela era a questão, sem dúvida –, baseando o acórdão no fato de que o parágrafo único em tela não cumpriu, no Congresso Nacional, o rito de discussão e votação de projeto de lei, previsto no art. 65 da CF. Ou seja, a publicação por engano do parágrafo único não poderia gerar efeitos no mundo jurídico. Ou seja, reféns do sentido comum teórico, os operadores do primeiro grau de jurisdição não conseguiram – no âmbito do controle difuso – dar uma solução constitucional adequada a um problema tão simples. e)
As
mesmas
carências
hermenêutico-constitucionais
podem
ser
encontradas no campo do direito processual. Assim, v.g. 40, embora o conteúdo garantista da Constituição de 1988, o Código Processo Penal continua fazendo vítimas, pela falta de uma adequada interpretação que o conforme ao texto constitucional. Em pleno Estado Democrático de Direito, o sistema jurídico convive com a quotidiana violação dos princípios da ampla defesa (interrogatórios que continuam sendo realizados sem a presença de defensor), do contraditório (exames periciais feitos à revelia do réu) e do devido processo legal (denúncias que são recebidas sem qualquer fundamentação), para citar apenas alguns dos problemas. f) Por outro lado, se os Códigos Penal e Processual Penal sofrem de profunda inadequação com o texto constitucional em face da distância temporal, um texto como o do Código Civil que entrou em vigor em 2003 deveria ingressar no ordenamento devidamente adequado à Constituição. Entretanto, não é isso que ocorre. Com efeito, em muitos aspectos, o Código Civil provoca retrocesso, com nítida violação da cláusula constitucional de proibição de retrocesso social, implícita na Constituição Federal. Nesse ponto, concordo com Gustavo Tepedino, quando diz que o novo Código Civil é retrógado e demagógico. Retrógado porque nasce velho principalmente por não levar em conta a história constitucional brasileira e a corajosa experiência jurisprudencial, que protegem a personalidade mais que a propriedade, o ser mais que o ter, os valores existenciais mais do que 40
Deixo de referir aqui os problemas decorrentes das diversas (mini) reformas no Código de Processo Civil, muitas delas de duvidosa constitucionalidade. Do mesmo modo, permito-me remeter o leitor ao livro “Jurisdição Constitucional”, op. cit., em especial capítulos 11 e 12, nos quais são tratadas as inconstitucionalidades constantes na Lei n° 9.868/99 – que trata do processo e do procedimento das ações diretas de inconstitucionalidade e das ações declaratórias de constitucionalidade – e na Lei n° 9.882/99, que estabelece o regramento da arguição de descumprimento de preceito fundamental.
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os patrimoniais; e demagógico porque, engenheiro de obras feitas, pretende consagrar direitos que, na verdade, estão tutelados em nossa cultura jurídica pelo menos desde o pacto de outubro de 1988 41. Não é desarrazoado afirmar, nesse contexto, que a edição do novo Código Civil representou a vitória da codificação sobre a hermenêutica e a abertura interpretativa. Os assim denominados avanços do novo Código desde há muito estavam previstos na Constituição. Às várias manifestações “louvando” o fato de que, a partir do novo Código, o juiz assumirá uma nova postura perante o Direito (sic), é fácil responder (e esclarecer) que essa propalada “abertura hermenêutica proporcionada pelo ‘novo’ Código Civil” é fruto do paradigma que instituiu o Estado Democrático de Direito e tudo o que representa a Constituição, entendida no seu caráter compromissário e dirigente. Não é o Código que estabelece um novo paradigma, mas, sim, é o Código que deve(ria) estabelecer os delineamentos do Direito Civil levando em conta o primado da Constituição.
É exatamente por isso que parcela considerável das centenas de emendas que estão sendo propostas ao novo Código são desnecessárias, uma vez que as anomalias do novo Codex podem ser corrigidas a partir de um adequado manejo da jurisdição constitucional,
naquilo que o sistema jurídico coloca à disposição do operador em termos de controle difuso e concentrado, além dos modernos mecanismos interpretativos, como a interpretação conforme a Constituição e a nulidade parcial sem redução de texto. Infelizmente, tudo está a indicar que a equiparação feita por parcela considerável de juristas entre “vigência e validade” e “texto e norma” continuará fazendo suas vítimas por muito tempo. g) Registre-se, por fim, a postura self restraint que a Suprema Corte assumiu nos episódios que envolveram as grandes privatizações e na discussão dos conceitos de “urgência e relevância”, requisitos para o Poder Executivo editar medidas provisórias. Saliente-se que, antes da promulgação da EC n° 32, que alterou o art. 62, da CF, o Poder Executivo já havia editado mais de 3.000
41
Cfe. TEPEDINO, Gustavo. O novo Código Civil: duro golpe na recente experiência constitucional brasileira. Revista Trimestral de Direito Civil, v 7. Rio de Janeiro: Padma, 2001, p. 229.
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medidas provisórias. Uma postura hermenêutica mais incisiva do STF poderia, 42 sem dúvida, no exame da matéria e no momento oportuno, ter evitado esse mar de medidas provisórias, que tantos prejuízos causaram à cidadania e à democracia.
3. Em Aportes Finais: O Constitucionalismo que não Morreu. A Constituição que (ainda) constitui. A Necessidadede um Processo de Resistência Constitucional como Compromisso Ético dos Juristas: I.Como visto, vários são os fatores que leva(ra)m a esse deficit de jurisdição constitucional, que podem ser debitados tanto a uma crise de modelo de direito e de Estado, como a uma crise de compreensão (crise de viés hermenêutico).
Observe-se – e tenho constantemente batido nessa tecla – como a dogmática jurídica continua equiparando os âmbitos da vigência e da validade de um texto, questão que decorre do problema próprio da hermenêutica clássica-reprodutiva, que equipara o texto à norma, como se o texto carregasse consigo a norma (sentido) 43. 42
Deve ser criticada, também, a decisão do STF no julgamento da ADIn 425, que tratava da inconstitucionalidade de a Constituição do Estado do Tocantins prever a possibilidade de o Governador editar medidas provisórias. Entendo que o nosso Tribunal Maior não encontrou a melhor solução para a controvérsia. Como muito bem deixou assentado o Min. Carlos Velloso em seu voto vencido, para que fosse possível aos Estados-Membros lançarem mão do instituto da medida provisória seria necessária expressa autorização da Constituição Federal. Com efeito, sem tal previsão, parece desarrazoado entender que os Estados-Membros (e quiçá os Municípios) possam lançar mão desse instrumento que, a toda evidência, constitui exceção à tradicional teoria da divisão de poderes. Interpretar que a não previsão expressa da possibilidade de os Estados editarem medidas provisórias constitui uma lacuna da Constituição de 1988 – a qual seria colmatável pelo constituinte estadual – é abrir um perigoso precedente que, inexoravelmente, enfraquece o caráter rígido característico do modelo constitucional adotado em terra brasilis. Para mais detalhes, ver meu Jurisdição, op.cit. 43 Conforme tenho referido à saciedade em outros textos, não há equivalência entre texto e norma e entre vigência e validade, em face do que se denomina na fenomenologia hermenêutica de diferença ontológica. Sustentar que há uma diferença (ontológica) entre texto e norma não significa que haja uma separação entre ambos (o mesmo valendo para a dualidade vigênciavalidade). Ou seja, concordo com Friedrich Müller quando diz que a norma é sempre o produto da interpretação de um texto e que a norma não está contida no texto (ver, para tanto, Juristiche Methodik, op. cit.; no mesmo sentido, GRAU, Eros. La doble estruturación y la interpretación del derecho. Barcelona: M.J. Bosch, SL, 1998). Ocorre que o texto não subsiste como texto; não há texto isolado da norma! O texto já aparece na “sua” norma, que é produto da atribuição de sentido do intérprete (e, para isso, não há um processo de discricionariedade do intérprete, uma vez que a atribuição de sentido exsurgirá de sua situação hermenêutica, da tradição em que está inserido, enfim, a partir de seus pré-juízos). Por isso não há separação entre texto e norma; há, sim, uma diferença ontológica entre eles, questão que pode ser retirada da assertiva heideggeriana de que o ser é sempre o ser de um ente, e o ente só é no seu ser. Não há ser sem ente. A norma, assim,
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II. De outra banda, não construímos uma teoria da Constituição suficientemente colada à Teoria do Estado apta a superar certo enciclopedismo ainda presente na análise da Constituição de 1988. Em suma, a Constituição não encontrou terreno fértil para a efetivação das promessas contidas em seu texto. A comunidade jurídica demorou a perceber a revolução paradigmática que representaram os textos constitucionais dirigentes e compromissários no seio da Teoria do Estado e da Constituição. Sejamos claros: não havia um caldo de cultura apto a recepcionar
essa verdadeira revolução copernicana que alçou o Direito constitucional ao status de disciplina dirigente, questão que assumia contornos mais relevantes ainda se levado em conta o problema de ser o Brasil um país de modernidade tardia.
Não ocorreu no Brasil algo similar ao “Debate de Weimar”, na qual foi discutida, nos idos de 1919, a crise da Teoria Geral do Estado, a partir da insuficiência da Teoria Geral do Estado “enciclopédica” de Jellinek44.
não é uma capa de sentido a ser acoplada a um texto “desnudo”. Ela é a construção hermenêutica do sentido do texto. Esse sentido manifesta-se na síntese hermenêutica da applicatio. Daí que, de algum modo, concordo com Nelson Saldanha em suas críticas à tese de Müller. Com efeito, Saldanha não concorda com a afirmação de que o texto da norma é apenas um “enunciado linguístico”. “Todo texto é um enunciado lingüístico, mas nenhum texto é apenas isto: o texto de um poema se distingue de seu ‘conteúdo’, como ocorre com o de uma prece ou o de uma mensagem pessoal. Mas em cada caso o texto está relacionado ao conteúdo: não se procuraria uma mensagem religiosa no texto de um livro de química, nem se buscaria um conteúdo poético no texto de um decreto. Os textos que integram o direito positivo contêm a norma: são textos jurídicos e não contábeis, nem litúrgicos. Não se ‘chegaria’ à norma sem o texto dela, nem com outro que não fosse jurídico. A distinção entre as palavras do texto e o conteúdo normativo não pode levar a uma negação da relação entre ambas as coisas” (cfe. SALDANHA, Nelson. Racionalismo jurídico, crise do legalismo e problemática da norma. Anuário dos Cursos de PósGraduação em Direito da UFPE, n. 10. Recife: UFPE, 2000, p. 203 e segs). Correto o professor pernambucano quando diz que os textos que integram o direito positivo contêm já, de pronto, a norma cujo sentido aponta para o fato de que tais textos são jurídicos, e não qualquer outra coisa. Ou seja, há um sentido que se antecipa e, portanto, é condição de possibilidade: antes de tudo, o texto é um texto jurídico! Em síntese, texto e norma são coisas distintas, mas não separadas, no sentido de que possam subsistir um sem o outro. Também por isso um não contém o outro, assim como o ser não contém o ente. Por isso, o que existe é uma diferença entre ambos, que é ontológica. 44 A crise da Teoria Geral do Estado gerou três grandes propostas para a sua superação, todas descartando as concepções de Jellinek. Duas propostas vão substituir a velha Teoria Geral do Estado pela nova Teoria da Constituição. De um lado, a visão da Constituição exclusivamente como norma jurídica (Kelsen). De outro, as Teorias Materiais da Constituição, vista agora como algo mais do que uma simples norma jurídica, mas como lei global da vida política do Estado e da sociedade (Carl Schmitt e Rudolf Smend). Finalmente, a terceira proposta busca a renovação metodológica completa da Teoria Geral do Estado, que deveria ser substituída pela Teoria do Estado como ciência da realidade (Hermann Heller). Cfe. BERCOVICI, Gilberto. A Constituição Dirigente e a Crise da Teoria da Constituição. São Paulo, 2003. Inédito.
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III. As mesmas insuficiências teórico/paradigmáticas que preocuparam os juristas alemães não alcançaram igual tratamento em terra brasilis. O novo paradigma
do
Estado
Democrático
de
Direito,
no
interior
do
qual
o
constitucionalismo – porque umbilicalmente ligado à Teoria do Estado – assume contornos transformadores da realidade social, vem sendo trabalhado a partir de uma ultrapassada Teoria Geral do Estado, que não reúne as condições suficientes para a elaboração de um discurso que imbrique Constituição e Estado. Mais do que uma crise na Teoria (Geral) do Estado, há uma crise da Constituição, que, segundo Bercovici, pode ser superada ao compreendermos a Constituição nesses pressupostos da Teoria do Estado, em conexão com a política e a realidade social (e aqui assume relevância a circunstância de vivermos em um país de modernidade tardia). Afinal, aduz o autor, ao contrário do que alguns juristas defendem, não é possível entender a Constituição sem o Estado. A existência histórica e concreta do Estado soberano é pressuposto, é condição de existência da Constituição. Talvez aqui esteja um dos problemas fundamentais da crise que obstaculiza a compreensão do papel da Constituição no Brasil (e consequentemente do porquê de sua inefetividade, passados quinze anos): a Constituição tem sido compreendida apenas como normativa descontectada da política (no qual entra, por decorrência lógica, o Estado). Há uma necessária conexão/imbricação entre Estado, Constituição e política. Só assim será possível perceber que a Constituição pertence também à realidade histórico-social 45. IV. Em face de todo o exposto, venho propondo, fundamentado em Garcia Herrera, uma resistência constitucional, entendida como o processo de identificação e detecção do conflito entre princípios constitucionais e a inspiração neoliberal que promove a implantação de novos valores que entram em contradição com aqueles: solidariedade frente ao individualismo, programação frente à competitividade, igualdade substancial frente ao mercado, direção pública frente a procedimentos pluralistas.
O novo modelo constitucional supera o esquema da igualdade formal rumo à igualdade material, o que significa assumir uma posição de defesa e suporte da Constituição como fundamento do ordenamento jurídico e expressão de uma ordem de convivência 45
Cfe. Bercovici, A Constituição, op. cit.
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição
369
assentada em conteúdos materiais de vida e em um projeto de superação da realidade alcançável com a integração das novas necessidades e a resolução dos conflitos alinhados com os princípios e critérios de compensação constitucionais 46.
V. Este resistir implica, entre outras tarefas, uma mobilização em torno da criação de um Tribunal Constitucional, na tradição dos tribunais desse naipe que tanto serviço prestaram à democracia e à realização dos direitos fundamentaissociais no velho mundo, e, em consequência, a utilização, de forma ampla, dos mecanismos de acesso à justiça, mormente à jurisdição constitucional, através do controle difuso de constitucionalidade e do controle concentrado, sob suas várias formas, sem olvidar as ações constitucionais específicas, como o mandado de injunção,
o mandado
de
segurança, a ação popular,
a arguição
de
descumprimento de preceito fundamental etc. Nesse sentido, é preciso ter claro que não há texto infraconstitucional imune à filtragem constitucional; não há textos “blindados”. Até mesmo as leis que descriminalizam estão sujeitas ao controle de constitucionalidade 47. VI. Para ser mais claro: no Estado Democrático de Direito, não há liberdade de conformação do legislador; há uma diferença (ontológica) entre vigência (que é secundária) e validade (que é primária, porque dependente da materialidade da Constituição), e entre texto e norma. O texto não contém a norma. Essa é sempre o produto de um processo de atribuição de sentido, o que reforça a responsabilidade (ética) do intérprete. VII. Por isso, torna-se relevante a discussão das condições de possibilidade que têm os juristas para a construção de um discurso (crítico) que aponte para a superação da crise paradigmática e a implementação dos valores constitucionais. Ao lado disso, torna-se necessário constantemente denunciar as reformas legislativas ad hoc que têm levado, sistematicamente, à concentração do poder nos tribunais superiores, a ponto de transportar para o nosso sistema
46
Consultar GARCIA HERRERA, Miguel Angel. Poder Judicial y Estado Social: Legalidad y Resistencia Constitucional. In: Corrupción y Estado de Derecho – El papel de la jurisdicción. Perfecto Andrés Ibáñes (Editor). Madrid: Trotta, 1996, p. 83. 47 Ver, nesse sentido, STRECK, Lenio Luiz. Os juizados especiais criminais à luz da jurisdição constitucional, op. cit.
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mecanismos próprios da common law 48 e do direito tedesco (nesse sentido, v.g., a inversão dos efeitos nas decisões em sede de ADIn e ADC, prevista na Lei n° 9.868/99). Veja-se, a propósito, o problema do acesso à justiça, sonegado a partir de mecanismos como os constantes no art. 557 do CPC, monocratizando as decisões de segundo grau, além de impedirem o acesso aos tribunais superiores (TST, STJ e STF). É evidente que necessitamos de mecanismos que conduzam à efetividade da justiça e ao “desafogo dos tribunais superiores” (sic). Entretanto, não se pode, em nome de uma “instrumentalidade quantitativa”, solapar uma “instrumentalidade qualitativa”. VIII. Em síntese: é necessário construir (novos) caminhos na busca da concretização das promessas da modernidade plasmadas no texto constitucional. Isso implica continuar a acreditar na força normativa da Constituição e no seu papel dirigente e compromissário. Daí a necessidade da construção de uma Teoria da Constituição Dirigente Adequada a Países de Modernidade Tardia (TCDAPMT), 49 cujos fundamentos decorrem da necessidade de preenchimento do déficit resultante do histórico descumprimento das promessas da modernidade nos países periféricos. Destarte, a defesa de uma Teoria da Constituição Dirigente Adequada a Países de Modernidade Tardia fundamenta-se na ideia de um conteúdo compromissário mínimo a constar no texto constitucional, bem como nos correspondentes mecanismos de acesso à jurisdição constitucional e de participação democrática. IX. Tal teoria deve, assim, tratar da construção das condições de possibilidade para o resgate das promessas incumpridas da modernidade, as quais, como se sabe, colocam em xeque os dois pilares – democracia e direitos fundamentais-sociais – que sustentam o próprio Estado Democrático de Direito. A ideia de uma TCDAPMT implica uma interligação com uma teoria do Estado, 48
No plano da operacionalidade do direito, grande parcela das querelas jurídicas tem sido decidida mediante a (singela) citação de ementas jurisprudenciais (ou Súmulas) descontextualizadas, a ponto de o Supremo Tribunal Federal declarar a inconstitucionalidade (sic) de um dispositivo de medida provisória com fundamento na Súmula 618, de edição anterior à Constituição. Calha lembrar, além disso, que as decisões, embora fundamentadas nos verbetes (nos seus mais variados tipos), não são suficientemente justificadas, isto é, não são agregados aos ementários jurisprudenciais os imprescindíveis supor-tes fáticos, decorrendo daí o que denomino de “um perigoso ecletismo”, originário de um hibridismo (simplista/simplificado) representado pela fusão de institutos da common law e da civil law. 49 Sobre a construção de uma Teoria da Constituição Dirigente Adequada a Países de Modernidade Tardia, ver livro “Jurisdição Constitucional”, op. cit., em especial cap. 3.
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visando à construção de um espaço público, apto a implementar a Constituição em sua materialidade. Dito de outro modo, uma teoria da Constituição dirigente voltada às especificidades de países periféricos como o Brasil não prescinde de uma teoria do Estado, que seja apta a explicitar as condições de possibilidade da implantação das políticas de desenvolvimento constantes – de forma dirigente e vinculativa – no texto da Constituição. É importante pontuar que tal teoria conforma-se manifestamente ao que se projeta a partir de uma estrutura normativa consistente no Estado Democrático de Direito, ou seja, uma forma civilizada e democrática de realização do bem estar de todos, rechaçando alternativas revolucionárias, distantes de qualquer paradigma de Estado de Direito. Evidentemente, tal tese não implica sustentar um normativismo constitucional (revolucionário ou não) capaz de, por si só, operar transformações emancipatórias. O que permanece da noção de Constituição dirigente é a vinculação do legislador aos ditames da materialidade da Constituição, pela exata razão de que, nesse contexto, o Direito continua a ser um (poderoso) instrumento de implementação de políticas públicas.
50
X. Entretanto, como na Macondo de Gabriel Garcia Marquez, algumas “coisas” de nossa Constituição ainda são tão novas, tão recentes, que, para mencioná-las, muitos juristas limitam-se a apontá-las com o dedo! É como se essas “coisas” novas ainda não tivessem nome. É como se lhes faltasse a “nominação constitucionalizante”. O ser (da Constituição e tudo o que ela representa) continua velado. Velhos pré-juízos, decorrentes de paradigmas ultrapassados, continuam a causar seriíssimos prejuízos à comunidade jurídica. Não houve, ainda, a surgência constitucionalizadora. A baixa compreensão do sentido da Constituição acarreta uma “baixa constitucionalidade”. Entre sístoles e diástoles51, os quinze anos de Constituição deixaram muitas lições. Talvez na imbricação entre o exercício pleno e efetivo da jurisdição constitucional e uma ampla participação da sociedade, a partir dos mecanismos de representação
50
Idem, ibidem. Na medida em que o objetivo deste texto é fazer um apanhado crítico acerca do funcionamento da jurisdição constitucional nos seus diversos âmbitos, torna-se desnecessário lembrar os avanços conquistados no período pós-constitucional, como, por exemplo, e que vale por todos, a consolidação da democracia em terra brasilis, condição indispensável para o florescimento de uma cultura jurídica que aponte para o efetivo cumprimento das promessas ex-surgentes do pacto constituinte. 51
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Lenio Luiz Streck
popular e de democracia direta, esteja o caminho para que se possa dizer (e nominar) o novo, sem que se precise “apontar com o dedo”, superando, desse modo, a crise, que, como se sabe, existe exatamente quando o novo não nasce e o velho não morre; enfim, quando o velho obnubila o novo!
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Pluralismo Jurídico e Direito Alternativo no Brasil. Notas para um Balanço
Luciano Oliveira
Sumário: 1. Introdução. 2. O Pluralismo Jurídico: uma ideia fora do lugar? 3. O Direito Alternativo – Algumas Confusões Conceituais. Referências Bibliográficas
1. Introdução Os dois temas que dão título a este artigo têm tido nos últimos vinte anos – o primeiro, Pluralismo Jurídico, a partir de inícios dos anos 80; o segundo, Direito Alternativo, a partir de inícios dos anos 90 – uma notável presença nos meios jurídicos brasileiros, mas também latino-americanos de um modo geral, em decorrência de um amplo trabalho de divulgação e de militância levado a efeito por juristas que adotaram aquilo que tem sido genericamente chamado de “perspectiva crítica” – ou seja: um “esfuerzo consciente por cuestionar los fundamentos de las formas jurídicas y sociales dominantes con el fin de impulsar prácticas e ideas emancipadoras dentro y fuera del campo jurídico” (Villegas e Rodrígues, 2001:3). Ainda que, como já ressalvado, não seja um movimento adstrito ao Brasil, as reflexões que se seguem têm esse país como principal referência, pela óbvia razão de que, sendo brasileiro, conheço bem melhor o que se passa na realidade do meu país do que na realidade dos países latinoamericanos de língua espanhola, embora creia que tais reflexões possam também, com as devidas adaptações1, aplicar-se a esses países. Como sinaliza a própria expressão, a perspectiva crítica é fortemente influenciada pelo pensamento de esquerda. Com isso quero significar um amplo espectro de tendências que inclui desde o pensamento marxista stricto sensu até a “teoria crítica” da Escola de Frankfurt, a teologia da libertação etc. Mas,
1
Vale observar, por exemplo, que a expressão “direito alternativo” é utilizada, sobretudo, no Brasil, sendo bem menos encontrada nos demais países latino-americanos, ainda que a temática que ela designa também esteja aí presente. É significativo, por exemplo, que ela sequer apareça no texto que serve de referência ao empreendimento deste livro (Villegas e Rodrígues, 2001); e que no livro do colombiano Germán Palacio (1993), Pluralismo Jurídico, ela seja referida em apenas duas páginas (131 e 132).
também, correntes de pensamento não necessariamente de esquerda, mas comprometidas com a “questão social”, como a doutrina dos direitos humanos. Integram o movimento professores e estudantes de direito, advogados dos chamados “novos movimentos sociais” (como os dos favelados, dos “sem-terra”, etc.), e mesmo alguns juízes. Todos partilham mais ou menos uma visão crítica a respeito do direito oficial, a seu ver o guardião de uma ordem social e econômica injusta
e
exploradora.
Alternativamente,
a
perspectiva
crítica
aparece
comprometida com o projeto de construção de uma sociedade livre, justa e igualitária – numa palavra, embora esse termo apareça cada vez menos, socialista. Passados mais de vinte anos de presença ativa do movimento, creio ser tempo bastante para nos dispormos a um balanço, não apenas pelo fato das duas décadas transcorridas, mas também – talvez sobretudo – porque parece haver, a partir de metade dos anos 90, um certo “refluxo” do movimento, como anota, referindo-se especificamente ao Direito Alternativo, um dos seus representantes (Andrade, 1998, p. 25), julgamento matizado pela observação feita logo em seguida de que se trata de algo “muito positivo, permitindo a seus membros uma espécie de parada para reflexão” (ibidem). Elencando uma série de iniciativas editoriais e docentes surgidas a partir dessa data, o que indicaria estar o movimento passando para uma nova fase mais reflexiva, o juízo de Andrade sobre o “fim de um início eufórico” parece estar baseado no inevitável desgaste que atinge todo acontecimento – intelectual ou não – que vira moda. Um bom exemplo disso é a perda progressiva de público que sofreram os Encontros Internacionais de Direito Alternativo realizados na cidade de Florianópolis, no sul do Brasil, a partir de 1991, e que teve sua quarta e – até agora – última edição em 1998 2. Depois voltaremos a esse assunto. Por enquanto, voltemos nossa atenção para os dois temas anunciados no título. Para começar, devemos melhor esclarecer o que exatamente vem a ser o Direito Alternativo – pois, como veremos, esse não é um conceito isento de algumas confusões –, e o que ele tem a ver com o Pluralismo Jurídico. Muito 2
Os quatro Encontros, sempre na cidade de Florianópolis, foram realizados em 1991, 1993, 1996 e 1998. Segundo informa Andrade, “os últimos encontros e congressos tiveram um número de participantes bastante menor” (1998:25).
Pluralismo Jurídico e Direito Alternativo no Brasil
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simplificadamente, poderíamos dizer que há entre os dois uma relação análoga àquela que há entre gênero e espécie. O Pluralismo Jurídico seria um fenômeno mais vasto, abrigando várias modalidades, das quais o Direito Alternativo seria uma delas. Mas, isto dito, considero mais conveniente, em vez de estabelecer uma definição para ambos – até porque nenhum dos dois é um conceito unívoco –, percorrer, ainda que um tanto sumariamente, a trajetória desses dois conceitos como eles aportaram no Brasil, observando as peripécias e mesmo os deslizamentos de sentido pelos quais já passaram. Por razões cronológicas, mas também lógicas, dado o seu caráter mais genérico, comecemos pelo Pluralismo Jurídico.
2. O Pluralismo Jurídico: Uma Ideia Fora do Lugar? Esse conceito foi posto em voga no Brasil a partir de inícios dos anos 80, como já disse, mas a sua aparição tem por origem um pioneiro trabalho de campo do sociólogo português Boaventura de Souza Santos, feito dez anos antes, no início dos anos 70, sobre práticas jurídicas não oficiais exercitadas no interior de uma favela do Rio de Janeiro a que ele deu o nome fictício de “Pasárgada”. Aí, os favelados, sem título de propriedade do chão onde habitavam – e, portanto, sem a proteção do direito oficial que eles próprios chamavam de “direito do asfalto” –, desenvolveram informalmente um conjunto de práticas processuais que, aplicadas pela associação de moradores da favela, tinham por finalidade resolver os conflitos de natureza, sobretudo, territorial surgidos entre os seus habitantes. O trabalho resultou numa tese de doutorado em sociologia defendida na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, e os textos dele resultantes publicados nos anos 70, em língua inglesa (Santos, 1974, 1977), permaneceram praticamente desconhecidos no Brasil durante essa década. Posteriormente, já em 1980, um pequeno resumo dessa pesquisa (Santos, 1980) foi publicado numa coletânea de textos de sociologia jurídica organizada por dois dos mais eminentes nomes da área no Brasil – os professores Cláudio Souto e Joaquim Falcão –, o que constituiu uma contribuição para tornar o nome de Boaventura Santos amplamente conhecido dos sociólogos do direito brasileiro e popularizou, entre
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Luciano Oliveira
eles, suas reflexões sobre a pluralidade de ordenamentos jurídicos. 3 Com isso não estou sustentando que a enorme repercussão do trabalho de Boaventura Santos nessa época se deva à simples publicação desse texto. Creio, na verdade, que isso ocorreu, sobretudo, porque havia um terreno cultural propício a essa recepção – justamente a “perspectiva crítica” já aludida. Estávamos vivendo, entre fins dos anos 70 e início dos 80, o ocaso do regime militar e, como ocorreu nas mais variadas áreas da atividade cultural e acadêmica houve, também, no terreno jurídico (nesse caso de maneira surpreendente, dado o tradicional conservadorismo da área) uma disseminação do pensamento de esquerda, marxista principalmente, submetido durante a ditadura à perseguição das forças de repressão. Por volta dessa época, e independentemente da influência do trabalho de Boaventura Santos, floresceram vários movimentos críticos 4, entre os quais destacaríamos alguns mais conhecidos e influentes. É o caso do movimento Crítica do Direito, de origem francesa, que aportou no Brasil através da Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Catarina, irradiando-se daí para outros centros. É também o caso da Nova Escola Jurídica Brasileira, do jurista Roberto Lyra Filho, professor da Universidade de Brasília, o qual, dotado de uma personalidade carismática e francamente iconoclasta 5, veio a se tornar um nome conhecido e muito controvertido, detestado por boa parte dos juristas e, obviamente, idolatrado por boa parte dos estudantes. Há que se mencionar também o Direito Insurgente, do advogado Miguel Pressburger, principal teórico de uma instituição chamada Apoio Jurídico Popular – AJUP – sediada no Rio de Janeiro. Uns e outros, malgrado algumas diferenças importantes que não vêm ao 3
Em termos de América espanhola, tomando-se como padrão uma publicação de prestígio como a revista El Otro Derecho, a conceitualização de “direitos paralelos”, “informais” etc. como fenômenos de pluralismo jurídico ocorre bem mais tarde. Salvo engano, apenas num texto de Eduardo Rodríguez, publicado no sexto número do periódico, é que essa expressão aparece pela primeira vez (Rodríguez, 1990: 57). Já no número seguinte, entretanto, em 1991, um artigo do brasileiro Antônio Carlos Wolkmer era explicitamente dedicado a essa questão (Wolkmer, 1991). Logo em seguida, o ILSA, responsável pela revista, organizava um concurso de ensaios sobre o tema, vencido, significativamente, por dois brasileiros com um trabalho sobre possessões agrárias na Amazônia (Benatti e Maues, 1994). 4 Sobre o assunto ver, entre outros, o livro de Eliane Botelho Junqueira, A Sociologia do Direito no Brasil – Introdução ao debate atual, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1993, principalmente o capítulo “Anos Rebeldes”. 5 O próprio autor dessas linhas teve a oportunidade, em 1982, no curso de uma mesa-redonda em que Roberto Lyra Filho estava presente, de ouvi-lo fazer um jogo de palavras de gosto duvidoso com a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, chamando-a de “teoria puta do direito”...
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caso nesse momento abordar, adotam uma perspectiva materialista e veem o direito como cristalizando, em cada etapa histórica, os interesses das classes dominantes, contra os quais as classes dominadas, através de suas lutas, vão cristalizando valores e princípios próprios, os quais, um dia, tenderão a tornar-se um novo direito. Ora, dentro de tal perspectiva, o povo, as classes dominadas, os grupos oprimidos têm a capacidade, através de suas lutas, de gerarem um novo direito – postura presente mais nos trabalhos de Lyra Filho (1982a) e de Miguel Pressburger (1987-1988) do que na Crítica do Direito francês, a qual trabalhava mais no terreno da epistemologia e era bem menos propositiva. Como quer que seja esses vários movimentos eram basicamente teóricos, animados por juristas que, mesmo voltados para o “concreto”, não exercitavam a prática da pesquisa empírica. E eis que aparece o trabalho de Boaventura Santos, um trabalho de campo feito por um sociólogo que revelou a existência do “direito de Pasárgada”, vale dizer, uma ilustração concreta de que os grupos dominados eram, sim, capazes de produzir um novo direito. Creio que, aí, reside a explicação para a extraordinária recepção do seu trabalho e de suas ideias a respeito do pluralismo jurídico. O conceito de pluralismo jurídico, entretanto, é bastante antigo. Definido geralmente como a existência, no mesmo espaço geopolítico, de mais de uma ordem jurídica, o pluralismo jurídico já foi objeto de reflexão por parte de vários juristas que adotaram na sua reflexão um enfoque sociológico 6, a exemplo de Gurvitch e sua visão acerca da pluralidade de centros geradores de direito, tanto supraestatais – como as organizações internacionais, por exemplo – quanto infraestatais – como os sindicatos, cooperativas, etc. De um modo geral, porém, o enfoque pluralista dos juristas revela-se, no fundo, um falso pluralismo, pois, como lembra Carbonnier, os fenômenos descritos como constituindo um outro direito são tomados em consideração pelo sistema jurídico global e, portanto, “de certo modo, integrados nele – e a unidade é restaurada” (1979:220). Para um enfoque verdadeiramente pluralista, é para a antropologia e sociologia jurídicas que devemos nos voltar. E é para essas duas áreas do conhecimento, aliás, que se volta Boaventura Santos, observando que se trata de um conceito aplicável, e 6
Sobre o assunto, ver Jean Carbonnier (1979), principalmente páginas 213 a 224.
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já aplicado, às mais variadas situações, das quais algumas se tornaram clássicas. A mais conhecida é a situação do colonialismo do século XIX, na qual havia necessariamente a coexistência, num mesmo espaço arbitrariamente unificado como colônia, do direito do estado colonizador e dos direitos tradicionais. Além do contexto colonial clássico, três outras situações de pluralismo
jurídico
têm
sido
geralmente
identificadas
pela
literatura
socioantropológica. Tal é a situação dos países com tradições culturais dominantes não europeias, que adotaram o direito europeu como instrumento de modernização. É o caso, entre outros, da Turquia, Tailândia, etc. Nesses casos, a situação de pluralismo jurídico resultou do fato de o direito tradicional não ter sido eliminado no plano sociológico pelo novo direito oficial, continuando a ser utilizado por amplos setores da população. Uma segunda situação tem lugar quando, em virtude de uma revolução, o direito tradicional entra em conflito com a nova legalidade, sem, no entanto, deixar de vigorar, em termos sociológicos, durante muito tempo. O caso mais conhecido é o das Repúblicas da Ásia Central, de tradição jurídica islâmica, no seio da URSS depois da revolução soviética. Por último, Boaventura Santos considera os casos em que populações autóctones, “nativas” ou “indígenas”, quando não totalmente exterminadas no curso da expansão marítima europeia, foram submetidas ao direito do conquistador com a permissão, expressa ou implícita, de em certos domínios continuarem a seguir o seu direito tradicional. É o caso das populações índias dos países da América do Norte e da América Latina, e dos povos autóctones da Nova Zelândia e Austrália (Santos, 1988: passim). O mesmo Boaventura Santos faz uma observação que me parece interessante reter: “Todos esses casos de pluralismo jurídico [...] constituem situações socialmente consolidadas e de longa duração [...]. Têm lugar em sociedades que, por isso, têm sido designadas ‘heterogêneas’”. Mas é ele próprio quem, em seguida, sugere
... ampliar o conceito de pluralismo jurídico, de modo a cobrir situações susceptíveis de ocorrer em sociedades cuja homogeneidade é sempre precária porque definida em termos classistas; isto é, nas sociedades capitalistas. Nestas sociedades, a ‘homogeneidade’ é, em cada momento histórico, o produto concreto das lutas de classes e esconde, por isso, contradições
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[...]. Essas contradições podem assumir diferentes expressões jurídicas [...]. Uma dessas expressões [...] é precisamente a situação de pluralismo jurídico e tem lugar sempre que as contradições se condensam na criação de espaços sociais, mais ou menos segregados, no seio dos quais se geram litígios ou disputas processados com base em recursos normativos e institucionais internos.
Tal é, para Boaventura Santos, o caso de “Pasárgada”. Mas, como ele próprio reconhece, tais casos, “em geral, tendem a configurar situações de menor consolidação (e por vezes mais curta duração) quando confrontadas com as que compõem os contextos de pluralismo jurídico anteriormente mencionados”. Ora, uma pergunta que merece ser colocada é: essas “situações de menor consolidação” – às vezes de “curta duração” –, até que ponto será mesmo válido caracterizá-las como casos de pluralismo jurídico? Algumas dúvidas ocorrem. Ao realçarmos, por exemplo, as situações históricas a partir das quais o conceito emerge, não estaremos, ipso facto, realçando também certa impropriedade em aplicá-lo ao contexto da realidade brasileira, mas também de boa parte da realidade latino-americana dos nossos dias? 7 Ou seja: na medida em que os fenômenos jurídicos plurais emergentes nessa realidade configuram enclaves cercados por uma ordem dominante e seus valores, não estariam eles devidamente “contaminados” por esses mesmos valores? Nesse caso, não faltaria a eles a originalidade cultural que está na base dos fenômenos de pluralismo jurídico na sua feição clássica? Essas interrogações ficam melhor esclarecidas quando comparamos as situações clássicas de pluralismo jurídico com as situações emergentes. Ora, seja no caso do colonialismo do século XIX, da adoção do direito europeu como instrumento de modernização, das situações revolucionárias nas estepes asiáticas, ou da sobrevivência de culturas “indígenas” à expansão marítima europeia do século XVI, as situações clássicas de pluralismo jurídico opõem, por assim dizer, duas ordens estranhas uma à outra, cada qual dotada de uma lógica e valores originais. Tal não é o caso, evidentemente, de fenômenos como o de “Pasárgada”, originário não de uma situação anterior à implantação da ordem industrial capitalista moderna, mas, ao contrário, de mecanismos postos em 7
Para uma dúvida semelhante à minha, remeto ao texto de Marcelo Neves, para quem essa aplicação “parece um grave error de valoración” (1994:73).
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marcha por essa mesma ordem – da qual “Pasárgada”, aliás, não seria senão um subproduto... A hipótese da “contaminação” pela ideologia dominante que afetaria esses fenômenos jurídicos plurais 8 é confirmada por ninguém menos do que o próprio Boaventura Santos, o qual, a respeito da ordem jurídica de “Pasárgada”, diz:
[...] as normas que regem a propriedade no direito do asfalto podem ser seletivamente incorporadas no direito de Pasárgada e aplicadas na comunidade. Deste modo não surpreende, por exemplo, que o princípio da propriedade privada (e as conseqüências legais dela decorrentes) seja, em geral, acatado no direito de Pasárgada do mesmo modo que o é no direito estatal brasileiro (Santos: 1988:14).
A rigor, em termos de América Latina, o conceito de pluralismo jurídico, pelo menos na sua feição clássica, recobriria apenas aquelas situações em que os direitos indígenas continuaram sobrevivendo após a implantação da ordem capitalista 9. Mesmo aí, entretanto, é preciso certa cautela, pois a partir do momento em que o contato se estabelece, é preciso considerar que as comunidades indígenas, como partes mais fracas nessa troca desigual, dificilmente mantêm seus valores originais ao abrigo da sociedade capitalista envolvente. Em países como o Brasil, por exemplo, em que o extermínio dos índios ou sua “assimilação” (salvo remanescentes na área amazônica) se deu de forma quase que total, a visão do pluralismo jurídico clássico não se aplica sem grandes dificuldades, pois as comunidades indígenas sobreviventes não estão suficientemente “lejanas” do cerco capitalista para manterem seus valores originais. No Brasil, os índios passaram, e passam, ainda, por aquilo que um autor chama de “acampesinamiento” (Almeida, 1991:112) – ou seja, a sua redução à
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Essa percepção também é partilhada por Antonio Azuela que, refletindo sobre a sociologia jurídica frente ao fenômeno da urbanização na América Latina e sobre as várias “gramáticas culturales” que as comunidades segregadas podem gerar, observa que “... en los barrios populares de las ciudades da América Latina, esa gramática no puede mantenerse al margen de la lógica del orden jurídico estatal.” E completa: “No es extraño, entonces, que muchos elementos del orden jurídico estatal se introduzcan al conjunto de representaciones vigentes a nivel local (o sea a la gramática cultural) y, de ese modo, pasen a formar parte del marco normativo que orienta la acción” (Azuela, s/d: 22). 9 Azuela, na mesma medida em que considera pouco provável a existência de tais fenômenos nos aglomerados urbanos, admite a possibilidade de que “... en las comunidades indígenas lejanas e incomunicadas de los centros urbanos sea más fácil que una cultura tradicional se mantenga y reproduzca” (ibidem).
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condição de camponeses pobres, cujas raízes culturais vão paulatinamente se reduzindo a episódios residuais na sua dura luta pela sobrevivência. Entendamo-nos bem: não se trata, com essas observações, de negar que exista – ou, mais exatamente, que tenha existido –, em “Pasárgada”, um fenômeno de pluralismo jurídico, entendido este como uma forma não estatal de resolução de conflitos. Também não se trata de recusar a explicação marxista para a existência desse direito, ocasionado basicamente pela segregação a que a estrutura social capitalista condena grupos sociais inteiros. O questionamento a ser feito diz respeito a certas leituras desses fenômenos, enviesadas pela “perspectiva crítica” típica da época, nas quais eles aparecem como dotados de um potencial anticapitalista e emancipatório 10 que, empiricamente falando, dificilmente apresentam. Ora, a partir da extraordinária recepção do trabalho de Boaventura Santos pela “perspectiva crítica” então em evidência, instala-se nos meios críticos brasileiros uma verdadeira onda pluralista em busca de ordens jurídicas existentes em favelas e nos bairros miseráveis das periferias da cidade, supostamente dotadas de uma maior legitimidade por sua origem comunitária. Miguel Pressburger, principal teórico do Direito Insurgente, anuncia: Os deserdados da sociedade, os que foram lançados na periferia ou jamais permitidos a ingressar na modernidade modelada pelo sistema, construíram e desenvolvem culturas paralelas, para eles revestidas de todas as prerrogativas legais (1987-1988:5).
E Daniel Rech, do mesmo movimento, dá o tom:
Sin embargo, las comunidades urbanas e rurales al margen del Estado de Derecho, han creado en su interior normas de conducta que tienen vigencia y eficacia, tal como el derecho estatal normatizado. Esas reglas de conducta, verdaderas normas consensuales ya que non están escritas, han demostrado ser adecuadas y eficientes, llevando mejor cuenta de las relaciones sociales vigentes (Rech, 1990:4).
Uma das grandes questões que essas reflexões levantam diz respeito ao
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Como observa Fernando Rojas Hurtado, “... los nuevos servicios legales latinoamericanos y los abogados críticos ordinariamente asumen que los grupos explotados, o de cualquier manera discriminados, guardan en sí mismos el potencial para un orden social no explotador” (Hurtado, 1989:51).
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critério de legitimidade que os seus autores aparentemente elegem, qual seja o da maior eficiência e adequação das práticas jurídicas plurais às relações sociais vigentes no seio das comunidades populares. Trata-se, de certa forma – e mesmo que a partir de um registro de esquerda –, de uma atualização da antiga e conservadora perspectiva sociologista sobre o direito (que engloba movimentos doutrinários como a Escola Histórica de Savigny, o Direito Livre de Kantorowicz, o Direito Vivo de Ehrlich etc.), a qual, em resumo, se caracteriza por situar “nas profundezas da vida social a única fonte de direito” (Carbonnier, 1979: 28). É preciso aqui lembrar que a perspectiva sociologista já recebeu inúmeras críticas 11, as quais, para não alongar o debate, podem ser resumidas na observação, perpassada de bom senso, de que a visão sociologista corre o risco de, em vez de promover o “verdadeiro” direito, legitimar de fato a injustiça. Pode ser o caso. Esses direitos locais, em muitas de suas manifestações, longe de significarem uma praxis libertadora, cristalizam ao contrário práticas de dominação tão velhas quanto o mundo 12. Um bom exemplo disso chega até nós através do próprio Miguel Pressburger, o qual, procurando o “direito insurgente” numa favela do Rio de Janeiro, deixa falar um trabalhador: [...] allá donde nosotros vivimos [...], existen también reglas del vivir bien, de la convivencia, que son nuestras leyes, si no, sería cada uno por sí y Dios por nadie. [...] ? Quiere ver solo una? Puede hasta parecer violento, pero hace parte de la vida de las personas. El marido que coje a la mujer con outro, puede llenarla de golpes y nadie se mete (Pressburger, 1989: 98).
Em resumo, as provas empíricas são falhas em demonstrar que essas formas populares e comunitárias de justiça portam consigo princípios e valores mais libertadores do que aqueles existentes no direito oficial. Da mesma forma que são também inexistentes as evidências de que essas comunidades marginalizadas sejam portadoras de valores anticapitalistas. Como já ressaltei a propósito da “contaminação” a que esses fenômenos estariam submetidos, é mais 11
Ver, a propósito, Elías Días (1974:156). Para uma visão crítica dessas posições, remeto aos comentários de Cláudio Souto, ao lembrar que os doutrinadores desses fenômenos jurídicos plurais têm rejeitado a “legislação estatal em nome de uma justiça que se define por uma maioria grupal”, mas que, assim fazendo, tornam “o direito alternativo usual prisioneiro de uma perspectiva tão formal quanto a estatista” (Souto, 1997:98). 12
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do que plausível a hipótese de que comunidades não anteriores ao capitalismo, mas produzidas no seu interior, dificilmente apresentem um perfil coletivista de acordo com a visão frequentemente idealizada presente na literatura pluralista. É o caso de aglomerados urbanos como “invasões” e “favelas” – que, na verdade, não são senão “invasões” consolidadas –, frutos de um agir conjunto que responde mais a uma necessidade ditada pela carência do que a um projeto político conscientemente coletivo. Vejamos, sobre isso, o que dizem alguns pesquisadores que, desde o início dos anos 80, debruçaram-se sobre o fenômeno das invasões numa das metrópoles brasileiras onde elas mais ocorrem: a cidade do Recife, no Nordeste do Brasil. A ação coletiva, certo, é de regra. Ela é, aliás, a condição sine qua non para que o movimento tenha alguma chance de êxito. Como observa Joaquim Falcão num trabalho pioneiro que se tornou uma referência para os que se seguiram,
... os invasores [... ] sabiam que o sucesso na defesa de seus direitos seria proporcional à capacidade de permanecerem unidos. A força do eventual direito repousava no caráter coletivo das reivindicações, e unitário das soluções. (Falcão, 1984:88).
Mas cessa aí a pretensão de fundar um direito radicalmente diferente:“... a pretensão maior dos que pautam suas condutas por essas manifestações normativas não-estatais é justamente transformá-las posteriormente em direito estatal” (idem: 83). E prossegue: “Os invasores querem ser proprietários. Justificam a invasão [...] porque sobre o direito de usar e dispor segundo a livre vontade do proprietário, deve prevalecer o direito de moradia de todos” (idem: 95). Mas, uma vez o miserável barraco edificado,
[...] a pretensão de todo invasor não é permanecer com um direito ‘informal’ ou paralegal. Sua pretensão é de numa segunda etapa fazer com que a posse mantida e reconhecida seja ”legalizada” pelo direito estatal (idem: 98). 13
13
No mesmo diapasão, adverte Azuela: “Al menos en México, es excepcional que quienes controlan el aceso al suelo se presenten ante los demás enarbolando ‘su’ propria legalidad como substituto de la legalidad estatal; al contrario, tratan de presentarse a sí mismos como titulares de un derecho, o como capaces de ‘legalizar’ la situación en un futuro no muy lejano” (Azuela, s/d: 21).
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O acesso à propriedade, em boa e devida forma, é a grande pretensão. Um bom exemplo disso foi o descontentamento dos invasores com um instrumento jurídico que o poder público, ainda em Recife, elaborou para regularizar a posse por eles arduamente obtida: a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU). Como explica Salvador Soler Lostão, antigo advogado da Comissão Justiça e Paz local, “... a CDRU permite ao poder público ceder [...] terra para uso específico fixado em contrato. A CDRU se resolve, isto é, se extingue, caso ocorra desvio de finalidade no seu uso” (Lostão, 1991:106). O descontentamento decorreu do fato de que a Concessão, apesar de assegurar a posse, não transmitia a propriedade. A sua adoção pelo poder público, aliás, foi inspirada pela melhor das intenções: impedir a “expulsão branca” dos próprios invasores, os quais, em decorrência da fragilidade econômica que lhes é peculiar, dificilmente têm condições de resistir à tentação de vender o imóvel desde que a ocasião se apresente ou a necessidade assim obrigue. Por isso é que Lostão, com longos anos de experiência como advogado dos movimentos populares, diz com certa melancolia:
No movimento popular não parece haver um projeto socialista ou capitalista. Os movimentos populares, como um todo, têm projetos de curto prazo. Na melhoria da qualidade de vida encontram o seu denominador comum. (Lostão, 1991:49).
Da mesma forma, para ele, as associações de moradores não parecem prestes a se transformar em sovietes:
Para os moradores de terras ocupadas irregularmente, a maior das vitórias é a posse da terra. É sobre esta expectativa que os conselhos de moradores se afirmam perante a população dos bairros (idem: 101).
Voltamos, assim, à nossa hipótese sobre o caráter desses fenômenos jurídicos plurais: produzidos no interior do sistema capitalista, e, portanto, submetidos à ideologia aí dominante, eles não configurariam a afirmação de um novo direito, assentado em bases coletivistas, mas, ao contrário, a reivindicação
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para integrar-se ao sistema dominante 14. O que eles pretendem não é viver uma cultura, valores e normas autóctones, sem a interferência do Estado, mas que este, através das mais diversas políticas públicas – inclusive uma política de regularização de suas “invasões” – intervenha a seu favor 15. Essa é também a opinião de Eliane Junqueira que, voltando vinte anos depois à mesma favela que Boaventura Santos tinha chamado de “Pasárgada”, e constatando a substituição da associação de moradores pelo crime organizado como “locus de resolução de conflitos”, considera que
[...] o direito só é produzido de forma alternativa, paralela, em razão do profundo vazio de poder derivado da ausência de um Estado regulamentador que [...] nunca se preocupou em se fazer presente nas áreas socialmente marginalizadas, a não ser através da polícia, ou seja, de seu braço repressor (Junqueira, 2001:29).
E conclui:
Neste sentido, o alternativo detectado por Boaventura Santos em relação às favelas cariocas apenas revela um esforço desesperado de criação de alguma forma de juridicidade para gerir relações sociais de uma ”localidade” abandonada à própria sorte (ibidem) 16.
O mais curioso é que essa perspectiva do pluralismo como um subproduto da ausência do poder público – noutros termos, não como afirmação de uma 14
Escrevendo mais recentemente do que os autores aqui citados, Lédio Rosa de Andrade é ainda mais enfático a esse respeito: “O Movimento dos Sem-Terra, o mais citado pelos pluralistas, não dá a garantia da construção de um Direito solidário e social; [...] Recentes pesquisas feitas pelo jornal ‘Folha de São Paulo’ demonstram que a luta é por propriedade privada, para poderem entrar na esfera do Direito instituído. Uma vez conseguido o título da terra, passa-se de posseiro invasor a proprietário defensor da propriedade. Portanto, discutível, também em nível teórico, todos os pressupostos de solidariedade, de justiça, de bem-comum e de ética dados, gratuitamente, a essas normas paralelas” (Andrade, 1998: 58-9). 15 Villegas e Rodríguez chamam a atenção para o fato de que “... la intervención del Estado en la sociedad no es la única causa de buena parte de la exclusión y la jierarquización sociales. Esto también sucede cuando el Estado no interviene. Esta segunda perspectiva es con frecuencia subestimada en la literatura sociojurídica latinoamericana debido a la prevalencia de una concepción reificada de la sociedad civil como espacio en donde la dominación está excluida” (2001:27). 16 Ver, no mesmo sentido, Marcelo Neves, para quem “el hecho indiscutible de que en la modernidad periférica latinoamericana muchas ‘unidades sociales’ disponen difusamente de diferentes códigos jurídicos, no implica, en rigor, alternativas plurales en relación con el funcionamiento legal del derecho estatal; antes bien, mecanismos inestables y difusos de reacción a la ausencia de legalidad” (Neves, 1994:83).
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positividade, mas como consequência de uma negatividade –, já se encontra presente em ninguém menos do que o próprio Boaventura Santos, o qual observa, numa passagem menos lida do que talvez deveria, que “a intervenção da associação de moradores nesse domínio [a resolução de conflitos] visa constituir como que um ersatz da proteção jurídica oficial de que carecem”... (Santos, 1988:14). Feitas essas anotações a respeito do Pluralismo Jurídico, voltemos agora nossa atenção para o problema do Direito Alternativo. Como já foi feito em relação ao tema anterior, irei, também aqui, em vez de estabelecer uma definição inicial, percorrer os caminhos que levam do aparecimento do conceito à sua situação atual.
3. O Direito Alternativo – Algumas Confusões Conceituais Como já foi assinalado, essa é uma designação que surge no início dos anos 90. Para ser mais preciso, entretanto, digamos que é a partir dessa época que ela se torna conhecida, pois o conceito, na verdade, já tinha sido formulado – e mesmo teorizado – antes dessa data. Até onde estou informado, essa expressão surge pela primeira vez num livro publicado em 1984 pelo jurista crítico Carlos Artur Paulon, Direito Alternativo do Trabalho, o qual abre com uma “Nota” que começa dizendo o seguinte: “Aqui estão compilados alguns trabalhos que têm em comum a tentativa de investigação crítica da lei trabalhista brasileira” (Paulon, 1984: 13) – grifo meu; e termina com uma conclamação:
Por minha vontade, a publicação serviria para advogados, juízes e estudantes. Não como lições de direito, mas como uma alternativa de uso deste direito ainda tão distante da verdade democrática (ibidem) – grifos também meus.
Notam-se aqui duas referências importantes: a primeira, à “perspectiva crítica” então em evidência; a segunda, ainda que com os termos trocados e sem referência explícita, ao movimento do “uso alternativo do direito”, de origem italiana, sobre o qual adiante falaremos. A referência a esse movimento volta a ser feita adiante, quando Paulon propugna a utilização das “contradições do ordenamento jurídico estatal” a serviço dos trabalhadores e, já aí utilizando a expressão com todas as letras, diz: Pluralismo Jurídico e Direito Alternativo no Brasil
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Uma legislação trabalhista jamais toca na questão do modo de produção, jamais avança no sentido de democratizar a propriedade da empresa, ou seja, jamais se constitui em instrumento de substituição da propriedade privada pela propriedade social. Todavia, o uso alternativo do direito do trabalho, mesmo que instituído com o propósito de manutenção da ideologia capitalista, acaba por, pelo menos, demonstrar até onde a ordem jurídica burguesa poderá absorver as conquistas elevadas à categoria de lei (idem: 19-20) – grifos no original.
Como se vê, o autor não parece muito entusiasmado com a perspectiva que adota, pois está consciente de que não é através dela que se conseguirá a “substituição da propriedade privada pela propriedade social”, mas, ainda assim, recomenda o seu uso:
Quando é possível aos advogados, juízes e demais trabalhadores em Direito exercitarem suas atividades com uma perspectiva de engajamento na luta pela libertação do proletariado, esses profissionais devem fazê-lo no sentido de, mesmo dentro das instituições das classes dominantes, pressionarem esta ordem jurídica que expressa a dominação. Pressionar com novas interpretações, criando as alternativas de um mesmo direito legislado e gerando jurisprudência e outros instrumentos normativos que tenham como objetivo uma verdadeira justiça social (idem: 20) – grifos no original.
Como se vê, a perspectiva mais clássica do “uso alternativo do direito” aí está. As referências a ele, entretanto, são apenas alusivas. A única indicação bibliográfica dessa filiação aparece, de forma indireta, pela referência a um trabalho de Roberto Lyra Filho – o principal teórico e animador da Nova Escola Jurídica Brasileira, como vimos –, Direito do Trabalho e Direito do Capital, de 1982, no qual esse autor faz referência explícita à corrente alternativista italiana liderada por Pietro Barcellona, nos seguintes termos:
Na hipocrisia de fazer o contrário do que dizem (isto é, dizer que vão realizar a Justiça, nas normas, enquanto resguardam seus privilégios), os dominadores se contradizem, deixam ‘buracos’ nas suas leis, costumes e doutrina, por onde os mais hábeis juristas de vanguarda podem enfiar a alavanca do progresso. A isto chamariam Barcellona e seu grupo de “uso alternativo do direito” (Lyra Filho, 1982b: 40).
Apesar dessa filiação, Paulon deu à sua perspectiva uma designação
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própria: Direito Alternativo, ainda que certamente pensando em termos de um uso alternativo do direito. E haveria alguma diferença? A meu ver, sim, na medida em que a expressão escolhida por Paulon, pelo menos atentando-se ao sentido literal da palavra, remeteria não ao direito estatal – e é disso que trata o uso alternativo do direito –, mas, para usar uma expressão consagrada no título da prestigiosa revista do ILSA da Colômbia, a “otro derecho”... – ou seja, um direito alternativo ao estatal! Essa é a perspectiva que, anos depois, vai ser adotada por Jesús Antonio Muñoz Gómez num texto publicado logo no primeiro número da revista El Otro Derecho, no qual o autor tece algumas considerações a respeito do movimento de origem italiana e sobre a impropriedade que ele considera existir em sua aplicação no contexto da realidade latino-americana. Muñoz Gomez começa por fazer uma revisão dos princípios hermenêuticos do positivismo, com seus postulados de coerência e completude do ordenamento jurídico, a ele contrapondo a visão, adotada pelo movimento do Uso Alternativo do Direito, que:
[...] ve el ordenamiento jurídico como algo incompleto, abierto, con verdaderas lagunas, en donde se reflejan y reproducen las contradicciones que se presentan en el ámbito de lo económico, lo político y lo social. [...] Tales contradicciones, lagunas, fisuras, grietas inherentes al sistema jurídico son justamente las características que hacen viable un uso alternativo del derecho. Seria entonces posible tomar las normas más progresistas del sistema jurídico y con base en ellas sustentar una interpretación y aplicación del derecho en beneficio de los sectores sociales más necesitados. Esta nueva forma de interpretar y aplicar el derecho tendría la misma legitimidad que la tradicional, puesto que se levantaría también sobre una base normativa (Muñoz Gómez, 1988:48-49).
Como se sabe, o Uso Alternativo do Direito surgiu entre fins dos anos 60 e inícios dos anos 70 na Itália, através do movimento “Magistratura Democrática”. Os integrantes dessa corrente estribavam-se nos dispositivos da vigente Constituição italiana que, proclamada em 1948 ao fim da segunda guerra mundial, num contexto político marcado pela forte presença do movimento proletário industrial reconstituído após a queda do fascismo (Bergalli, 1992:25), abrigava preocupações sociais bastante próximas de um programa socialista. Muñoz Gómez lembra essa circunstância, transcrevendo o artigo 3° da referida
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Constituição, que diz:
Es misión de la República remover los obstáculos de orden económico y social que, limitando de hecho la libertad y la igualdad de los ciudadanos, impidan el pleno desarrollo de la persona humana y la efectiva participación de todos los trabajadores en la organización política, económica y social del país (in 1988:49).
A partir daí, tratava-se de estabelecer uma nova direção na interpretação da lei, fazendo com o que a legislação ordinária, tradicionalmente presa aos cânones liberais da codificação civilista típica do século XIX, fosse doravante aplicada à luz dos novos princípios sociais consagrados na Constituição de 1948, levando o direito, alternativamente, a operar em benefício dos setores sociais mais necessitados. Ora, para Muñoz Gómez, esse uso alternativo do direito não seria possível na Colômbia, pois, segundo ele, escrevendo em 1988, “no tenemos una norma como el artículo 3° de la Constitución italiana, que le permita al jurista una práctica judicial alternativa” (idem: 54). E, adiante, generalizando talvez um tanto apressadamente, dizia:
En América Latina, en los últimos años há surgido una concepción diferente de la europea del uso alternativo del derecho. Creemos que la versión que comienza a desarrollarse en América Latina está más sobre la base de un derecho alternativo que de un uso alternativo del derecho. Además seria conveniente darle esa denominación – derecho alternativo – para distinguirla de la europea, ya que ciertamente tienen sus puntos de diferencia (idem: 58).
O ponto de diferença fundamental, anunciado pela própria expressão, seria o fato de que, para usar os próprios termos do autor:
Las dos corrientes parten de prácticas diferentes: la una de la práctica judicial y la outra de las luchas de la comunidad por sus derechos [...] En la concepción latinoamericana no se piensa en la reivindicación del juez como verdadero protagonista de la justicia, a quien se le mira como un personaje distante, sino en la comunidad. Se pretende que sea la comunidad misma, los usuarios directos del derecho, quienes adopten mecanismos para la defensa de sus proprios intereses, estén o no reconocidos y protegidos adecuadamente por el derecho (idem: 59).
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Em resumo, no caso do Uso Alternativo do Direito de procedência europeia, o direito de que se fala é o direito estatal, enquanto, no caso do Direito Alternativo surgido na América Latina, tratar-se-ia de um direito novo gestado pelas próprias comunidades cujos interesses não seriam acobertados pelo sistema jurídico. Como se vê, é o Pluralismo Jurídico de Boaventura Santos. Entretanto, como vimos, quando a designação aparece pela primeira vez no Brasil, no trabalho de Carlos Artur Paulon, os seus destinatários seriam “advogados, juízes e demais trabalhadores em Direito”, conclamados a criar uma “jurisprudência e outros instrumentos normativos que tenham como objetivo uma verdadeira justiça social”. Ou seja: algo mais próximo da corrente europeia do que da corrente latino-americana. O livro de Paulon é de 1984; e o artigo de Muñoz Gómez, de 1988. No ano seguinte, em 1989, o juiz brasileiro Amilton Bueno de Carvalho 17, do estado do Rio Grande do Sul, começa um curso na Escola da Magistratura do seu estado com o nome, justamente, de Direito Alternativo, inspirado, segundo se recorda 18, pelo título do livro de Carlos Artur Paulon. Mas é de se imaginar que o seu curso, até pelo fato de ser dado numa escola da magistratura, dirigido a juízes, fosse, se pensarmos na diferença estabelecida por Muñoz Gómez, mais propriamente falando, de Uso Alternativo do Direito 19. E isso era possível porque, diferentemente do que disse o autor colombiano a respeito da impropriedade de tal designação no seu país, a situação do ordenamento jurídico brasileiro em 1989 apresentava – e apresenta ainda – uma situação mais próxima da situação do ordenamento italiano dos anos 70 do que da situação colombiana tal qual referida por Muñoz Gómez, na medida em que a Constituição brasileira de 1988 – promulgada, portanto, um pouco antes do curso de Carvalho –, entre outros
17
Um nome que viria a se tornar, ao lado de Edmundo Lima de Arruda Júnior, professor da Universidade de Santa Catarina, a principal referência do movimento no Brasil. 18 Em correspondência dirigida ao autor deste trabalho, em resposta a uma consulta a respeito da origem do termo. 19 No mesmo sentido, Oscar Correas, que, refletindo sobre a questão de saber se esses fenômenos protagonizados por juízes deveriam ser classificados de Direito Alternativo, opina no sentido negativo, na medida em que “... la conducta de esos jueces no está prohibida por el orden hegemónico”, e que “la ‘resemantización’ y producción de sentencias sobre una base tal [...] está dentro de sus facultades” (Correas, 1994:73).
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dispositivos igualmente progressistas 20, estabelecia logo no seu artigo 3° o seguinte princípio:
Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – Construir uma sociedade livre, justa e solidária; [...] III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais [...].
Dentro do mesmo espírito, o inciso XXIII do seu artigo 5° dizia: “A propriedade atenderá a sua função social.” Mas, apropriadamente aplicada ou não, a designação escolhida pelo juiz Amilton Bueno de Carvalho foi a que ficou. E a sua popularização no Brasil se deu a partir de um episódio mediático envolvendo o grupo de juízes alternativistas por ele liderado. Em 25 de outubro de 1990, um grande jornal do estado de S. Paulo, o Jornal da Tarde, publicou uma reportagem sobre o grupo com um título provocador: “Juízes Colocam Direito Acima da Lei” 21. Nela, o jornalista autor da matéria, aparentemente aproveitando o nome do curso dado na Escola da Magistratura por Carvalho, chamou o movimento de Direito Alternativo. A reportagem teve grande repercussão, dentro e fora do Judiciário, gerando grandes discussões e fortes acusações por parte dos juízes mais tradicionais. Foi na sequência desse “tiroteio” que o grupo de juízes alternativistas, juntamente com Edmundo Lima de Arruda Júnior, professor na Universidade de Santa Catarina, resolveram, “numa espécie de resposta” (Andrade: 1998:20), organizar o I Encontro Internacional de Direito Alternativo para o ano seguinte. O resultado, em termos de repercussão e participação, foi muito além do esperado 22, e o movimento tornou-se conhecido em todo o Brasil – e mesmo além fronteiras –, passando, daí em diante, a tornar-se praticamente sinônimo de toda a “perspectiva crítica” que lhe antecedeu no país. Com o passar 20
Mesmo bem antes disso, aliás, o ordenamento jurídico brasileiro já tinha consagrado na sua legislação ordinária princípios dotados desse mesmo teor “social”. Em 1942, por exemplo, foi editada uma Lei de Introdução ao Código Civil cujo artigo 5° dizia: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Não por acaso, esse é um dos dispositivos mais citados pelos doutrinadores do Direito Alternativo. 21 Informações colhidas em Andrade (1998). 22 Os organizadores previam a presença de umas 400 pessoas; mas as inscrições, ao chegarem ao número surpreendente de 1.200 pessoas, foram suspensas por falta de espaço físico para acomodar mais gente... (Andrade: 1998:21)
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do tempo, como vimos, o “início eufórico” do movimento perdeu velocidade, com o que voltamos ao nosso ponto de partida. Retomando o balanço de Lédio Rosa de Andrade, ele o conclui anunciando que o Direito Alternativo estaria diante de duas perspectivas: ou se firmar como uma corrente crítica do Direito, “consolidando uma práxis jurídica alternativa e o início de uma nova teoria do Direito”, ou fracassar e ficar “na história como uma moda, uma revolta momentânea que veio e passou” (1998:26). Divirjo dele, que acredita na primeira hipótese, mas também não creio simplesmente na segunda. Como se costuma dizer, “nem tanto ao mar, nem tanto a terra”. Entre as duas posições extremas – a glória de um lado, a efemeridade de outro –, considero mais prudente investir numa terceira hipótese: a de que o Direito Alternativo está se tornando, pelas discussões que levantou e pela incorporação de muitas de suas preocupações à prática de vários operadores, um movimento renovador da nossa cultura jurídica, inclusive do Poder Judiciário, tradicionalmente preso a um dogmatismo abstrato indiferente às consequências sociais de suas decisões. Parece, é verdade, ter passado o tempo das escaramuças iniciais, época em que um jurista conservador, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, referia-se pela imprensa aos juízes que iniciaram o movimento do Direito Alternativo como uma “magistratura rebelde”, aduzindo que ela devia “ser processada” (ver Junqueira, 2001: 27, nota 26). Ao mesmo tempo, essa menor visibilidade mediática corre paralelamente a uma menos ruidosa – e talvez mais frutífera – penetração do movimento nos espaços docentes das faculdades de direito, e mesmo em espaços antes impensáveis como as escolas da magistratura 23, indicadores talvez de que estaria havendo uma espécie de “normalização” do movimento. E aqui poderíamos alargar esse juízo para sugerir que, para além do Direito Alternativo – englobando-o, na verdade –, estaríamos diante de uma normalização da própria “perspectiva crítica” do direito. Um bom exemplo disso seria a sua assimilação em certa medida pelos cursos jurídicos através da disciplina sociologia jurídica, um fenômeno que ocorre nesse momento. 23
O próprio autor deste texto, no ano de 2001, ministrou um curso de Direito Alternativo na Escola Superior da Magistratura de Pernambuco (um dos estados da federação brasileira) para mais de uma centena de juízes...
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Por força de uma Portaria do Ministério da Educação (n° 1.886/94) que passou a vigorar a partir de 1997, atualmente no Brasil a sociologia jurídica é matéria obrigatória no currículo dos cursos de direito. E não se trata de qualquer sociologia jurídica, mas, como evidenciam as discussões que antecederam a sua edição 24, de uma sociologia que pudesse “recuperar uma visão humanista, introduzir uma dimensão crítica” nos cursos (Junqueira, 2000:19) – grifei. E essa intenção, numa boa medida, é igualmente partilhada pelos professores da disciplina. Segundo dados de uma pesquisa feita junto aos mesmos, entre os objetivos da disciplina figura, majoritariamente, o de “desenvolver uma visão crítica” 25. E, ainda que o Direito Alternativo pouco apareça explicitamente nos programas dos professores, é de se notar que, malgrado tudo, aparece, e um dos seus principais animadores, o professor Edmundo Lima de Arruda Júnior, figura entre os dez autores mais referidos nas bibliografias adotadas pelos professores (Junqueira, idem: 42 e 44) 26. Não é pouca coisa. Mas, também, é certamente um tanto menos do que imaginavam alguns dos seus doutrinadores na ocasião do seu aparecimento, bastante influenciados pela visão de um Pluralismo Jurídico anunciador de uma nova sociedade livre, justa e igualitária, bem dentro do espírito da “perspectiva crítica” a que aludimos no começo. Juntemos as pontas dos dois fios que viemos desenrolando. Dissemos, em algum ponto atrás, que o Direito Alternativo seria uma espécie do gênero Pluralismo Jurídico. No caso, estamos falando de direito alternativo no sentido atribuído por Muñoz Gómez ao termo, isto é, aquele direito não oriundo do Estado, mas criado pelos grupos sociais desfavorecidos a partir dos seus interesses e necessidades. O “direito de Pasárgada” seria um bom exemplo disso. O “direito à moradia” que emerge das ações do Movimento dos “Sem-Terra”, também. No caso, o que os distingue de um Uso Alternativo do Direito seria o fato 24
De se observar também que a Comissão de Especialistas do Ministério da Educação para o ensino do direito, responsável pela edição da Portaria, era composta, entre outros, por José Geraldo de Souza Júnior, professor da Universidade de Brasília e um dos principais colaboradores e depois continuadores do trabalho de Roberto Lyra Filho, o fundador da Nova Escola Jurídica Brasileira. 25 Assinalado por 36,2% dos respondentes, esse foi o objetivo que mais recebeu adesões entre outros (Junqueira, 2000:48). 26 Aparece em sexto lugar, sintomaticamente ao lado de outro nome muito importante dentro da “perspectiva crítica” do direito no Brasil, o professor Roberto Aguiar, da Universidade de Brasília (Junqueira, idem:44).
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de que eles se desenrolam seja no âmbito interno a uma comunidade e na indiferença do direito estatal, como no caso do primeiro exemplo, seja infringindo disposições desse mesmo direito, como no caso do segundo exemplo, em que há uma infração aos dispositivos que regem a propriedade no Brasil. Em relação a esse último exemplo, todavia, vale lembrar que muitas vezes os conflitos que surgem dessas ocupações chegam ao Judiciário sob a forma de ações movidas pelo proprietário do terreno invadido demandando a expulsão dos invasores. De um modo geral, os juízes decidem pela desocupação. Em alguns casos, todavia – cujo volume ainda está a demandar uma pesquisa específica –, há juízes que, influenciados pelo movimento alternativista, ou simplesmente sensíveis à questão social embutida nos conflitos, valem-se dos dispositivos constitucionais já mencionados a respeito da construção de uma sociedade justa, casando-os com aquele outro da Lei de Introdução ao Código Civil que manda o juiz aplicar a lei atentando aos seus “fins sociais” (ver nota n° 21), e negam o pedido de expulsão dos invasores! Nesse caso, o Direito Alternativo transformase em Uso Alternativo do Direito... Foi a partir da existência dessas várias situações e da imprecisão conceitual delas resultantes que o próprio Amilton Bueno de Carvalho, já em 1993, num texto ampliado em 1997, sugeriu a adoção de uma tipologia que esclarecesse e, ao mesmo tempo, abrangesse todas as vertentes do que ele passa a chamar de “Direito Alternativo lato sensu”, que seria uma espécie de gênero, abrigando as seguintes espécies: a) “Uso Alternativo de Direito” que, como vimos, seria uma “atuação dentro do sistema positivado”, mediante uma reinterpretação dos seus dispositivos; b) “Positividade Combativa” 27, que seria a “efetiva concretização [de] conquistas democráticas que já foram erigidas à condição de lei”, mas que muitas vezes permanecem sem aplicação; c) e, finalmente, o “Direito Alternativo em sentido estrito”, que, esse sim, seria aquilo que Muñoz Gómez chamou de direito alternativo tout court, e que, como diz Amilton Bueno de Carvalho, confirmando nossa hipótese a respeito de sua filiação, “emerge do pluralismo jurídico”, mas que, como conclui o mesmo autor, 27
Conceito que, na versão original de 1993, comparecia com a designação de “Positivismo de Combate”, abandonada pelo autor em virtude dos pressupostos da neutralidade e da imparcialidade implicados no termo “Positivismo” (Carvalho: 1997:134).
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“merece efetivação” (Carvalho, 1997: passim). Gostaria de fazer duas observações a respeito dessa tipologia e das realidades que ela recobre. A primeira é a de que, no final das contas, o Direito Alternativo stricto sensu termina sendo um fenômeno residual frente às outras manifestações abrigadas pela designação genérica de Direito Alternativo. E, last but not least, no que diz respeito às suas manifestações colidentes com o direito estatal, mas que têm como “horizonte a utopia da vida digna em abundância para todos”– o caso das ocupações de terras, por exemplo –, ele aparece, no dizer do seu principal animador, como tendo a vocação para tornar-se... direito estatal! 28 Isso reforça, a meu ver, a hipótese a respeito da “normalização” do movimento alternativista no Brasil. Um bom exemplo disso, aliás, é fornecido pelo próprio concurso de ensaios promovido pela revista El Otro Derecho sobre Pluralismo Jurídico (ver nota n° 4), vencido por dois brasileiros que fizeram um trabalho sobre conflitos nas possessões agrárias na Amazônia. Trata-se de um tipo de conflito clássico nessas zonas de fronteira, opondo, de um lado, proprietários de largas extensões de terra em bases capitalistas e, de outro, posseiros que mantêm uma atividade extrativa nessa mesma terra em bases comunais, numa “forma colectiva de apropriación de los recursos” (Benatti e Maues, 1994: 17). Os conflitos são inevitáveis “de esas modalidades [de derecho] con el derecho estatal, caracterizando situaciones de pluralismo jurídico” (idem: 16). Entretanto, a tensão entre as duas modalidades jurídicas, no caso, resolveuse mediante a intervenção do próprio Estado, através da edição de um Decreto Federal (n° 98.987/90) estabelecendo “la creación de reservas extractivas”, ou seja, fixando em alguma medida direitos de coleta para os “seringueiros”. E comentam os autores: “En el caso analizado, la búsqueda de reconocimiento por el Estado condiciona aún más la eficacia del derecho alternativo” (idem: 29) – grifei.
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Essa mesma perspectiva parece ser a de Edmundo Lima de Arruda Júnior que, analogamente à tipologia proposta por Amilton Bueno de Carvalho, propõe três vertentes que guardam o mesmo sentido da proposta deste último: o uso alternativo do direito seria o que ele chama de “instituído relido”; a positividade combativa, o “instituído sonegado”; e o direito alternativo stricto sensu, o “instituinte negado” – mas, como indica a forma propositiva da palavra “instituinte”, com a vocação de tornar-se, um dia, instituído... (Arruda Junior, 1993:184-185).
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4. Conclusão Resumindo e concluindo essas notas – que ficam aqui mais como uma hipótese de trabalho do que como algo cabalmente demonstrado –, parece-me que hoje, no Brasil, as lutas sociais que se desenvolvem em torno da ideia de direito almejam mais a um reconhecimento e integração ao sistema jurídico 29 do que a uma “alternatividade” ou a um “pluralismo” que termina se revelando mais um subproduto da segregação e do abandono do que um projeto livremente acordado entre homens livres e autônomos. Na medida em que situações como a de “Pasárgada” ou das “invasões” são produzidas por mecanismos de exclusão – é o próprio Boaventura Santos, vale lembrar, que fala em “espaços segregados” – , não seria mais razoável ver nelas tentativas de superação dessa mesma exclusão? Uma analogia para clarear: igual ao que acontece nas lutas contra a discriminação racial em sociedades que afirmam teoricamente o valor igual de todos os seres humanos, essas situações não configurariam, de preferência, uma luta pela integração? Nos últimos anos, o próprio sistema jurídico brasileiro, como observei com alguns exemplos – não exaustivos, diga-se de passagem – extraídos da Constituição vigente, tem reconhecido e integrado, ao menos em nível normativo, e mesmo em nível jurisprudencial, vários princípios que inspiram essas e outras lutas coletivas a partir da noção de direitos. Num país como o Brasil, com uma forte tradição de autoritarismo e de desrespeito aos direitos dos mais fracos, não seria essa a verdadeira alternativa a conferir?
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Eliane Junqueira, com quem concordo, dirá que “... o desafio para a sociedade brasileira consiste não em criar espaços autônomos na órbita do privado, mas sim em introduzir-se na máquina estatal, formalizando e positivando suas demandas e seus interesses” (2001:24).
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