Política, Educação e Cultura organização de Alexandre Felipe

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Coleção Sociedade, Estado e Educação

POLÍTICA, EDUCAÇÃO E CULTURA

Programa de Pós-Graduação em Educação Mestrado em Educação - PPGE Pró-Reitoria de Pesquisa Pós-Graduação em Educação Universidade Estadual do Oeste do Paraná EDUNIOESTE CASCAVEL - PR 2008

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


© 2008, dos autores

Diagramação: Antonio da Silva Junior

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Foto da capa: Paulo Porto, © 1991 Catalogação: Marilene de Fátima Donadel - CRB 9/924

Política, Educação e Cultura/ organização de Alexandre Felipe Fiuza, Gilmar Henrique da Conceição. — Cascavel : Edunioeste, 2008. 214 p. — (Coleção Sociedade, Estado e Educação ; n. 1) Vários autores ISBN: 978-85-7644-175-5 1. Educação - Estudo e ensino (Pós-graduação) - Brasil 2. Pesquisa educacional 3. Universidades e faculdades - Brasil Pós-graduação I. Fiuza, Alexandre Felipe, Org. II. Conceição, Gilmar Henrique da, Org. CDD 20. ed. 378.1098162 370.78

Impressão e Acabamento Editora e Gráfica Universitária - Edunioeste Rua Universitária, 1619 - E-mail: editora@unioeste.br Fone (45) 3220-3085 - Fax (45) 3324-4590 CEP 85819-110 - Cascavel-PR - Caixa Postal 701

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COLEÇÃO SOCIEDADE, ESTADO E EDUCAÇÃO (NÚMERO 1)

Programa de Pós-Graduação em Educação Mestrado em Educação - PPGE Pró-Reitoria de Pesquisa Pós-Graduação em Educação Universidade Estadual do Oeste do Paraná

EDUNIOESTE CASCAVEL - PR 2008

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UNIVERSIDADE EST ADU AL DO OESTE DO P ARANÁ - UNIOESTE ESTADU ADUAL PARANÁ REITOR Alcibiades Luiz Orlando

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VICE-REITOR Benedito Martins Gomes PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO E PLANEJAMENTO Geysler Rogis Flor Bertolini PRÓ-REITOR DE GRADUAÇÃO Eurides Küster Macedo Júnior PRÓ-REITOR DE EXTENSÃO Wilson João Zonin PRÓ-REITORA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO Fabiana Scarparo Naufel CONSELHO EDITORIAL Alfredo Aparecido Batista Ana Alix Mendes de Almeida Oliveira Angelita Pereira Batista Antonio Donizeti da Cruz Clarice Aoki Osaku Eurides Kuster Macedo Júnior Fabiana Scarparo Naufel Fernando dos Santos Sampaio José Carlos dos Santos Lourdes Kaminski Alves Maria Erni Geich Miguel Ângelo Lazzaretti Mirna Fernanda Oliveira Neide Tiemi Murofuse Paulo Cezar Konzen Reinaldo Aparecido Bariccatti Renata Camacho Bezerra Rosana Katia Nazzari Silvio César Sampaio Udo Strassburg Wilson João Zonin Política, Educação e Cultura


No bojo do processo de verticalização acadêmica, implementada institucionalmente na UNIOESTE pelos diferentes Centros e, no âmbito de sua atuação, pelo Centro de Educação, Comunicação e Artes (CECA), com seus respectivos colegiados de cursos, desde 2000, especialmente, colocou, coletivamente, a necessidade de iniciarmos a elaboração do Projeto de Mestrado em Educação, para ser submetido à CAPES ainda que algumas debilidades se apresentassem claramente na ocasião, tais como as relativas a definição e articulação dos elementos constitutivos da proposta e as relativas à produção dos docentes. Não tínhamos a pretensão de que o projeto fosse recomendado pela CAPES, ao menos naquele momento. A idéia era exatamente mapearmos nossas fragilidades, e a partir daí focarmos todas as nossas energias com vistas à sua superação. Foi o que ocorreu. Muitos deram sua inestimável contribuição, de modo que não podemos ignorar o esforço mútuo, nem apagar fotografias. No histórico deste Programa não há marcozero propriamente dito. Foram anos cumulativos de agregação de forças e as debilidades constatadas por ocasião da primeira versão serviram de referência para sua superação exitosa em 2005. Em termos da implementação do Mestrado em Educação, um passo importante dado em 2002 foi a definição da área de concentração “Sociedade, Estado e Educação” e que, após ajustes necessários, se manteve na proposta aprovada pela CAPES em 2005. Agora, porém, de forma mais articulada com a linha de pesquisa “Educação, Políticas Sociais e Estado”, constitui um conjunto temático no qual as pesquisas e produções acadêmicas lhe dão sustentação orgânica, visto que congrega estudos orientados para a compreensão de diferentes dimensões da práxis educativa, a partir da análise dos fundamentos e/ou ações do Estado e da sociedade civil nos distintos campos das políticas sociais. Nessa direção podemos ressaltar duas iniciativas editoriais: a criação da Coleção Sociedade, Estado e Educação (aqui inaugurada) e a criação da revista Educere et Educare para publicação técnicocientífica objetivando a divulgação do resultado de estudos ou de pesquisas em andamento de docentes e discentes do Mestrado em Educação, além de artigos de pesquisadores externos à UNIOESTE e do exterior, que dão seqüência ao conjunto de debates com o intuito de aprofundar os estudos acerca da sociedade, do Estado e da educação. Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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APRESENTAÇÃO


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8 Quanto à criação da Educere et Educare – Revista de Educação (versão impressa e eletrônica), vinculada ao Mestrado em Educação e ao Colegiado de Pedagogia, a mesma se encontra em seu quinto número. A revista publica Núcleos Temáticos e está dividida em três áreas de conhecimento: Fundamentos da Educação, Fundamentos Metodológicos e Políticas Educacionais. Esta revista é resultado direto dos esforços conjuntos de nossos Grupos de Pesquisa em Educação do CECA, quais sejam: “Políticas Sociais”, “Trabalho, Estado, Sociedade e Educação”, “Política Educacional e Social”, “Aprendizagem e Ação Docente”, “Gestão Escolar”, “Educação, Cultura, Linguagem e Arte”, “História, Sociedade e Educação no Brasil” e “História e Historiografia na Educação”. Quanto à criação da Coleção Sociedade, Estado e Educação aqui em apreço trata-se do início de uma coleção que se expressará doravante por meio de duas coletâneas anuais de artigos de pesquisadores docentes e discentes afetos ao Programa, bem como de pesquisadores externos. Neste primeiro volume estamos produzindo o ponto de partida para a sua regularidade que se estenderá nos próximos anos. Ou seja, a cada ano a Coleção Sociedade, Estado e Educação publicará dois números cuja abordagem temática e tratamento teórico serão definidos pelo Colegiado do curso de Mestrado. Neste volume buscamos estudar o trabalho como elemento determinante e fundamental de todo o processo educativo, logo, de toda instituição escolar. Em razão disso afirma-se que o conceito de unitariedade da escola ainda está sendo construído e não exclui a especialização de cada um dentro de seus gostos e inclinações, usufruindo de todos os elevados prazeres humanos. De modo que faz sentido recuperar o significado de educação, tendo por ponto de partida a atividade humana em luta pela sobrevivência como condição básica da hominização. Nesta seara, o texto de Paolo Nosella, A construção histórica do trabalho como um princípio educativo, retoma um tema de grande relevância e avalia como surge um novo conceito de instituição escolar unitária, em particular a partir das reflexões de Mario Manacorda. O tema do trabalho também é revisitado em um outro artigo, Elementos sociais do mundo do trabalho na ficção cinematográfica: provocações de “O Corte”, de Georgia Sobreira dos Santos Cêa e Rosane Zen, desta feita a partir da análise das mudanças estruturais no mundo do trabalho sugeridos em assuntos e cenas que constituem o filme de Costa-Gavras e se ocupando de uma bibliografia que discute o mundo do trabalho e as mudanças que afetam diretamente os trabalhadores. Política, Educação e Cultura


Nesse sentido, a luta política para a redução e eliminação das desigualdades sociais continua e até mesmo se acentua. Assim, indicase que reconverter o professor é um empreendimento que implica em reconverter as próprias instituições de formação docente ou os projetos institucionais por elas implementados. Desse modo, o propósito de reconversão profissional supõe a reconversão conceitual, ou seja, deve-se assumir que estamos frente ao colapso do conceito de professor, articulado ao colapso de uma determinada concepção de escola. No âmago desta temática, o texto Redes para reconversão docente de Eneida Oto Shiroma e Olinda Evangelista, analisa o destaque adquirido pelos programas de capacitação profissional, em particular, se detendo na requalificação docente, mediante o exame de políticas no âmbito nacional e internacional, além de avaliar as parcerias estabelecidas para tais programas. Por sua, vez, no texto Integração da educação profissional técnica de nível médio na modalidade de educação de jovens e adultos: algumas reflexões sobre o currículo, as autoras Edaguimar Orquizas Viriatto e Renata Gotardo tecem considerações sobre o currículo integrado para o ensino médio profissional na modalidade da Educação de Jovens e Adultos, e em particular se detém no PROEJA e nas suas diferenças em relação a projetos similares. Em Para que servem os cursos de formação de professores?, Lizia Helena Nagel pondera sobre os conceitos de educação, ensino e aprendizagem, e analisa os resultados produzidos pelo Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes (Pisa), se detendo no exame do desempenho de alunos brasileiros e relacionando-os às orientações pedagógicas que embasaram a educação brasileira nos últimos anos. Ainda tendo como horizonte a preocupação com a escola, os professores Cezar Ricardo de Freitas e Maria Inalva Galter, remontando ao século anterior, analisam em Reflexões sobre a educação em tempo integral no decorrer do século XX, como o conceito e sua aplicação prática foi ressignificado na atualidade, seja nos projetos nacionais ou naqueles implementados na cidade de Cascavel. Com uma temática similar, o artigo Gramsci e a educação: A relação Escola-Partido no contexto da construção da sociedade capitalista, de Luiz Carlos de Freitas, explora o debate que envolve a Escola Única proposta por Gramsci e sua insuficiente relação com as propostas políticas do autor em relação à intervenção e à transformação social. Com base na teoria de Vigotski e de Leontiev, o pesquisador Enio Rodrigues da Rosa, em seu texto A educação das pessoas cegas ou com visão reduzida no Estado do Paraná, esquadrinha as políticas Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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10 educação e legislação no tocante à educação de pessoas cegas no Paraná, além de perscrutar os movimentos organizativos em âmbito regional. Com um tema similar, Alfredo Roberto de Carvalho, em Inclusão social no contexto da reorganização capitalista do final do século XX: pessoa com deficiência, educação inclusiva e reserva de postos de trabalho, a partir de uma perspectiva histórica, pondera sobre a inclusão social de pessoas com deficiência na escola e no trabalho, verificando pressupostos de modelos inclusivos e sua relação com o contexto econômico, político e social. Ainda no que tange as cotas, e com uma temática que tem gerado calorosos debates, Luis Fernando Cerri, em Notas críticas aos argumentos contra cotas para negros nas universidades públicas, escrutina cuidadosamente as argumentações contrárias às cotas para negros nas universidades, trazidas à cena pelos grandes meios de comunicação e representativas dos interesses políticos dos grupos que controlam tais mídias. Outro trabalho que se ocupa de uma outra faceta do campo midiático é o artigo A educação pela censura: o controle musical como agente de educação não-formal na ditadura portuguesa, de Alexandre Felipe Fiuza, que identifica a censura musical portuguesa como um meio de educação não-formal da população na medida em que a ditadura controlou os discursos deste que era um dos produtos culturais mais consumidos no país. Tratando sobre o curriculo, no artigo Multiculturalismo e Diretrizes Curriculares Nacionais: uma questão em debate, Vanice Schossler Sbardelotto traz elementos que tem em vista contribuir para a compreensão do multiculturalismo, que segundo sua perspectiva, tem deslocado a desigualdade entre as pessoas da base material para uma diferença cultural, individual, de guetos ou minorias. A expressão dessa perspectiva nas DCNs indicaria a ruptura da primazia do conhecimento científico e a supervalorização de aspectos culturais, éticos e morais. Enfim, em meio a esta dinâmica social, temos aqui nesta coletânea uma série de artigos que não resvalam na realidade, mas se ocupam detidamente da concretude dos problemas educativos e de temas prementes no debate educacional contemporâneo. É com base nos relevantes temas aqui elencados que temos a grata satisfação de convidar a todos a se debruçarem sobre este livro, pois encontrarão aqui material de investigação relevante nas temáticas abordadas pelo coletivo do Mestrado em Educação. Cascavel, março de 2008. Os Organizadores. Política, Educação e Cultura


SUMÁRIO A educação das pessoas cegas ou com visão reduzida no Estado do Paraná .............................................................. 11 Enio Rodrigues da Rosa Redes para reconversão docente .......................................... 33 Eneida Oto Shiroma e Olinda Evangelista

Notas críticas aos argumentos contra cotas para negros nas universidades públicas .................................................... 73 Luis Fernando Cerri A construção histórica do trabalho como um princípio educativo ......................................................... 91 Paolo Nosella Inclusão social no contexto da reorganização capitalista do final do século XX: pessoa com deficiência, educação inclusiva e reserva de postos de trabalho .............................. 101 Alfredo Roberto de Carvalho Reflexões sobre a educação em tempo integral no decorrer do século XX ...................................................... 121 Cezar Ricardo de Freitas e Maria Inalva Galter Integração da educação profissional técnica de nível médio na modalidade de educação de jovens e adultos: algumas reflexões sobre o currículo ...................................... 139 Edaguimar Orquizas Viriato e Renata Cristina da Costa Gotardo Elementos sociais do mundo do trabalho na ficção cinematográfica: provocações de “O Corte” ......................... 157 Georgia Sobreira dos Santos Cêa e Rosane Toebe Zen

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Para que servem os cursos de formação de professores? ...... 55 Lizia Helena Nagel


Gramsci e a educação: A relação Escola-Partido no contexto da construção da sociedade capitalista .............. 173 Luiz Carlos de Freitas

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A educação pela censura: o controle musical como agente de educação não-formal na ditadura portuguesa ......................................................... 191 Alexandre Felipe Fiuza Multiculturalismo e Diretrizes Curriculares Nacionais: uma questão em debate ............................................................... 203 Vanice Schossler Sbardelotto SOBRE OS AUTORES ............................................................ 215

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A EDUCAÇÃO ESCOLAR DAS PESSOAS CEGAS OU COM VISÃO REDUZIDA NO ESTADO DO PARANÁ Enio Rodrigues da Rosa

“A palavra vence a cegueira.”

Este artigo pretende assinalar alguns aspectos históricos, políticos e psicológicos sobre o processo de educação escolar das pessoas cegas ou com visão reduzida no Estado do Paraná, tomando como marco referencial histórico o surgimento do Instituto Paranaense de Instrução e Trabalho para Cegos (IPC),, em 1939, na cidade de Curitiba, capital do Estado. É importante deixar claro que este estudo apresenta um exame da questão e não tem a pretensão de esgotar a análise em função de duas condicionantes: a) os limites de um artigo impõem selecionar das fontes primárias e secundárias disponíveis os principais elementos e abordá-los de modo sucinto; b) até onde foi possível levantar as fontes, existe pouca produção sobre este assunto no Estado, por isso, uma pesquisa de maior alcance e abrangência, tanto na coleta e catalogação das fontes primárias e secundárias, bem como na exploração dos dados, ainda está por ser realizada sobre o tema em questão. Ao lado dessas considerações, outra também se faz necessária: o trabalho procura conjugar as reflexões teóricas e as observações empíricas da realidade das pessoas cegas ou com visão reduzida, como fruto das próprias experiências e vivências do autor como pessoa cega e militante do movimento das pessoas com deficiência. Antes de avançar na exposição, e procurando lastrear o percurso educacional das pessoas cegas, é preciso pontuar alguns elementos históricos que antecederam e serviram de base na constituição e propagação dos serviços especializados de apoio aos alunos matriculados na rede do ensino comum do Estado do Paraná. Desde o início da Independência do Brasil (1822), tanto na educação como em outros setores da sociedade, a presença da iniciativa privada de natureza filantrópica assistencial foi uma das Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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(VIGOTSKI, 1997, p. 82).


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12 características que acompanharam o desenvolvimento de programas e serviços voltados para o atendimento das carências das massas excluídas dos bens elementares de sobrevivência, principalmente no que toca ao atendimento das necessidades das pessoas com deficiência. Preocupadas apenas com a formação dos quadros dirigentes dos destinos da nação, as elites brasileiras investiram na educação superior, deixando a cargo das iniciativas particulares a educação primária das primeiras letras, mesmo tendo a Constituição Imperial de 1824 estabelecido que esta fosse gratuita e da responsabilidade das províncias. A Constituição de 1824, era de [...] orientação liberal, mas não democrática, assegurava direitos civis (de cidadania) aos brasileiros brancos, mas não aos índios e escravos, e direitos políticos (de voto) aos brasileiros brancos que tinham, no mínimo, renda de 100 mil réis anuais: quem é “coisa” não tem direitos, quem é “povo” ou “plebe” tem direitos civis e políticos diferenciados, proporcionais à renda. Considerando a questão do ângulo do princípio liberal proclamado de igualdade, essa repartição mostrava-se enormemente restritiva, pois, na época, três quartos da população compunha-se de escravos e grande parte do restante era de brancos livres e pobres (HILSDORF, 2003, pp. 43 e 44 - grifos da autora).

É neste contexto que surge no Brasil a primeira instituição educacional especializada para os filhos cegos das classes economicamente subalternas – vale lembrar, com exceção dos escravos e dos índios. De acordo com o Decreto Imperial nº 1.429, de 12 de setembro de 1854, foi criado o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, inaugurado solenemente em 17 de setembro do mesmo ano, na cidade do Rio de Janeiro, sede da Corte (LOBO, 1997, p. 558). Na opinião de Silveira Bueno, o surgimento desta instituição dedicada à educação especial parece refletir mais a importação de certo espírito “cosmopolita” dos grandes centros, como resultado do interesse de figuras próximas ao poder constituído do que pela sua real necessidade (1993, p. 85). Este modelo institucional segregado teve início na França, em 1784, com a criação do Instituto dos Jovens Cegos de Paris, onde o capitalismo já havia alcançado um grau mais avançado de desenvolvimento das forças produtivas, possibilitando inclusive o aproveitamento da mão-de-obra de certos cegos em alguns tipos de atividades econômicas. Transposto para uma realidade econômica baseada na monocultura para a exportação ainda movida por Política, Educação e Cultura


mão-de-obra escrava, a criação do Instituto serviu para retirar das famílias e colocar em espaços segregados aquelas pessoas que não necessitavam ficar isoladas do convívio da sociedade. De acordo com algumas informações, mesmo antes da fundação da escola especializada, já havia no Brasil algumas pessoas cegas escolarizadas, tanto que no ato de inauguração do Instituto, o Dr. José Sigaud aponta dois casos de sucesso quanto às meninas cegas: “Olineina de Azevedo que vivia na província do Ceará e se casara com um fazendeiro local e que também estudara em Paris; Delfina da Cunha que vivia em Pelotas na província do Rio Grande do Sul e que publicara ‘[...] um livro de poesia no reinado do Sr. D. Pedro I’” (ZENI, 1997, p. 122, grifos do autor). Como parte da propagação do modelo institucional segregado, baseado no Instituto Benjamin Constant, em 1939, foi fundado em Curitiba o Instituto Paranaense de Instrução e Trabalho para Cegos (IPC). “Em 1939, foi fundada a primeira entidade de assistência aos portadores de deficiência visual, o Instituto Paranaense de Cegos” (PARANÁ, 1994, p. 10). Esta entidade é a mantenedora da única Escola Especializada ainda existente no Estado, criada em 1941, quando este modelo era predominante em todo o País. Em 1932, merece registro o fato de um estudante cego da cidade de Curitiba ter recorrido ao recém criado Conselho Nacional da Educação (1932) para ter assegurado o seu direito de estudar numa escola comum. Conforme o parecer do relator do Processo n º 291, de 04 de novembro de 1932, o Professor Cesário de Andrade, apesar de entender que não seria possível para um professor da escola comum ministrar aulas para um aluno cego que se vale de métodos de ensino tão diferente, junto com os demais alunos, tocado pela compaixão e com base na eqüidade, acabou concedendo o direito do aluno cego freqüentar uma sala de aula do ensino comum. O professor Cesário de Andrade mostra que não é possível ministrar em conjunto o ensino de classes de alunos cegos, que se valem de sistemas especiais e ainda deficientes e de alunos videntes que seguem métodos pedagógicos comuns. O referido Parecer concluiu pela concessão da matrícula pleiteada, porque: seria realmente profundamente doloroso que, além do cárcere das trevas, privássemos o requerente desse bálsamo espiritual, que tanto o ajudará a quebrar o cepticismo tão próprio dessa grande desgraça que é a cegueira (SOMBRA, 1983, p. 25).

Mesmo durante a Idade Média, as pessoas cegas filhas das elites que não eram abandonadas a sua própria sorte conseguiram Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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14 atingir níveis elevados de instrução formal e ocuparam posição de destaque na sociedade. Silva (1986, p. 251-254) fala dos cegos “brilhantes”, dos quais destacam-se aqui três como exemplo: Nicolas Saunderson (Professor em Cambridge), John Metcalf (Engenheiro) e Maria Tereza Von Paradis (Concertista). No entanto,

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esses cegos só conseguiram alcançar níveis de realização tão notáveis porque não eram abandonados ou entregues à própria sorte. Para que qualquer indivíduo se tornasse professor de Cambridge, engenheiro ou concertista, quer fosse vidente ou cego, seria preciso ter recebido instrução formal, fato que parece ter passado desapercebido por esses historiadores (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 62).

Silva (1986) também fala de moças cegas usadas como prostitutas e rapazes cegos utilizados como remadores nas Galés. Porém, esses são apresentados sem nomes e sem nenhuma menção de “brilhantismo”. Em qualquer lugar em que os Institutos foram criados, os dados revelam que em sua esmagadora maioria, as pessoas cegas que deles fizeram uso pertenciam às famílias da classe trabalhadora que não tinham alternativa de educação para os seus filhos cegos. Zeni (1997) demonstra que, quando da fundação do Imperial Instituto dos Meninos Cegos do Brasil, em 1854, por razões diferentes, tanto as famílias abastadas como as famílias pobres ofereciam resistência quando se tratava de mandar os seus filhos cegos para a instituição. Não é objetivo deste estudo explorar com detalhes as principais controvérsias e polêmicas travadas envolvendo os defensores do modelo educacional segregado e os defensores da integração das pessoas cegas ou com visão reduzida nas escolas do ensino comum. Contudo, é interessante observar o que diz Araújo, citando Lemos: A integração no ensino primário foi iniciativa da Fundação para o Livro do Cego no Brasil, em São Paulo. O ensino integrado de 2º grau foi resultado dos esforços desenvolvidos pelo Instituto Benjamin Constant, no Rio de Janeiro. A integração das pessoas cegas no ensino superior foi uma conseqüência de sua admissão ao ensino de 2º grau e se fez através de atividades isoladas dos interessados, mediante a obtenção de pronunciamento do então Conselho Nacional de Educação (1993, p. 50).

No período entre 1946 e 1979, pelo menos seis acontecimentos merecem destaque na luta pela integração dos alunos cegos ou com visão reduzida nas escolas do ensino comum: no ano de 1946, a criação da Fundação para o Livro do Cego no Brasil; 1958, a instituição da Campanha Nacional de Educação Política, Educação e Cultura


para Cegos junto ao MEC; 1961, a promulgação da primeira LDBN, Lei n. 4.024/1961, particularmente o Título X, Da “Educação de Excepcionais”, Artigos 88 e 89; 1964, a realização do Primeiro Congresso Brasileiro para a Educação das Pessoas com Deficiência Visual; 1973, a criação do Centro Nacional da Educação Especial – CENESP/Departamento da Deficiência Visual; e 1979, a divulgação das quatro propostas Curriculares para a área da deficiência visual. “De 1975 a 1977, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em convênio com o CENESP, trabalhou no Projeto de Reformulação de Currículos para Deficientes Visuais, considerando o instrumento básico de ação no processo ensino-aprendizagem” (BRASIL, 1979, p. 09). Embora este processo tenha ocorrido paralelamente, é preciso compreendê-lo como parte dos debates e disputas travadas em torno da elaboração da primeira LDBN, Lei de Diretrizes e Bases Nacional, Lei n. 4.024/1961. Como não há espaço aqui para explorar os principais pontos polêmicos que envolviam as discussões sobre a Educação Especial neste período, sobretudo na área da Deficiência Visual, entre os defensores do modelo segregado e os defensores da integração dos alunos cegos nas escolas do ensino comum, vale mencionar que para alguns autores a década de 1970, de fato representou um marco histórico importante da Educação Especial brasileira. Por exemplo, de acordo com Jannuzzi, [...] podemos colocar a década de 1970 como um marco divisor da EE, porque até então ela esteve mais sujeita à sensibilidade das associações principalmente filantrópicas. Agora, em 1973, no governo Médici, criava-se um órgão diretamente subordinado ao MEC para cuidar de política da educação especial em termos nacionais, o CENESP (Decreto 72.425/73). [...] o Grupo de Trabalho encarregado de operacionalizar o Projeto Prioritário n.º 35, e que vai propor a criação do CENESP, fixando suas diretrizes, contou com a consultoria de James Gallagher da University of North Caroline, por intermédio do Escritório de Recursos Humanos da USAID/Brasil (1997, p. 195-196).

Com o objetivo de atender o previsto na Lei n. 4.024/1961, particularmente do Título X, “Da Educação de Excepcionais”, em 1961, a Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Paraná criou o Serviço de Educação dos Excepcionais. Dez anos depois, em 1971, a partir das alterações introduzidas pela Lei n. 5.692 de 1971, foi criado o Departamento da Educação Especial (DEE). De acordo com documento elaborado pelo DEE, a educação escolar dos educandos com deficiência “[...] desenvolveu-se em duas vertentes distintas: Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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16 instituições privadas e programas especializados na rede pública de ensino” (PARANÁ, 1994, p. 11). É a partir deste quadro que se pretende assinalar e refletir sobre alguns elementos da educação das pessoas cegas ou com visão reduzida matriculadas nas escolas do ensino comum. A referência inicial será o documento preliminar, elaborado pela professora do CENESP, Jurema Venturini, denominado “Projeto Especial Multinacional de Educação”, que envolvia o Brasil, Paraguai, Uruguai e a Organização dos Estados Americanos. De acordo com este documento, o objetivo era a “[...] elaboração de um plano de atuação visando a implantação de serviços de atendimento a cegos e deficientes da visão na região oeste do Estado do Paraná” (VENTURINI, 1975, p. 01). Fazendo menção às condições de alguns municípios para a implantação dos serviços, o documento afirma: O que se pode destacar das informações existentes é que a utilização do sistema educacional, das unidades de ensino, dos recursos sociais existentes nos diferentes municípios, principalmente Cascavel, Toledo e Foz do Iguaçu, permite a organização e funcionamento de programas educacionais para cegos e deficientes da visão (VENTURINI, 1975, p. 17).

Na perspectiva da integração, “[...] a educação e reabilitação de cegos e deficientes da visão passa a sofrer nova abordagem, beneficiando-se do nível técnico e científico atingido pelas ciências em geral e mais particularmente pelo surgimento das especializações nas ciências médicas e para-médicas e nas ciências do comportamento” (VENTURINI, 1975, p. 03). Dessa forma, com base nos pressupostos teóricos deste documento, o atendimento especializado deveria ser realizado nas Salas de Recursos que seriam instaladas em unidades de ensino regular e com atendimento contínuo do professor especializado. A Sala de Recurso desenvolve diversas atividades de apoio aos alunos matriculados nas escolas do ensino comum. Entre as atividades especializadas, destacam-se: o ensino itinerante, em que o professor especializado realiza o atendimento periódico ao aluno matriculado na unidade de ensino mais próximo de sua residência; atividades adicionais escolares, tais como: orientação e mobilidade, atividades da vida diária; reeducação da visão, uso de recursos especiais de leitura e escrita e orientação vocacional. Do ponto de vista dos materiais adaptados, são considerados como imprescindíveis os livros em braile, tipos ampliados, livros falados; aparelhos de escrita: regletes, punções, máquinas de datilografia braile e comum; Política, Educação e Cultura


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Em Curitiba, tomando por base o “sucesso” das APAES, um grupo de pais, profissionais da área e voluntários da comunidade, reuniram-se e em 1972 fundaram a Associação de Pais e Amigos dos Deficientes Visuais (APADEVI), com o propósito de oferecer um conjunto de serviços denominados especializados para apoiar as pessoas cegas ou com visão reduzida, matriculadas ou não na rede escolar de ensino. Os estatutos e a organização da APADEVI, na esteira do modelo apaeano, mantinham a continuidade da instituição filantrópica, ainda que os destinatários de seus serviços fosse um segmento com características absolutamente diversas daquele, próximos apenas na concepção histórica de dependência e incapacidade (TURECK, 2003, p. 53 – grifos da autora).

Entretanto, ao contrário do movimento apaiano, além de inexpressivas em termos de força política, hoje, as APADEVIS Associações de Pais e Amigos dos Deficientes Visuais, e outras instituições prestadoras de serviços na área da Deficiência Visual não passam de uma dúzia em todo o Estado. Se na área da deficiência mental o governo incentivou a consolidação e expansão de uma rede privada, filantrópica e assistencialista, na área da deficiência visual preferiu aproveitar a estrutura já instalada das escolas estaduais para colocar em funcionamento os serviços públicos de atendimento especializados para as pessoas cegas ou com visão reduzida, evitando sobretudo gastos financeiros com novas construções. Isso provavelmente foi um dos fatores que inibiu a consolidação de uma rede privada na área da deficiência visual. Fazendo menção ao trabalho do DEE, quando elaborou a proposta, a professora Jurema Venturini destacou o trabalho do Setor da Deficiência Visual como elemento positivo na implantação de uma rede de serviços especializados nos principais municípios do interior. Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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especiais: aparelhos para cálculo, sorobã e cubaritímo; materiais para ensino nas diferentes salas de estudo; gravadores e reprodutores; auxílios ópticos (VENTURINI, 1975). Numa perspectiva multiprofissional de atendimento, além do professor especializado, as Salas de Recursos deveriam contar também com o serviço do médico, do psicólogo, do assistente social e do orientador vocacional. Além disso, a família também teria um papel importante no apoio ao processo educacional das pessoas cegas ou com visão reduzida, tanto que no caso do Estado do Paraná houve uma tentativa de criação de uma rede de Associações de Pais e Amigos na mesma linha das APAES – Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais.


18 Quanto aos recursos existentes em Curitiba, cabe destacar em primeiro plano a atuação do Departamento de Educação Especial do Estado que funciona como órgão centralizador, promotor, realizador e supervisor de todos os programas de atendimento ao excepcional no Estado, tanto no que se refere a rede de ensino oficial como particular (VENTURINI, 1975, p. 17-18).

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De acordo com a estratégia da implantação da rede, Um projeto de caráter experimental e inovador poderá partir de um programa de identificação diagnóstico e avaliação com o objetivo de obter a caracterização da clientela existente e planejar programas adequados as suas necessidades. Esse estudo servirá de base para a escolha de instrumentos e medidas que poderão ser utilizadas em outras regiões (VENTURINI, 1975, p. 17-18).

O estudo também procurou levantar alguns números aproximados de pessoas cegas ou com visão reduzida que poderiam ser beneficiadas com os serviços especializados. Pelos dados estimados, existiam 28.000 cegos no Estado e 3.200 na Região Oeste do Paraná. Quanto à população escolar, o documento fala em aproximadamente 400 alunos com visão “subnormal” na Região, dos quais 50 em Cascavel e 25 em Foz do Iguaçu (VENTURINI, 1975). Os atendimentos educacionais especializados não poderiam ser concretizados sem recursos humanos preparados para fazer a identificação dos usuários e desenvolver os serviços. A iniciativa política de criar e expandir uma rede de serviços públicos especializados para os principais municípios do Estado somente poderia ser levada adiante a partir da definição e implementação de uma política de formação de recursos humanos para atuar na educação suplementar dos alunos cegos ou com visão reduzida matriculados na rede do ensino comum. Com a intenção de avaliar e propor medidas para a Educação Geral e a Educação Especial, em 1984, a Secretaria Estadual da Educação elaborou o documento “Fundamentos e Explicitações”, o qual elencava um conjunto de medidas, entre as quais figurava a implantação gradativa da Educação Especial na rede regular de ensino. Apesar de ainda não se contar com dados objetivos sobre a incidência regional das pessoas portadoras de deficiências, sabe-se que, de acordo com parâmetros estabelecidos pela ONU, aproximadamente 10 por cento da população é portadora de algum tipo de deficiência e necessita de atendimento especializado. Numa filosofia que enfatiza a igualdade de direitos, esse atendimento constitui, aos portadores de deficiências, uma prerrogativa fundamentada na legislação brasileira, expressa na Constituição Federal, nas Leis Educacionais e nas Diretrizes do Política, Educação e Cultura


19 Conselho Estadual de Educação. Com o intuito de dar cumprimento aos enunciados legais, o Governo do Estado do Paraná, através do Departamento de Educação Especial da Secretaria de Estado da Educação, vem somando seus esforços e recursos aos da iniciativa comunitária (PARANÁ, 1984, p. 25-26).

Para alunos cujo grau de desenvolvimento lhes permite freqüentar Programas Especiais nos estabelecimentos de ensino regular, são criadas Classes Especiais e Salas de Recursos sob inteira responsabilidade do ensino oficial. No entanto, assegurar aos deficientes os recursos para o exercício dos seus direitos, constitui um constante desafio às comunidades e ao Sistema Educacional, pois a maioria não tem condições para usufruir das oportunidades concedidas aos demais. Assim sendo, o Departamento de Educação Especial, ao promover a implantação gradativa da Educação Especial na Rede Pública Estadual, acrescentará ao sistema de atendimento ao excepcional novas alternativas de participação oficial, bem como executará medidas que permitam ao Governo do Estado, assumir sua responsabilidade na oferta de oportunidades de educação e integração social dos portadores de deficiências (PARANÁ, 1984, p. 26).

Quanto à formação de professores, o documento apenas menciona a necessidade da “Capacitação de Recursos Humanos” (PARANÁ, 1984, p. 26), sem, contudo, avançar de que maneira e onde tal formação deveria acontecer. Para levar adiante o projeto da capacitação dos professores, o Conselho Estadual da Educação aprovou a Deliberação 025/84, que dispõe sobre atualização e consolidação das normas relativas à implantação, estruturação e funcionamento dos estudos adicionais, a que se refere o parágrafo 1° do artigo 30 da Lei 5.692/71, alterado pelo artigo 1° da Lei 7.044/82, na qual se fundamentam os cursos de formação de professores para a Educação Especial, na forma de Estudos Adicionais (PARANÁ, 1984, p. 12).

Definida as regras pelo Conselho Estadual da Educação, a partir de 1985, o Departamento da Educação Especial iniciou um processo de abertura dos cursos dos Estudos Adicionais, cuja oferta aconteceu em praticamente todas as regiões do Estado através de instituições de ensino públicas ou privadas. Na Região Oeste do Estado, por exemplo, a Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Cascavel – FECIVEL, em 1985, iniciava o primeiro curso de formação na área da deficiência visual.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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De acordo com o documento,


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Não foi possível levantar a documentação referente à primeira turma da área da deficiência visual que concluiu o curso em meados de 1986, cuja incumbência foi a de organizar o primeiro Centro de Atendimento Especializado da Região Oeste na cidade de Cascavel, inaugurado em 1987, no Colégio Eleodóro Ebano Pereira. A partir da constituição de um grupo composto por cinco professoras, oriundas do curso de Formação de Professores para a Educação Especial – área de deficiência visual, na modalidade de Estudos Adicionais, na Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Cascavel (FECIVEL), hoje UNIOESTE, em agosto de 1987 foi criado o primeiro CAEDV. Esse primeiro centro foi integrado ao Colégio Estadual Eleodoro Ébano Pereira, na zona central de Cascavel, contando inicialmente com a atuação de cinco professoras, entre elas esta pesquisadora, num total de cento e quarenta horas semanais (TURECK, 2003, p. 55).

Em 1987, através da Resolução n. 78/87 – GD, do Conselho Estadual de Educação, foi aprovado o Regulamento para o Funcionamento do Curso de Formação de Professores para Educação Especial com Habilitação de Deficiência Visual e Deficiência Mental, destinado à segunda turma dos Estudos Adicionais. De acordo com o Artigo 1º. desta Resolução, fica estabelecido que “para implantação, estruturação e funcionamento dos Estudos Adicionais, estão sendo observados as Deliberações n.º 025/84 e n.º 035/84 do Conselho Estadual de Educação”. Conforme o Parágrafo 1o, “o Curso de Formação de Professores para Educação Especial será estruturado como curso de Formação Regular, ampliando a formação básica do professor de 1a a 4a séries, conferindo-lhe Habilitação específica para atuação em Classes Especiais”. Já o Parágrafo 2o afirma que: “o Curso de Estudos Adicionais na área de Educação Especial, autorizado pelos Pareceres n. 418/85, 155/86 e n.º 189/87 do C.E.E. e pela Resolução Secretarial n.º 4284/86) será mantido pela Fundação Federação Estadual de Instituições do Ensino Superior do Oeste do Paraná – UNIOESTE – e ofertado pela Faculdade de Educação,Ciências e Letras de Cascavel – FECIVEL”. De acordo com o Artigo 2º, “a integralização do currículo do Curso de Formação de professores para Educação Especial ocorrerá de forma regular e também de forma concentrada em finais de semana, perfazendo um total de 990 horas/aula, incluindo o tempo de estágio supervisionado”. Pelo Currículo do Curso, eram as seguintes as disciplinas básicas: Psicologia do Desenvolvimento; Etiologia da Excepcionalidade; Fundamentos da Educação Especial; Modalidade de Atendimento em Educação Especial; Planejamento

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Pedagógico; Técnicas de Observação em Educação; Noções de Psicomotricidade; Psicologia da Aprendizagem; Introdução à Metodologia Científica e Educação para o Trabalho. Quanto às disciplinas específicas da área da deficiência visual, o currículo contava com noções de anatomia e fisiologia dos órgãos da visão; Características do desenvolvimento da pessoa com deficiência visual; Prevenção, conscientização e orientação familiar; Artes e Recreação da pessoa com deficiência visual; Metodologia do Ensino do Sistema Braille; Metodologia do Ensino do Sorobã; Metodologia da Reeducação visual; Princípios de Orientação e Mobilidade; Orientação Vocacional da pessoa com deficiência visual; Estimulação Precoce e Métodos e Técnicas de Alfabetização. Definido os conteúdos e encaminhado o processo de formação do professor especializado para a área da deficiência visual, o Departamento da Educação Especial precisaria também definir o formato dos serviços de Atendimento Especializado. De acordo com as normas do DEE, É importante frisar que todos os educandos portadores de deficiência visual, em idade escolar, deverão estar regularmente matriculados em escolas comuns e subordinados à estrutura e funcionamento do ensino fundamental. Os Centros de Atendimento Especializado (CAEDV) constituir-se-ão unicamente em suporte pedagógico ao aluno portador de deficiência visual e ao professor do ensino regular. A matrícula desses educandos aos CAEDV é opcional e deverá ocorrer, sempre, em período contrário ao da escolaridade regular, sendo que a freqüência é obrigatória (PARANÁ, 1994, p. 70).

Os Centros devem ofertar no sistema de contraturno os seguintes serviços: habilitação e reabilitação para a escrita e leitura braile, estimulação precoce, reeducação visual, orientação e mobilidade, atividades da vida diária, serviço de apoio itinerante, entre outras atividades ligadas à área. Quanto à equipe dos recursos humanos, enquanto o CENESP propunha além do professor especializado, o médico, o psicólogo, o assistente social, o orientador vocacional, entre outros, o Estado do Paraná manteve somente o professor especializado. Se por um lado, esta opção pode ser interpretada como uma forma de valorizar os aspectos pedagógicos, afastando as influências da área médica, da psicologia e do serviço social, por outro, porém, pode perfeitamente também ter sido uma decisão com o fim de evitar maiores gastos financeiros na implantação dos serviços, opção que parece mais provável, já que a ênfase da formação dos professores visivelmente recaiu nos aspectos médicos psicológicos.

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22 Acompanhando o processo de implantação dos Centros de atendimento, verifica-se que isso ocorreu basicamente entre o período de 1987 e 1994. Em 1987, foram 66 Centros; em 1988, 24; em 1989, 27; em 1990, 31; em 1991, 14; em 1992, 09; em 1993, 10; e 1994, 04. Total 185 (PARANÁ, 1994, p. 14). Mais de dez anos depois, em 2007, 203 CAEDVS estavam em funcionamento em 181 municípios do Estado. Desses, 48 eram da responsabilidade do DEE e 155 estavam municipalizados. Quanto ao número dos professores especializados, eram 208 municipais, 127 do quadro do Estado e 46 trabalhando nas entidades prestadoras de serviços contratados mediante convênio entre essas instituições e o Estado. Em 2005, esta rede de serviço especializado atendia apenas 3.905 pessoas cegas ou com visão reduzida em todo o Estado. Deste total, 1679 eram pessoas com “baixa visão” e 221 cegas que estavam matriculadas no Ensino Fundamental. No Ensino Médio, eram 98 com “baixa visão” e 63 cegos, ao passo que 213 estavam matriculados nos Centros de Jovens e Adultos1 . O governo do Estado, através do DEE, tem insistentemente divulgado que, dos 399 municípios do Estado, apenas 40 não contam com algum tipo de atendimento especializado. Esses dados publicizados assim, de modo genérico e sem fazer a distinção das áreas específicas atendidas, acabam transmitindo uma falsa realidade que não contribui para aclarar a questão. No que diz respeito à área da deficiência visual, é preciso deixar claro que, dos 399 municípios, apenas 181 contam com algum tipo de atendimento especializado. Isso significa que as pessoas cegas ou com visão reduzida de mais de 50% dos municípios estão sem o atendimento, ou deslocando-se para recebê-los em outro lugar, o que certamente dificulta ou impede o acesso. Em 1992, ainda durante o primeiro mandato do governador Roberto Requião, o governo baixou a Instrução Normativa conjunta SUED/DEE, nº 02/1992, “[...] que estabeleceu critérios para a condução da Educação Especial no processo de Municipalização do Ensino”. De acordo com a normativa, os princípios de Universalização e Democratização do ensino só serão alcançados através do efetivo atendimento aos alunos portadores de necessidades educacionais 1 Esses dados foram obtidos da Área da Deficiência Visual do DEE/SEED, através do correio eletrônico, em 2005 e 2007. Esses números são repassados sempre com a ressalva de que pode não corresponder exatamente à realidade, devido a dificuldade de coletar essas informações junto à rede institucional. Embora a realidade não deva fugir muito disso, eles precisam ser interpretados como uma amostra. Na busca de maiores informações, no dia 03/09/2007, escrevi para a chefia do DEE e para a coordenação da área de DV. No entanto, até a data de fechamento do artigo não houve nenhum retorno. Política, Educação e Cultura


especiais, mediante uma “parceria responsável” entre o Estado e os municípios. Não está em discussão aqui o mérito da municipalização, se ela tem produzido resultados positivos ou negativos, os seus desdobramentos e os múltiplos interesses sócio-econômicos e políticos que envolvem todo este complexo processo. Porém, neste caso, é inevitável não estabelecer nenhum tipo de relação entre o fato do governo ter transferido para os municípios toda a responsabilidade pela solicitação da abertura e manutenção dos serviços e a redução do número dos mesmos após 1992. Olhando a localização dos atuais 181 Centros de Atendimento Especializados, fica claro que esta decisão atingiu justamente as pessoas cegas ou com visão reduzida que residem nos municípios de pequeno porte. Quando questionados, os dirigentes desses municípios alegam não terem condições financeiras e nem professores especializados para abrirem e manterem os serviços. Outro problema muito sério ainda não solucionado, nem no Estado do Paraná e nem no Brasil, diz respeito aos livros didáticos adaptados (em braile ou com caracteres ampliados) para os alunos cegos ou com visão reduzida matriculados nas instituições públicas ou privadas, desde as séries iniciais até o ensino superior. Com o objetivo de suprir, ao menos em parte, esta demanda, em 1995, com a aquisição de algumas impressoras braile, computadores e outros recursos necessários, o governo do Estado, através do DEE, atendendo diversas reivindicações do movimento das pessoas cegas ou com visão reduzida de todo o Estado, deu início à implantação das Centrais de Produção de Material em Braile. Na esteira da municipalização, os equipamentos adquiridos pelo DEE foram repassados para alguns municípios mediante termo de concessão de uso, por meio dos quais os municípios assumiam não só a responsabilidade com a guarda e a sua conservação, como também precisavam fazer a manutenção dos equipamentos, assumir o espaço físico, funcionários e demais materiais de expedientes. Através deste procedimento, foram colocadas em funcionamento as Centrais de Produção de Material em Braile de Cascavel, Curitiba, Maringá, Francisco Beltrão e Londrina. Mesmo reconhecendo o avanço que esta iniciativa representou, é preciso deixar claro que o problema da falta dos livros adaptados ainda permaneceu sem uma solução definitiva. Um passo a mais neste rumo foi dado pelo Estado em 1999, quando o MEC/SEESP repassou para o DEE, um CAP – Centro de Apoio Pedagógico às Pessoas com Deficiência Visual, que inicialmente Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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foi instalado junto à Seção Braile da Biblioteca Pública do Estado. De acordo com o projeto, o governo federal adquire todos os equipamentos que compõem o CAP e transfere para os interessados – Municípios, Estados e Entidades Privadas, desde que estes arquem com as demais despesas para colocar o Centro em funcionamento – recursos humanos, espaço físico, materiais de expedientes, entre outros. De acordo com a justificativa do Projeto: Essa proposta vem consagrar os objetivos e as diretrizes estabelecidos na Política Nacional de Educação Especial no que concerne ao atendimento educacional dos educandos com necessidades especiais, compreendidos em sua dimensão não só educativa, mas também sociocultural, cujo objetivo é criar condições adequadas para o desenvolvimento pleno de suas potencialidades e o preparo para o exercício da cidadania. O projeto CAP reveste-se de importância por: - consolidar o processo de unificação do movimento associativista no País, pela efetiva participação nas principais organizações nacionais por meio da UBC, numa ação conjunta com o Governo, na formulação e execução de uma política de atendimento especializado às pessoas cegas e às de visão subnormal; - demonstrar claramente o compromisso efetivo do Governo como responsável pela política de atendimento aos cegos no Brasil; - disciplinar a implantação e o funcionamento dos serviços de produção Braille; - institucionalizar a distribuição do livro didático em Braille. A consecução dos ideais e das metas do projeto, somente se fará plena pelo envolvimento e comprometimento de todos (Governo e Comunidade) no desenvolvimento das ações institucionais do CAP que foi concebido como política pública (ABEDEV, 2000).

No ano de 2001, de acordo com a Resolução n.º 2473-GS/ SEEB/2001, foi [...] criado, no âmbito da Secretaria de Estado da Educação, vinculada administrativamente e pedagogicamente ao Departamento de Educação Especial, o CAP-PR Centro de Apoio Pedagógico para Atendimento às Pessoas com Deficiência Visual, do Estado do Paraná, com a finalidade de garantir a inclusão da pessoa com deficiência visual no sistema regular de ensino, bem como promover o pleno desenvolvimento e a integração desses alunos em seu grupo social (Art. 1º).

Conforme o Artigo 3º, compete ao CAP, entre outras atribuições, oferecer serviço de apoio pedagógico complementar, por meio de 04 (quatro) núcleos de atuação, que ficam assim instituídos: I – Núcleo de Apoio Pedagógico; II – Núcleo de Produção Braille; III – Núcleo de Tecnologia; e IV – Núcleo de Convivência. Para garantir o funcionamento dos Centros, a Secretaria de Estado da Educação deverá prover recursos financeiros para aquisição Política, Educação e Cultura


e manutenção de materiais pedagógicos e equipamentos indispensáveis ao funcionamento do CAP, bem como dos novos que vierem a ser criados. Como desdobramento do projeto central, através de Resolução do DEE/SEED, as Centrais de Produção de Material em Braile antes descritas foram transformadas em CAP. Além do CAP de Curitiba, estão em funcionamento o de Cascavel, de Maringá, de Francisco Beltrão e o de Londrina. No entanto, esta transformação aconteceu apenas no papel, porque do ponto de vista das condições materiais e dos recursos tecnológicos, em comparação com o previsto no projeto do CAP elaborado pelo MEC/SEESP, existe uma enorme distância, com exceção das unidades de Curitiba e de Maringá, que receberam os equipamentos completos que compõem o projeto diretamente do governo federal. Apesar da confecção e distribuição dos livros adaptados ser da responsabilidade do Programa Nacional do Livro Didático, ligado ao MEC, a falta de investimento financeiro por parte do Estado, através do DEE e dos municípios, nesta área também é visível. A não garantia dos livros didáticos adaptados por parte do Estado, independente da pendenga meramente formalista entre União, Estados e Municípios, constitui-se numa das mais flagrantes violação dos direitos previstos nos artigos n.º 205 e 208, inciso III, da Constituição brasileira de 1988. Em conseqüência disso, a Associação Cascavelense das Pessoas com Deficiência Visual (ACADEVI), além de diversas propostas e moções retiradas durante a realização dos seus sete Seminários de abrangência estadual com repercussão nacional, também já promoveu até manifestação de rua para denunciar e exigir que os livros didáticos sejam assegurados aos alunos. Cansados de esperar o cumprimento das promessas do Estado em relação ao fornecimento do livro didático adaptado, cegos de Cascavel se mobilizaram ontem e realizaram uma passeata reivindicando o direito à educação de qualidade, partindo do terminal leste em direção ao Núcleo Regional de Educação, onde demonstraram sua insatisfação. ‘Cego na rua, a luta continua’ e ‘Chega de enrolação, queremos educação’ eram as frases mais usadas para chamar a atenção da sociedade sobre o descaso que as autoridades têm demonstrado em relação às pessoas cegas. A Acadevi (Associação Cascavelense de Deficientes Visuais), que organizou o protesto, informou que novas manifestações estão sendo preparadas, de forma a radicalizar ações, já que está cansada de ouvir promessas que não se materializam (PARANÁ, 2004, p. 09, grifos no periódico).

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26 De acordo com as palavras de uma dirigente da entidade:

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Estamos sendo prejudicados no nosso direito à educação. Todo o ano é a mesma situação e agora queremos solução, pois os alunos têm continuado seus estudos, embora sem livros, porque sabem da importância de se prepararem. Os professores estão se desdobrando para conseguir que eles absorvam algum conteúdo, já que o livro em braile é imprescindível no aprendizado do cego”, disse Patricia da Silva Zanetti 23 anos, formada em pedagogia, que integra o movimento (ZANETTI, 2004, p. 09, grifos no periódico).

Enquanto as crianças sem deficiência contam com os livros durante todos os dias, desde o início até o fim do ano letivo, durante todos os anos da sua formação, além de outros inúmeros recursos visuais e escritos a sua disposição, as crianças cegas ou com visão reduzida sequer contam com os livros, sem mencionar as demais dificuldades que enfrentam todos os dias nas escolas. Escrevendo nas primeiras décadas do século XX, Vigotski destacou um elemento fundamental na educação dos cegos: “Um ponto do sistema braile tem feito mais pelos cegos que milhares de filantropos; a possibilidade de ler e escrever tem resultado ser mais importante que o ‘sexto sentido e a agudeza do tato e da audição’” (1997, p. 77, grifos do autor). Além da falta dos livros e outros recursos pedagógicos no processo ensino-aprendizagem, a avaliação dos alunos cegos ou com visão reduzida tem se fundamentado na concepção que Vigotski (1997) caracterizou de biológica ingênua. Para esta concepção, “o desenvolvimento perceptivo, envolvendo a audição, olfato, paladar, tato e a noção de tempo e espaço, constitui canais de interação e estruturação do mundo exterior e será avaliado, a partir da proposição em fichas apropriadas” (PARANÁ, 1994, p. 65). Segundo Vigotski, no plano teórico, esta “[...] concepção tem se expressado na teoria da substituição dos órgãos dos sentidos. De acordo com esta opinião, o desaparecimento de uma das funções da percepção, a falta de um órgão, se compensa com o funcionamento elevado e o desenvolvimento dos outros órgãos” (1997, p. 76). De acordo com Leontiev (1978, p. 228), “primeiro o trabalho, escreve Engels, depois dele, e ao mesmo tempo que ele, a linguagem (...)”. De fato, na educação dos cegos, primeiro a linguagem, depois o tato, a audição, a memória, o olfato e o paladar. Da mesma forma, primeiro a reorganização de todo o aparato psicológico do indivíduo cego, ponto crucial para orientar o redirecionamento dos órgãos remanescentes, de modo que eles possam desempenhar a sua nova função no rumo da super-compensação. Por isso, é preciso Política, Educação e Cultura


compreender a substituição não no sentido de que outros órgãos assumam diretamente as funções fisiológicas da visão, senão no sentido da reorganização complexa de toda atividade psíquica, provocada pela alteração da função mais importante, e dirigida por meio da associação, da memória e da atenção à criação e formação de um novo tipo de equilíbrio do organismo para mudança do órgão afetado (VIGOTSKI, 1997). Em outras palavras, isso significa que, se as pessoas cegas ou com visão reduzida matriculadas nas escolas, mesmo sem os livros didáticos, estão conseguindo apropriar-se de algum conhecimento, certamente não é em função da memória elevada, da audição mais aguçada, do olfato mais sensível ou do paladar – apesar do prato indigesto que são obrigadas a digerir todos os dias. O mais característico na personalidade do cego é a contradição entre a incapacidade relativa no aspecto espacial e a possibilidade de manter, mediante a linguagem, uma relação total e completamente adequada com os videntes e conseguir a compreensão mútua, o que entra totalmente no esquema psicológico do defeito e da compensação. Este exemplo é um caso particular da contradição que estabelece a lei dialética fundamental da psicologia, entre a insuficiência organicamente dada e as aspirações psíquicas. No caso da cegueira, não é o desenvolvimento do tato ou a agudeza do ouvido, senão a linguagem, a utilização da experiência social, a relação com os videntes, que constitui a fonte da compensação (VIGOTSKI, 1997, p. 82).

A importância da linguagem na formação das funções cerebrais “especializadas” também é confirmada e destacada por um dos principais colaboradores e divulgadores da obra de Vigotski. Nas palavras de Leontiev, a criança entra muito cedo em comunicação verbal com os que a rodeiam. Trava conhecimento com as palavras, começa a compreender a sua significação e a utilizá-las activamente na sua linguagem. A apropriação da linguagem constitui a condição mais importante do seu desenvolvimento mental, pois o conteúdo da experiência histórica dos homens, da sua prática socio-histórica não se fixa apenas, é evidente, sob a forma de coisas materiais: está presente como conceito e reflexo na palavra, na linguagem. É sob esta forma que surge à criança a riqueza do saber acumulado pela humanidade: os conceitos sobre o mundo que a rodeia. A tarefa da criança consiste em apropriar-se destes conhecimentos, destes conceitos. Deve efectuar para isso processos cognitivos adequados (mas não idênticos, evidentemente) aos processos que produziram os conceitos considerados (1978, pp. 328 e 329).

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28 No caso das pessoas cegas, como exemplificação, é interessante mencionar que normalmente essas pessoas são identificadas muitas vezes de modo pejorativos como “tagarelas”, deixando nas entre linhas a impressão que, ao falarem demais, elas são em alguns momentos “chatas” por conta disso. Para que afirmações desta natureza, eivadas de preconceitos, possam ser minimamente consideradas com alguma seriedade, seria preciso antes reconhecer que se falar demais pode fazer uma pessoa chata, então devemos admitir que esta não é uma característica apenas de algumas pessoas cegas. Enquanto para certas pessoas que enxergam o falar demais pode ser uma coisa banal, sem sentido e significado mais elevado, para as pessoas cegas, ao contrário, a fala ocupa um papel fundamental, tanto no sentido de se situar no espaço, captar informações e as movimentações do ambiente, como também na formação dos processos psicológicos mentais superiores, na organização das idéias e da comunicação, ou seja, como forma de compensação do prejuízo que o defeito da vista provoca. Quando Vigotski (1997, p. 82) chama a atenção enfatizando que “a palavra vence a cegueira”, ele está afirmando que a apropriação das coisas do cotidiano ou dos conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos nas instituições de ensino, tanto para as pessoas cegas como também para as não cegas, acontece fundamentalmente através do uso da linguagem. Se a tese segundo a qual cerca de 80% dos conhecimentos das pessoas são adquiridos por meio da visão - aliás, tese falsa reforçada pela enorme maioria dos professores de cegos - fosse realmente verdadeira, então, de fato, se poderia concluir que a cegueira não passa de uma grande desgraça, como ainda acreditam certas pessoas, mesmo com um nível de formação intelectual mais elevado, independente da posição de classe social. Nesta exposição, foram examinados alguns aspectos históricos, políticos e psicológicos que podem contribuir na formação de um quadro provisório sobre o percurso que a educação escolar das pessoas cegas ou com visão reduzida trilhou e como ela se encontra organizada no momento no Estado do Paraná. Apesar de mais de 50% dos municípios ainda não contarem com atendimentos especializados e, mesmo aqueles que possuem, seus serviços funcionam com bastante precariedade - locais inadequados, falta de recursos materiais e humanos, etc., o fato desta rede estar sob a responsabilidade dos municípios e do Estado, através do DEE, indica um aspecto interessante. Desde a criação da primeira escola, organizada por Valentin Hauy em 1784, na França, a educação escolar das pessoas cegas ou com visão reduzida pertencentes à classe Política, Educação e Cultura


trabalhadora, independente do modelo segregado ou nas escolas do ensino comum, não padece apenas de falta de recursos materiais, didáticos pedagógicos e humanos. Embora Vigotski tenha assinalado acertadamente que “um ponto do sistema braile tem feito mais pelos cegos que milhares de filantropos”, constata-se que a educação escolar dessas pessoas ainda continua muito permeada pelo sentimento da filantropia - este sentimento não é uma exclusividade das instituições privadas, ele também está presente nos serviços públicos. Quando o próprio Estado Democrático de Direito nega o democrático direito dos alunos cegos contarem com o atendimento educacional especializado, conforme previsto no artigo n.º 208, III, da Constituição de 1988, não só deixa o caminho aberto como também acaba estimulando a atuação do voluntariado nesta área. Diante da conjuntura brasileira e paranaense, em que a política educacional da responsabilidade do Estado vem cada vez mais se convertendo na política educacional da “responsabilidade social” das iniciativas privadas, é valida a critica segundo a qual em terras brasileiras, e ainda nas sul-americanas, o processo histórico converteu o Estado de Direito em ave rara. Vive-se aqui sob o signo da antrofagia, como dizia Oswald de Andrade. Veja-se: o Estado de Direito tem sucumbido ante o esforço de seus amigos e inimigos. No Brasil, ele é débil ao enfrentar a voragem dos que, por um ou outro motivo, acabam desrespeitando as regras do jogo político (VIEIRA, 1992, p.12).

Mesmo assim, negando a tese da cegueira como uma desgraça e das pessoas cegas como mero objeto da compaixão, da ênfase nos aspectos biológicos da substituição automática dos órgãos remanescentes em detrimento do uso da linguagem, cada vez mais multiplica-se o número de cegos e cegas conseguido graus mais elevados de formação acadêmica e ocupando alguns postos de trabalho ou realizando certas atividades profissionais consideradas de maior relevância social, de acordo com o padrão e as exigências da sociedade capitalista. Em Cascavel, por exemplo, as experiências desenvolvidas pela Associação Cascavelense de Pessoas com Deficiência Visual (ACADEVI), com a sua práxis coletiva engajada nas lutas sociais, vêm confirmando que “(...) as funções particulares podem representar um desvio considerável da norma e, não obstante, a personalidade ou organismo em geral podem ser totalmente normais. A criança com defeito não é indispensavelmente uma criança deficiente” (VIGOTSKI, 1997, p. 84). O trabalho desenvolvido pela ACADEVI, ao longo de treze anos, também vem confirmando outro postulado Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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30 muito importante de Vigotski, segundo o qual, as pessoas cegas ou com visão reduzida devem ser consideradas e educadas como sujeitos de plena “validade social” (VIGOTSKI, 1997, p. 82). Nesse sentido, uma educação escolar de fato, comprometida com a formação de indivíduos de plena “validade social” não pode continuar atolada até a medula no “vale de lágrimas” onde nasceu, junto com a ciência positivista burguesa, da qual permanece prisioneira até hoje, apesar de todos os avanços das tecnologias, dos métodos e processos comprovadamente mais adiantados de ensino e aprendizagem. Por isso, enquanto não se libertar das visões mitológicas, religiosas e folclóricas, dos dogmas, dos determinismos das ciências médicas e das influências da psicologia comportamentalista, a educação escolar das pessoas cegas continuará preocupada com as particularidades do defeito da vista, esquecendo-se do enorme manancial de potencialidades existentes quando as pessoas cegas são vistas na sua totalidade. Com relação à teoria sócio-psicológica ou histórico-cultural desenvolvida por Vigotski, da qual alguns postulados foram aqui apropriados para refletir sobre a validade social das pessoas cegas, bem como da sua aplicação no processo de ensino-aprendizagem desses educandos, vale ressaltar que, essa teoria, vem sendo objeto de investigação de um grupo de estudos do Programa de Educação Especial (PEE) da UNIOESTE e da Associação Cascavelense de Pessoas com Deficiência Visual (ACADEVI). De acordo com as primeiras aproximações, pode-se afirma que a concepção vigotskiana de pessoa cega, de educação escolar, de sociedade e de mundo, de fato representa uma importante contribuição na perspectiva da superação da educação burguesa. REFERÊNCIAS ABEDEV. Associação Brasileira de Educadores de Deficientes Visuais. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Centro de Apoio P edagógico para Atendimento às P essoas com De Pedagógico Pessoas De-ficiência V isual Visual isual. Campo Grande: ABEDEV, 2000. ARAUJO, Sonia Maria Dutra de. Elementos para se pensar a educação dos indivíduos cegos no brasil: a história do Instituto Benjamin Constant. Dissertação apresentada como requisito parcial

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REDES PARA RECONVERSÃO DOCENTE

Durante a década de 1980, estratégias de formação profissional ganharam proeminência na agenda global e a educação foi instada a atuar na requalificação necessária às demandas da reestruturação produtiva. Contraditoriamente, para apresentá-la como solução da crise econômica e social, apologetas das políticas de ajustes e da reforma do Estado, com apoio da mídia, construíram e difundiram a imagem da educação como a causadora do atraso e da pobreza. Atribuiu-se à área educacional a responsabilidade pela crise econômica e social, pelo desemprego e pela geração do que denominaram “empregabilidade”. A reconversão profissional para a adaptação do trabalhador ao novo ordenamento social foi colocada, desde então, no horizonte das tarefas da educação. Sabemos, contudo, que a problemática do acesso ao emprego é muito mais complexa e envolve outras variáveis como idade, experiência prévia, rede de relacionamentos, origem social, valores, conhecimento tácito entre outros. Gitahy argumenta que a inserção no mercado de trabalho não se limita aos requisitos da formação. Para a autora (1996, p. 1), Este processo tem levado a um renovado interesse pela forma em que se articulam a organização da produção e do trabalho, as condições de emprego, e as exigências de qualificação, o que torna necessário a análise simultânea do que ocorre dentro e fora das empresas. Nesse sentido, um tema relevante passa a ser o da construção social das redes produtivas e as suas novas formas de articulação institucional.

Essa parece ser a perspectiva com base na qual muitas iniciativas de reciclagem, requalificação e capacitação são recomendadas tanto por empresários, quanto por trabalhadores. O termo reconversão profissional tem sido adotado para designar o “processo estratégico e negocial de enfrentamento das mudanças tecnológicas e organizacionais e seus impactos sobre o trabalho, que considera e gerencia as inúmeras necessidades técnicas da empresa” (RODRIGUES E ARCHAR, 1995, p. 127) e, não raro, é utilizado como sinônimo de requalificação e correlatos1 . A idéia de uma demanda mercadológica a impulsionar os trabalhadores 1 “A reconversão produtiva dentro das empresas, com a incorporação de novas tecnologias e modos de

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Olinda Evangelista Eneida Oto Shiroma


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34 em direção ao cumprimento das exigências de adequação às novas regras do mercado influenciou profundamente as reformas educacionais das últimas duas décadas. Neste capítulo, discutimos a temática da reconversão, particularmente a docente, com base na hipótese de que foi este o imperativo que orientou mudanças radicais na formação inicial e continuada do professor e nas formas de gestão do trabalho docente e do sistema de ensino. De outro lado, consideramos em nossa abordagem a ênfase nas recomendações de organismos internacionais para a reconversão docente, assim como o papel disseminador dessa proposta, realizado por redes sociais interessadas em educação. A RECONVERSÃO ANUNCIADA O tema da reconversão, pouco debatido no Brasil, é referido em abundância na literatura educacional portuguesa e em documentos de organismos internacionais. O pressuposto destas agências é o de que, dadas algumas condições objetivas – falta de professores em algumas áreas, sobra de professores em outras –, dever-se-ia introduzir mudanças na formação inicial e continuada de docentes tendo em vista prepará-los para um espectro de atuação ampliado.2. Segundo a Organização dos Estados Iberoamericanos: organização da produção, promove a diminuição da dotação de pessoal, a terceirização de funções e a preocupação por integrar o trabalhador à empresa, se esforçando por desarticular o coletivo assalariado (MARTÍNEZ, 1994). A privatização de empresas estatais industriais e de serviços faz parte desta reconversão e debilita o sindicalismo em alguns dos lugares em que tinha mais gravitação.” (GINDIN, 2006, p. 45) “A polivalência, enquanto proposta destinada ao desenvolvimento de conhecimentos e competências profissionais duráveis, supõe mais do que a aprendizagem ativa e reflexiva de conteúdos significativos. Supõe que os indivíduos, em face das transformações do mundo do trabalho, tenham assegurada a possibilidade de organizar seus próprios processos de reconversão ou requalificação.” (SENAC, 1995, p. 61) “A certificação de competências é um processo em curso nos países europeus e nos EUA desde os anos 80. No Brasil e em outros países da América Latina, é um processo mais recente. Foi introduzido por empresários e pelos governos, estimulados pelos organismos internacionais, acompanhando os processos de reconversão produtiva, em relação ao desempenho profissional, especialmente em atividades altamente especializadas [...].” (MEC. SEMTEC. PROEP, 2003) 2 Podemos referir no Brasil a recente reforma do Curso de Pedagogia, concretizada na Resolução CNE nº 1/2006 (BRASIL, 2006). Nela se definem pelo menos oito campos de atuação: docência na Educação Infantil, nos anos iniciais do Ensino Fundamental, na Educação Profissional e no Curso Normal em nível médio, na gestão, na pesquisa, em EJA e em outras áreas da escolha da instituição de ensino (BRASIL, 2006). A construção de um profissional polivalente fica aqui explicitada, assim como o movimento de reconversão do professor, antes entendido com funções diretamente ligadas ao ensino.

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Na Espanha e em Portugal, por exemplo, essa é uma exigência das políticas educacionais. Aguerróndo (2002, p. 17) assinala que a reconversão é uma estratégia para “aproveitar o excesso de professores de uma disciplina” e “cobrir novas necessidades” que, bem organizadas e monitoradas, podem evitar as “fortes resistências” docentes. Entre as formas de se produzir tal reconversão, figuram, segundo a autora, os “encontros de reflexão”. Entretanto, tal modelo “resultou ser de uma interessante eficácia individual”, ou para “pequenos grupos, mas se mostrou bastante inadequado como estratégia para a reconversão rápida e maciça do professorado em seu conjunto.” (AGUERRÓNDO, 2002, p. 18-19) Desse modo, segundo a autora, a urgência das transformações maciças levou à etapa atual, que começa a aparecer de maneira cada vez mais promissora na abertura de âmbitos de aperfeiçoamento institucional, mas deve-se ressaltar que isso implica em transformações no campo da organização da instituição escolar e da administração do sistema. (AGUERRÓNDO, 2002, p. 18-19).

Também Alves (2002, p. 3) defende essa concepção. Para ele, O professor deve incorporar em sua práxis pedagógica as novas linguagens, intermediadas pela tecnologia e tende a ser guiado para se adaptar ao novo contexto das mudanças pedagógicas. Manter ou readquirir a competitividade no mundo de trabalho e trabalhar no sentido da reconversão profissional e atualização da demanda profissional é importante. A flexibilidade, a mobilidade, o acesso democrático à internacionalização do conhecimento vêm constatar a universalização do ensino em seus vários segmentos e mudança na formação do perfil do docente.

Os autores referidos veem a reconversão docente como fator de mudança na educação e como modo de se conseguir o que denominam “educação de qualidade” e, mesmo, democrática. De uma perspectiva diferente, De Rossi (2005) assinala que no interior Se o espectro da atuação do licenciado em Pedagogia é vasto, a formação resulta restrita. Desse modo, ao lado da polivalência do “pedagogo” teremos o esvaziamento teórico e político de sua formação.

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[...] en los noventa detectamos el empeño puesto en que los docentes se “perfeccionen”, “reconviertan”, “actualicen”, según las distintas miradas que se hicieron del problema. No fue una cuestión menor para los espíritus reformistas normalizar las habilidades, “competencias”, de los docentes para una nueva escuela, es decir, que se apropiaran de nuevos saberes útiles para la escuela del siglo XXI. (OEI, 2003).


36 das políticas de “modernização educativa” em curso na América Latina dois são os modos predominantes:

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a escola expansiva, afirmada no ciclo quantitativo (1950-1970) e utilizada para consolidar os sistemas de educação de massa pelo paradigma do desenvolvimento econômico, e a escola competitiva, das necessidades básicas de aprendizagem impulsionadas pela reconversão da educação para refundar os sistemas de ensino.

O excerto indica uma outra abordagem do fenômeno da reconversão docente: diz respeito a um tipo de procedimento que, expressando “o conjunto de estratégias adotadas por distintas instâncias e centros de poder para racionalizar os sistemas educativos”, tem jem vista adequar as políticas educacionais “às pressões econômicas das agências (inter)nacionais.” (DE ROSSI, 2005). Gindin (2006, p. 98) corrobora essa análise, chamando a atenção para o incentivo, nos anos de 1990, às “políticas produtivistas” que “impulsionam medidas de reconversão neoliberal do trabalho docente”. Exemplo de impulso a estas medidas pode ser encontrado no Plano trienal para o setor educação do Mercosul3 : “Além disso, é necessário o estabelecimento de uma nova aliança entre o setor educativo e o setor produtivo, face aos processos de reconversão competitiva em que estão envolvidos os países da área.” (MERCOSUR, s.d.) Como referimos, organismos internacionais elaboraram inúmeras recomendações acerca do professor. Interessa-nos, no próximo tópico, sistematizar as principais buscando apreender os sentidos dessa reconversão e como pretendem implementá-la no continente. ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS, RECONVERSÃO DOCENTE E REDES Uma das estratégias utilizadas para operacionalizar tais propostas é a constituição de redes encarregadas de difundir concepções e direcionar os processos de reconversão docente. No caso da América Latina e Caribe, duas redes serão aqui destacadas. A primeira delas, a Rede Kipus de Formação Docente, pertence à

3 O Mercosul – Mercado Comum do Cone Sul – foi criado em 1994 e é integrado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Além desses países, a Venezuela também aderiu ao grupo em julho de 2006.

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UNESCO, mas sua atuação é regional.4 A segunda é o Programa Regional da Reforma Educativa na América Latina (PREAL). A preocupação da UNESCO com a formação docente é grande e seus dados demonstram que existem no mundo 60 milhões de professores, mas ainda há carência de 30 milhões para se atingir as metas estabelecidas no Compromisso de Dakar, Educação para Todos, até 2015.5 Em função desses índices muitas agências internacionais justificam sua atuação na área. Embora a UNESCO reconheça que parte de suas diretrizes não deu certo – a exemplo das políticas de treinamento docente – e atribua seu insucesso, não raras vezes, à má condução pelos Estados nacionais, ela parece ter especial predileção por atribuí-lo aos próprios professores. As exigências que incidem sobre o professor ultrapassam e ampliam os tempos e espaços da formação, e construir o professor adaptável in totum torna-se uma tarefa para toda a vida. Insistindo no slogan da “formação ao longo da vida”, a UNESCO delineia o horizonte de sua política de superação do professor tradicional: Sob essa perspectiva, é requerido que as políticas e estratégias docentes, além de desenvolverem capacidades para o trabalho em sala de aula, fomentem e fortaleçam a participação dos professores na gestão de suas instituições, assim como colaborem para formular políticas educacionais. Assim, se contribuirá para modificar o enfoque tradicional que tem considerado o docente como um executor de políticas que são definidas sem sua opinião e conhecimento, o que também tem limitado as possibilidades de que as políticas educacionais se traduzam em práticas efetivas nas escolas e nas salas de aula (UNESCO/OREALC, 2002, p.73).6

4 A UNESCO conta com nove redes: 1) Red de Educación Científica; 2) Foro Regional de Educación para Todos; 3) Red de Escuelas Asociadas de la UNESCO; 4) Foro Permanente de Educación Secundaria; 5) Red de Innovaciones Educativas, INNOVEMOS; 6) Red de Liderazgo Escolar; 7) Laboratorio Latinoamericano de Evaluación de la Calidad de la Educación (LLECE); 8) Sistema Regional de Información (SIRI) e 9) KIPUS, la Red Docente de América Latina y el Caribe (Disponível em: <http://www.unesco.cl/ esp/redes/>. Acesso em: 29.05.2007). 5 Dados obtidos no portal da UNESCO <http://portal.unesco.org/education/en/ev.phpURL_ID=32260&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html>. 6 Encontramos em Marchesi (apud PRELAC, 2007a, p. 50) a definição do professor moderno: “(Atualmente) a tarefa que se espera de um professor é um tanto mais ampla do que transmitir conhecimentos aos seus alunos, o que, faz muito pouco tempo, era sua atividade principal e para o que se preparava. Agora fazem falta muitas outras habilidades, sem as quais é difícil conseguir que os alunos progridam na aquisição do saber: o diálogo com os alunos, a capacidade de estimular o interesse por aprender, a incorporação das tecnologias da informação, a orientação pessoal, o cuidado do desenvolvimento afetivo e moral, a atenção à diversidade do alunado, a gestão da aula e o trabalho em equipe.”

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38 Infere-se do excerto que a popularização da noção de professor-gestor visa disseminar a idéia de que os professores também participam da formulação de políticas educacionais, sendo co-responsáveis por seu sucesso. A questão, entretanto, permanece: como iriam os professores das unidades escolares dos mais remotos municípios da grande e heterogênea região da América Latina e Caribe sentirem-se motivados, envolvidos e até mesmo responsáveis por uma política pensada em reunião de Ministros no âmbito do Compromisso Educação para Todos? Os próprios documentos respondem a questão, assinalando a importância fulcral da promoção de redes sociais e de redes de instituições de formação docente em nível superior, a exemplo do PREAL e da Kipus, estratégicas para melhorar a performance dos professores em muitos países. Segundo documento do Banco Mundial, específico para professores do Brasil, as redes têm se mostrado um dos catalisadores mais eficientes para a formação de professores e contínuo reforço de treinamento (DELANNOY E SEDLACEK , 2000). Em documento recente, Education Sector Strategy Update, o Banco Mundial (2006, p. 71) explicita a compreensão do papel ocupado pelas redes para a formulação de consensos e disseminação de idéias. Anuncia que, para dar mais ênfase aos resultados, o Banco se articulará com redes nacionais e regionais de pesquisa para construir sentimento de pertença e foco nos resultados e sustentálos localmente (BANCO MUNDIAL, 2006, p. 69)7 . A forte recomendação do uso de redes para difusão e implantação de reformas educativas na região encontra-se no cerne de nossa motivação para compreender como se disseminam as prioridades da reforma educativa pela região, como serão implementadas, como atingirão as escolas, como pretendem modificar as concepções e práticas dos trabalhadores da educação. Buscamos entender o interesse e o papel dos sujeitos históricos que as organizam e orientam. Pretendemos apreender as práticas políticas articulatórias das ações localizadas por meio da ação das redes. Ou seja, trata-se de passar da análise fragmentada de organizações específicas para a compreensão do movimento que decorre de sua articulação em redes, tentando perceber as interconexões entre o local, o regional e o global (supranacional, transnacional). As duas redes escolhidas para estudo foram o Programa Regional da Reforma Educativa na América Latina, que possui um Grupo de Trabalho 7 O Projeto Regional de Educação para América Latina e Caribe, PRELAC (2002), sugere como requisito aos professores trabalhar em redes e aprender com o trabalho cooperativo entre pares.

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39 especificamente voltado à profissionalização docente, e a Rede Kipus de Formação Docente.

O PREAL O Programa Regional da Reforma Educativa na América Latina, criado em 1995, é uma parceria entre organizações do setor público e privado do hemisfério que procura identificar problemas e promover e implementar políticas educacionais. O PREAL tem três objetivos intermediários: 1) envolver a sociedade civil na reforma educacional; 2) monitorar o progresso da educação e 3) enriquecer o pensamento dos tomadores de decisão (decision-makers) e formadores de opinião sobre política educacional. Suas atividades incluem o patrocínio de grupos de trabalho regionais sobre questões políticas, workshops e conferências, parceria empresa-educação, pesquisa e publicações. As atividades do PREAL recebem apoio da United States Agency for International Development (USAID), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Banco Mundial, Fundação General Eletric, entre outros. Do PREAL participam brasileiros da mais alta expressão no cenário educacional, como o ex-Ministro da Educação, Paulo Renato Souza (1994-2002), assessores do BID e Banco Mundial, como Cláudio Moura Castro e Guiomar Namo de Mello, a ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), Maria Helena Guimarães. Identificando os membros brasileiros que participam do GT Profissionalização Docente (GTD) no PREAL e mapeando os cargos públicos que já ocuparam, vínculos com Organismos Internacionais e as organizações a que pertencem atualmente, encontramos diversos tipos de relações interessantes que evidenciam que este GT é formado por ex- membros do executivo, do CNE, do INEP, que ocuparam postos estratégicos no cenário educacional e, agora, fora do aparelho de Estado, atuam como consultores, formadores e assessoram a implantação de reformas educacionais em vários estados, municípios e fazem a formação de gestores atuando em parceria com várias Secretarias de Educação, União Nacional de Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) ou Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED). Cite-se a atuação de Paulo Renato Souza que, estando à frente do Ministério da Educação (MEC) nos governos FHC, junto ao Conselho Nacional de Educação (CNE) Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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DUAS REDES, UM PROJETO


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40 e INEP, exigiu determinadas adequações dos sistemas educacionais, escolas e professores por meio da aprovação de várias reformas educacionais em sua gestão (1994-2002). Ao deixar o governo, fundou a empresa Paulo Renato Souza Consultores, com ex-membros do MEC que atuam como consultores associados, para assessorar a implantação de reformas por eles criadas enquanto ocupavam cargos no Ministério. Dentre os clientes dessa empresa, encontram-se o Banco Mundial, BID, Editora Moderna, Grupo Positivo, Fundação Gerdau, Fundação Jacobs, Fundação Lemann, entre outras. Paulo Renato Souza também integra o quadro diretor da Fundação Lemann, de capital suíço, que fornece cursos para gestores da educação em vários estados. Em 2003 e 2004 ofereceram o curso Gestão para o sucesso escolar nos estados de São Paulo e Santa Catarina, em seguida atuaram na formação de gestores de escolas do Ceará, Tocantins e São Paulo (FUNDAÇÃO LEMANN, 2007). Este curso foi realizado em parceria com o Instituto Protagonistés, cuja diretora-presidente é a ex-Secretária de Educação de São Paulo, Tereza Roserley Neubauer, no governo Covas (1995-2001). Neubauer foi membro do CNE nas gestões FHC, consultora do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e Banco Mundial (1995-2002) e é membro do GT Descentralização e Autonomia do PREAL. Um dos objetivos da Fundação Lemann é dar “apoio à elaboração de Planos Municipais de Educação junto às Secretarias Municipais de Educação”. A Fundação Lemann desenvolve, em parceria com o Instituto Ayrton Senna e a Fundação Banco do Brasil, o projeto Escola Campeã, utilizando a metodologia da Fundação Luis Eduardo Magalhães (FLEM) com sede na Bahia. A FLEM desenvolveu um Sistema de Certificação Ocupacional que visa estabelecer padrões de mérito e competência para a escolha de seus profissionais. Sua Agência de Certificação Ocupacional é composta de Câmara de Educação e Câmara da Gestão Pública. Da primeira fazem parte Rubens Portugal8 , Célio Cunha, da UNESCO,

8 Rubens Junqueira Portugal, como executivo de empresas, foi vice-diretor de Planejamento de RH do The Chase Manhattan Bank e Diretor de RH e Planejamento Estratégico no Grupo Fininvest. Fundador do Instituto Rubens Portugal de Aprimoramento de Professores, em São José dos Pinhais (PR), tem trabalhado junto às redes públicas de ensino estadual e municipais de vários estados. Organizou e coordenou vários eventos para formação de professores, em sua maioria na Universidade do Professor em Faxinal do Céu, no Paraná. (IPD, 2007)

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Clemenceau Chiabi Saliba, consultor do Instituto Ayrton Senna, e da Câmara da Gestão Pública, Heloísa Lück, consultora sobre Gestão Educacional do CONSED e coordenadora da Rede Nacional de Referência em Gestão Educacional (RENAGESTE). Em 2006, a revista Gestão em Rede ganhou grande impulso e distribuição com apoio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE. O FNDE também garante a distribuição do periódico Nova Escola, produzido pela Fundação Victor Civita (FVC), um dos mais populares entre os professores. Além da revista, a FVC edita as coleções Ofício de Professor e Ofício de gestor e desenvolve o projeto Reescrevendo a Educação, com a Editora Ática e Scipione, do qual participam como articulistas outros membros do GTD, como Cláudio Moura Castro, Gustavo Ioschpe, Paulo Renato de Souza e o presidente do Grupo Gerdau. A diretora executiva da Fundação Victor Civita, Guiomar Namo de Mello, membro do GTD, foi Secretária Municipal de Educação de São Paulo, no governo do prefeito Mario Covas (1982-1985), consultora do Banco Mundial, membro do CNE no governo FHC, relatora e membro de comissões que elaboraram pareceres importantes para a reforma educacional, como as diretrizes curriculares para o Ensino Médio (1998), para a Educação Profissional (1999) e para a formação de professores da Educação Básica (2001). Em suma, atuou como consultora de organismo internacional, ajudou a elaborar a política educacional como membro do MEC, presta consultoria para implementar a política recomendada em nível municipal, é parceira da UNDIME e do CONSED. A revista Nova Escola, publicada pela FVC, é subsidiada pelo FNDE e distribuída em todas as escolas públicas de ensino fundamental, pré-escolas e classe de alfabetização com mais de 50 alunos do país, totalizando 106.867 escolas em 2006. Naquele ano, a FVC teve como parceiros o MEC, a UNDIME, o CONSED, o InterAmerican Dialogue (IAD), o PREAL, a Fundação Roberto Marinho. Essa imensa rede institucional certamente decorre dos relacionamentos de seus dirigentes, por exemplo, Claudia Costin, vice-presidente da Fundação Civita, foi Gerente de Políticas Públicas do Banco Mundial. Integram o conselho curador da FVC Cláudio Moura Castro, aposentado do BID, e a ex-primeira dama Ruth Cardoso. O PREAL foi criado em 1995 pelo IAD. Publica Boletins com informações sobre a educação na região a partir de dados e análises fornecidos pela UNESCO, CEPAL, BID e Banco Mundial e conta com: Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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o apoio generoso da United States Agency for International Development (USAID), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a AVINA Foundation, a Tinker Foundation, o Banco Mundial, a GE Foundation e outras. Estas instituições têm demonstrado um compromisso permanente com a reforma educacional na América Latina. Seu apoio contínuo e flexível ao PREAL foi crucial para a conformação das redes institucionais e de informações necessárias para fazer com que este projeto fosse bem-sucedido. (PREAL, 2006, p.8)

Brasileiros de expressão participam do IAD, Armínio Fraga e Henrique Meirelles, ex-presidentes do Banco Central, Roberto Teixeira da Costa e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso integram o quadro de diretores. A Fundação Lemann, Jacobs e o Grupo Gerdau promoveram em 2006 a Conferência Ações de Responsabilidade Social em Educação: melhores práticas na América Latina. Vários membros do GTD, representante do PREAL, do IAD, participaram das sessões como conferencistas, palestrante ou comentaristas. Um dos momentos mais aguardados da conferência internacional foi a reunião de países em seis grupos. O Brasil reuniu personalidades e representantes de empresas para propor compromissos concretos para a melhoria da educação na região, discutindo ações que comporiam um documento final do movimento. Tal documento intitula-se Compromisso todos pela Educação. Analisando os membros que compõem o conselho de governança, comitê gestor e comissões técnica e de articulação, reencontramos muitos dos membros brasileiros do PREAL. O Compromisso Todos pela Educação visa mobilizar a iniciativa privada e organizações sociais (terceiro setor) para atuar de forma convergente, complementar e sinérgica com o Estado na definição das políticas públicas. O ponto central de sua estratégia é a co-responsabilidade e a busca de eficiência, eficácia e efetividade. Seu enfoque é primordialmente voltado à melhoria da qualidade do ensino, traduzida em resultados mensuráveis obtidos por meio de avaliações externas. Em consonância com o ideal de Educação de qualidade para todos, defendido pelo Todos Pela Educação, o MEC lançou o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE). Dentre as medidas apresentadas no PDE, destacam-se as que tratam da Educação Básica. Elas estão reunidas principalmente no “Programa de Metas Compromisso Todos Pela Educação”, batizado em homenagem Todos Pela Educação (Todos pela Educação, 2007)

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Esse breve mapeamento de parte da rede permite observar a marcante influência dos organismos internacionais e regionais, em especial do PREAL, nas atividades de fundações que, por meio de parcerias, difundem idéias via empresas de telecomunicações e parque editorial. O PREAL exerce, também, papel importante na difusão de diretrizes para a reforma educacional, disseminando valores, diretrizes, orientações, conceitos e preconceitos, atuando sobre gestores, legisladores e formadores de opinião. Ora atuando no governo, ora em fundações e organizações não-governamentais, os membros do GT Profissionalização Docente do PREAL influenciam os rumos da reforma educacional brasileira, fornecendo consultorias, assessorando a construção de planos estaduais e municipais de educação, formando professores e gestores educacionais, certificando suas competências, atuando em instituições que vendem serviços para implantar a reforma educacional em vários estados do Brasil. Os dados coligidos entre 2005 e 2007, com base em informações de domínio público, permitiu-nos verificar que os membros do PREAL realizam uma parte substancial da implementação da reforma educacional, ou seja, difunde idéias, avaliações e análises sobre a reforma. O programa é formador de opinião, influencia os tomadores de decisão, faz consultoria para a UNDIME e o CONSED, está articulado a organismos internacionais e presta assessoria para formação de professores e gestores em vários estados do Brasil. Possui, portanto, um papel fundamental na capilarização das diretrizes internacionais por meio de organizações governamentais e não-governamentais regionais e locais. A REDE KIPUS Com estratégia assemelhada à do PREAL, a Rede Kipus, Rede Docente da América Latina e Caribe, também se dedica a formar opiniões e difundir idéias acerca da formação docente, mas no âmbito das instituições superiores de formação. Não tão estruturada quanto o PREAL, a Kipus nasceu da iniciativa de universidades, apoiada pela UNESCO, em 2003, no Chile e conta, atualmente, com 162 organizações filiadas.9 Liga-se ao Projeto Regional de Educação para

9 A Rede foi criada durante o Seminário Latino-americano de Universidades Pedagógicas, realizado na Universidade Metropolitana de Ciências da Educação, Santiago do Chile, 8 e 9 de maio de 2003.

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44 a América Latina e o Caribe (PRELAC)10 e é parte da estrutura da UNESCO 11 . Constituiu-se, segundo informações em sua página eletrônica, como uma aliança entre organizações, instituições e pessoas de algum modo envolvidas em processos de “desenvolvimento profissional e humano de docentes”12 . A análise preliminar de seus documentos possibilitou verificar que não se configura como estratégia de junção de órgãos estatais, mas, sim, de universidades, faculdades, institutos, redes profissionais, organizações não-governamentais, sindicatos de professores e, entre eles, órgãos da administração estatal. O objetivo central dessa rede é a busca do fortalecimento docente, de seu protagonismo, posto que es una de las claves para las transformaciones educativas. (UNESCO, 2006). Sua estratégia consiste em reunir o conhecimento acumulado pelas instituições de formação docente da região em nível superior e oferecer elementos para o que denomina “uma formação inovadora”, isto é, uma formação que concilie demandas locais ou regionais, apresentandoas como universais. Sua tarefa é a de coordenar um movimento regional de produção de conhecimento e de re-significação da educação no interior das universidades e correlatos – e aí está o sentido de uma organização lastreada em instituições universitárias ou de nível superior pedagógicas (UNESCO, 2003, p. 4). Segundo documentos disponíveis no website da UNESCO, gerar conhecimentos e aprender são condições basilares para que se produzam projetos e programas de investigação conjunta. Segundo o texto de abertura de sua página, o seu compromisso refere-se a:

10 O PRELAC prevê um modelo de acompanhamento das reformas. Entre outras, propõe: “maior participação de atores e instâncias e criação de redes”. [...] “incide na institucionalização de redes, as quais supõem uma organização muito diferente daquelas existentes nos sistemas educacionais atuais, já que exigem uma estrutura aberta, uma grande autonomia, hierarquias não lineares, múltiplas conexões e limites flexíveis. Isso significa um grande desafio na reordenação dos sistemas educacionais.” [...] “Será realizado um conjunto de ações com os países pelas redes regionais coordenadas pela UNESCO ou por redes de apoio lideradas por outros organismos de cooperação internacional.” (PRELAC, 2002, p. 22) 11 Los QUIPUS fue un sistema o una forma de comunicación de los pueblos andinos, según algunos investigadores; otros mencionan que fue un mecanismo de registro de información, estadísticas o hechos históricos. También hay quienes afirman que era una forma de levantar información actualizada para planificar y “rendir cuentas” (UNESCO, 2006). 12 Embora se afirme como uma rede interessada em congregar instituições de ensino superior voltadas à formação docente, muitos dos documentos que utiliza originam-se de relatórios sobre as políticas educacionais dos países da região, patrocinados pela UNESCO em conjunto com ministérios da educação. Na página da UNESCO estão publicados em torno de 15 relatórios, entre eles o do Brasil.

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todo lo que signifique fortalecer la profesión y la profesionalidad docente, en el contexto de una educación de calidad con equidad para toda la población (UNESCO, 2006). A particularidade da Rede Kipus encontra-se, pois, na intenção de investir na “re-significação da educação” no interior das universidades e outras instituições de formação docente para, por esse meio, construir novos significados para a própria formação. Em 2004, com oito instituições filiadas, a Kipus realizou um encontro em Honduras, onde foram considerados temas emergentes a formação de docentes, os sistemas de desenvolvimento profissional, a profissionalização do trabalho, o perfil dos formadores e a avaliação do desempenho nas instituições formadoras13 . Na Colômbia, em 200514 , discutiram-se modelos e enfoques na formação da perspectiva do ensino-aprendizagem, tanto de disciplinas quanto de pedagogia, assim como as práticas pedagógicas e a reflexão sobre a integração entre conhecimento disciplinar e saber pedagógico para uma difusão justa e eqüitativa do conhecimento como bem público15 . Além disso, a própria idéia de “redes pedagógicas e de professores” foi tematizada e considerada um importante espaço de formação docente e de difusão de conhecimento (UNESCO, 2006)16 . Entre os documentos produzidos pela Rede, ou por ela encomendados, está a Carta de Santiago do Chile (UNESCO, 2003), que elenca entre seus principais compromissos os que seguem: a) atuar em consonância com as recomendações relativas à educação formuladas em conferências internacionais e por comissões mundial e regionais (UNESCO, 2003, p. 1)17 ;

13 Esse encontro contou com a presença de 15 países da região, representados por universidades pedagógicas, faculdades de educação, ONGs relacionadas à formação docente, além de alguns ministérios de educação. 14 O encontro realizou-se em Bogotá, em setembro de 2005. 15 O tema desse III Encuentro Internacional de la Red de Formación Docente de América Latina y el Caribe, KIPUS, foi El conocimiento que educa. A Rede Kipus tiene como uno de sus propósitos fundamentales el mejoramiento de la calidad de la educación, en la cual, como es natural, se ve seriamente comprometida la circulación del conocimiento que las distintas comunidades acadêmicas construyen, y que fluye por distintos canales sociales, encontrándose comprometido en múltiples implicaciones éticas, políticas y educativas, que surgen de su consideración como bien público. (OREALC/UNESCO, 2005) 16 Em outubro de 2006, na Venezuela, ocorreu o IV Encontro, tematizando Políticas Públicas y Formación Docente para un Proyecto de País, tendo em vista o fortalecimento de alianças e o desenvolvimento de projetos entre instituições, organizações e pessoas responsáveis pelo desenvolvimento profissional e humano de docentes. (UNESCO, 2006) 17 A Carta refere a Conferência Mundial sobre Educação para Todos (Jomtien, Tailandia, 1990), o Fórum Mundial de Educação (Dakar, Senegal, 2000), as Conferências dos Ministros de Educação da América Latina e Caribe, e o PRELAC.

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46 b) considerar a formação de docentes como eixo fundamental para o sucesso das reformas educativas na região e, simultaneamente, para enfrentar os desafios do Fórum Mundial de Educação de Dakar, tendo em vista a redução da pobreza e o desenvolvimento social e econômico (UNESCO, 2003, p. 1); c) considerar como tarefa principal dos sistemas educacionais e dos professores el mejoramiento de la calidad de la educación y su pertinência (UNESCO, 2003, p.1); d) verificar se os currículos são relevantes, valorizar a pesquisa que tenha em vista melhorar a formação, ressaltando-se aqui a formação dos formadores de docentes e a prática profissional como eixo da formação e como horizonte da acreditação e controle de qualidade das instituições formadoras (UNESCO, 2003, p. 2); e) difundir uma educação que forme integralmente o ser humano e esteja à disposição de todos os segmentos sociais, com qualidade, assegurando-se a profissionalidade docente e se envolvendo em discussões que conduzam as universidades a resignificar la educación (UNESCO, 2003, p. 1) e f) considerar que as universidades pedagógicas e as instituições formadoras de docentes contribuem significativamente, e mesmo preponderantemente, para a formação dos docentes necessários aos sistemas escolares (UNESCO, 2003, p. 1-2). Interessa realçar que, embora muitos dos compromissos acima referidos façam parte da agenda estatal dos países da Região, a Rede Kipus os assume como organização constituída de instituições prioritariamente voltadas à formação docente em nível superior, como assinalado. Também é importante observar que tais compromissos indicam uma reorientação de rumo. A proposta de “re-significar a educação” mediante a alteração da formação dos formadores nas instituições de formação inicial – ainda que articulada à formação contínua – parece evidenciar que não se trata apenas de reformar as mentes dos professores da ativa, mas também – e talvez até principalmente – da consciência da próxima geração de professores. Esse objetivo se expressa em um conjunto de medidas em curso que tendem a reconfigurar a formação e o trabalho docente no continente, a saber: estabelecimento de diretrizes curriculares nacionais para a formação inicial de professores; redefinição das funções docente; ênfase na profissionalização docente; implantação da certificação periódica de docentes; instituição de gratificações por desempenho.

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Outras tarefas que caracterizam a reconversão docente estão intimamente relacionadas à organização do trabalho e à gestão, tanto no nível da escola quanto do sistema educacional. Dizem respeito à introdução do gerencialismo na educação que se manifesta em crescentes incentivos à descentralização e autonomia, na flexibilização da legislação, na compreensão da escola como uma organização complexa que deve prestar contas (accountability) sobre a aplicação dos recursos, mas, fundamentalmente, ser responsabilizada pelos resultados dos alunos nos exames nacionais. A avaliação de impacto e de resultados tão recomendada pelo Education Sector Strategy Update (BANCO MUNDIAL, 2006) está sendo implementada nos vários níveis de ensino, dos anos iniciais à pós-graduação18 . A avaliação incidirá não apenas sobre os alunos, mas também sobre os professores, os gestores e as instituições. A Rede Kipus evidencia que é preciso preparar adequadamente o professor, mas prepará-lo apropriadamente pressupõe formar também os formadores, líderes de escola e gestores, decorrendo daí sua proposta de intervenção nas instituições formadoras, portanto, sobre a formação da intelectualidade da área. CONSIDERAÇÕES FINAIS As evidências arroladas neste texto indicam que reconverter o professor é um empreendimento que implica em reconverter as próprias instituições de formação docente ou os projetos institucionais por elas implementados. Desse modo, o propósito de reconversão profissional supõe a reconversão conceitual, ou seja, deve-se assumir que estamos frente ao colapso do conceito de professor, articulado ao colapso de uma determinada concepção de escola19 . Para Campos (2004, p. 12): na escola tradicional [...] os docentes (estão) associados exclusivamente ao trabalho de classe e não necessariamente ao espaço maior da gestão

18 O Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), lançado em 2007 pelo MEC, prevê um conjunto de 40 ações muitas das quais expressam a incorporação da avaliação de resultados na gestão da educação como o Provinha Brasil, IDEB, Nova CAPES entre outras. 19 Para Campos (2004, p. 11), “As mudanças no atual cenário levaram a um esgotamento do papel do professorado na educação tradicional, associado principalmente à transmissão unidirecional de informação, à memorização de conteúdos, a uma parca autonomia nos projetos e na avaliação curriculares, a uma atitude passiva diante da mudança e da inovação educacional, e a um modo de trabalhar de caráter mais individual do que cooperativo.”

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da escola e do sistema educacional, com o que se poderia entender o trabalho docente como uma tarefa claramente pedagógica.

Os “cursos de capacitação” e correlatos como estratégia de atualização ou “reciclagem” docente – promovida pelo Estado e por agências de formação – são considerados pela UNESCO uma “via do passado” 20 . A crítica assenta-se sobre a idéia de que este procedimento não levou à ruptura com a feição tradicional da escola e do professor. Está explicitada aqui a posição de que o Estado, em suas estratégias de formação permanente ou em serviço, não logrou uma mudança substantiva na mentalidade docente, não conseguiu opor-se a uma perspectiva considerada fortemente tradicional e não conseguiu sucesso em suas tentativas de “modernizar” o professor21 . Essa avaliação conduziu a uma compreensão de reconversão docente que põe sobre as instituições de formação a responsabilidade por essa iniciativa. O item 25, do ponto V. Los docentes y el derecho de los estudiantes a aprender, das Recomendações do PRELAC (2007b, p. 5), assinala que é necessário reforzar los procesos de formación de quienes forman a los docentes y de los equipos que dirigen las escuelas para que se generen cambios pedagógicos e institucionales en los centros educativos. Desse ponto de vista, o professor tradicional ou o experto rutinario deve tornar-se experto adaptativo, ou seja, os docentes reconvertidos deverão incorporar a capacidade de adaptar-se em tempo integral ou ao longo da vida (UIS, 2006, p. 54). Assim, a declamada obsolescência de los saberes docentes exigiriam não apenas sua reconversão profissional por meio de novas estratégias de formação, como também produziria novas formas de regulação do trabalho docente que, ao contrário de produzir a democratização do acesso ao conhecimento, son funcionales a la reconversión de la educación como mercancía subordinada a los requerimientos de la competitividad. (IMEN,s.d., p. 11). 20 Campos (2004, p. 14) entende que se trata da “re-significação de seu trabalho e (da) recuperação da posição central dele (que) pressupõem um reconhecimento de que há um conjunto de fatores que determinam o desempenho, e de que esses fatores interagem e influenciam uns aos outros. Entre eles: formação inicial, desenvolvimento profissional em serviço, condições de trabalho, saúde, auto-estima, compromisso profissional, clima institucional, valorização social, capital cultural, salários, estímulos, incentivos, carreira profissional, avaliação do desempenho.” 21 O professor moderno deve ser capaz de se co-responsabilizar pelos resultados do trabalho da sua escola, articulando as políticas internacionais com as locais e nacionais, ser protagonista nas mudanças educativas e garantir o aprendizado dos estudantes (PRELAC, 2007a, p. 60); comprometer-se com os resultados de seu trabalho, combater os baixos resultados de aprendizagem e da insatisfação, frustração e situação de conflito em que vivem os docentes (Idem, p. 61).

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Pode-se perceber que a transformación educativa reduz-se a políticas que produzem a precarização do trabalho do professor (OLIVEIRA, 2004), agravada pela reconversão laboral, num mecanismo em que o professor é responsabilizado individualmente por suas condições de acesso e permanência no mundo do trabalho. As redes aqui referidas, por meio de seus intelectuais e instituições, encarregam-se de difundir esse tipo de ideário na região. Evidencia-se um dado da realidade social contemporânea pouco explorado nas pesquisas educacionais, ou seja, o de que os indivíduos, dotados de recursos e capacidades propositivas, organizam suas ações e criam espaços políticos, por vezes virtuais, para atuar em defesa de seus interesses. Mesmo nascendo em uma esfera informal de relacionamentos pessoais ou institucionais, os efeitos das redes podem ser percebidos em várias conexões/interações com o Estado. Essas conexões ajudam a compreender porque encontramos, em nível nacional, reprodução fiel de justificativas, argumentos e discursos presentes em documentos de organismos internacionais. Compreender a articulação local-global e as determinações fundamentais que estão fora dos muros da escola, mas influenciam profundamente as decisões tomadas em seu interior, além das mudanças nas relações e no trabalho realizado no “chão da escola”, são desafios para os pesquisadores da área. A atuação de redes em âmbito nacional, regional e internacional, visando reconverter “espaços” e “funções” dos professores de modo a provocar uma re-significação da educação, é um tema de investigação importante, de nosso ponto de vista. Mapear e acompanhar as ações das redes tem o propósito de contribuir para conhecer as estratégias de disseminação, cooptação e também de enfrentamento e resistência à produção de consensos na disputa pela hegemonia na sociedade capitalista. REFERÊNCIAS AGUERRÓNDO, Inês. Os desafios da política educacional relativos às reformas da formação docente. 2002. p. 1-25. Disponível em: <http://novaescola.abril.com.br/estante/oficio/01E4InesAguerrondo.pdf>. Acesso em: 2 jul. 2006. ALVES, Israel Gutemberg. As novas tendências da formação de proecnológica fessores no contexto tecnológico. Educação T Tecnológica ecnológica. Belo

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PARA QUE SERVEM OS CURSOS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES? Lizia Helena Nagel

INTRODUÇÃO

A pergunta: Para que servem os cursos de formação de professores? não pode ser respondida sem o prévio esclarecimento sobre o que se entende por educação em seus desdobramentos naturais de ensino e de aprendizagem aprendizagem, Na verdade, se existe interesse na formação de professores, isso parece ser justificado porque se credita à figura docente uma função própria ao trabalho de educar. Mesmo assim, avançando na questão, indaga-se: Qual é a função conferida ao professor professor,, hoje? Diante desse questionamento, deve-se lembrar que o trabalho de educar tem cunho social exatamente porque, na história dos homens, ele sempre aparece sob a elucidação de atos ou pressupostos considerados válidos para assegurar uma sobrevivência (entre os pares) igual, ou melhor melhor,, a já existente existente. Com maior ou menor racionalidade, com maior ou menor consciência sobre a intencionalidade educativa, espiando pelo “túnel do tempo”, apreende-se que filhos aprendiam com os mais velhos a forma mais eficiente para se abrigarem das intempéries, adaptaremse ao meio, caçarem, plantarem, confeccionarem utensílios e ferramentas, tudo com o interesse de evitar dores ocasionadas pela mera reprodução de tentativas anteriores infrutíferas. Partindo do crédito que o homem não nasce feito, mas se hominiza no percurso de sua luta por sobrevivência, no processo angustiante de manter-se vivo, deve-se lembrar dos aspectos culturais (emocionais, psicológicos, comportamentais e intelectuais) que vão surgindo, no tempo, na dinâmica das relações humanas. Assim, é

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I - Recuperando o significado e a função da educação


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56 bom recordar que o amor platônico já foi vivido como ideal; que os adolescentes não se afirmavam como contestadores de qualquer autoridade; que os cavaleiros achavam correto ajoelharem-se diante de um senhor e que as refeições não exigiam o uso de garfo e faca. Também é preciso lembrar o desenvolvimento da linguagem em sua forma articulada, a elaboração de conceitos abstratos, a capacidade de julgar o já dado. Enfim, nenhum comportamento humano pode ser visto como produto de uma evolução natural, biológica e/ou como resultado de aprendizagem solitária, peculiar a uma única pessoa. Assumindo-se, também, que a hominização, como processo próprio aos homens em sociedade, não é uma trajetória apenas de aperfeiçoamento contínuo, lembra-se Adorno e Horkheimer (1985, p. 195), quando, impressionados com o horror provocado pelo antiA transformação da inteligência em estupidez semitismo, dizem: “A é um aspecto tendencial da evolução histórica histórica”. Essa nãolinearidade no aperfeiçoamento, que consiste, segundo os autores referenciados, na possibilidade de estupidez da própria inteligência (1985), não pode ser esquecida caso se pense na educação como algo inerente ao nosso amanhã. Sem escapar da possibilidade de o homem agir por razões que possam tornar-se calamitosas, isso não elimina, mas, ao contrário, confirma o ato de educar como uma necessidade gerada por expectativas e por práticas que se impõem, mesmo quando coordenadas por mero desejo de manutenção do mínimo já conquistado. Assim, para além de um provável preço a pagar em função de um afã estúpido de sobrevivência, o homem não deixa de ser um Prometeu Acorrentado que, na tragédia de Ésquilo (1998: pp. 35,36), diz: Eles desconheciam as casas bem feitas com tijolos endurecidos pelo sol, e não tinham noção do uso da madeira; como formigas ágeis levavam a vida no fundo de cavernas onde a luz do sol jamais chegava, e não faziam distinção entre o inverno e a florida primavera e o verão fértil; (vs 580-587) [...] O mais importante de tudo: não existiam remédios para os doentes, nem alimentos adequados, nem os bálsamos, nem as poções para ingerir, e finalmente,

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Enfim, o homem, ou melhor, o educador traduziu o seu trabalho na esteira da responsabilidade que Prometeu se atribuiu. Sua função, decodificada socialmente, foi a de repassar aos outros os engenhos e saberes já construídos, tentando impedir a possibilidade de reprodução das dificuldades já vividas, como eterno também, interrompendo o fantasmagórico ciclo do “eterno recomeço fazer, em qualquer recomeço” em qualquer trabalho, em qualquer fazer saber saber. Ligando materialidade, necessidade, intencionalidade e trabalho trabalho, chega-se à conclusão de que o ato de educar educar,, em sua operacionalização, não se constitui um simples produto da consciência de homens ilustrados. Tampouco se constitui um mero desejo de adultos bem intencionados ou, ainda, um conjunto de pressupostos arbitrários de indivíduos que. por natureza, ou prerrogativas econômicas, divertem-se em ter poder, impondo aos outros o seu saber! O ato de ensinar não pode ser simplesmente confundido com o repasse de conhecimentos e valores considerados, a priori, ilegítimos, como propõe uma tese que vem sendo defendida por diferentes autores na pós-modernidade. Incrível acreditar que, até a data de hoje, o mundo construído e pensado pelos homens foi, simplesmente, um conjunto de erros e de ilusões, a não ser que se faça uma atualização da leitura religiosa que conferia a Adão, e aos seus descendentes, uma natureza tão decaída quanto incapaz, tal como teria sido definida por São Paulo, na Bíblia Sagrada. Dizia o apóstolo: [Os homens] Então, cheios de toda espécie de malícia, perversidade, cobiça, maldade, cheios de inveja, homicídio, contenda, engano, malignidade. (cap. 1. v. 29) ... São difamadores, maldizentes, inimigos de Deus, insolentes, soberbos, altivos, inventores de maldades, desobedientes aos pais. (cap. 1, v. 30) ...

São insensatos, imodestos, sem afeição, sem palavra e sem coração, sem misericórdia... (cap.1. v. 31) Não parece, na verdade, ser por obra dessa natureza, qualificada apenas por seus defeitos e/ou limites, que o homem tenha Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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por falta de medicamentos vinha a morte, até o dia em que mostrei às criaturas maneiras de fazer misturas salutares capazes de afastar inúmeras doenças. (vs 617-624).


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58 se manifestado, historicamente, a favor do conhecimento relacionado fazer e/ou saber do passado com o “fazer passado”” como mediação para o “fazer e/ou saber do futuro futuro””. No mesmo sentido, não parece justificável tomar os erros, ou as ilusões do conhecimento, para legitimar a impossibilidade de ensinar ensinar,, justificando e glorificando apenas as experiências privadas como condição para o desenvolvimento do ser humano. O conhecimento sobre o fazer e/ou o saber do passado passado, não descolado do seu oposto íntimo, o fazer e/ou o saber do futuro futuro, fundado na apreensão do trabalho necessário à sobrevivência, implica, obrigatoriamente a noção de comunidade, que se renova, sob maior ou menor conscientização, por atos educativos. Atos educativos que levam a pensar o homem como um ser ativo, com intencionalidade, como um ser que não se caracteriza nem pelo vazio, nem pela falta de projetos. Nesse sentido, como o ato educativo Saviani (1995, p. 17), assume-se o entendimento do como o: [o] ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo (Grifo nosso).

Apresenta-se, pois, a educação, imersa nos interesses de uma dada sociedade que pleiteia sobreviver da maneira sempre mais otimizada possível (seja ela capitalista, ou não). Assim como intimamente vinculada ao trabalho que, para além das classes sociais, produz o ser social, o homem que se expressa buscando existir sob os limites da qualidade possível de acordo com tal ou qual época histórica. Nesse quadro, pensa-se a educação como uma prática social que se afunila no ensino propriamente dito, formalizado, preferencialmente, pelas instituições educacionais e ministrado, efetivamente, por professores. II - Expondo os dados sobre os resultados educacionais Recuperado, de forma mais ampla e remota, o significado de educar, preso por suas raízes à concepção de homem como um ser social que se faz ao longo do trabalho, capaz de prover e de modificar os meios ou as condições de existência, passa-se a expor informações Política, Educação e Cultura


e/ou dados oferecidos pelos órgãos responsáveis pelo sistema educacional, os quais remetem a reflexões mais abrangentes. Iniciando pelo Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes (Pisa1 ) realizado no ano 2000, com 250 mil estudantes na faixa de 15 anos, do qual os brasileiros participaram por convite da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), tem-se, pelos resultados obtidos, a informação do despreparo de nossos educandos para enfrentar os atuais desafios da sociedade contemporânea. A “sobrevivência” dos nossos jovens, se estimada em relação com as “competências”2 apresentadas pelos estudantes de outras nacionalidades, encontrar-se-ia em níveis de dificuldade bem maiores do que a de seus pares na mesma época. No ano de 2000, entre 31 países, os brasileiros conseguiram ficar em último lugar na prova de Leitura, garantindo apenas pontuação nos níveis mais baixos da escala de avaliação. Incapazes de compreender os textos escritos, as ordens dadas, mostram uma tendência a responder de forma subjetiva, de acordo com o que cada um pensa, as questões apresentadas. Com os resultados de outras dez nações que aplicaram o teste no ano subseqüente, o Brasil consegue sair, no campo da Leitura, do 31º lugar e colocar-se no 37º, e assegurar o penúltimo lugar, ou seja, o 400, em Matemática e em Ciências. O quadro a seguir mostra as pontuações obtidas pelos países com pior desempenho.

1 O Pisa surge como um teste sobre as competências de uso da linguagem que se tornaram cruciais no mundo moderno, segundo o entendimento dos países mais avançados do globo. Pisa 2000 - Relatório Nacional (2001, p.87). 2 Competência, conceito de Phillipe Perrenoud (1993) adotado nos documentos oficiais da educação, é entendida como a “capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiando-se em conhecimentos, mas sem se limitar a eles”. (In: INEP, Saeb, 2002 a)

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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Quadro 1 - Ranking dos países que participaram do Pisa: Piores Desempenhos (2000-2001) Or dem

Leitur a

Matem ática

C iências

37 37

B rasil

A l b â n ia

Argentina

38 38

Macedônia

Macedônia

Indonésia

39 39

Indonésia

Indonésia

A l b â n ia

40 40

A l b â n ia

B rasil

B rasil

41 41

Peru

Peru

Peru

Fontes: www.inep.org.br e http://www.pisa.oecd.org. Acesso em: 18/08/05.

Dentro dessa mesma classificação, na qual a Coréia do Sul se situa em 7º. lugar, outra reflexão se impõe, baseada em documento anterior, no PISA 2000 - Relatório Nacional (2001, p. 79), que registra: [...] A Coréia nos idos 60 não estava melhor do que o Brasil, seja em qualidade, seja em quantidade. Não era um país mais rico do que o Brasil. Não obstante, atingiu os níveis quantitativos dos mais avançados países da OCDE e níveis qualitativos acima de quase todos eles. Qualquer análise que possa ser feita dos dados obtidos, no conjunto das avaliações dos jovens brasileiros, leva à seguinte conclusão: a aprendizagem dos alunos no campo da leitura e da produção de textos é insignificante insignificante. Problema tanto maior para o sistema de ensino quanto mais se credita à economia moderna maiores exigências relativas ao manejo rigoroso e analítico da linguagem. (Pisa, 2000. Relatório Nacional, 2001) Para a faixa etária que está a concluir a escolaridade básica obrigatória, o desempenho apresentado por eles, quer em nível internacional3 ou nacional, no máximo, poderia ser qualificado como medíocre. Medíocre por expressar a fragilidade das estruturas mentais4 até então adquiridas, 3 “Nossa última incursão em comparações internacionais nos deixa em penúltimo lugar em Ciências. Fomos salvos do último lugar pela presença de Moçambique, em plena guerra civil. Pior, o anúncio de tão trágico resultado passou quase despercebido e foi minimizado pelo MEC.” (Pisa 2000. Relatório Internacional, 2001, p.80). 4 Segundo o Exame Nacional do Ensino Médio 2002 - Relatório Pedagógico, as estruturas mentais são as responsáveis pela construção contínua de conhecimentos e são desenvolvidas por suas interações com o mundo físico e social desde o nascimento (2002, p. 11).

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produzidas, nesse nível, em nosso entendimento, por falta de interações mais efetivas com o universo que os cerca, por falta de interação com o saber e o fazer já existente, ou já produzido, no mundo. Com 15 anos em média, os alunos não conseguem raciocinar e se comunicar eficientemente, embora essa seja a preocupação central do instrumento de avaliação que enfatiza o domínio de conhecimentos e habilidades básicas, indispensáveis para uma participação efetiva na sociedade. Perceber os diversos tipos de textos ou documentos em suas funções diversas, interpretar formulários, gráficos, correspondência oficial, cartas pessoais, etc., identificar e recuperar informações, são algumas das operações reconhecidas como necessárias aos indivíduos de hoje e que, infelizmente, não conseguem ser concretizadas, com destreza, pelos concluintes do Ensino Médio. Importante frisar que o Relatório Pisa 2000 (2001) registra um dado importante nesse quadro de dificuldades de aprendizagem. Os resultados aferidos excluem as possíveis diferenças entre as classes sociais. Os jovens com amplo acesso a bens culturais e tecnológicos não apresentam desempenho diferenciado dos demais que não possuem condições econômicas similares. As escolas públicas não se distanciam, em seus resultados, das escolas particulares. Numa linha de tempo, sem superar as dificuldades apontadas no ano de 2000, o Pisa de 2003 mostra que o desempenho do país, na Leitura, não apresenta afastamento significativo do escore anterior5. No entanto, a preocupação com a eficiência do ensino no Brasil não começou pela primeira participação do Brasil no Pisa. O Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) foi criado em 1990 e realiza, desde então, avaliações, a cada dois anos, nas Unidades da Federação, dimensionando o desempenho dos alunos nas diversas regiões brasileiras. Por acompanhar, portanto, há mais tempo, o desempenho dos alunos das 4ªs. e 8ªs. séries do Ensino Fundamental e das 3ªs. séries do Ensino Médio, em 2007, o Saeb pode apresentar o quadro do desenvolvimento do ensino no país, através de indicadores expostos em uma sucessão histórica. 5 Pequenos avanços, pouco significativos, no entanto, foram verificados em Matemática (nas áreas “Espaço e Forma” e “Mudança e Relação”) e em Ciências, que apresentou uma melhora de 25 pontos em relação à avaliação anterior.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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62 Quadro 2 – Proficiência por Série e por Curso em Língua Portuguesa Medidas de Pr of iciência em Líng ua Por tug ues a Sér ie e C ur s o

1995

1997

1999

2001

2003

2005

4ª. Série do Ensino Fundamental

188,3

186,5

170,7

165,1

169,4

172,3

8ª. Série do Ensino Fundamental

256,1

250,0

232,9

235,2

232,0

231,9

3ª. Série do Ensino Médio

290,0

283,9

266,6

262,3

266,7

257,6

MEC.INEP.SAEB. Primeiros resultados. Medidas de desempenho do SAEB 2005 em perspectiva comparada comparada.

Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação http://www.unioeste.br/pos/educacao/

D.F. Brasília, fev.2007.

Quadro 3 – Proficiência por Série e por Curso em Matemática Medidas de Pr of iciência em Matem ática Sér ie e C ur s o

1995

1997

1999

2001

2003

2005

4ª. Série do Ensino Fundamental

190,6

190,8

181,0

176,3

177,1

182,4

8ª. Série do Ensino Fundamental

252,2

250,0

246,4

243,4

245,0

239,5

3ª. Série do Ensino Médio

281,9

288,7

280,3

276,7

278,7

271,3

MEC.INEP.SAEB. Primeiros resultados. Medidas de desempenho do SAEB 2005 em perspectiva comparada comparada. D.F. Brasília, fev.2007.

De 1995 a 2005, as medidas de proficiência dos alunos, tanto em Língua Portuguesa como em Matemática, quer do Ensino Fundamental, quer do Ensino Médio, caem de modo expressivo. Isso se torna mais relevante quando se especulam os resultados obtidos em relação aos objetivos declarados nessas áreas, facilmente identificáveis tanto nos diversos documentos legais dos órgãos competentes como em revistas científicas, credenciadas no país pelo próprio MEC/INEP/CAPES. Com o auxílio dos chamados descritores6 , as expectativas sobre o desempenho dos alunos são detalhadas nos

6. Os descritores, em seus diferentes graus de complexidade, expressam os objetivos mais relevantes do ensino, apontando para as habilidades que devem ser desenvolvidas nos alunos por serem consideradas essenciais à vida em sociedade. Os descritores de Língua Portuguesa, por exemplo, apontam para algumas das competências discursivas dos sujeitos tidas como essenciais nas diversas situações de leitura (INEP, 2002 a).

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Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN´s), que fundamentam, de forma clara, não só os itens das avaliações elaborados pelo Saeb e Enem, como são ratificadas nos comentários que dão corpo aos Relatórios sobre os resultados obtidos nos anos de 2001, 2003 e 2005. Essas informações oficiais que servem para demarcar, ou circunscrever, o ensino brasileiro, no entanto, insistem em alguns refrões que precisam ser identificados pela pertinência com que aparecem e, principalmente, pelas conseqüências que possam causar. São, entre outros, os seguintes: a) negação da memorização como um ato sem sentido para a aprendizagem; b) afirmação da exigência de habilidades dos alunos tomadas de modo independente dos conteúdo conteúdos (externos, objetivos,) que lhes dariam significado ou forma; c) ênfase na criatividade dos discentes, como um processo de desenvolvimento natural, biológico, independentemente de qualquer produção humana anterior; d) valorização da construção individualizada de significados para além de parâmetros existentes; científico em favor de um e) desvalorização do conhecimento científico, novo tipo de conhecimento personalizado. Princípios que, centrados não na defesa de relações, mas na defesa da autonomia e da subjetividade dos indivíduos (potencialmente emuladores do cidadania” “narcisismo”), são creditados como responsáveis pela “cidadania” e/ou pelo “comprometimento com atuações sociais significativas”! Nesse quadro, a proposta educacional do MEC, saltando dos seus pressupostos para seus objetivos, sem estabelecer correlação entre os meios e os fins, entre os pressupostos e os objetivos, exige, através de avaliações sistemáticas, que os alunos demonstrem a sociabilidade adquirida em seus cursos” “sociabilidade cursos”, ou, melhor, demonstrem ter recebido a educação necessária para a sociedade contemporânea contemporânea. Os resultados podem ser aqui dimensionados.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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64 Quadro 5 – Percentual de estudantes nos estágios de construção de competências em Língua Portuguesa: 2001-2003 Sa eb 2 0 0 1

Sa eb 2 0 0 3

C o m p e t ê n c i a e m Lí n g u a P or tuguesa : Está gio

4ª.E.F

8ª.E.F

3ª. E.M

4ª.E.F.

8ª. E.F

Muito crítico

22,21

4,86

4,92

18,7

4,8

3,9

Crítico

36,76

20,08

37,20

36,7

22,0

34,7

I n t e r m e d iá r io

36,16

64,76

52,54

36.2

63,8

55,2

A d eq u a d o

4,42

10,23

5,34

4,9

9,3

6,2

A v a n ç a do

0,43

0,06

-

*

*

*

3ª. E.M

Fonte: INEP Relatório Saeb 2001e Saeb 2003. Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação http://www.unioeste.br/pos/educacao/

7

Quadro 6 – Percentual de estudantes nos estágios de construção de competências em Matemática: 2001-2003 Com petênc ia em Ma t e m á t i c a : E s t á g i o

Sa eb 2 0 0 1 4ª.E.F

8ª.E.F

Sa eb 2 0 0 3 3ª. E.M

4ª.E.F.

8ª. E.F

3ª. E.M

Muito crítico

12,5

6,65

4,84

11,4

7,3

6,5

Crítico

39,79

51,71

62,60

40,1

49,8

62,3

I n t e r m e d iá r io

40,89

38,85

26,57

41,9

39,7

24,3

A d eq u a d o

6,78

2,65

5,99

6,4

3,3

6,9

A v a n ç a do

0,01

0,14

-

*

*

*

Fonte: INEP Relatório Saeb 2001e Saeb 2003. Assumindo-se, hoje, o nível Adequado como referência para pensar o aluno brasileiro possivelmente bem sucedido socialmente - tem-se que o percentual dos escolarizados nesse nível é muito pequeno. Distanciam-se, portanto, os resultados da escola do propugnado por Jacques Delors (2001), patriarca estrangeiro da educação brasileira em tempos de globalização que define a aprendizagem relevante como aquela própria a um aluno capaz de

7 O Relatório do SAEB de 2001 se distingue do Relatório do SAEB de 2003 porque os intervalos das escalas de desempenho das áreas de conhecimento avaliadas em 2001 foram reduzidos para 4. O nível 5, Avançado, em 2003, é diluído no nível Adequado, fazendo com que as concentrações nos diversos estágios se alterem. O nível Avançado que qualificava os leitores como tendo habilidades consolidadas, como leitores maduros, capazes de transpor para situações novas o conhecimento adquirido, desaparece no último Relatório. O nível Adequado, em 2003, passa a expressar competência nas habilidades compatíveis com a série.

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viver em sociedade sociedade, capaz de descobrir o outro, de ter objetivos comuns comuns, de transformar-se em uma personalidade rica, capaz de mostrar competência para a comunicação comunicação! Nesse ponto, retorna, com mais fôlego, a questão básica deste texto: Afinal, quais informações estão sendo repassadas nos cursos de formação dos professores para que os docentes possam responsabilizar-se por egressos da rede de ensino com “personalidade rica”, com “competência na área do diálogo”? Como a escola está administrando meios e instrumentos para a obtenção do sucesso de seus alunos ao término de seus cursos? Quais estimulações feitas aos docentes podem repercutir em resultados tão indesejados? Quais atuações didáticas propugnadas vêm garantindo aos profissionais tantos insucessos? Até quanto os educadores estão obedecendo às orientações do MEC, que assumiu, em atitude inédita, uma única e particular concepção pedagógica - o construtivismo - como verdadeira e legítima opção para o ensino de todos os aprendentes matriculados? Ora, essas perguntas têm maior procedência porque, em primeiro lugar, a escola está regulada, em todos os níveis de ensino, pela filosofia e pela pedagogia dos PCNs, que conferem ao aluno o direito natural, individual e acadêmico de aprender a aprender aprender, de aprender a fazer fazer, de aprender a viver e de aprender a ser ser,, em todos os níveis de ensino, por si mesmo. Ora, as competências e habilidades, que já deveriam ter sido adquiridas ou, melhor, que já deveriam ter sido progressivamente acumuladas pelos alunos, desde a década de 90, ao longo de sua escolarização e de seu crescimento fisiológico, não se revelam em índices progressistas. Dados que podem ser lidos no documento do INEP, Qualidade da Educação: uma nova leitura do desempenho dos estudantes da 3ª. série do Ensino Médio (2004 (b) p. 8), que diz: Os dados indicam que 42% dos alunos da 3ª. série do ensino médio estão nos estágios “muito crítico” e “crítico” de desenvolvimento de habilidades e competências em Língua Portuguesa. São estudantes com dificuldade de interpretação de textos de gêneros variados. Não são leitores competentes e estão muito aquém do esperado para o final do ensino médio. Os denominados “adequados” somam 5%. São os que demonstram habilidades de leitura de textos argumentativos mais complexos. Relacionam tese e argumentos em textos longos, estabelecem relações de causa e conseqüência, identificam efeitos de ironia ou humor em textos variados, efeitos de sentidos decorrentes do uso de uma palavra, expressão e da pontuação, além de reconhecerem marcas lingüísticas do código de um grupo social.

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66 Ora, se de fato se atribuir, ou se responsabilizar, simplesmente, o alunado pelas aprendizagens que deve realizar, conforme determina a pedagogia da globalização globalização, por que essas mesmas aprendizagens ainda não teriam se realizado? São, pois, com essas aprendizagens não realizadas, declaradas pelo próprio INEP, que os alunos do Ensino Médio adentram na Universidade, sequer tendo conhecimento sobre a norma culta de sua própria língua ( SOARES, 1999, 2004). Nesse ponto, nada melhor do que oferecer alguns dados sobre a escrita dos egressos dos Cursos Superiores. Marin e Giovani (2007, p.15-41) ajudam nessa tarefa com sua pesquisa sobre o perfil dos concluintes que receberam formação para assumirem a função de professores. As pesquisadoras em tela, analisando as redações feitas pelos alunos, examinando a expressão escrita e os argumentos utilizados nas respostas às questões apresentadas a eles, revelam o baixo índice de compreensão das questões formuladas e/ou das ordens dadas para o cumprimento das tarefas. Dentre os resultados encontrados, as dificuldades são assim listadas: a) usam expressões vagas, ambíguas ou pouco adequadas; b) não conseguem organizar as tarefas; c) incluem informações estranhas aos textos; d) dão respostas inadequadas; e) não articulam os elementos com os conhecimentos já adquiridos; f) mostram conhecimentos limitados, pobres; g) têm percepção fragmentada; h) repetem coisas já ditas; i) defendem argumentos sob alternativas que se opõem; j) não demonstram nem memória nem atenção; k) apresentam erros de ortografia, acentuação, concordância e pontuação. Para completar esse quadro pouco alvissareiro, o Inep, com base no questionário sócioeconômico aplicado aos estudantes que participaram do Enade, em 2006, informa que apenas 34% dos universitários lêem, no máximo, dois livros por ano, excetuando os escolares. Outra fonte, como o Centro Integrado Empresa – Escola (CIEE), também revela, a partir de 1104 entrevistas com estudantes de universidades públicas e privadas, que não só os universitários lêem pouco, como 18% deles declararam não gostar da leitura. Despreocupados em buscar informações em jornais e revistas, 77% desses mesmos estudantes revelaram que nenhuma obra lida os teriam influenciado de modo significativo em sua vida. Provavelmente, diga-se de passagem, nenhum professor deve ter recebido aconselhamento direto (pelos limites da pedagogia da “nãocoerção” ou “da não imposição externa”) para imiscuir-se nas decisões do aluno sobre sua formação literária, intelectual!

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Tais resultados, mais uma vez, obrigam ao retorno da pergunta básica deste texto, agora, sob forma variada. Assim, se as competências e habilidades esperadas dos alunos não se confirmam após escolarização de oito, onze ou quinze anos, quais relações podem ser feitas com a formação dos professores, orientada por órgãos e/ou documentos legais, em diferentes cursos e/ou Universidades? Quais hipóteses podem ser dadas para um ensino tão malsucedido após formação específica direcionada para a educação? Ou, ainda, não seria melhor afirmar que os resultados obtidos nas avaliações do sistema escolar são um verdadeiro sucesso e que provém, de modo natural, das medidas pedagógicas encaminhadas sob a orientação do Banco Mundial, da UNESCO, de Jacques Delors, de Perrenoud, entre outros assessores brasileiros do MEC? Afinal, nunca é demais lembrar o decálogo de Perrenoud (2000) que, entre outras recomendações, põe aos educadores a obrigação de preservar os direitos imprescritíveis do aprendiz. Dentre estes direitos proclamados apresentam-se alguns para reflexões obrigatórias sobre as possíveis conseqüências da atual metodologia educacional, adotada pela pós-modernidade: • O direito do aluno de não estar constantemente atento. • O direito de só aprender o que tem sentido. • O direito de não obedecer seis a oito horas por dia. • O direito de se movimentar. • O direito de não manter todas as promessas. • O direito de não gostar da escola e de dizê-lo. • O direito de escolher com quem quer trabalhar. • O direito de não cooperar para seu próprio processo. III - Considerações pouco exploradas Perrenoud (1999), como parceiro ativo dos educadores brasileiros que se propõem de vanguarda, não acentua apenas os deveres do professor para com seus alunos. Com tal orientação, confirma o que vários outros adeptos dessa pedagogia da globaliz ção sugerem: a redução da função do professor em nome globalização do desenvolvimento natural e autônomo das operações intelectivas dos alunos.

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68 Perrenoud também se associa às propostas de “ensino” que atenuam a importância do saber já construído historicamente. Embora diga que não há competências sem saberes, deixa claro que o tempo destinado ao repasse dos saberes deve ser menor que os dedicados às competências. ““Competências” já definidas, no documento do Saeb (2001 (a), p. 11), como

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[...] diferentes modalidades estruturais da inteligência que compreendem determinadas operações que o sujeito utiliza para estabelecer relações com e entre os objetos físicos, conceitos, situações, fenômenos e pessoas(Grifo nosso).

É com esse mesmo posicionamento que o Inep/Saeb (2001 (a), p.19), salientando a importância das “competências” e, dentre elas, a exploração discursiva da língua, diz: Como se sabe, tal perspectiva rompe com a tradição “conteudística” de abordagens descontextualizadas (sic!) e, assim, favorece o desenvolvimento das múltiplas capacidades comunicativas de que o indivíduo deve dispor para responder às exigências de sua condição de ser social e participativo (...) (Grifo nosso) .

Na associação imediata da tradição “conteudística” com “a negação de conhecimentos impostos”, com “a rejeição de imposições coercitivas de parâmetros”, Foucault e seus pares são absorvidos espontaneamente pela rede de ensino, nos limites de um pragmatismo conveniente à defesa da própria tendência educacional. Por superficialidade analítica, um pós-estruturalista, negado pelo próprio Piaget (1981), é integrado ao estruturalismo piagetiano, ou melhor, é absorvido pela tendência pedagógica construtivista, admitida pelo governo brasileiro como única concepção a ser adotada em todo território nacional. Na verdade, encobertas pela pós-modernidade, as orientações pedagógicas que partem dos órgãos responsáveis pela educação brasileira apóiam pressupostos contraditórios. Ao lado da apologia do educar, do ensinar, consideram todos os discursos como plausíveis, admitem encontrar a verdade, inclusive, em sistemas opostos ou antagônicos, recusam normas, regras e princípios, renegam referenciais, rejeitam qualquer uniformidade ou padronização, abandonam preocupações com os determinantes sociais e aceitam, naturalmente, a imprecisão de termos e a falta de rigor nos discursos. Com essa pauta, a pedagogia oficial também conclama os professores a aperfeiçoar a democracia nos limites da concepção do Política, Educação e Cultura


69 indivíduo, ou da concepção de sujeito, já proposto pelo liberalismo clássico. Da mesma forma, estimula a cidadania, embora o teórico que dê cobertura a essa proposta, Piaget (1999, p.84), diga:

Diante de afirmações tão categóricas e tão contraditórias que impregnam as diretrizes educacionais, o conjunto de interrogações que dá corpo ao texto reaparece sob outras formas. Assim, questionase: • É possível formar educadores quando não mais se credita relevância ao trabalho do professor ? • Qual a função do professor, hoje, com base na pedagogia que considera o indivíduo capaz de aprender a ser, fazer e conhecer por conseqüência de mera estimulação de sua autonomia para a realização de operações mentais? • É factível educar o educador que não considera mais possível conhecer e/ou compreender o próprio mundo em que vive? • É viável o sucesso da escola quando essa não mais se propõe a ensinar? • Não se poderia dizer que os resultados atuais das avaliações do sistema de ensino são um verdadeiro sucesso? E, por último, a pergunta mais importante: De fato, dentro do quadro descrito, para que servem • os cursos de pós-graduação em educação? REFERÊNCIAS: ADORNO, T.W. HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. arâmetros curriculares nacio BRASIL.. Ministério da Educação. P Parâmetros nacio-nais. Ensino médio: bases legais. Brasília,, 1999.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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Não compreendemos nem moralmente nem intelectualmente o mundo atual. Ainda não encontramos o instrumento intelectual que nos tornará possível a coordenação dos fenômenos sociais, nem a atitude moral que nos permitirá dominá-los pela vontade e pelo coração (Grifo nosso).


70 BRASIL.. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros nacionais. Adaptações curriculares nacionais. Brasília: curriculares nacionais MEC/SEF/SEESP, 1998. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP n. 009/ 2001. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica em nível superior superior,, curso de licenciatura, de graduação plena plena. Brasília, 2001.

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INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS Saeb - 2005. Primeiros resultados: Médias de desempenho do SAEB/2005 em perspectiva comparada.. [Brasília] Fevereiro de 2007.


72 <http://www.inep.gov.br/internacional/pisa/>. <http://www.acaoeducativa.org.br/downloads/inaf05.pdf>. <http://www.direitos.org.br/>.

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NOTAS CRÍTICAS AOS ARGUMENTOS CONTRA COTAS PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS

Quando você for convidado pra subir no adro Da fundação casa de Jorge Amado Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos Dando porrada na nuca de malandros pretos De ladrões mulatos e outros quase brancos Tratados como pretos Só pra mostrar aos outros quase pretos (E são quase todos pretos) E aos quase brancos pobres como pretos Como é que pretos, pobres e mulatos E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados E não importa se os olhos do mundo inteiro Possam estar por um momento voltados para o largo Onde os escravos eram castigados E hoje um batuque um batuque Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária Em dia de parada E a grandeza épica de um povo em formação Nos atrai, nos deslumbra e estimula Não importa nada: Nem o traço do sobrado Nem a lente do fantástico, Nem o disco de Paul Simon Ninguém, ninguém é cidadão. (Haiti – Caetano Veloso)

INTRODUÇÃO As políticas afirmativas para acesso de estudantes negros às universidades públicas estão em um novo nível de debate. Num primeiro momento, no início da década, o debate centrava-se na constitucionalidade, justiça e efetividade da iniciativa em cumprir seus objetivos. Hoje, o quadro atual das também chamadas políticas de cotas é outro. Estudos e relatórios recentes (p.ex. BRANDÃO, 2007) Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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Luis Fernando Cerri


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74 afastam alguns questionamentos anteriores, como o comprometimento da qualidade acadêmica do aluno que ingressou por cotas. No que se refere à constitucionalidade, consolidou-se no judiciário o princípio de que as políticas afirmativas são legais, a partir do princípio de dever do Estado na produção de igualdade substantiva, para além da igualdade formal. Nesse quadro, em meados de 2007, é possível observar uma reação em setores da sociedade brasileira, procurando abrir um novo ciclo de discussões e reverter uma política que começa a dar sinais de consolidação e adaptação, tendendo, portanto, a generalizar-se no curto prazo. Assim, reportagens, sobretudo no jornalismo televisivo da Rede Globo e na revista Veja, do Grupo Abril (portanto dois dos maiores conglomerados da comunicação de massa no país) recolocaram a questão das cotas. Essa reação procura atingir, além dos pressupostos teóricos, seu modus operandi, a partir da afirmação de que o conceito de raça (base da política implementada) não existe ou não é minimamente objetivo para ser aplicado. Além disso essas políticas tiveram reforçada sua ligação com o Governo Lula, o que acabou por constituir uma manobra para associar a insatisfação oposicionista com a crítica a uma política pública supragovernamental, e mesmo, em muitos casos, além do alcance do poder decisório dos governos, uma vez que fica no âmbito da autonomia universitária, em boa parte dos casos. Além de um fenômeno midiático, que pode ser associado à oposição política a um governo em particular, seu lugar social é o âmago de empresas capitalistas envolvidas em processos de oligopolização de seu mercado. Nesse quadro, o recurso ao radicalismo do discurso liberal – contrário portanto a qualquer intervenção do estado em qualquer campo da vida social ou econômica – ajuda a explicar uma predisposição natural contra políticas públicas compensatórias em geral, e as políticas de cotas em particular. Esse texto objetiva discutir as bases da argumentação usada nesse processo de reação. A pergunta no final das contas é: “temos um compromisso, como nação, com a reparação de prejuízos históricos causados aos negros?” A estratégia para responder negativamente a essa pergunta tem duas linhas principais: 1) não há prejuízos históricos que sejam verificáveis ou não é possível definir quem é negro (linha predominante em Ali Kamel, por exemplo) e 2) há desvantagens históricas impostas aos negros, mas elas não podem ser resolvidas através de políticas afirmativas: elas não funcionarão,

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porque não funcionaram em parte alguma em que foram implantadas (linha predominante em Thomas Sowell). Pretendemos discutir preliminarmente esses argumentos, de um ponto de vista favorável a políticas educacionais afirmativas para negros. Parte-se da idéia de que há, sim, uma desvantagem social e educacional da população negra, desvantagem essa que foi construída historicamente no Brasil e que tem sido combatida, sobretudo, por pressão do movimento negro sobre o Estado, cobrando-o por seu discurso republicano / democrático. Entretanto, não tem sido enfrentada decisivamente a desigualdade que separa brancos e não-brancos. No título, a expressão “notas críticas” demonstra o caráter não exaustivo desse capítulo, bem como o fato de ter sido produzido por um leitor crítico envolvido no debate e com um ponto de vista específico (historiador, com formação em Educação, favorável e avaliador da implementação de uma política de cotas universitária para negros em especial), e não um especialista com formação nas questões em tela. “NÃO SOMOS RACISTAS” – O ARGUMENTO DE QUE NÃO HÁ O QUE REPARAR. O livro do sociólogo e executivo da Rede Globo de Televisão, Ali Kammel, tem como título “Não somos racistas”. Ele é um dos principais divulgadores da tese de que não há reparação a ser feita para os negros, porque não há efetiva desigualdade baseada no critério racial. Seu raciocínio fica na borda da idéia de que no Brasil não há racismo, embora não entre de vez nessa idéia, apenas sugerindo que “não somos racistas”. A primeira pessoa do plural indefinida (quem somos nós, que não somos racistas?) permite essa proximidade, sem adesão definida, com a idéia de Brasil como democracia racial. Apesar de se tratar de um ensaio, com características de material de divulgação, o livro de Kamel é relevante por dois motivos. Primeiro, porque teve ampla divulgação e repercussão, alcançando diversas edições e ganhando espaço nos meios de formação de opinião. Por outro, é representativo devido ao estrato social a que pertence – uma parcela específica da elite econômica brasileira, proprietária e/ou financiada por instituições conservadoras de comunicação social. Kamel atua como “intelectual orgânico” da classe social que representa / serve / pertence.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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76 O indicativo importante que discutiremos a seguir é que esse autor demonstra que os desenvolvimentos da sociologia brasileira desde os anos 50 não tiveram repercussão nessa elite nacional. Assim, a crítica à idéia de democracia racial, o reconhecimento da especificidade do racismo brasileiro - diverso do norte-americano, mas nem por isso menos nefasto em suas conseqüências - e o reconhecimento das contribuições das culturas negras ao processo civilizatório nacional, que são hoje dominantes na academia e mesmo em amplas parcelas dos setores do Estado que são responsáveis por políticas sociais, apresentam-se como não–hegemônicos na sociedade e, por isso, combatidos por uma parcela fundamental da classe dominante. Um auxílio à caracterização do lugar social ocupado por Kamel, necessária, embora não suficiente para a análise de sua argumentação, é feito pela professora Yvonne Maggie (UFRJ), no prefácio à mencionada obra. Afirma Maggie1 : Executivos de grandes redes, usualmente, não manifestam suas posições pessoais sobre temas nacionais. Por isso sua participação no debate público é tão importante para demonstrar que as empresas da mídia são instituições formadas por alguns indivíduos que têm opiniões próprias, uma outra batalha que Ali Kamel vem travando com muitas patrulhas de plantão (p. 10).2

1 Maggie é antropóloga e estuda as relações raciais, entre outros temas. Destacamos o artigo “Racismo e anti-racismo: preconceito, discriminação e os jovens das escolas cariocas”, cuja principal conclusão é a de que os marcadores raciais não são significativos na definição de conflitos e afinidades entre os alunos. Subsidiariamente, sugere que não cabe ao Estado propor estratégia distinta das definidas pelos alunos em seu enfrentamento de conflitos e desigualdades, argumentando contra as políticas de reserva de vagas nas universidades. 2 Os meios de comunicação são dirigidos por pessoas com opinião própria, isso é amplamente reconhecido. Os proprietários de um veículo também têm opinião própria, e em geral o alinhamento com essa opinião é um fator positivo para que o jornalista ou o executivo galguem posições na hierarquia da empresa. É importante rememorar as posições da Rede Globo em alguns casos da história recente, de modo a temperar a visão um pouco (ou sem nenhum adjetivo) idealizada de Maggie. Temos, por exemplo, o caso da eleição de Brizola para o governo do Rio de Janeiro em 1982, em que as pesquisas de opinião divulgadas pela emissora davam a vitória a outro candidato, criando condições para uma fraude eleitoral que não se realizou, afinal. Podemos citar também: a ocultação do movimento das Diretas Já nos programas jornalísticos da emissora até quando não foi mais possível, pela evidência dos movimentos de massa; a edição do debate do 2º turno da eleição presidencial de 1989, favorável ao candidato Collor e desfavorecendo o candidato Lula; a gafe da entrevista do então ministro Rubens Ricupero, expondo os favores da emissora à propaganda eleitoral de Fernando Henrique Cardoso em 1994, sem saber que toda a conversa estava sendo transmitida; mais recentemente, pode-se destacar a ação da emissora para forçar o 2º. turno das eleições presidenciais em

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A síntese da obra de Kamel pode ser feita em quatro linhas principais. Inicialmente está a negação do racismo como convicção, difícil de comprovar ou refutar, pois é um elemento subjetivo e não necessariamente verbalizado pelas pessoas, mesmo porque é crime inafiançável definido na Constituição Federal. Com isso, pretendese negar a amplitude da discriminação racial, o que é mais difícil por tratar-se de uma prática social, refletida em dados objetivos. Por isso, a obra conta com um exercício estatístico na tentativa de demonstrar que os negros não compõem a maior parte da população pobre do país, bem como não há diferença de remuneração ou de acesso a emprego entre negros e não-negros. Outra linha de raciocínio importante da obra é a negação dos “pardos” como negros. Em seguida, vem a assertiva de que os problemas de renda e acesso a bens sociais, entre eles a educação, por parte de “pardos e negros” resultam da pobreza e do nível educacional, e não dos efeitos do racismo. Por fim, defende que a saída para esse problema seja o investimento maciço na educação básica, o que é uma decorrência lógica do não - reconhecimento da desigualdade como fator central: se todos são formal e teoricamente iguais, uma política universalista de distribuição de recursos deve ser capaz de resolver as desigualdades que não se devem a fatores raciais, mas a fatores econômicos. Sem pretensão de sermos exaustivos, comentaremos cada um desses tópicos. “Não somos racistas”, mas no Brasil há racismo. Essa é a conclusão de uma pesquisa desenvolvida pelo Fórum Diálogos Contra o Racismo 3 , ou seja, a maioria da população entrevistada não se assume como racista, e a maioria afirma que há racismo no Brasil, levando-nos ao paradoxo do racismo sem racistas, que motivou o

2006, expondo ilegalmente a foto de uma pilha de dinheiro apreendida pela Polícia Federal, supostamente para o pagamento, pelo Partido dos Trabalhadores, de um dossiê contra o candidato presidencial Geraldo Alckmim, que contou com a ativa participação política de Kamel, não apenas noticiando mas, como o cidadão Kane, criando a história. Esse acontecimento gerou um amplo debate sobre o papel da mídia, da Globo e de Kamel, nas revistas Carta Capital e Caros Amigos na época. Por fim, Kamel envolveu-se nos debates sobre a compra, pelo Programa Nacional do Livro Didático do Governo Federal, do livro “socialista” de Mário Schmidt, da editora Nova Geração. Isso foi feito no bojo de uma crítica ao governo Lula, como se o mesmo, através disso, estivesse procurando doutrinar estudantes, embora o livro tenha sido adotado durante o governo FHC e eliminado durante o governo Lula. O executivo consolida-se, portanto, como uma voz relevante na defesa dos interesses dos grandes conglomerados de comunicação e suas posturas político-ideológicas de longa data. 3 Disponível em: <http://www.dialogoscontraoracismo.org.br>. Texto apresentado por Paolo Nosella no IV Colóquio de Pesquisa sobre instituições escolares, no PPGE da UNINOVE, São

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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desenvolvimento de diversas campanhas de esclarecimento, com o mote “Onde você guarda o seu racismo?”. A negação dos efeitos práticos do racismo começa por um item que Kamel intitula como “A gênese contemporânea da nação bicolor”. Manifesta um susto com o que chama de “transformação de pardos em negros”: Certo dia, caiu a ficha: para as estatísticas, negros eram todos aqueles que não eram brancos. Cafuzo, mulato, mameluco, caboclo, escurinho, moreno, marrom-bombom? Nada disso, agora ou eram brancos ou eram negros. De repente, nós que éramos orgulhosos da nossa miscigenação, do nosso gradiente tão variado de cores, fomos reduzidos a uma nação de brancos e negros. Pior: uma nação de brancos e negros onde os brancos oprimem os negros. Outro susto: aquele país não era o meu.(KAMEL, 2006, p. 18).

Temos nesse trecho um autor chocado, como Adão e Eva diante da “expulsão do paraíso”, dando-se conta de que as estatísticas oficiais incorporaram toda a discussão da sociologia sob o impacto da obra de Florestan Fernandes e outros: o Brasil não é uma democracia racial. Seguindo seu argumento, retoma Gilberto Freyre e a concepção de que ele não acreditava na democracia racial como realidade, mas apenas como ideal a ser buscado; portanto, para Kamel, o racismo existia e existe (p. 20), mas a nação não se queria racista, além de sempre condenar o racismo. Há dois problemas nessa argumentação: um é reduzir a nação a uma generalidade abstrata e homogênea. Não existe “a nação” como sujeito que faz ou deixa de fazer alguma coisa, existe a nação como conjunto de pessoas e grupos concretos que disputam projetos de nação e interesses entre si. A metonímia da nação é um recurso retórico da luta ideológica, que não é admitida quando adentramos a esfera do rigor acadêmico. Assim, é de se reconhecer que não é “a nação” que sempre combateu o racismo, mas uma parcela dela. Se combateu, tinha opositores, e esses certamente são os que praticam / praticavam o racismo, assumidamente ou não. Uma das grandes conquistas dos movimentos negros e contra o racismo em geral é a identificação de que o racismo no Brasil, ao contrário de uma convicção (como em partes dos Estados Unidos ou na África do Sul

Paulo, 29 de agosto de 2007 e no Encontro de Estudos e Pesquisas em História, Trabalho e Educação, do HISTEDBR, UNICAMP, Campinas, 04 de setembro de 2007. Contou com atenta leitura e sugestões da Profa. Dra. Ester Buffa.

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sob o Apartheid), é um conjunto de práticas discriminatórias não assumidas como tal, que incluem mesmo o paternalismo exercido sobre pessoas negras. É o que se caracteriza como “racismo cordial” (TURRA e VENTURI, 1995). É o que evidencia, por exemplo, o Fórum Diálogos contra o Racismo, mencionado acima. O primeiro passo para o combate ao racismo é reconhecê-lo, não só como abstração e coisa dos outros, mas como uma estrutura psicológica coletiva sobre a qual temos pouco controle, até o momento que o reconhecemos em nós, independente do grupo racial a que pertencemos e da forma que ele assume. Ora, no discurso de Kamel, tanto a nação quanto o racismo são desprovidos de subjetividade, materialidade e de complexidade. Kamel busca na Sociologia dos anos 50 o “desvio errado” que o Brasil teria tomado, pelo qual estaríamos chegando a uma nação bicolor, através do que caracteriza de equívoco teórico, ou seja, a classificação de pretos e pardos como negros. Como força de seu discurso, ignora os índios (cuja população e auto-declaração tem crescido, e cuja identificação racial ou cultural é inequívoca) e os orientais. Afirma também que a denúncia do racismo brasileiro desconsideraria as relações de amizade e as relações conjugais interraciais. É outro equívoco. O fato de que no Brasil se encontram essas relações é um ponto positivo, mas não invalida a construção teórica referente ao racismo brasileiro e suas especificidades. Pelo contrário, combater o racismo não passa por identificar os pontos em que a sociedade brasileira não pratica a discriminação, mas exatamente pelo reconhecimento dos pontos em que essa discriminação existe, e as formas pelas quais essa discriminação é exercida. E nessa tarefa, o livro de Kamel não só não ajuda em nada, mas atrapalha ao tentar recuperar elementos do mito do Brasil como democracia racial, beneficiado pela ausência de um racismo tal qual se praticaria em outros países, cujo arquétipo é sempre os Estados Unidos da América. Para o argumento de que não há o que se possa reparar especificamente nas relações raciais brasileiras, uma das idéias mais importantes esgrimidas por Kamel é a de que as raças não existem. Desse argumento biologizante (e, portanto, de certo modo, filiado ao positivismo) derivam a crítica à junção de pretos e pardos na categoria única de negros, bem como a crítica à idéia de que seríamos, sim, um país racista. Também depende desse raciocínio a crítica à idéia subsidiária de que a pobreza no Brasil é predominantemente negra, base das políticas afirmativas por parte das Universidades e do poder público em geral. Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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80 A “redescoberta”, por parte do discurso contra as políticas afirmativas para negros, da ausência de raças na espécie humana pela Antropologia, num primeiro momento, e depois pela Genética, são um esforço conservador de restabelecer o desgastado princípio de igualdade formal que permita a continuidade do tratamento igual aos que são, na verdade, desiguais, de modo a não colocar o Estado a promover igualdade. É significativo que esse argumento seja recuperado no momento atual, em que o antigo argumento da igualdade formal entre os brasileiros (expresso na máxima liberal de que todos são iguais perante a lei) tem perdido seu efeito prático de manter as desigualdades. Sim, porque as decisões judiciais nos litígios por vagas em universidades que adotaram a política de cotas vêm tendendo a estabelecer a insuficiência do princípio da igualdade formal (e, portanto, dos direitos formais) diante das evidências de que as condições das pessoas as desigualam e mesmo as impedem, na prática, de exercer sua igualdade formal. Tem vencido, portanto, o princípio dos direitos substantivos, práticos, que a justiça deve favorecer. A partir dessa realidade, a reação às políticas afirmativas, da qual Kamel participa, passa a buscar um outro argumento no qual possa sustentar a existência de igualdade em algum plano, e o encontra na negação do conceito de raça e na “confusão genética” de nosso povo. Assim, recentemente, desenvolveram-se análises genéticas de negros famosos e comprovou-se a presença de origens genéticas européias predominantes em pessoas que fenotipicamente jamais seriam reconhecidas como européias. Deixemos de lado o fato de que se recorre a um expediente cientificista, pelo qual os detalhes da pesquisa são deixados de lado (como o significado exato de “origem européia dos genes”) em favor do discurso de autoridade fascinante do laboratório e do jaleco branco na emissão de “verdades”. Trata-se aqui de discutir o conceito de raça diante desse quadro cientificista. É importante notar que nos Estados Unidos não se fazem análises genéticas da população latina para verificar o quanto de europeu ela tem no corpo. Afinal, latino-americanos descendem de europeus, índios e negros, em diferentes perspectivas. O autor dessas linhas, por exemplo, que tem origem majoritariamente italiana e aparência caucasiana, nos EUA é “latino”, e no Brasil é “branco”. Já o Neguinho da Beija-Flor, que no Brasil tem sua genética exposta como mais europeu que negro, nos EUA é claramente negro. E no Brasil também, apesar de sua carta genética. Por que isso ocorre?

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Da constatação de que raças não existem, não deriva logicamente a afirmação de que somos todos iguais. Ora, temos aparências diferentes, fenótipos distintos, e isso não é irrelevante nas relações sociais. Nenhuma criança pede à outra seu exame de DNA para isolá-la na escola, na hora do lanche: elas o fazem a partir da aparência do(a) colega. Ninguém é recusado num emprego pelo seu código genético, mas pela aparência. Se a raça não existe como conceito biológico ou antropológico, a raça existe nas relações sociais! A raça existe na Sociologia, na História, na porta da casa noturna, na hora do mau policial decidir se atira primeiro e pergunta depois, ou o contrário. A raça não reúne as pessoas pelo mapa genético, mas pela experiência social compartilhada, pelos relacionamentos, pressupostos, preconceitos. Que essas relações sejam temperadas, no Brasil, pela posse ou não de dinheiro e bens, é uma especificidade das relações sociais brasileiras, não um fator que negue o peso das relações raciais. Caetano Veloso, na letra da canção que é epígrafe do presente texto, traduz poeticamente o significado desse argumento: no Brasil, “branco” é todo aquele que não é “quase preto” ou “quase branco”. Então, porque pretos e pardos podem ser reunidos, estatisticamente, em uma categoria única, a de negros? Pela similaridade das suas experiências e relações! Por que ser “quase branco” ou “quase preto” ou “preto” faz diferença nas relações sociais. Sobretudo, cumpre questionar esse debate, evidenciando que, historicamente, para sofrer discriminação racial, “cafuzo, mulato, mameluco, caboclo, escurinho, moreno, marrom-bombom” (Kamel) são “tratados como pretos / Só pra mostrar aos outros quase pretos / (E são quase todos pretos) /E aos quase brancos pobres como pretos / Como é que pretos, pobres e mulatos /E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados” (Veloso). Porém, quando se trata de definir políticas redistributivas, a raça (o que identifica um grupo pelas aparências e experiências sociais que compartilha) não é aceita como critério. A revista Veja chegou a aproximar os defensores das cotas raciais com os nazistas ou os africâners do regime do Apartheid, misturando alhos com bugalhos e fazendo a clássica inversão que o Marx da Ideologia Alemã identificaria claramente como ideologia burguesa. As cotas constituem uma prática redistributiva e visam beneficiar os “discriminados” (e não prejudica-los ou extermina-los), e não estão baseadas em bases pseudocientíficas e biologizantes da questão racial, exatamente o contrário dos nazistas e arquitetos do Apartheid.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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82 Por fim, os estudos estatísticos de Kamel são malabarismos para tentar demonstrar que o racismo não é a causa das diferenças entre negros e brancos no que se refere à renda e acesso a bens em geral. Nesse exercício, acaba por demonstrar a toda curva e a cada atalho de seu raciocínio, a situação de inferioridade contra a qual negros – pretos e pardos – se debatem no Brasil. Essa situação precisaria ser negada pelo autor, pois ela é a evidência material de que o racismo não só existe no campo das idéias, mas manifesta-se na produção material de desigualdades. Por exemplo, quando afirma que negros ganham menos que brancos em uma determinada categoria, por serem menos escolarizados, cai na própria armadilha, ao evidenciar que negros e brancos não têm o mesmo tipo de acesso à educação. Ao tentar afirmar que essas situações não se devem ao racismo, roça-se – implícita e perigosamente - a idéia de que os negros seriam menos dotados intelectualmente (afinal, se não há obstáculos racistas, por que os negros têm desempenhos inferiores?). Ao contrário dessas formulações, outros estudos, como os patrocinados pela UNESCO (por exemplo HENRIQUES, 2002) evidenciam que a cor da pele é fator de piora na situação social, educacional, econômica, enquanto trabalhos como os de Cavalleiro (2000) e Fazzi (2004) analisam o impacto do preconceito e da discriminação (sobretudo por parte de professores) no aprendizado de crianças e jovens negros. “AÇÃO AFIRMATIVA NÃO FUNCIONA” – O CAMINHO PARA SUPERAR A DESIGUALDADE É O TRATAMENTO IGUALITÁRIO. Kamel e outros debatedores contrários às políticas afirmativas sustentam-se sobretudo no estudo de Thomas Sowell para afirmar que as cotas não funcionam: beneficiariam apenas os estratos mais altos dos grupos favorecidos, ou ainda poderiam levar à exacerbação dos preconceitos dos não–beneficiados. Por isso, essa parte do texto é dedicada a comentar a obra “Ação afirmativa ao redor do mundo. Estudo empírico”, de Sowell. O título é revelador do eixo do argumento do autor, um argumento neopositivista, de que sobra emoção e faltam dados empíricos ao debate sobre cotas e outras ações afirmativas. Entretanto, na medida em que ele promove uma pesquisa ampla e comparativa de diversas experiências em distintos países, sustenta a posição de que seu objeto mostrou-se invariavelmente nefasto em todos os casos estudados. O fetiche do dado bruto como emissor de verdade é algo superado no debate acadêmico há muito tempo, afinal, a opinião está na base da Política, Educação e Cultura


construção dos instrumentos que extraem os dados do real, e por isso os dados não logram ter a força bruta que positivistas e neopositivistas lhe imputam. Antes do dado, temos a discussão de como esse dado foi produzido, ou seja, a validação dos enunciados não ocorre mais no autoritarismo frio dos dados, mas na razoabilidade dos instrumentos, dados e argumentos construídos intersubjetivamente. É ao rascunho dessa tarefa que nos dedicamos a seguir. O historiador José Roberto Pinto de Góes apresenta a obra e oferece um panorama interessante sobre a utilização das idéias e argumentos de Sowell em função da realidade brasileira. Em outros termos, a ele cabe comentar o significado da obra traduzida a ser lida pelos brasileiros, e espera-se que procure traçar paralelos com o caso brasileiro, não analisado por Sowell. Afirma Góes que “O sistema só tem beneficiado uma minoria. Não a minoria, mas uma minoria preexistente no interior de uma minoria” (in SOWELL, p. x), e por isso apenas os negros com melhores condições educacionais terão acesso à universidade. O argumento de Góes evidencia alguns dados correlatos importantes: a) no Brasil, atualmente, nem a minoria da minoria vinha tendo acesso à universidade pública, o que garante o argumento de que o racismo é um fator central na exclusão educacional de negros e b) as políticas de cotas não se opõem necessariamente ao mérito acadêmico. Em outros termos, se há uma parcela afortunada na minoria negra brasileira, porque afinal ela permanecia praticamente ausente dos bancos universitários? Beneficiados pelos estudos posteriores (p. ex. BRANDÃO, 2007), podemos afirmar que a minoria da minoria está acessando a universidade (ou seja, aqueles negros filhos de pais de classe média baixa e classe baixa que conseguem sair do mercado de trabalho e receber algum apoio financeiro da família). Além dessa “elite”, outros alunos que não poderiam permanecer na universidade sem apoio financeiro do Estado ou das universidades têm se agarrado às franjas dos combalidos serviços de apoio aos estudantes e têm-se mantido na graduação. Outros tantos entre esses, por sua vez, não resistem e são obrigados à evasão. No fim das contas, as cotas têm a) permitido à “minoria da minoria” acessar a universidade, que antes não o fazia; b) permitido a uma parcela da maioria da minoria o mesmo acesso e permanência e c) falhado em garantir a permanência de outros cotistas da maioria da minoria. Inegavelmente estamos um passo adiante do que estávamos antes das cotas no quesito da inclusão. E não cabe à política afirmativa resolver todos os problemas educacionais, apenas os problemas de desigualdade. Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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84 Góes também entra em discussões reveladoras, como a oposição a políticas de transferência de renda em geral para os pobres, a idéia de que cotas fornecerão diplomas, mas não educação (o que em 2004 era um palpite, largamente desmentido pelos resultados atuais no desempenho acadêmico dos cotistas) e o orgulho da mestiçagem versus divisão entre brancos e não-brancos nas estatísticas. Mas um dado muito mais interessante do conjunto de elementos que esgrime é a crítica ao “imperialismo cultural” norteamericano, que estaria presente nos financiamentos da Fundação Ford para o estudo de questões raciais brasileiras até a importação das cotas como política inclusiva. Essa crítica convive sem problemas de consciência com o fato de que o cabedal de informações de Sowell, que Góes está a apresentar, é produção de um pesquisador norteamericano, financiado e comissionado pela norte-americana Hoover Institution on War, Revolution and Peace, da Universidade de Stanford. Não é uma contradição, é o reconhecimento de que, com as devidas ressalvas críticas e análise de interesses, o conhecimento não tem validade a partir do país ou instituição, mas pela sua coerência, consistência e relevância. Nesse rumo, Góes questiona porque o Brasil imita as cotas dos estadunidenses, e não o profundo respeito, em sua cultura política, pelos direitos individuais. Embora a afirmação soe um pouco estranha após o Patriotic Act de George W. Bush e os fatos nas prisões de Guantánamo e Abu Ghraib, podemos responder que não imitamos essa característica pelo mesmo motivo de não imitar a riqueza norte americana. Prosperidade econômica e cultura política são elementos construídos durante dezenas de gerações. Cotas são uma política pública de curto prazo. Além disso, é questionável a idéia de imitação norte-americana, porque o livro que Góes apresenta tem exatamente o caráter demonstrativo da amplitude das ações afirmativas no mundo, com casos que precedem o dos Estados Unidos. Para passarmos a Sowell propriamente, já que não cabe aqui esgotar toda a contra-argumentação possível a Góes, basta indicar que o assunto é apaixonante, e é um exercício formidável à vigilância constante que o estudioso precisa ter para não passar do debate fundamentado e razoável para a provocação gratuita em favor de suas paixões. Góes dedica seus últimos parágrafos à paixão, e num texto apaixonado critica a paixão de seus opositores nessa discussão. E para tanto, termina citando o padre Antonio Vieira, sobre os males da paixão conjugal, o que pode não ser uma referência confiável, uma vez que ao jesuíta casto e celibatário deveria faltar exatamente

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aquilo que é tido em Sowell como critério de autoridade e validade do discurso: o conhecimento empírico. Qualquer leitor de primeira viagem percebe, entretanto, que sob o véu do empirismo e da neutralidade está o conceito apriorístico do autor, que procura negar as ações afirmativas como ações viáveis para diminuir as desvantagens de grupos sociais. Pode-se perceber isso,por exemplo, quando o autor afirma que seu estudo dá espaço para opiniões de ambos os lados, quanto às ações afirmativas, mas as opiniões favoráveis têm pouco ou nenhum espaço, e aparecem já decompostas (e por vezes mutiladas) pela análise do autor. Sowell desenvolve um estudo extenso, e foge às dimensões deste capítulo discutir cada um dos seus encaminhamentos metodológicos ou argumentativos, motivo pelo qual discutiremos apenas alguns deles. Já que o autor, após a análise de 5 casos nacionais, afirma que tanto as características em cada país quanto os argumentos pró-ações afirmativas são mais universais do que se admite, e já que debatedores como Kamel e Góes derivam daí a idéia de que tais ações são universalmente nefastas, procuraremos fazer nossas anotações numa perspectiva de comparação / adaptação com o caso brasileiro. Uma das primeiras conclusões apresentadas por Sowell é que, em todos os países estudados, as pessoas que se auto-declaram pertencentes a uma minoria beneficiada por ações afirmativas crescem em número rapidamente. Há um tom de condenação a essa prática, como se a assunção de uma tal identidade tivesse algo de ilegítimo a priori. Não podemos afirmar nada sobre os casos apresentados por Sowell, mas podemos traçar algumas linhas sobre o caso brasileiro. O processo de construção de identidades é complexo, e essa característica é acirrada nos tempos em que vivemos, sejam eles chamados de pós-modernidade, modernidade tardia, ou o que quer que seja. O fato é que atualmente, em quase todos os espaços, a identidade não é atribuída irreversivelmente de fora para dentro do indivíduo, a partir de relações sociais e aparências fechadas, mas também de dentro para fora, o que nos coloca na condição de uma estrutura dinâmica e variável de composição de identidades (cf., p. ex., Hall, 2005). Por outro lado, assumir uma identidade, por exemplo, ao ser perguntado em uma entrevista do censo populacional, é um exercício de representação de si mesmo, com bases que podem ser mais ou menos concretas, dependendo do significado dessa identidade para a convivência social.

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86 A população indígena brasileira nos censos populacionais e Pesquisas Nacionais por Amostra Domiciliar (PNAD), vem crescendo muito acima de sua taxa de fertilidade, o que significa que mais pessoas estão se identificando como índias. Embora não haja nenhuma vantagem direta nisso, esforços de diversas instituições em valorizar as diversas culturas e povos nativos podem estar tornando “ser índio” um dado não carregado de desvantagens pessoais, somente. Ou seja, a reaproximação de alguém com suas origens não depende necessariamente de vantagens materiais imediatas, mas também de um processo de reconciliação com uma identidade negada, pelo reencontro mental com suas virtudes. É o que se chama de orgulho cultural ou étnico das próprias origens. E a lógica das identidades impede que alguém assuma uma origem que somente lhe traga prejuízos. Mesmo quando ela continue alvo de discriminações e sofrimentos, entretanto, obter a aprovação e o reconhecimento dentro do próprio grupo oprimido, mas unido, pode ser compensação suficiente, e não obtê-la pode ser vergonha suficiente para superar os eventuais benefícios a se obter ocultando as próprias origens. A identidade ameríndia, tanto em termos étnicos quanto culturais, é quase inequívoca na experiência social brasileira. Tratase de um assunto privado, até o momento em que essas identidades passem a significar o acesso facilitado a recursos providos pelo poder público. Desse ponto em diante, instala-se a pantanosa discussão sobre a autenticidade da identidade assumida, que não é capaz de alcançar a objetividade absoluta, já que se instala entre os sujeitos sociais, posicionados e interessados nos resultados desse debate. O caso da identidade negra tem outros elementos que ampliam sua complexidade, a começar pelos recursos que ela em tese permitirá acessar, com a recente inserção das ações afirmativas no quadro das relações econômicas e sociais. Mas antes disso, é necessário considerar um outro complicador, que é o fato de que a assunção de uma identidade negra se dá no interior de uma “sociedade dos brancos”, e portanto tem um caráter, na prática, de subversão social e de construção de espaços alternativos de convivência e reconhecimento. O conceito está implícito no título de uma das obras-chave da sociologia brasileira, “O negro no mundo dos brancos”, de Florestan Fernandes. Para ele, em suma, o Brasil não resulta da integração das três raças, mas da criação de um mundo que serve ao branco, para o qual negros e índios foram coagidos a trabalhar, e do qual não tomam parte senão negando a si próprios. Um exemplo típico desse princípio pode ser encontrado na idéia Política, Educação e Cultura


de que, quando tem dinheiro, o negro alcança a mesma condição do branco e não é mais discriminado. Todas as conexões da frase anterior confirmam a tese do mundo dos brancos. O mesmo se dá com a idéia que estrutura um outro caso cotidiano, pelo qual alguém se horroriza por um conhecido ter sido chamado de negro ou de preto: “Imagine, fulano, você não é preto, é moreno!”. Ser negro é entendido como desvantagem, e ao estabelecer relações positivas com um afrodescendente com características físicas que o colocam na mira da discriminação, uma estratégia de proteção que confirma a opressão é negar sua negritude. No caso do Brasil, é nesse quadro que se assume a condição de negro. É verdade que existe a “negritude de ocasião”, e que por vezes falham grotescamente os mecanismos criados pelas universidades para coibir os abusos da autodeclaração no acesso aos benefícios das políticas afirmativas. Mas, em geral, assumir a condição de um grupo tradicionalmente oprimido, explorado e marginalizado significa um enfrentamento de uma ordem social tradicional, com conseqüências políticas importantes no sentido da democratização do Brasil. Aqui, não se pode inferir nenhuma leviandade generalizada ou prejuízo político coletivo para o fato de que mais pessoas assumam sua negritude. O oportunismo nesse ato não compensa seu preço. Para cumprir o objetivo prévio de refutar as ações afirmativas como um todo, Sowell acaba por defini-las de modo incorretamente amplo, como todo e qualquer tratamento que privilegie uma parte da população e persiga outra, com o que se inverte completamente o princípio em suas vinculações originais, seja em termos de filosofia política (uma abordagem redistributiva em perspectiva laica e democrática, de raiz iluminista), seja em termos de história (a luta por produção de igualdade em sociedades marcadas fortemente por desigualdades e opressão). É essa manobra que permitirá a Sowell (e a seus tributários no Brasil, Kamel, o jornalismo da Editora Abril na revista Veja / jornal Folha de São Paulo) a curiosíssima identificação das ações afirmativas ao nazismo e ao anti-semitismo em geral. Isso pode ser verificado quando, ao fornecer um panorama geral da questão, afirma: Em alguns países, tem ocorrido a total debandada física do grupo sem preferências como resultado da política preferencial que reduz suas perspectivas. O êxodo em resposta à discriminação dos chineses da Malásia, dos indianos das Ilhas Fiji, dos russos da Ásia Central, dos judeus de grande parte da Europa pré-guerra e dos huguenotes da

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França do século XVII drenou esses países de capacitações e talentos muito necessários. Sintetizando, as políticas preferenciais representam não apenas a transferência de benefícios de um grupo para outro, mas podem também resultar em perda para o conjunto, quando os dois grupos reagem com uma contribuição menor para a sociedade (SOWELL, 2004, p. 15).

Não é difícil perceber que o conceito de ação afirmativa aplicado por Sowell é excessivamente amplo, e, portanto, falho em termos de historicidade e critério de seleção. A conseqüência é a comparação de fenômenos históricos completamente díspares e uma conclusão que não é sustentável: o anti-semitismo ou a opressão de uma elite contra os estrangeiros seriam formas de ação afirmativa! Outra distorção promovida pela frouxidão do conceito de ação afirmativa em Sowell está em superdimensionar os conflitos interétnicos como resultado, principalmente, da aplicação de ações afirmativas. Desse modo, argumenta, a reação contra as políticas pelos que não são beneficiados por elas é desproporcional aos benefícios concedidos, aumentando os conflitos e o ressentimento entre os grupos. Em alguns casos, como o do Sri Lanka, fica faltando pouco para o autor afirmar que cotas ou listas levaram o país à guerra civil, o que certamente seria desconsiderar que um evento dessa magnitude, via de regra, não é amarrado a uma única causa, e que no conjunto de causas que levam a guerras civis, a reação às ações afirmativas não jogam um papel decisivo. No caso brasileiro, o argumento de que as políticas afirmativas incrementarão o racismo vem sendo esgrimido com alguma freqüência. Talvez seja o caso de pensar se, a partir delas, o salário dos negros e, sobretudo, o das mulheres negras, passe a ser inferior, em média, aos dos demais grupos sociais, que o acesso a determinados empregos passe a ser restringido para negros, que os negros sejam o grupo definitivamente majoritário entre os que são pobres, ou os mais atingidos pela violência policial e 3 vezes mais vitimados por mortes por arma de fogo que os não-negros (SALES, 2006, p. 38). Poderiam ainda as cotas ser origem da ausência prática de negros nos altos escalões do executivo, legislativo e judiciário, bem como na comunicação de massa? Poderiam acabar gerando comportamentos discriminatórios e intimidadores, como anedotas, apelidos pejorativos, restrições a relacionamentos pessoais? Se todas essas coisas já não existissem, talvez fosse considerável a hipótese de que políticas afirmativas viessem a criá-las no Brasil.

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O que efetivamente temos visto, no campo dos fatos novos quanto à discriminação racial que remotamente poderiam ser relacionados às cotas, não chegam a ser fatos novos. Pichações racistas em locais públicos, atentados intimidatórios isolados, manifestações racistas em cursos em que isso antes não ocorria, não porque os alunos não fossem racistas, mas pelo fato de que não haviam antes sujeitos passíveis de discriminação racial, são exemplos. Nenhum deles escapou ao controle, e todos podem ser enquadrados com os instrumentos que a lei brasileira dispõe para coibir discriminação. Um outro exemplo das estratégias de Sowell para a defesa de sua tese pode ser encontrado na informação que dá sobre os avanços econômicos e sociais da população negra norte-americana antes dos anos 60, marco da conquista dos direitos civis e das garantias contra os efeitos do racismo. Para o autor, a melhoria da condição de vida da população negra norte americana já havia começado antes das políticas afirmativas, e demonstra isso com estatísticas sobre essa população. Trata-se, entretanto, de um período de prosperidade e crescimento contínuo da economia, mas falta o dado sobre o mesmo avanço econômico e social da população não–negra, para podermos entender o comparativo. Assim, o argumento fica incompleto: a melhoria das condições de uma população não é um dado absoluto, mas relativo ao desenvolvimento de outros grupos. Quando todos avançam, a taxa de avanço de cada um passa a ser um fator decisivo para a compreensão do processo e das desigualdades referentes a ele. As críticas de Kamel, Sowel, Maggie e Góes às políticas afirmativas não são uniformes em termos de qualidade e profundidade. Muitas delas não se aplicam à experiência brasileira em hipótese alguma, e outras são apenas inválidas para o momento atual, mas não se pode imaginar que a realidade seja estática e que algumas dessas críticas não possam vir a valer num futuro próximo. A operação de interferir nas relações sociais e educacionais – sobretudo quando se trata de uma instituição relativamente autônoma, como é o caso da Universidade Pública – é uma operação legítima, mas ao mesmo tempo arriscada. Por isso, o cuidado e a atenção constante às novas características e dimensões dos projetos e sua realização configuram-se hoje como uma tarefa irrecusável, para a qual a crítica dos opositores é uma contribuição constante.

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90 REFERÊNCIAS BALIBAR, Ettienne e WALLERSTEIN, Immanuel. Race, Nation, Classe: les identités ambiguës. Paris: La Découverte, 1990. CAVALLEIRO, Eliane. Racismo e anti-racismo na educação educação: repensando nossa escola. São Paulo: Summus, 2001.

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FAZZI, Rita de Cássia. O drama racial de crianças brasileiras brasileiras. Socialização entre pares e preconceito. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos brancos. São Paulo: DIFEL, 1971. KAMEL, Ali. Não somos racistas racistas. Uma reação aos que querem nos transformar em uma nação bicolor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. pós-modernidade 10. ed. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Porto Alegre: DP&A, 2005. HENRIQUES, Ricardo. Raça e gênero no sistema de ensino ensino. Os limites das políticas universalistas na Educação. Brasília: UNESCO, 2002. RIBEIRO, Yvonne Maggie de Leers Costa . Racismo e anti-racismo: preconceito, discriminação e os jovens estudantes nas escolas cariSociedade v. 27, p. 739-751, 2006. ocas. Educação e Sociedade, SALES, Augusto dos Santos. Who Is Black in Brazil? A Timely or a False Question in Brazilian Race Relations in the Era of Affirmative erspectives Action? Latin American P Perspectives erspectives, v. 33, n. 30, p. 30 – 48, 2006. SOWELL, Thomas. Ação afirmativa ao redor do mundo mundo. Estudo empírico. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2004. cordial São Paulo: TURRA, Cleusa e VENTURI, Gustavo. Racismo cordial. Ática, 1995.

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A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO TRABALHO COMO UM PRINCÍPIO EDUCATIVO1 Paolo Nosella

Se na história dos homens o trabalho sempre foi um fato educativo, a originalidade de Marx consistiu em erigir este fato universal à categoria de princípio princípio. Com isso, Marx introduziu e consagrou, na ciência pedagógica, a idéia de ser o trabalho o elemento determinante e fundamental de todo o processo educativo, logo, de toda instituição escolar: Eu diria, com Marx, que a base ou o fio vermelho (filo rosso) que costura o conjunto da história é o trabalho do homem, em colaboração com os outros homens, para dominar a natureza e humanizá-la, de forma a produzir e aumentar a própria vida material e espiritual. Esta sempre foi a raiz da história, isto é, o trabalho entendido como atividade do homem para produzir a própria vida; é a confrontação com a natureza que só acontece em associação com os outros homens. Naturalmente, exatamente aí nascem as contradições maiores da história humana: o trabalho, de manifestação de si, como Marx dizia, torna-se perdição do homem a si mesmo... Esperamos podê-lo recuperar esse homem perdido (MANACORDA, DVD, 2007).

Entretanto, esta idéia, incipiente na época de Marx, teve uma longa elaboração teórica ao longo da história, sendo, ainda hoje, objeto de explicitações. Em 1847/48, n’Os Princípios Básicos do Comunismo e no Manifesto, Marx e Engels lançam as bases de uma nova concepção 1

Texto apresentado por Paolo Nosella no IV Colóquio de Pesquisa sobre instituições escolares, no PPGE da UNINOVE, São Paulo, 29 de agosto de 2007 e no Encontro de Estudos e Pesquisas em História, Trabalho e Educação, do HISTEDBR, UNICAMP, Campinas, 04 de setembro de 2007. Contou com atenta leitura e sugestões da Profa. Dra. Ester Buffa.

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ANTECEDENTES HISTÓRICOS


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92 educacional , recomendando “combinar educação e trabalho fabril”. Esta combinação inaugurou uma discussão pedagógica revolucionária, que, porém, era muito incipiente naquela época (In: Manacorda, 1991, p. 16). Com efeito, a recomendação se apresenta, do ponto de vista pedagógico, por demais genérica. Ou seja, didática e concretamente, como se poderia “combinar”, para as crianças, os tempos e as atividades da escola e da fábrica? Por que Marx e Engels recorreram a essa fórmula? Sabemos a consideração que estes autores tinham pelas fábricas, ou melhor, pelo industrialismo nascente. Sabemos também que, na época, crianças que trabalhavam nas fábricas jamais freqüentavam escolas; de outro lado, Marx e Engels pensavam que o industrialismo nascente não poderia prescindir das ágeis e pequenas mãos das crianças. Quanto tempo e quantos estudos se passaram até Vigotsky (anos 1920) afirmar que a essência das atividades das crianças é representada pela brincadeira. Não, porém, no sentido atribuído a essa palavra pelo senso comum; pois a “brincadeira” das crianças é um verdadeiro “trabalho” de estruturação da personalidade. Por isso, para uma criança, o que importa é o processo da atividade, não seu resultado final. Por isso, ainda, a atividade lúdica das crianças é historicamente determinada, não apenas por utilizar brinquedos e brincadeiras característicos de cada fase da história dos homens, mas principalmente porque é nesta atividade que o ser humano, durante seus primeiros anos, produz historicamente sua personalidade. Em suma, a intuição marxiana encontrará nas pesquisas de Vigotsky sua explicitação adequada. Em 1866/67, vinte anos depois, nas Instruções aos delegados e n’O Capital (livro 1, cap. 13), Marx apresenta a conhecida fórmula pedagógica de educação politécnica e/ou tecnológica. Isso representou um notável passo adiante no sentido de esclarecer a idéia pedagógica marxiana de combinação da educação com o trabalho fabril (In: Manacorda, 1991, p.25). Em 1875, n’O Programa de Gotha, Marx insiste na afirmação de que trabalho e educação possuem uma base social comum, historicamente determinada e que por isso não poderia haver na sociedade burguesa escolas iguais para classes desiguais. (In: Manacorda, 1991, p. 38). Em 1919/20, na Revolução de Outubro e no Esquerdismo, doença infantil do comunismo, Lênin reafirmou que não se pode conceber o ideal de uma sociedade futura sem unir, na educação das jovens gerações, ensino e trabalho produtivo. Formulou e

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determinou a opção programática de uma escola politécnica, para todos, “que faça conhecer, em teoria e na prática, todos os principais ramos da produção”. Por meio de tal escola, diz Lênin, “se passará à supressão da divisão do trabalho entre os homens, à educação, ao ensino e à preparação de homens omnilateralmente aptos, capazes de tudo fazer” (In: Manacorda, 1991, p. 40-42). Em 1916, Gramsci firma posição contrária ao ensino profissionalizante, precoce, pragmatista e tecnicista, defendendo a idéia de que a relação entre escola e trabalho produtivo, assim como o marxismo a entende, inscreve-se numa concepção de cultura “desinteressada”, isto é, de longo alcance, porém científica, humanista e moderna. (Gramsci, 1980, p. 440-442 e 536-537). Em 1920, o projeto da escola-do-trabalho de Gramsci relacionava-se à libertação dos trabalhadores: “a concepção desenvolvida por nós (Ordine Nuovo) girava em torno de uma idéia, a idéia de liberdade (concretamente, no nível da produção histórica atual e dentro da hipótese de uma ação autônoma e revolucionária da classe operária)” (Gramsci, 1980, p. 616). Ou seja, para ele, naquele momento, a escola do trabalho tinha como função efetivar a aspiração de liberdade existente nos ânimos da classe trabalhadora. Em 1932, no cárcere fascista, Gramsci escreveu seus famosos Cadernos do Cárcere, sobretudo os nº 12 e nº 22, respectivamente Os Intelectuais e a Organização da Cultura (1975, p. 1511) e Americanismo e Fordismo (1975, p. 2137), nos quais o autor expõe o conceito de trabalho e de instituição escolar unitária. O eixo curricular principal de sua proposta é o estudo do processo de produção e reprodução da vida humana (no lugar do ensino do latim da escola tradicional). A escola unitária objetiva entender o mundo do trabalho, refletir sobre ele e moldar os hábitos fundamentais de um cidadão útil à sociedade. Não, porém, à sociedade “de marca americana”. É a escola que modela os instintos, o corpo, o olhar, a mente, o coração, a vontade, em consonância com os valores éticopolíticos e os processos científicos do trabalho industrial moderno, integrando os valores da escola tradicional de cultura desinteressada: a crise (escolar) terá uma solução que, racionalmente, deveria seguir esta linha: escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre, de modo justo, o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual (GRAMSCI, 2000, p.33).

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94 Mais adiante, no mesmo Caderno, Gramsci adverte:

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o advento da escola unitária significa o início de novas relações entre trabalho intelectual e trabalho industrial não apenas na escola, mas em toda a vida social (GRAMSCI, 2000, p. 40).

Ou seja, o ideal da escola unitária não se concretiza numa -junto sociedade desigual, fragmentada e injusta, mas cresce cresce-junto -junto-- com o desenvolvimento de uma sociedade economicamente unitária. Dos anos 1930 em diante, os educadores não mais duvidam que o processo industrial pôs em crise a escola tradicional retórica de cultura geral e que a nova escola terá que considerar, de alguma forma, os modernos processos de produção. Entretanto, como essa unitariedade econômica e social não ocorreu, cada setor social e produtivo continua criando escolas para formar seus dirigentes e especialistas, de forma desarticulada. Para uns, importa, antes de tudo, a produção, a tecnologia e o lucro e, para outros, o mais importante é a formação e a libertação de todas as pessoas. Estes últimos, que desejam uma sociedade mais igualitária, mais humanista, pensam numa escola na qual a cultura geral esteja ligada à produção moderna, mas, concretamente, não sabem como efetivá-la. Os primeiros, mais realistas, pensam em escolas específicas e diferenciadas para dirigentes e para trabalhadores. Para estes, a escola do trabalho é a instituição que qualifica a mão de obra necessária ao desempenho das diferentes profissões, de forma mecânica e unidirecional. Justificam tal opção com a teoria do capital humano, discurso pedagógico oficial que entendeu, nos anos 1960 e 1970, (e que ainda perdura) a escolarização como investimento na qualificação profissional. A crítica à teoria do capital humano feita por educadores que privilegiam o ideal da igualdade social se avolumou nos anos 1970 e 1980 e o trabalho como princípio educativo foi explicado como sendo uma relação mais complexa e mais abrangente. A principal bandeira destes críticos foi a defesa da educação politécnica para todos todos. No entanto, este ideal é sempre frustrado diante de uma sociedade fragmentada. Ou seja, enquanto a sociedade for esta que aí está, teremos, de um lado, escolas técnicas profissionalizantes que, mesmo quando competentes, não ensinam arte, nem filosofia, nem política. De outro lado, teremos algumas poucas escolas humanistas que ensinam arte e filosofia, porém desvinculadas do mundo do trabalho. Haverá ainda outras, assistencialistas, que quase nada ensinam.

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Todos sabemos que o fator responsável pela dualidade escolar, ou seja, ensino profissional para os trabalhadores e de cultura desinteressada para os dirigentes, é a sociedade de classes, que frustrou o sonho iluminista de integrar as artes liberais com as artes mecânicas. Mas, tal assertiva geral, teoricamente indiscutível, esconde importantes questões culturais que merecem hoje ser destacadas. Uma delas se refere à linha de sombra de desprestígio que acompanha até mesmo a franca defesa que se faz da escola profissional. É preciso, em suma, explicar porque o ensino profissional, prático e disciplinado, por todos elogiado e solicitado, é marginalizado no sistema de ensino regular; inversamente, porque o ensino regular de cultura geral é por todos criticado, por ser indisciplinado, pobre de conteúdos, retórico, inútil, porém é prestigiado e central no sistema. Considerando insuficiente a tese da conspiração política, valeria a pena pesquisar para entender melhor o que está por trás deste paradoxo. Outra questão: há educadores que não concordam com a utopia de uma escola unitária, básica e para todos, porque pensam ser impossível integrar, num mesmo currículo, estudos teóricos sérios, atividades culturais e artísticas metódicas e rigorosas, com práticas produtivas e tecnicamente avançadas. O próprio Gramsci escreveu: “A escola, se é feita seriamente, não deixa tempo para a oficina e, vice versa, quem trabalha seriamente, somente com um enorme esforço de vontade, pode instruir-se. Encaixá-las uma na outra, assim como estão fazendo, é uma das inúmeras aberrações pedagógicas que impossibilitaram à escola na Itália de ser algo sério.” (Gramsci, 1980, p. 537) Todavia, há também educadores que, mesmo sabendo que a superação da dualidade escolar é concomitante à superação da sociedade de classes, entendem que manter a tensão entre o ideal de uma escola unitária e a realidade existente dinamiza as forças políticas projetualmente em direção a uma escola e a uma sociedade mais igualitárias. Temem que, se o ideal da escola unitária esmorecer, a fragmentação escolar perpetuar-se-á representada, no imaginário social, como se fosse uma realidade metafísica ou a-histórica, e imutável. Há, finalmente, outros educadores, idealistas, que acreditam na realização do projeto pedagógico da escola unitária independentemente da conformação sócio-econômica. Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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O DEBATE, HOJE


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96 Estas posições teóricas existem entre nós há tempo e pouco se modificam, pois ideologicamente visam, sobretudo, a contraporse aos outros, isto é, a convencer os oponentes. A isso se acrescente o fato de que as inúmeras experiências escolares de integração entre formação profissional e cultura geral, no ensino básico, sempre fracassaram, inclusive entre nós, no Brasil. Talvez, cometamos o equívoco de pensar que o conceito e o modelo de unitariedade escolar escolar,, propostos pelo marxismo (e não somente por este), estejam historicamente definidos definidos. De nossa parte, acreditamos poder contribuir com este debate afirmando que o conceito de unitariedade da escola ainda está sendo construído construído. Desde a “combinação de educação e trabalho fabril” de Marx e Engels (1847), passando pela “escola politécnica” de Lênin (1919) e pela “escola unitária de cultura desinteressada do trabalho” de Gramsci (1932), a elaboração teórica da intuição marxiana continua ainda hoje. Por exemplo, Manacorda (2007) propõe a “escola plena”, que integre uma formação rigorosa, indispensável ao homem contemporâneo, com as condições concretas para que cada um, livremente, se forme naquilo que é do seu gosto: arte, matemática, aeromodelismo, informática, astronomia, esporte ou até mesmo técnicas artesanais (Manacorda, 2007, dvd). Em outras palavras, a fórmula pedagógica de escola unitária, defendida pelos marxistas, vem se construindo e modificando ao longo do tempo conforme as mudanças objetivas e culturais que ocorrem na sociedade, uma vez que as novas tecnologias e as novas situações culturais transformam os sentidos de muitas coisas. Por exemplo, o sentido da solidão, fruto de exclusão ou abandono, não é o mesmo sentido que tem a solidão voluntária, cercada de muitos instrumentos técnicos como televisão, telefone, internet, que podem garantir os contatos com outras pessoas. Da mesma forma, no início da revolução industrial, eram raras as pessoas integralmente formadas, capazes de se dedicarem a variadas atividades, de forma satisfatória. Em geral, a formação era fortemente especializada. Por isto, naquela conformação social, a fórmula crítica da escola politécnica fazia sentido. Entretanto, hoje, cada vez mais aparecem pessoas que são muito especializadas, mas que, ao mesmo tempo, utilizam e usufruem de inúmeras outras especializações. Hoje, não é preciso ser músico para se ter acesso e apreciar músicas sofisticadas; nem é preciso ser técnico em computação para usufruir dos instrumentos da informática e da comunicação virtual; nem é preciso ser de tradicional família de Política, Educação e Cultura


políticos para dedicar-se a atividades político-sociais em ONGs, partidos, sindicatos, associações, etc. (exemplo, ver o efeito político da internet no recente caso da Campanha “Criança Esperança” da Globo). Portanto, na sociedade atual, chamada por alguns de pósindustrial, é construído um novo conceito de formação unitária que não exclui a especialização de cada um dentro de seus gostos e inclinações, desde que se possa e saiba usar e usufruir dos resultados das demais especializações. A questão principal não é o efetivo saber operar, mas a possibilidade de optar e usufruir “de todos os elevados prazeres humanos” (MANACORDA, DVD, 2007). Ou seja, a liberdade de opção é o cimento da nova unitariedade escolar. A frustração da profissionalização precoce decorre da exclusão, e não tanto da especialização em si. A possibilidade de optar, naturalmente, exige a eliminação da desigualdade social, pois é esta que reduz as opções para muitos e as multiplica para poucos. Nesse sentido, a luta política para a redução e eliminação das desigualdades sociais continua e até mesmo se acentua. Deste ponto de vista, a fórmula escolar de Manacorda parece hoje mais apropriada para traduzir o novo conceito de instituição escolar unitária, pois harmoniza de forma original o tempo de formação rigorosa para todos com o tempo de opção individual: É preciso que a escola, ao invés de ser um lugar aberto cinco horas diárias, durante nove meses por ano e pelo resto do tempo permanecer fechada e vazia, seja o espaço dos adolescentes, onde estes recebam da sociedade adulta tudo o que é possível receber e, ao mesmo tempo, sejam estimulados em suas qualidades pessoais e capacitados a gozar todos os elevados prazeres humanos (MANACORDA, DVD, 2007).

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INCLUSÃO SOCIAL NO CONTEXTO DA REORGANIZAÇÃO CAPITALISTA DO FINAL DO SÉCULO XX: PESSOA COM DEFICIÊNCIA, EDUCAÇÃO INCLUSIVA E RESERVA DE POSTOS DE TRABALHO

A partir da segunda metade do século XX, num contexto marcado pelo fortalecimento das lutas contra as práticas preconceituosas e discriminatórias, como as de gênero e de raça, o movimento organizado de pessoas com deficiência começa a se colocar no cenário político em diversos países do mundo, reivindicando o fim dos procedimentos segregativos e a adoção de medidas que favorecessem a sua inclusão nos diferentes espaços e atividades sociais, em especial, na escola comum e no trabalho formal. No final do século, estas reivindicações e outras passaram a fazer parte de um conjunto de documentos resultantes de conferências internacionais que vão propor o paradigma inclusão social. Este paradigma passa a ser proposto num momento em que o capitalismo, comandado pelo capital financeiro, vem implantando um novo modelo de acumulação, caracterizado pela privatização, desregulamentação, flexibilização, globalização e a ideologia do estado mínimo e do livre mercado. Tudo isto e muito mais, buscando minimizar os custos e maximizar os lucros dos capitalistas. Neste atual processo, o que mais tem ocorrido é o aumento das parcelas excluídas da sociedade, principalmente em relação ao mercado de trabalho, do qual as pessoas com deficiência, com raras exceções, jamais tiveram acesso. Diante desta situação, parece não fazer sentido se falar no paradigma inclusão social, principalmente quando se refere a este segmento historicamente excluído. Este trabalho busca levantar e refletir algumas questões que podem contribuir no entendimento a respeito da inclusão social de pessoas com deficiência no contexto da reorganização da acumulação capitalista, verificado nas últimas décadas do século XX, em especial a questão da inclusão escolar e a reserva de postos de trabalho. Para Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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102 tanto, busca-se: levantar e analisar os modelos de tratamento e compreensão desenvolvidos pela humanidade em relação às pessoas com deficiência ao longo da história; apontar os pressupostos do modelo inclusivo e o contexto econômico, político e social em que o mesmo está sendo defendido e verificar até que ponto as propostas de educação inclusiva e de trabalho formal, para este segmento social, estão articuladas com a reestruturação do processo de produção capitalista do final do século XX; e, finalmente, algumas considerações a respeito da possibilidade de se falar e lutar por inclusão social num contexto marcado pelo aprofundamento da exclusão. Na abordagem deste tema, o ponto de partida é a existência dos homens como seres ativos, produzindo sua existência a partir de determinadas condições presentes na sua vida real, pois é esta produção que determina o que eles são. “O que eles são coincide, portanto, com sua produção, tanto com o que produzem, como com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção” (MARX e ENGELS, 1984, p. 27-28). Procurando conceituar a deficiência a partir da vida real dos homens, parece ser correto defini-la como sendo “toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função (...) que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano” (BRASIL, 1999, art. 3º, inc. I). Sendo assim, a deficiência não é simplesmente sinônimo de um defeito físico, sensorial ou mental, mas está relacionada à capacidade do indivíduo de dar conta das tarefas que lhe são colocadas historicamente, ou seja, ela se define a partir do modo pelos quais os homens estão produzindo sua existência. No que se refere aos modelos de compreensão e tratamento dispensados às pessoas com deficiência ao longo da história, a maioria dos poucos escritos que de alguma forma tratam ou fazem referência a este tema indica que estas, com raras exceções, sempre foram marginalizadas ou, até mesmo, excluídas do convívio social. Este trabalho parte do pressuposto de que tais procedimentos são determinados por razões objetivas presentes em diferentes contextos sociais, como é o caso das sociedades primitivas e dos modos de produção escravista, feudal e capitalista. Ao se trabalhar com estes quatro períodos históricos, não se nega a existência de outros, como é o caso do modo de produção asiático, que ainda necessitam ser melhor conhecidos em relação a esta temática.

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As sociedades primitivas se constituíram no período histórico mais extenso vivenciado pela humanidade. Na maior parte do mesmo, a humanidade se constituía de pequenos agrupamentos nômades, os quais sobreviviam perambulando pela terra, enfrentando um mundo selvagem, em busca da caça, da pesca e de tudo aquilo que a natureza podia lhes oferecer. “O regime comunitário primitivo caracterizava-se por um nível extraordinariamente baixo de desenvolvimento das forças produtivas ao qual correspondia uma produtividade do trabalho muito baixa. Os homens daquela época produziam tão pouco que quase logo consumiam todo o produto” (ERMAKOVA e RÁTNIKOV,1986, p. 35). Devido às dificuldades existentes nesse mundo selvagem, para que cada pessoa pudesse sobreviver, era indispensável que cada um estivesse em condições de produzir os seus meios de vida e auxiliar os demais membros do grupo a fazer o mesmo e, ainda, ser capaz de se livrar dos perigos impostos pela natureza. Mais tarde, com o desenvolvimento da agricultura e do pastoreio, os homens passam a se fixar em determinadas regiões, iniciando sua fase de sedentarização e estabelecendo condições mais favoráveis para a sobrevivência do agrupamento. Segundo SILVA (1986), ao se analisar estudos de renomados antropólogos e historiadores da medicina, pode-se constatar dois tipos de procedimentos em relação às pessoas com deficiência nas sociedades primitivas “uma atitude de aceitação, tolerância, apoio e assimilação e uma outra, de eliminação, menosprezo ou destruição” (SILVA, 1986, p. 39). A explicação para a existência destas duas formas de tratamento em relação às pessoas com deficiência pode ser encontrada nas características e no processo de desenvolvimento das sociedades primitivas. O primeiro fato a ser considerado é o de que, na maior parte deste período histórico, os homens viviam no nomadismo, o que colocava a cada membro do agrupamento a necessidade de ser capaz de garantir a sua sobrevivência num mundo selvagem. Diante desta realidade, não havia condições objetivas que permitissem a sobrevivência de pessoas com deficiência, já que elas não conseguiam acompanhar o ritmo dos demais membros do grupo nos constantes deslocamentos em busca de novos campos de caça e coletas de frutos, bem como nos enfrentamentos com animais ferozes e com outros agrupamentos de seres humanos. Sendo assim, estes povos primitivos, por uma questão de sobrevivência, não tinham outra alternativa a não ser livrarem-se daqueles que estavam sem condições de acompanhá-los em seu ritmo de vida promovendo, desta forma, uma “seleção natural”. Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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104 O segundo fato a ser considerado refere-se ao processo de sedentarização dos homens. Além da descoberta da agricultura e da domesticação de alguns animais, também houve um maior incremento na produção de instrumentos artesanais, os quais potencializaram as ações humanas, permitindo aos povos primitivos melhorarem as suas condições de vida. Também é importante considerar que tais povos produziam seus meios de vida sobre um regime comunitário, “comunismo primitivo”, no qual se podia adotar o princípio de que cada um contribuiria com o grupo conforme as suas possibilidades e receberia para si aquilo que o mesmo pode lhe dar. Nessa sociedade, é perfeitamente possível se adotar atitudes de aceitação, tolerância, apoio e assimilação em relação às pessoas com deficiência, já que estas poderiam desenvolver atividades que estavam em conformidade com a sua forma de ser e, assim, contribuírem na manutenção do grupo. Apesar destas condições, alguns povos primitivos sedentarizados continuaram a adotar a prática do extermínio, menosprezo e destruição. Esse procedimento pode ser explicado como o resultado da herança de antigos costumes que, como já exposto, decorriam de razões objetivas que a natureza impunha aos agrupamentos de nômades e que, mesmo num ambiente já favorável à sobrevivência de tais pessoas, continuaram a ser praticados. Este procedimento, que não mais encontrava razão de ser na própria realidade, fundamentou-se em explicações místicas a respeito da existência de pessoas com deficiência, as quais perpassam toda história e ainda hoje figuram no imaginário social. Na quase totalidade da existência da sociedade primitiva, quando diferentes agrupamentos humanos entravam em conflitos, a tribo vencedora não podia fazer prisioneiros aqueles que pertenciam ao grupo dos vencidos, já que ela não possuía meios de alimentálos, assim as alternativas eram assassinar todos os inimigos ou aceitálos como novos membros da comunidade. Porém, o processo de sedentarização e a elevação do nível de desenvolvimento das forças produtivas “(...) tornou a força de trabalho do homem capaz de produzir mais do que o necessário para a sua manutenção” (ENGELS, 1984, p. 181). Com esta possibilidade, criaram-se condições para que os prisioneiros fossem transformados em escravos. Desta forma, “(...) passou a ser conveniente conseguir mais força de trabalho, o que se logrou através da guerra” (ENGELS, 1984, p. 181). O desenvolvimento deste processo levou a constituição do modo de

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produção escravista e as principais formações sociais dessa época histórica foram a grega e a romana. Em ambas sociedades, o trabalho era concebido enquanto uma atividade degradante para os homens e só deveria ser desenvolvida por aqueles considerados como seres inferiores. Estes, com exceção de uma pequena minoria de trabalhadores livres, eram prisioneiros de guerras que, para terem direito a uma sobrevida, eram obrigados a trabalhar como escravos. Devido à intensidade da exploração, a vida destes trabalhadores era rapidamente consumida. “Freqüentemente, a exploração impiedosa do escravo durante 7-8 anos causava a sua morte” (ERMAKOVA e RÁTNIKOV, 1986, p. 43). Este fato colocava para a classe dominante a necessidade de sempre renovar a força de trabalho, o que era feito, principalmente, através da guerra, com a qual se podia, além de conquistar territórios e promover saques, obter novos escravos. Para tanto, se recorria a um exército formado por indivíduos da própria classe dominante, a qual necessitava iniciar a educação de seus filhos nas artes guerreiras ainda na infância. Um exemplo típico deste fato é o que acontecia em Esparta: “aos sete anos, o Estado apoderava-se do jovem espartano e não mais abria mão dele. De fato, até aos quarenta e cinco anos pertencia ao exército ativo, e até aos sessenta, à reserva” (PONCE, 1992, p. 40). Um dos procedimentos mais conhecidos desta época em relação às pessoas com deficiência foi o adotado em Esparta. Nesta cidade-estado, toda a criança que nascia e que era filho da nobreza tinha que ser, em conformidade com as leis vigentes, examinada por uma espécie de comissão oficial formada por anciãos de reconhecida autoridade, que se reunia para tomar conhecimento do novo cidadão. Conforme estas leis, se fosse um bebê normal e forte (se o achavam belo, bem formado de membros e robusto) ele era devolvido ao pai que passava a ter a incumbência de criá-lo. Depois de certa idade - entre os 6 e 7 anos - o Estado tomava a si a responsabilidade e continuava sua educação (PLUTARCO apud SILVA, 1986, p. 121).

O que a comissão buscava era evitar que as crianças, que se encontravam fora da normalidade exigida, pudessem sobreviver. Para tanto: se lhes parecia feia, disforme e franzina (...), esses mesmos anciãos, em nome do Estado e da linhagem de famílias que representavam, ficavam com a criança. Tomavam-na logo a seguir e a levavam a um local chamado “Àpothetai”, que significa “depósitos”. Tratava-se de

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um abismo situado na cadeia de montanhas Taygetos, perto de Esparta, onde a criança era lançada e encontraria sua morte (SILVA, 1986, p. 122).

A exigência de perfeição física, sensorial ou mental também estava colocada para as pessoas com deficiência oriundas das classes exploradas, pois do contrário elas não serviriam nem mesmo para serem submetidas à escravidão. Plutarco, ao se referir à forma pelas quais um escravagista tratava os seus escravos, afirma que “Catão não só martirizava os seus escravos, como os instruía em certas artes, para vendê-los mais caro posteriormente; não só abandonava, como o ‘ferro velho’, os escravos inservíveis, como cobrava uma taxa dos que queriam se divertir com as suas escravas” (PLUTARCO apud PONCE, 1992, p. 65). Embora não esteja explicitado que os “escravos inservíveis” fossem aqueles que possuíssem alguma deficiência, certamente estavam enquadrados nesta categoria os que, ao longo de sua vida, viessem a adquirir graves problemas físicos, sensoriais e mentais que lhe impedisse a obtenção de uma produção acima daquilo que necessitavam consumir para continuar vivos, ou seja, um excedente para contribuir no financiamento da superestrutura que se fazia necessária nas relações de produção escravista. Apesar das dificuldades para uma pessoa com deficiência ser escravizada, algumas eram submetidas a esta condição, vivendo nas tabernas, nos bordéis, nos circos romanos, etc, “para serviços simples e às vezes humilhantes, costume esse que foi adotado por muitos séculos na História da Humanidade” (SILVA, 1986, p. 130). Quando estas, em razão de sua anormalidade, começaram a ser utilizadas economicamente como pedintes ou enquanto seres bizarros em espetáculos, as mesmas passaram a ter algum valor mercantil. “(...) existia em Roma um mercado especial para compra e venda de homens sem pernas ou braços, de três olhos, gigantes, anões, hermafroditas” (DURANT apud SILVA, 1986, p. 130). No final deste período histórico, para abrigar alguns dos que conseguiam escapar do extermínio ou sobreviver ao abandono, passaram a ser organizadas algumas instituições: “lares para deficientes (“paramonaria”); lares para pessoas cegas (“tuflokoméia”); instituições para pessoas com doenças incuráveis (“arginoréia”); e também organizações para pessoas muito pobres e para mendigos (“ptochéia”).” (SILVA, 1976, p. 126-127). Este procedimento, denominado como modelo da institucionalização, e que foi aprofundado no modo de produção

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feudal e se tornou predominante na quase totalidade do capitalismo, esteve voltado, principalmente, para aquelas pessoas com deficiência pertencentes às classes exploradas da sociedade. No feudalismo, os asilos, hospitais e hospícios geralmente eram mantidos pela Igreja Católica, principal organização econômica e política deste período. Apesar da existência dessas instituições, é importante salientar que, no feudalismo, a maioria das pessoas com deficiência não eram internadas. Isso ocorria porque a sociedade não dispunha de recursos suficientes para adotar tal procedimento, o que levava boa parte dessas pessoas a sobreviver da mendicância. Existiam também aqueles que eram aproveitados nas atividades laborais desenvolvidas no interior dos feudos, o que se tornava possível devido a maior parte da produção ocorrer no âmbito familiar, em que cada indivíduo poderia trabalhar segundo as suas condições físicas, sensoriais ou mentais. Até o final do feudalismo, a pessoa com deficiência era compreendida somente a partir de uma abordagem mística, a qual surgiu nos seio dos povos primitivos e foi incorporada pelos principais pensamentos religiosos e ainda hoje se faz presente no senso comum. No que se refere ao cristianismo, que é o pensamento teológico predominante no ocidente, existem passagens bíblicas em que aparecem pessoas com deficiência sendo “curadas” por Jesus. Estas passagens encontram-se especialmente nas palavras dos evangelistas, em que, “segundo seus relatos, Jesus fez mais de 40 milagres notórios. Deles todos, pelo menos 21 são relacionados a pessoas portadoras de deficiências físicas ou sensoriais (...)” (SILVA, 1986, p. 88). Nestas passagens, as causas das deficiências são atribuídas à possessão de maus espíritos, castigos por pecados seus ou de ancestrais e ainda como instrumentos para realização de obras divinas. O modelo místico começa a ser contestado a partir de alguns acontecimentos que passaram a ocorrer ainda no final do feudalismo. As descobertas geográficas do final da primeira metade do segundo milênio contribuíram para que, nos séculos XVI e XVII, ocorresse um gradativo aumento do mercado por produtos manufaturados, ampliando a acumulação de capitais e o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, potencializando as condições do homem na luta para dominar a natureza. Estes acontecimentos foram consolidando um novo modo de produção assentado na propriedade privada, na compra e venda de mercadorias, no trabalho assalariado e na extração da mais-valia.

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108 O progresso científico, impulsionador e impulsionado pelo desenvolvimento econômico, político, social e cultural, verificado na sociedade moderna, começou a refletir na forma de se ver, compreender e tratar as pessoas com deficiência. A primeira forma de compreensão destas pessoas, derivada da ciência moderna ainda fortemente presente na consciência social, é definida por VIGOTSKI (1997) como “Biológica Ingênua” (p. 33). Segundo este mesmo autor, esta teoria afirma que “as relações entre os órgãos dos sentidos se equiparam diretamente com as relações entre os órgãos pares; o tato e a audição compensam diretamente a visão que há declinado, como o rim são, compensa o doente; o menos orgânico se cobre mecanicamente do mais orgânico (...)” (VIGOTSKI, 1997, p. 33-34). Esta teoria tem servido para fundamentar, dentre outros entendimentos, a idéia de que o tato e o ouvido dos cegos substituem a sua visão, e que a audição dos surdos é substituída pela sua grande capacidade de ver. A prática e a ciência faz tempo desmascararam a falta de fundamento desta teoria. Uma investigação baseada em fatos tem demonstrado que na criança cega não há o aumento automático do tato ou da audição devido à visão que lhe falta (...). Pelo contrário, a visão por si mesma não se substitui, senão que as dificuldades que surgem devido à sua falta se solucionam mediante o desenvolvimento da superestrutura psíquica (VIGOTSKI, 1997, p. 34).

A despeito desses equívocos, a teoria biológica ingênua foi importante na medida em que deu as primeiras contribuições para romper com o fatalismo da abordagem mística a respeito das possibilidades de existência das pessoas com deficiência e começou a colocar a questão no âmbito da ciência. Com este novo enfoque, “no lugar da mística foi posta a ciência, no lugar do preconceito, a experiência e o estudo” (VIGOTSKI, 1997, p. 76). Apesar desse avanço, que começa a ocorrer já nos dois primeiros séculos da sociedade moderna (XVI e XVII), o que se verificou, principalmente com aqueles que pertenciam aos setores explorados da população, foi o aprofundamento do modelo de institucionalização das pessoas com deficiência e outros divergentes. “O que ocorreu, na verdade, foi o isolamento daqueles que interferiam e atrapalhavam o desenvolvimento da nova forma de organização social, baseada na homogeneização e na racionalização” (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 63). Segundo este mesmo autor:

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109 O que se pode depreender destes dois séculos é o início do movimento contraditório de participação-exclusão que caracteriza todo o desenvolvimento da sociedade capitalista, que se baseia na homogeneização para a produtividade e que perpassará toda a história da educação especial (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 63).

Essa massa não tem nome, não tem história, não tem pátria. Eram, juntamente com muitos outros que não quiseram ou não puderam se submeter à nova ordem, a escória da qual nada mais resta senão as estatísticas dos asilos e a menção de que fazia micagens na feira ou que tocava desafinadamente uma rabeca pelas ruas em troca de alguns níqueis (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 63).

Na segunda metade do século XVIII, foram organizadas em Paris, na França, as primeiras instituições do mundo voltadas para a educação de surdos (1760) e cegos (1784). O surgimento das primeiras instituições especializadas na educação de pessoas com deficiência quase sempre é apresentado pelos historiadores como sendo o resultado do esforço da moderna sociedade em oferecer educação escolar a este segmento. Se o surgimento das primeiras instituições escolares especializadas correspondeu ao ideal liberal de extensão das oportunidades educacionais para todos, (...) respondeu também ao processo de exclusão do meio social daqueles que podiam interferir na ordem necessária ao desenvolvimento da nova forma de organização social (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 64).

Isso passou a ocorrer na medida em que essas instituições foram rapidamente perdendo o seu caráter educativo e se transformando em espaço de isolamento e exploração das pessoas com deficiência pertencentes às classes exploradas, pois estas eram obrigadas à internação e ao “(...) trabalho forçado, manual e tedioso, parcamente remunerado, quando não em troca de um lugar no maravilhoso espaço do asilo-escola-oficina” (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 69). Com o tempo, este modelo se espalhou para praticamente todos os países do mundo, geralmente mantido por ações filantrópicas e tendo como função principal recolher e isolar do

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A educação sistematizada das pessoas com deficiência, que passou a ocorrer nesse período, se restringiu basicamente aos filhos da nobreza e da nascente burguesia enriquecida, os quais puderam usufruir de sua condição de membros das elites. Os demais estavam largados à própria sorte.


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convívio social todas as pessoas que interferiam e atrapalhavam o desenvolvimento da nova forma de organização social, baseada na homogeneização e na racionalização, orientada por uma lógica voltada para a produção e o lucro. Este processo, combinado com a popularização da educação formal, provocou uma grande expansão da educação especial ao longo do século XX. Porém, é preciso considerar que isso ocorreu com a incorporação de alunos que, no seu surgimento, não faziam parte de suas preocupações, isto é: daqueles que apresentavam distúrbios de linguagem, distúrbios emocionais e os considerados com problemas de aprendizagem, os quais passaram a ser a imensa maioria dos freqüentadores do ensino especializado (CARVALHO, ROCHA e SILVA, 2006, p. 47).

Sendo assim, pode-se afirmar que a ampliação da educação especial espelhou muito mais o seu caráter de avalizadora da escola regular que, por trás da igualdade de direitos, oculta a função fundamental que tem exercido nas sociedades capitalistas modernas: o de instrumento de legitimação da seletividade social (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 80).

Por volta da metade do século XX, num contexto marcado, principalmente nos países do capitalismo central, pela política do estado do bem estar social e pela defesa dos direitos das minorias sociais, o paradigma da Institucionalização começou a ser criticamente examinado e denunciado como sendo uma prática que violava os direitos do homem. Em oposição à institucionalização, surgiu o modelo da integração, o qual encontra-se alicerçado na oferta de serviços, com a finalidade de “normalizar” as pessoas com deficiência. Para tanto, há a “(...) necessidade de modificar a pessoa com necessidades educacionais especiais, de forma que esta pudesse vir a se assemelhar, o mais possível, aos demais cidadãos, para então poder ser inserida, integrada, ao convívio em sociedade” (BRASIL, 2000, p. 16). Devido ao seu caráter também segregativo, este paradigma logo passou a ser criticado: “diferenças, na realidade, não se “apagam”, mas sim, são administradas na convivência social” (BRASIL, 2000, p. 17). Estas críticas, que se espraiaram pelos mais diferentes espaços sociais, tiveram origem em dois segmentos: o primeiro foi o das próprias pessoas com deficiência, que a partir do crescimento da sua organização enquanto movimento social, verificado, principalmente, nas últimas três décadas do século XX, permitiu que algumas fossem tomando consciência e lutando contra Política, Educação e Cultura


os determinantes que as têm colocado na condição de excluídas socialmente; o segundo foi o acadêmico, em que alguns estudiosos, a partir da formulação e apropriação de novos entendimentos a respeito do processo de aprendizagem e desenvolvimento das pessoas com deficiência, se colocaram ao lado destas na luta contra os procedimentos excludentes. Estas críticas contribuíram para formular o paradigma inclusão social, afirmando que não é a pessoa que deve se ajustar ao meio, mas é a sociedade que deve garantir os suportes necessários para que todos possam usufruir da vida em comunidade. Nesta proposta, não se nega que as pessoas com deficiência necessitam de serviços especializados, mas estas não são “(...) as únicas providências necessárias caso a sociedade deseje manter com essa parcela de seus constituintes uma relação de respeito, de honestidade e de justiça” (BRASIL, 2000, p. 18). Na última década do século XX, dois documentos internacionais vêm propor, dentre outras mudanças, o estabelecimento de um novo paradigma em relação ao atendimento educacional das pessoas com deficiência. O primeiro é a Declaração sobre Educação para Todos, (Jomtien, Tailândia, 1990). Um dos itens desta Declaração propõe que as necessidades básicas de aprendizagem das pessoas portadoras de deficiências requerem atenção especial. É preciso tomar medidas que garantam a igualdade de acesso à educação aos portadores de todo e qualquer tipo de deficiência, como parte integrante do sistema educativo (ROSA e ANDRÉ, 2006, p. 7677).

O segundo documento, apontando na mesma direção, denominado Declaração de Salamanca (Espanha, 1994), propõe que todos os governos devem dar “(...) a mais alta prioridade política e orçamentária à melhoria de seus sistemas educativos, para que possam abranger todas as crianças, independentemente de suas diferenças ou dificuldades individuais” (p. 10). Paradoxalmente, a proposta inclusiva aparece num contexto em que o estado passa a encolher ou a extinguir suas políticas sociais. Este contexto começa a ser formado a partir dos anos setenta, com a necessidade do capitalismo em estabelecer um novo modelo de desenvolvimento assentado nos pressupostos ultraliberais ou neoliberais, com profundas conseqüências para as mais diversas áreas dos fazeres humanos. Tratou-se da saída burguesa para a grande recessão econômica internacional de 1973, decorrente da diminuição nas taxas de lucros e agravadas com o “choque do petróleo”, a qual Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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112 levou os detentores do capital financeiro a adotar um novo padrão de acumulação, denominado de “acumulação flexível”, o qual: (...) se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional (HARVEY, 1992, p. 140).

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A acumulação flexível recoloca alguns problemas que o capitalismo havia contido, principalmente nos países centrais, na chamada “era de ouro”. Na década de 1980 e início da de 1990, o mundo capitalista viu-se novamente às voltas com problemas da época do entreguerras que a Era de Ouro parecia ter eliminado: desemprego em massa, depressões cíclicas severas, contraposição cada vez mais espetacular de mendigos sem teto a luxo abundante (...) (HOBSBAWM, 1995, p. 19).

A entrada em cena do modelo de acumulação flexível encontra-se articulado com o processo de mundialização financeira, a qual: (...) designa as estreitas interligações entre os sistemas monetários e os mercados financeiros nacionais, resultantes da liberalização e desregulamentação adotadas inicialmente pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido, entre 1979 e 1987, e nos anos seguintes pelos demais países industrializados (CHESNAIS, 1998 p. 12).

O resultado deste processo foi e tem sido o aumento da exploração dos trabalhadores em todo o mundo, com redução salarial e dos direitos trabalhistas, enfraquecimento do movimento sindical e a ampliação do exército de mão-de-obra de reserva. O novo processo de acumulação exige um conjunto de reformas que favoreça a ampliação dos mercados, permitindo que o processo de acumulação capitalista possa recobrar o fôlego perdido. Estas reformas passam a ser introduzidas nos países periféricos através de um receituário coordenado por organismos internacionais como, o Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento - Banco Mundial (BIRD) e a Organização Mundial do Comércio (OMC). A partir do início dos anos noventa, as recomendações destes organismos internacionais atingem o Brasil através de uma política fundada na “... (i) abertura comercial; (ii) âncora cambial no Dólar; (iii) privatização de empresas e atividades exercidas pelo Estado; (iv) austeridade fiscal; (v) desregulamentação Política, Educação e Cultura


113 (flexibilidade) das relações econômicas e de trabalho e (vi) focalização das políticas públicas.” (DEDECCA apud DEITOS, 2005, p. 70). Articulado com o receituário dos organismos internacionais, o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), com a justificativa de racionalizar e reduzir os gastos públicos, além de acelerar o processo de privatização, também propôs:

A prioridade no desenvolvimento de políticas focalizadas, em detrimento das universais, passou a se dar não com o rompimento do tradicional modelo de “atendimento” aos segmentos mais “vulneráveis socialmente”, o qual ocorria através da ação de entidades assistencialistas e filantrópicas e, sim, tratou-se da plena participação do estado na mobilização da sociedade civil para um “neofilantropismo”, com a implantação do programa Comunidade Solidária. “O eixo da estratégia do governo para reduzir as desigualdades e atenuar a pobreza é assegurar que os programas sociais atendam genuína e eficientemente as necessidades dos pobres e dos desempregados mediante uma colaboração inovadora com a sociedade civil” (VIANNA, 1998, p.73). O que se pode depreender deste contexto é que a luta das pessoas com deficiência contra as históricas práticas excludentes vem se dando num momento marcado por reformas neoliberais ou ultraliberais, em que as novas políticas sociais estão articuladas com o estabelecimento de um novo padrão de acumulação capitalista, centrado principalmente na privatização, na desregulamentação, na flexibilização, na globalização, na ideologia do estado mínimo, do livre mercado e da equidade social com a denominada equiparação de oportunidades por meio do desenvolvimento de políticas focalizadas. As principais reivindicações das pessoas com deficiência colocadas neste contexto, no paradigma inclusão social, dizem respeito ao direito de freqüentarem as escolas comuns e de terem acesso ao trabalho formal. A primeira tem se configurado na busca da superação das instituições educacionais segregativas e a adoção de uma educação inclusiva, e a segunda na luta pela reserva de postos de trabalho para aqueles que vêm sendo rejeitados pela lógica do processo de produção capitalista. Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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a) a renovação e/ou eliminação em grande escala de muitas instituições e programas existentes; b) a modificação e a desregulamentação das relações entre os setores público e privado; e c) a redefinição dos beneficiários dos programas sociais para atender mais eficientemente as necessidades dos que são realmente pobres (VIANNA, 1998, p. 172).


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114 No que se refere à educação, o que se tem buscado é superar o dualismo entre escolas segregadoras e exclusivistas. Este dualismo, como já demonstrado, surgiu para retirar do convívio social aqueles que podiam perturbar a ordem necessária ao desenvolvimento do capital, fazendo parte desta, a tarefa colocada pela burguesia para a educação escolar de massas, isto é: transmitir à população os conhecimentos técnicos, políticos, e os valores ideológicos necessários à produção e à reprodução da sociedade capitalista. Na atualidade, a exclusão educacional não tem ocorrido somente com aqueles que estão fora das escolas comuns. O novo padrão de acumulação capitalista, que se tornou hegemônico no Brasil na década de noventa, exige dos trabalhadores um conhecimento menos discursivo e amplamente operativo e interativo, menos intelectivo e mais pragmático. Nesse contexto histórico, o que se requer principalmente do aluno é a competência para buscar novas informações e habilidades. Essas exigências retiram da escola um conjunto de conteúdos científicos e filosóficos necessários à emancipação intelectual do educando, contribuindo para ajustá-lo, de forma a-crítica, à realidade. A corrente teórica que mais tem defendido a superação deste dualismo é a abordagem Histórico-cultural, que tem como principais expoentes Vigotski, Leontiev e Lúria. Esta defesa, não decorre por razões humanitárias, respeito à diversidade e valorização das diferenças, mas do entendimento científico de que a deficiência não é apenas defeito e limitação, mas também fonte geradora de energia motriz, a qual pode levar à constituição de uma superestrutura psíquica capaz de reorganizar toda a vida da pessoa, tornando-a alguém de plena valia social. Se algum órgão, devido à deficiência morfológica ou funcional, não consegue cumprir inteiramente seu trabalho, então o sistema nervoso central e o aparato psíquico assumem a tarefa de compensar o funcionamento insuficiente do órgão, criando sobre este ou sobre a função uma superestrutura psíquica que tende a garantir o organismo no ponto fraco ameaçado. (VIGOTSKI, 1997, p. 77).

Em relação à escola especial, Vigotski afirma que a mesma (...) cria um mundo pequeno, separado e isolado, no qual tudo está adaptado e acomodado ao defeito da criança, tudo fixa sua atenção na deficiência corporal e não o incorpora a verdadeira vida (...) em lugar de tirar a criança do mundo isolado, desenvolve geralmente nesta criança hábitos que a levam a um isolamento ainda maior e intensifica a sua segregação (VIGOTSKI, 1997, p. 41-42).

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(...) em 1923 a OIT recomendou a aprovação de leis nacionais que obrigavam entidades públicas e privadas a empregar um certo montante de portadores de deficiência causada por guerra. Em 1944, na Reunião de Filadélfia, a OIT aprovou uma recomendação, visando induzir os países-membro a empregar uma quantidade razoável de portadores de deficiência não-combatentes (PASTORE, 2000, p. 157).

Nas décadas seguintes, esta recomendação da Organização Internacional do Trabalho foi transformada em lei em diversos países europeus. “Os primeiros países que aderiram à idéia foram a Inglaterra e a Holanda, sendo seguidos pela Grécia, Luxemburgo, Espanha, Irlanda, Bélgica. O Japão entrou no esquema bem mais tarde (1960)” (PASTORE, 2000, p. 158). No Brasil, um dos primeiros documentos federais que tratou de certa forma deste tema foi o Decreto- Lei nº 5895 de 20/10/ 1943, o qual propunha que: “fica o Departamento Administrativo do Serviço Público autorizado a estudar e a expedir normas para o aproveitamento de indivíduos de capacidade reduzida nos cargos ou funções do Serviço Civil Federal” (BRASIL, 1943, art. 1º) Mas, foi nos anos de 1990 e 1991 que foram aprovadas duas leis federais estabelecendo reservas de postos de trabalho para pessoas com deficiência, tanto no setor público quanto na iniciativa privada. A primeira (Lei 8112) criou uma reserva de empregos para pessoas com deficiência nos órgãos civis da União, autarquias e fundações públicas federais (...) A Segunda (Lei 8213), por sua vez, estabeleceu cotas compulsórias a serem respeitadas pelas empresas privadas na admissão e demissão de pessoas com deficiência (CARVALHO e ORSO, 2006, p. 172).

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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Em relação à reserva de postos de trabalho para pessoas com deficiência, existem registros que atestam que já no início do século XIX este procedimento era adotado pelo menos numa região da Inglaterra: “Em 1815, no Parlamento inglês, assinalou-se o caso de uma paróquia de Londres que estabeleceu um contrato com um fabricante do Lancashire pelo qual este se comprometia a receber, por cada 20 crianças sãs física e mentalmente, uma idiota” (MARX, 1982, p. 189). Ainda na Europa, no início do século XX, com o advento da Primeira Guerra Mundial, aumentou consideravelmente o número de pessoas com deficiência, os quais, em muitos países, passaram a reivindicar o direito de voltar a ocupar um posto de trabalho. Como resultado destas reivindicações,


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116 No Brasil, mesmo com estas leis, são raras as pessoas com deficiência que têm conseguido se fixar numa relação de trabalho formal. “O Brasil é possuidor de um dos maiores contingentes de pessoas com deficiência (16 milhões), sendo que destes, 60% encontram-se em idade de trabalhar e 98% dos mesmos encontramse desempregados” (PASTORE apud CARVALHO e ORSO, 2006, p. 158). A justificativa dos liberais do final do século XX, em relação a esta situação, é a mesma utilizada para explicar o desemprego estrutural na sociedade contemporânea, ou seja, a falta de qualificação profissional. “No mundo inteiro, os portadores de deficiência sofrem restrições em termos educacionais, o que dificulta a sua inserção no mercado de trabalho” (PASTORE, 2000, p. 76). Se na perspectiva liberal, a falta de qualificação é apresentada como um empecilho para o ingresso das pessoas com deficiência no regime de trabalho formal, as novas tecnologias são apresentadas como a grande redentora deste seguimento social. As novas tecnologias estão viabilizando certas atividades até então impensáveis pelos portadores de deficiência. Esse é o caso da informática e das telecomunicações. Essas tecnologias estão permitindo aos portadores de deficiência um domínio de atividades até pouco tempo inexeqüíveis (PASTORE, 2006, p. 86).

Ao contrário do que afirma os liberais, o avanço tecnológico não tem resultado em melhores condições de existência para as pessoas com deficiência, a não ser para aquelas que pertencem às classes dominantes, que não necessitam trabalhar e podem ter acesso às novas tecnologias para usufruir do ócio. No caso das pertencentes às classes exploradas, pode-se afirmar que hoje a sua exclusão do processo de trabalho é até maior que em outros tempos, como na Idade Média, isto porque naquela sociedade alguém que só possuísse trinta por cento de visão e ainda fosse coxo poderia perfeitamente trabalhar “pilotando” o principal veículo de transporte terrestre, ou seja, uma carroça. Na atualidade, com todo o desenvolvimento tecnológico, esta pessoa foi transformada em “deficiente”, considerada pela própria legislação previdenciária como incapacitada para o trabalho. Em relação à utilização das novas tecnologias por parte das pessoas com deficiência pertencentes às classes exploradas, podese elencar pelo menos três fatores que vão na direção oposta ao pregado pela ideologia liberal:

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Desta forma, o capitalismo, por estar assentado na propriedade privada dos meios de produção, na relação assalariada de trabalho, na produção de mercadorias e na obtenção do lucro por meio da extração da mais-valia, a incorporação de novas tecnologias não favorece a inclusão de mais pessoas no mercado de trabalho, mas pelo contrário, amplia o contingente de desempregados. Aumentando em extensão, em concentração e eficácia técnica, os meios de produção tornam-se cada vez menos meios de emprego do operário (...) o capital adicional, formado no curso da acumulação atrai pois, em proporção à sua grandeza, operários em número cada vez menor (MARX, 1992, p. 159).

As informações e idéias apresentadas ao longo deste trabalho permitem a formulação de algumas considerações a respeito da inclusão social das pessoas com deficiência no contexto da reorganização do processo de acumulação capitalista do final do século XX. Se o dualismo educacional entre escola especial e exclusivista foi uma criação imposta pela ordem capitalista e, se a primeira só tem servido para atrofiar o processo de aprendizagem e desenvolvimento das pessoas com deficiência, então lutar contra o modelo segregativo é se colocar contra um dualismo que só tem, por um lado, servido para favorecer a formação de um indivíduo padronizado para melhor atender as exigências do processo de produção capitalista e, por outro, segregar aqueles que, por razões biológicas ou sociais, desviam do almejado padrão. No atual modelo de acumulação capitalista, em que a classe dominante cada vez mais se apropria do conhecimento tecnológico, colocando-o a serviço da exploração dos trabalhadores, promovendo Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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O primeiro refere-se à apropriação privada das tecnologias por parte da classe dominante, que acaba impedindo que a maioria da população, dentre ela, as pessoas com deficiência pertencentes à classe explorada, possa ter acesso àquelas de uso pessoal (...) O segundo diz respeito ao fato de que, por mais desenvolvidas que possam ser as tecnologias, não têm conseguido substituir os órgãos dos sentidos, a ausência ou anormalidade de membros do corpo humano e nem graves deficiências mentais ao ponto de tornarem a capacidade produtiva deste segmento social tão rentável para o capitalista quanto a dos demais trabalhadores (...) O terceiro refere-se ao fato de que a tecnologia da produção capitalista é desenvolvida a partir das necessidades impostas pelo tipo de mercadoria a ser produzida e está “adequada” a exploração de um padrão médio de ser humano (CARVALHO e ORSO, 2006, p. 167168).


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118 a concentração da riqueza e o desemprego e a miséria do proletariado, é necessário não se deixar seduzir com o “canto das novas tecnologias”, pois a tendência que se apresenta para as pessoas com deficiência não é a sua inclusão no processo produtivo formal, mas sim, o aprofundamento da exclusão de que são vitimas aqueles que pertencem as classes sociais exploradas. Tendo em vista que a base objetiva da exclusão da maioria das pessoas com deficiência decorre da impossibilidade destas de atender ao padrão de “produtividade” imposto pela exploração de classe, e que o estabelecimento e expansão da escola segregada na sociedade moderna têm respondido, fundamentalmente, à necessidade de legitimar este processo, então defender a reserva de postos de trabalho para aqueles que não podem se ajustar à lógica da exploração capitalista e lutar contra a segregação educacional dos mesmos não é se colocar ao lado da reorganização capitalista que começou a se verificar nas últimas décadas do século XX, pelo contrário, a radicalização destas reivindicações pode contribuir na denúncia da lógica exploradora excludente que caracteriza toda a história da sociedade capitalista e ainda permitir às pessoas com deficiência a compreensão de que a sua exclusão social resulta, fundamentalmente, da exploração classista. REFERÊNCIAS -Lei nº 5895 de 20/10/1943. Diário Oficial da União BRASIL. Decreto Decreto-Lei de 24/10/1943. Disponível em ttp://www.mj.gov.br. Acesso em 18/ 07/2007, AS 15horas. ______. Decreto FFederal ederal nº. 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Brasília, Diário Oficial da União, 21 de dezembro de 1999. ______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Série Amarela, Projeto Escola Viva, Visão Histórica Histórica, Brasília 2000. _______. Ministério da Justiça. Secretaria de Direitos Humanos. Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de ). Declaração de Salamanca (UNESCO) de prinDeficiência (CORDE). cípios, política e prática para as necessidades educativas especiais. Brasília: CORDE, 1997. CARVALHO, A. R e ORSO. P. J. As pessoas com deficiência e a lógica da organização do trabalho na sociedade capitalista. In: Programa Institucional de Ações Relativa às Pessoas com necessiPolítica, Educação e Cultura


119 dades Especiais - PEE. Pessoa com deficiência na Sociedade Contemporânea: Problematizando o Debate. Cascavel: EDUNIOESTE, 2006. CARVALHO, A. R.; ROCHA, J. V. e SILVA, V. L. R. R. Pessoa com Deficiência na História: Modelos de Tratamento e Compreensão. In: Programa Institucional de Ações Relativa às Pessoas com necessidades Especiais - PEE. Pessoa com Deficiência: Aspectos Teóricos e Práticos. Cascavel: EDUNIOESTE, 2006. CHESNAIS, François. Introdução geral. In: CHESNAIS, François (Coordenação). A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998, p. 11-31.

Documento de País, cf. VIANNA JR, Aurélio. (Org.) et al. A estratégia dos bancos multilaterais para o Brasil - Análise crítica e documentos inéditos. Brasília, DF: Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, 1998. ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do estado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984. HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as Origens da Mudança Cultural. São Paulo:Loyola, 1992. HERMAKOVA, A. F. e RÁTNIKOV B. V. Que são as classes e a luta de classes? Moscovo: Edições Progresso, 1986. HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. MARX, K. O capital. Rio de Janeiro: Guanabara, 1982. MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: HUCITEC, 1984. PASTORE, José. Oportunidades de trabalho para portadores de deficiência. São Paulo: LTR, 2000. PONCE, A. Educação e luta de classes. São Paulo: Cortez, 1992. olíticos e Jurídicos da EduROSA, E. R. e ANDRÉ, M. F. Aspectos P Políticos cação Especial Brasileira. In: Programa Institucional de Ações Relativa às Pessoas com necessidades Especiais - PEE. Pessoa com Deficiência: Aspectos Teóricos e Práticos. Cascavel: EDUNIOESTE, 2006. Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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DEITOS, Roberto Antonio. O capital financeiro e a educação no Brasil, Campinas, SP: UNICAMP, 2005. (Tese de Doutorado)


120 Deficiência: Aspectos Teóricos e Práticos. Cascavel: EDUNIOESTE, 2006. SILVA, Otto Marques da. A epopéia ignorada: A pessoa deficiente na história do mundo de ontem e de hoje. São Paulo: CEDAS, 1986. SILVEIRA BUENO, J. G. Educação especial brasileira: integração/ segregação do aluno diferente. São Paulo: EDUC, 1993.

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VIGOTSKI, L. S. Fundamentos de defectologia. In: Obras comple comple-tas. Tomo cinco. Havana: Editorial Pueblo y Educación, 1997.

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REFLEXÕES SOBRE A EDUCAÇÃO EM TEMPO INTEGRAL NO DECORRER DO SÉCULO XX1

Quando se discute a educação em tempo integral, é preciso deixar claro sobre qual conceito estamos falando: educação em período integral, educação integral ou educação integrada. Suas definições expressam diferentes concepções de sociedade e precisam ser esclarecidas, pois aparecem mescladas nos discursos. No entanto, há que serem analisadas separadamente. Não obstante isso, é preciso entender o que vem sendo essa forma de atendimento escolar, como vem sendo construída e qual opção tem sido implementada no processo de escolarização em nossa sociedade, tendo sempre em vista que a chamada “educação em tempo integral” é um resultado dos embates que acontecem na sociedade entre classes com interesses antagônicos. Para tentar entender a primeira definição – educação em período integral – apresentaremos aqui a escola brasileira de fins do século XIX, numa leitura a partir de dois clássicos da literatura: Manuel Antônio de Almeida e Raul Pompéia. Para analisar o segundo conceito - educação integral - traremos brevemente a concepção de educação dos teóricos Miguel Bakunin e Karl Marx. Por fim, o que chamamos de “educação integrada”, discutiremos a partir de uma experiência educacional de Anísio Teixeira, realizada na Bahia. É também, a partir deste ensaio que buscaremos traçar o desenvolvimento das experiências de jornada escolar prolongada, como ela foi se construindo até chegar aos nossos dias e a quais necessidades buscava atender. Passemos então para a primeira questão. A educação em tempo integral não é uma novidade histórica. Quando a escola se constituía como privilégio de uma pequena parcela da população, e era voltada para a formação dos quadros dirigentes da sociedade, a tarefa educativa era realizada em período integral. 1 Este artigo é parte do segundo capítulo da monografia: A experiência da escola em tempo integral na rede pública municipal de Cascavel (2001-2005), defendida em fevereiro de 2006. A mesma resultou de uma pesquisa desenvolvida no Curso de Especialização em História da Educação Brasileira da Unioeste - Campus de Cascavel. Uma versão preliminar desse estudo foi publicado na Revista Educere et Educare (vol. 2 - n. 3 - 2007). Versão eletrônica disponível em: http://e-revista.unioeste.br/index.php/educereeteducare/article/view/660.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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Cezar Ricardo de Freitas Maria Inalva Galter


122 Busquemos indícios na literatura brasileira, na obra Memórias de um Sargento de Milícias (ALMEIDA, 1999), escrita em meados do século XIX. Em um capítulo específico, o narrador alude ao fato de que certo personagem, pertencente às camadas médias da sociedade, não estará o dia todo na escola realizando seus estudos. No capítulo podemos ler:

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Ao meio-dia veio o padrinho buscá-lo (na escola) e a primeira notícia que ele lhe deu foi que não voltaria no dia seguinte, nem mesmo aquela tarde. (...) Um dos principais pontos que ele passava alegremente as manhãs e tardes em que fugia à escola era a Igreja da Sé. (ALMEIDA, 1999, p. 52-54, grifos nossos)

Entretanto, essa não era a única forma que se apresentava a escola para as classes mais abastadas. Havia também aquelas em regime de internato, desnudadas pelo romance O Ateneu de Raul Pompéia, escrito em 1888. O autor descreve nesse “romance autobiográfico” as atividades desenvolvidas pela personagem naquela instituição. Um destaque são as atividades esportivas (base das escolas em tempo integral contemporâneas), que inclusive serviam de vitrine para a escola: “com maior concorrência preferia sempre a exibição dos exercícios ginásticos (...) e o público, pais e correspondentes em geral (...) compareciam no dia da festa da educação física.” (POMPÉIA, s/d, p. 43-45) De uma certa forma, a passagem pela instituição não traz boas lembranças para o “autor-personagem”. Porém, no fim da obra, ele apresenta o discurso de uma outra personagem em defesa do regime de internato: “e não se diga que é um viveiro de maus germes, seminário nefasto de maus princípios, que hão de arborecer depois. Não é o internato que faz a sociedade; o internato a reflete. A corrupção que ali viceja, vai de fora.” (Idem, p. 190) A escola ilustrada tanto na obra de Antônio de Almeida, quanto na de Pompéia, demonstra uma educação que ocorria em tempo integral e que era voltada para uma elite brasileira. Esse modelo escolar, bastante limitado socialmente, permaneceu até as décadas de 20 e 30 do século XX. Quando, porém, transformações no modelo econômico brasileiro determinaram as demandas por uma escola universal, reduziu-se, então, a jornada diária, inclusive a própria duração da escola primária passou a ser questionada como uma das condições para poder estendê-la a toda a população, conforme analisou Anísio Teixeira: Política, Educação e Cultura


123 No Estado de São Paulo, que liderou o movimento, chegou a sugerir uma escola de dois anos e com esforço é que alguns educadores conseguiram elevá-la a quatro anos de estudo, no meio urbano, e três, na zona rural. (...)

Para além da discussão do tempo da jornada diária, é preciso, também, apontar alguns elementos referentes à concepção de educação. Ao lado daquelas instituições elitistas, o século XIX traz também discursos de uma educação integral. Um dos defensores dessa tese era Bakunin, conforme nos atesta Portilho (2005). Segundo a autora, por volta de 1830, Bakunin apresenta na Rússia a concepção de educação integral. No entanto, essa proposta era para um modelo de sociedade em que não existissem classes. Nessa sociedade idealizada, o ensino integral seria um aliado para consolidar a liberdade dos trabalhadores, por meio de uma educação científica, compreendendo também o ensino industrial ou prático: A instrução deve ser igual em todos os graus para todos; por conseguinte, deve ser integral, quer dizer, deve preparar as crianças de ambos os sexos tanto para a vida intelectual como a vida do trabalho, visando que todos possam chegar a ser pessoas completas. (BAKUNIN, 2003, p. 78)

A concepção integral aparece aqui mais vinculada, a uma questão de formação abrangente de todos os aspectos humanos, e não se referindo especificamente a tempo integral. Porém, seria impossível essa formação nos moldes da escola que foi universalizada no século XX, que chegou a ter até 3 horas diárias de estudo.2

2 Essa foi uma alternativa no Brasil, devido à grande demanda. Ao invés de aumentar o número de salas de aula, diminui-se a carga horária. Assim cada sala de aula podia receber até quatro turmas por dia - três no diurno e uma no noturno (TEIXEIRA, 1994).

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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E a escola primária, reduzida na sua duração e no seu programa, e isolada das demais escolas do segundo nível, entrou em um processo de simplificação e de expansão de qualquer modo. Como já não era a escola da classe média, mas verdadeiramente do povo, que passou a buscá-la em uma verdadeira explosão de matrícula, logo se fez de dois turnos, com matrículas independentes pela manhã e pela tarde e, nas cidades maiores, chegou aos três turnos e até, em alguns casos, a quatro. (TEIXEIRA, 1994, p. 161-162)


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124 Uma formação integral implica em o aluno permanecer mais tempo envolvido com a sua educação, ainda que não seja o tempo todo na escola, pois existem outros espaços em que a sua formação pode ser completada (ginásios, espaços culturais, locais de lazer, etc.). Essa formação ampla, envolvendo inclusive a esfera produtiva, também foi desenvolvida por Marx3 , porém, não no sentido que defendia Basedow4 . Para Marx, a educação na sociedade capitalista atende aos interesses do capital. Ela é determinada pela forma como se organizam as relações sociais mais amplas. Nesse sentido, a lógica da educação no capitalismo é voltada para a produção, para aumentar os lucros, objetivando o interesse da classe privilegiada: a burguesia. Nesse sistema, inclusive, o conhecimento é concebido como uma propriedade privada. Desenvolve-se, então, apenas uma das potencialidades do sujeito, aquela voltada para o econômico. A educação escolar da sociedade capitalista forma o “homem unilateral”. Ao propor uma educação, Marx, assim como Bakunin, sugerea para uma sociedade em que não haja divisão de classes e sem a propriedade privada dos meios de produção. Ele defende uma formação para que o homem tenha todas as suas potencialidades desenvolvidas, não apenas aquela voltada para a produção: Torna questão de vida ou morte substituir a monstruosidade de uma população operária miserável (...) pela disponibilidade absoluta do ser humano para as necessidades variáveis do trabalho; substituir o indivíduo parcial, mero fragmento humano que repete sempre uma operação parcial, pelo indivíduo integralmente desenvolvido para o qual as diferentes funções sociais não passariam de formas diferentes e sucessivas de sua atividade. (...) Mas não há dúvida de que a conquista inevitável do poder político pela classe trabalhadora trará a adoção do ensino tecnológico, teórico e prático, nas escolas dos trabalhadores. (MARX, 1994)

Nessa proposta educacional, segundo a leitura que Enguita (1993) faz de Marx, ensino intelectual, trabalho físico e trabalho produtivo devem estar articulados, mas no sentido de proporcionar ao trabalhador o controle e a intervenção no processo produtivo. 3 Karl Marx (1818-1883) não escreveu sistematicamente sobre educação. Ela sempre aparecia quando ele discutia outras questões: críticas à sociedade capitalista, propostas para uma nova sociedade, etc. 4 Basedow (1723-1790) defendia que as crianças das camadas populares articulassem trabalho e estudo, mas apenas para consolidarem a sua condição social: “(...) Felizmente, as crianças plebéias necessitam de menos instrução do que as outras, e devem dedicar metade do seu tempo aos trabalhos manuais.” (BASEDOW apud PONCE, 1992, p. 137).

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É preciso que o trabalhador entenda os fundamentos, as relações e a lógica de funcionamento do trabalho. Uma aprendizagem para além da concorrência na sociedade capitalista, em que todas as potencialidades humanas (científica, artística, cultural, produtiva) sejam consideradas e desenvolvidas – homem omnilateral. É preciso, portanto, uma educação integral. A questão da educação integral chegou até nós. Entretanto, sabemos que ela não é aquela de O Ateneu, pois não está voltada para uma classe privilegiada; tampouco é a de Bakunin ou Marx, posto que ainda vivemos em uma sociedade classista. Qual é então a concepção de educação integral que é discutida hoje? A resposta está num movimento que ficou conhecido como Escola Nova, que aconteceu no início do século XX, influenciando massivamente o pensamento sobre educação. Segundo Paro (1988), com esse movimento a escola passa a ser vista como instância transformadora da sociedade, com a capacidade de diminuir os conflitos sociais. Tudo isso baseado nos ideais liberais, objetivando a formação de um “cidadão” inserido numa sociedade democráticoburguesa. Um dos expoentes do escolanovismo foi John Dewey (18591952), que fazia uma crítica ao ensino vigente à época, concebido por ele como tradicional, intelectualista, mecânico e formal. Propõe, então, uma nova pedagogia, na qual o centro do ensino seja o aluno e não o professor, com ênfase nos procedimentos e não nos resultados (TEIXEIRA, 1954). Essas idéias tiveram grande influência mundial, embora muito criticadas pelas conseqüências que causaram para a classe trabalhadora. Entre as críticas, um autor influente da análise da História da Educação Brasileira, Ghiraldelli Jr (1991), afirma que o escolanovismo foi uma forma da burguesia “queimar os seus pertences”, ou seja, ao invés dela proporcionar às classes trabalhadoras uma escola que garantia o conhecimento, optou por desconfigurá-la para, então, universalizá-la. Nosso objetivo, entretanto, não é fazer aqui uma análise da Escola Nova. Queremos entender apenas qual foi sua influência para as idéias de educação integral, tendo em vista que, ainda hoje, grandes estudiosos da escola de jornada ampliada vão buscar subsídios teóricos nessa fonte. Um exemplo disso é CAVALIERE (2002a), que tem influenciado muito os estudos dessa questão: Vamos retomar a concepção de educação integral, tendo por base o conceito de “educação como reconstrução da experiência”, no contexto Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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da corrente filosófica pragmatista e seu destacado autor John Dewey. Buscamos aqui uma possível base teórica para a elaboração de uma proposta de educação fundamental que possa corresponder às novas necessidades e problemas que hoje apresentam as escolas públicas brasileiras voltadas para esse segmento do sistema. (CAVALIERE, 2002a, p. 248)

Segundo Vítor Paro (1988), o escolanovismo defendia que não bastava “desanalfabetizar” as grandes parcelas da população, era preciso uma reformulação interna da escola, para que esta fornecesse uma educação integral para formar o “cidadão”. Entretanto, nesse momento histórico, o país não dispunha de condições materiais suficientes para universalizar essa educação. Portanto, somente as famílias com melhores condições financeiras tiveram acesso a ela. A universalização do ensino só vai atingir índices significantes a partir da década de 50, sentindo profundamente as influências do escolanovismo, principalmente no deslocamento da função científica/ instrutiva da escola. É justamente nesse momento que a educação em tempo integral ressurge como proposta para a rede pública: Na década de cinqüenta encontramos as propostas de educação em tempo integral, só que, dessa feita, advogando-se sua extensão para o âmbito dos sistemas escolares. As bases são ainda escolanovistas, preocupadas com a formação integral, só que agora voltadas para as camadas populares. (PARO, 1988, p. 191)

Novamente a educação em tempo integral se efetiva apenas para uma parcela restrita da população, devido aos altos custos envolvidos. O exemplo significativo é o Centro Educacional Carneiro Ribeiro – CECR – idealizado por Anísio Teixeira, grande difusor do escolanovismo no Brasil, e que em seu discurso de inauguração da instituição (21 de outubro de 1950), percebemos proposições atuais, com destaque às novas funções atribuídas à escola: E desejamos dar-lhe [à escola] seu programa completo de leitura, aritmética e escrita, ciências físicas e sociais, artes industriais, desenho, música, dança e educação física. Além disso, desejamos que a escola eduque, forme hábitos, forme atitudes, cultive aspirações, prepare realmente, a criança para a sua civilização (...) E, além disso, desejamos que a escola dê saúde e alimento à criança, visto não ser possível educála no grau de desnutrição e abandono em que vive. (TEIXEIRA apud EBOLI, 1969, p. 14)

Diante disso, percebemos que as idéias de Anísio Teixeira implantadas no CECR não são de uma educação integral, mas de Política, Educação e Cultura


uma educação integrada, ou seja, é uma escola preocupada explicitamente em integrar outras funções sociais (saúde, segurança etc.). Esse ensaio merece uma atenção especial, pois muitos dos elementos criados na experiência baiana são percebidos nas experiências de jornada escolar prolongada realizadas atualmente. O CECR era composto por quatro “Escolas-classe” destinadas ao “ensino de letras e ciências” e uma “Escola-parque” para atividades sociais, artísticas e esportivas. Todo o complexo tinha a capacidade de atender até 2000 crianças. Os alunos ficavam um turno na Escolaclasse e o outro na Escola-parque, num regime de semi-internato (5% dos alunos ficavam em regime de internato). O corpo docente era diferenciado. Segundo Eboli (1969), professores primários “comuns” para as Escolas-classe, e para a Escola-parque professores primários especializados, em música, dança, teatro, artes industriais, desenho, biblioteca, esportes e recreação. O CECR foi construído num bairro pobre da periferia de Salvador, uma característica constante nos projetos de educação em tempo integral para as camadas populares. Estas por sua vez, de acordo com Paro, enxergam na escola uma “salvação” das suas crianças, entregues aos riscos da criminalidade: A experiência do CECR, ao centrar-se nas camadas populares e em sua formação, antecipa, de certa forma, as questões que se farão presentes, incisivamente, nas décadas posteriores, quando se procurava atribuir à escola o papel de contribuir para a solução de problemas sociais relacionados com a condição de pobreza da população. (PARO, 1988, p. 192)

Depois dessa experiência baiana, a questão da educação em tempo integral volta a tomar fôlego somente na década de 80, com os Centros Integrados de Educação Pública – CIEPs – no Rio de Janeiro. Essa é, sem dúvida, a maior experiência, numericamente falando, de escola com jornada prolongada. Chegou a ter em torno de 500 escolas desse tipo funcionando em todo o Estado. Essa experiência foi amplamente estudada5 , despertando o interesse quanto à possibilidade (ou não) de estendê-la à toda rede pública de ensino. Quanto à organização das atividades executadas pelos alunos, permaneceu a distinção. Num turno as crianças tinham aulas do núcleo comum, e no contra-turno as atividades diversificadas (MACHADO, 2002). Até houve tentativas de intercalar disciplinas do núcleo comum com as outras, mas não deu certo, pois: 5 Sobre os CIEPs ver estudos de CAVALIERE (1996, 2002a, 2002b e 2003); PORTILHO (2005); MACHADO (2002) e SOBRINHO & PARENTE (2005).

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128 (...) para a construção de uma organização do tempo escolar mais flexível (...) necessita-se, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, de um nível de organização muito mais desenvolvido. Isso inclui um corpo de profissionais que seja capaz de organizar o trabalho pedagógico de forma consciente do ponto de vista político-filosófico e complexa do ponto de vista técnico-pedagógico (CAVALIERE, op. cit., p. 123).

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O fundamento da proposta baseava-se, de certa forma, na experiência baiana, mas era ambiciosa no que se referia à abrangência. Buscava atender não apenas a função instrucional, mas também aquelas outras funções sociais que a escola vinha incorporando historicamente: Tratava-se da idéia de que o tempo ampliado, se posto à serviço não apenas da dinamização e intensificação das atividades de ensinoaprendizagem estrito-senso, mas também da vivência de um conjunto de experiências definidas como culturais, esportivas e artísticas, possibilitando às crianças das classes desfavorecidas, além da superação do renitente fracasso escolar, o ingresso num universo cultural mais amplo e propiciador de percursos emancipatórios (Idem, p. 123).

A proposta do CIEP, inicialmente, foi implantada nos três níveis de ensino da Educação Básica do Rio de Janeiro, porém, paulatinamente foram se concentrando na Educação Infantil e Séries Iniciais do Ensino Fundamental. Isso pode ter acontecido por dois motivos: primeiramente, que as crianças menores constituem a maior demanda para ficar o dia inteiro na escola, tendo em vista que seus pais trabalham e elas não deveriam ficar sozinhas pelo risco que isso envolve. Em segundo lugar, os jovens não dispõem de mais tempo para ficarem na escola o dia todo, pois muitos precisam se lançar ao mercado de trabalho, a fim de completar a renda da família. Isso tende a reforçar a concepção que se tem hoje, principalmente entre os educadores contrários à educação em tempo integral, que a vêem como prática assistencialista, como um local onde os pais se obrigam a deixar seus filhos para poderem ir trabalhar. Uma visão que desconsidera as demandas sociais exercidas historicamente pela escola pública. A experiência carioca acaba influenciando, também, outros diversos projetos semelhantes. Ainda que mantidas as diferenças que cada particularidade exige, temos o PROFIC (Programa de Formação Integral da Criança) em São Paulo, os CEIs (Centro de Educação Integral) em Curitiba, e os CAICs em nível nacional.6 6 Em relação ao Profic, Paro (1988) faz uma análise comparativa entre essa experiência e os CIEP´s. Quanto à experiência curitibana (CEI), esta foi analisada por Gomes (1994).

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Este último vai influenciar, por sua vez, outras experiências a nível municipal por todo o país, inclusive em Cascavel, merecendo, portanto, maior atenção neste estudo7 . O projeto dos CAICs inicia-se a partir de 1990, com o então presidente Fernando Collor de Mello. Parte das políticas sociais do governo federal visava desenvolver ações integradas de educação, saúde, assistência e promoção social para crianças e adolescentes (SOBRINHO & PARENTE, 1995). Inicialmente, denominava-se Projeto Minha Gente e sua característica principal era a construção do Centro Integrado de Atenção à Criança e ao Adolescente – CIAC, que previa o atendimento em creches, pré-escola e ensino de 1º grau; saúde e cuidados básicos; convivência comunitária e desportiva. Tinha como meta definida a construção de 5 mil CIACs e atender a cerca de 6 milhões de crianças (IDEM, p. 10). A partir de 1993, o projeto é assumido pelo Ministério da Educação8 e passa a se chamar Programa Nacional de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente – PRONAICA – que buscava articular-se com órgãos federais, estaduais e municipais, ong’s e organismos internacionais para o desenvolvimento de ações de atenção integral à criança e ao adolescente. Os CIACs passaram a ser denominados CAICs – Centro de Atenção Integral à Criança. Essa mudança, segundo SOBRINHO & PARENTE (1995), devese à ênfase dada pelo MEC à “pedagogia de atenção integral”, e que: Na denominação adotada pelo Projeto Minha Gente (CIAC), destacava-se a característica arquitetônica do centro Integrado. Com o nome Centro de Atenção Integral à Criança – CAIC, a tônica deslocase para o atendimento integral, que requer a adoção de pedagogia própria independente do espaço físico a ser utilizado. ( SOBRINHO & PARENTE, 1995, p. 10)

Na prática, essa mudança não alterou muito a concepção do projeto, que manteve basicamente a mesma estrutura física. A intenção da mudança é que para o atendimento integral utilizar-seiam estruturas físicas já existentes, apenas se faria uma ação integrada com elas. No entanto, o projeto só se efetivou com a construção de outras unidades físicas, os CAIC’s.

7 Foi a experiência de Cascavel-PR que motivou-nos a desenvolver este estudo (ver FREITAS, 2006). 8 Conforme Lei Federal nº 8642, de 31 de março de 1993.

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130 Quanto ao financiamento, o Pronaica era compartilhado entre o governo federal (construção dos CAIC’s), os Estados (recursos humanos) e municípios (aquisição do terreno e manutenção). Ao manter as crianças envolvidas o dia todo nos CAIC’s, o projeto tinha dois objetivos: primeiramente, oferecer àquelas famílias marginalizadas pela estrutura econômica, condições mínimas para que seus filhos freqüentassem a escola, onde lhes era oferecido o que a sua família não teria condições de proporcionar: comida, vestuário (uniforme), assistência médico-odontológica, etc. Em segundo lugar, evitar que essas crianças se lançassem precocemente no mercado de trabalho (sub-empregos). Os dois objetivos unificaram-se na tentativa de diminuir o índice de evasão e repetência escolar, sem, no entanto, considerarem os motivos que realmente levavam essas famílias a se tornarem marginalizadas pela sociedade. Segundo Vitor Paro, a preocupação com a educação integral é secundarizada na medida em que as atividades de arte, cultura e esporte são utilizadas apenas para manter as crianças o dia todo nos centros. A escola é vista, por um lado, como uma forma de minimizar os efeitos gerados pela estrutura econômica, e, por outro, como reprodutora da lógica excludente (PARO, 1988). Entendemos, porém, que é inegável que o projeto dos CAIC’s ajudou, em muito, a difundir a idéia de uma escola pública de tempo integral. Não é ele quem inicia, mas juntamente com os CIEP’s do Rio de Janeiro, constituem a realização em grande escala, apesar de seus problemas e limites, de um projeto que era visto como impossível. As experiências desenvolvidas ali serviriam de modelo para inúmeras outras, que chegam até os nossos dias. A utilização da educação como uma forma de atender a outras demandas sociais também se realiza em nossa sociedade por meio de outras instituições que não são escolas públicas. Segundo PARO (1988), desde que o regime de internato (nos moldes de O Ateneu) passou a ser questionado como solução para as elites, ele foi atribuído às classes subalternas. Com o desenvolvimento no Brasil de uma sociedade urbano-industrial a partir do século XX, as relações sociais também sofrem algumas modificações, alterando inclusive a forma da sociedade pensar a educação. A tradicional escola em regime de internato ou semi-internato, segundo Paro, além de muito onerosa, não respondia mais aos interesses da classe com maior poder aquisitivo. Essas pessoas podiam oferecer outras oportunidades educacionais aos seus filhos (música, teatro, esportes,...) além daquelas ofertadas pelas escolas.

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131 Assim, ao invés de segregar os filhos das classes mais abastadas, passa-se a fazê-lo com os filhos das classes menos favorecidas. Porém, como não poderia deixar de ser, com outra roupagem:

Essas instituições cumpririam um papel de “ressocialização”, que ocorreria através de práticas educativas, como esportes, teatros, oficinas profissionalizantes, etc. As instituições do tipo FEBEM e os reformatórios para menores se apresentam como “cadeias” para menores, e caracterizam-se por uma prática essencialmente repressiva. Nos últimos anos, tornaram-se “panelas-de-pressão” prestes a explodir, devido à superlotação. As freqüentes rebeliões mostram, de certa forma, a falência desse tipo de instituição como forma de ressocialização. Para entender melhor a relação dessas instituições com o objeto deste artigo - a educação em tempo integral – tomamos o exemplo de Cascavel-PR. Nesse município foi criada uma instituição no fim da década de 80, seguindo alguns direcionamentos das FEBEM’s, embora detenha particularidades. Trata-se do CAOM – Centro de Assistência e Orientação ao Menor. Araci Jost (2001) analisou essa instituição e segundo ela: O CAOM, como instituição assistencial para o enfrentamento da pobreza em Cascavel, organizou a questão do atendimento a essas crianças e adolescentes (...) tendo como preocupação central: o suprimento das necessidades básicas e o afastamento desses menores das ruas. Assim, desenvolveu o seu processo de trabalho dentro de uma concepção formativa de cunho repressivo, amparado no Código de Menores, tendo como enfoque as questões de segurança, deixando de lado as questões sócio-educativas (JOST, 2001, p. 21-22).

Essa autora reivindica, no decorrer do seu trabalho, que a instituição assuma questões mais educativas (no sentido escolar) do que repressiva, seguindo inclusive, uma certa tendência de outras instituições similares9. A autora propõe que na realização de seu 9 Sabe-se que atualmente até nos presídios há uma preocupação em levar educação escolar aos detentos como uma forma de ressocialização.

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Sem ilusões. A segregação das crianças e adolescentes oriundos das classes dominadas, quando tais crianças e jovens se revelaram como “ameaças sociais” sempre foi proposta pela classe dominante, atribuindo ao Estado o papel de executor dessa segregação. Essa é a origem de instituições como a FEBEM, os reformatórios de menores e as entidades “filantrópicas” subvencionada pelos órgãos oficiais. (PARO, 1988, p. 207)


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trabalho, a instituição se preocupe com a qualidade da formação escolar do menor atendido, utilizando recursos didáticos para auxiliar na pesquisa, na leitura, nas atividades esportivas, além de uma iniciação profissional. Todas essas atividades desenvolvidas no período de contra-turno escolar. Quanto às entidades “filantrópicas”, estas parecem ter uma preocupação mais pacífica, desenvolvendo trabalhos que são muito bem vistos pela sociedade. Em Cascavel, uma instituição desse tipo merece destaque: o CEMIC – Centro de Estudos do Menor e Integração na Comunidade. Numa pesquisa in locus Vera Anger (2003), fez uma importante análise dessa instituição: O CEMIC surgiu para atender o menor marginalizado ou em vias de marginalização em suas necessidades básicas, como educação integral, reforço escolar, lazer, alimentação, vestuário, atendimento médico e odontológico (...) objetivando melhorar o relacionamento familiar e as condições de vida da família (ANGER, 2003, p. 41).

No CEMIC as atividades desenvolvidas são divididas em: Área Educacional; Área Educacional Complementar; Área Sócio-recreativa; Área de Trabalho Educativo; Área de Saúde; Área Familiar e Trabalho Voluntário (IDEM, p. 46) Interessam-nos, neste trabalho, as quatro primeiras áreas pela identificação com as propostas da educação em tempo integral. Na Área Educacional são oferecidas oficinas artesanais, informática, pesquisas e experiências práticas, buscando aprofundar conteúdos escolares, além de culinária, cultivo e preparo de plantas medicinais e hortaliças, recreação e esportes, atividades culturais e cívicas. Na Área Educativa Complementar, a preocupação é específica com o reforço escolar da criança ou adolescente. A Área Sóciorecreativa responsabiliza-se pela realização de jogos, gincanas, exercícios físicos, apresentações artísticas, brincadeiras, etc. Já a Área de Trabalho Educativo é mais voltada para os adolescentes que desenvolvem atividades com características profissionalizantes: padaria, cozinha, horta e marcenaria. Percebe-se, tanto no CAOM quanto no CEMIC, uma identificação com a proposta de escola de tempo integral. Entretanto, no primeiro ela aparece mais como uma maneira da instituição cumprir a sua função corretiva, ao passo que, no segundo a proposta tem um caráter de “prevenção” às situações que propiciem o envolvimento do menor com atividades ilícitas ou insalubres, aproximando-se esta muito mais da proposta da ETI. Entretanto, a especificidade do CEMIC é outra. É uma instituição mantida por Política, Educação e Cultura


entidades não-estatais, apesar de receber apoio financeiro dos governos federais, estaduais e municipais. As duas entidades são reconhecidas como assistencialistas, mas, apesar disso, desenvolvem atividades de atribuições da escola. Algumas, inclusive, são “complementos” ou “preenchimentos de lacunas” da escola, como é o caso do reforço escolar. Paradoxalmente, agora nos parece acontecer o contrário, é a instituição escolar que assume as atribuições das entidades assistenciais. Duas questões merecem esclarecimento aqui: primeiramente a escola já vem há muito tempo desempenhando outras funções sociais que não são especificamente “conhecimentos formais”; em segundo lugar, há uma “crença” de que a escola pode evitar todos os males da sociedade, e que, portanto, se ela desempenhar bem a sua função, não mais precisaríamos daquelas instituições sociais. São questões que não resolvem, nem que superficialmente, os reais problemas estruturais que geram aqueles “potenciais menores infratores”. A evolução da tendência da escola de jornada prolongada tem um marco importante na década de 90: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996. Com a aprovação dessa lei, a educação em tempo integral já recebe um indicativo. Segundo o artigo 34: A jornada escolar no ensino fundamental incluirá pelo menos quatro horas de trabalho efetivo em sala de aula, sendo progressivamente ampliado o período de permanência na escola (...). § 2º O ensino fundamental será ministrado progressivamente em tempo integral a critério dos Sistemas de Ensino (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: Centro de Documentação e Informação Coordenação de Publicações, 1997).

Fica evidente, assim, que não é uma lei que cria a educação em tempo integral, pois ela já vinha acontecendo de várias formas. Isso também mostra como as políticas educacionais são um reflexo dos embates na sociedade. Se a ETI aparece apontada na legislação é porque já existe uma demanda social a que ela visa atender. É necessário, ainda, levar em conta uma outra função social desempenhada pela escola, apontada por Gilberto Alves (2001). É preciso considerar que, a sociedade em que vivemos é histórica, está em constante transformação. De certa forma, os espaços de socialização também se transformam. Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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134 A rua, que foi durante certo tempo, espaço privilegiado para as crianças brincarem, se socializarem, hoje já não oferece as condições para isso, por conta da insegurança que nos envolve. Nesse sentido, a criança tem encontrado na escola o seu principal espaço de lazer e socialização. Essa é uma das demandas sociais da escola de tempo integral, destinada às classes menos favorecidas, um espaço para a prática de atividades desportivas, culturais (dança, teatro,...) e de lazer. Por fim, percebemos que a educação em tempo integral apresentou-se de diferentes maneiras. Dessa diversidade de manifestações, emergem confusões (intencionais ou não) a respeito do seu conceito. Conforme mostramos no início, ETI pode significar apenas ensinar a criança durante todo o dia, como ocorria nos liceus. Por outro lado, para Marx e Bakunin educação integral deve desenvolver todas as potencialidades humanas, integrando-as para que o homem vivesse numa nova sociedade sem classes. Já com o escolanovismo no Brasil, a educação integral volta-se para a formação de um “novo cidadão”, a escola integraria o sujeito na medida em que o alfabetizasse e o preparasse para o novo contexto econômicosocial. Com as propostas dos Caic´s, a ETI passa a ser vista como uma forma de atender integralmente as crianças, nos seus aspectos educativo, alimentar, da saúde e segurança (não necessariamente nessa ordem). Diante disso, uma questão urgente entre os educadores é entender essa tendência de extensão da jornada escolar que vem sendo implementada em um número cada vez maior de municípios, e buscar subsídios teóricos para construção de uma proposta pedagógica consistente. Faz-se mister que o adjetivo “integral” não se direcione apenas ao tempo escolar, mas abarque, primeiramente, o desenvolvimento de uma educação que consiga integrar os conteúdos apresentados ao aluno, para que ele passe a entender os fundamentos e as implicações históricas daquele conhecimento. Em segundo lugar, e como conseqüência disso, que contribua para desenvolver no educando, a sua consciência enquanto ser determinado socialmente, que entende o seu papel de sujeito histórico e, sobretudo, social (coletivo), (des)integrado numa lógica econômica que pode ser superada.

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INTEGRAÇÃO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL TÉCNICA DE NÍVEL MÉDIO NA MODALIDADE DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O CURRÍCULO

INTRODUÇÃO O artigo tece algumas considerações a respeito do currículo integrado para o ensino médio profissional na modalidade da Educação de Jovens e Adultos. Partimos do pressuposto de que a organização curricular integrada ao ensino médio profissional na modalidade da Educação de Jovens e Adultos deve primar por um modo de estruturação das disciplinas e do tempo escolar comprometidos com a aquisição dos conhecimentos necessários à construção de um projeto societal no qual todos tenham os mesmos direitos. No caso do PROEJA, isto requer não somente amparo legal para a sua efetivação, mas principalmente investimento financeiro, pedagógico e administrativo por parte do poder público, visto que a Educação de Jovens e Adultos tem sido marcada por políticas educacionais frágeis, efêmeras e descontínuas. Nunca é demais lembrar que integrar currículo não significa estruturar em uma grade curricular um amontoado de disciplinas vinculadas à Base Nacional Comum, Formação Específica e Estágios. Como referenciado pelo Documento Base1 , “o que se pretende é uma integração epistemológica, de conteúdos, de metodologias e de práticas educativas” (BRASIL, 2006, p.30). Isto não é pouca coisa, ainda mais quando nos referimos ao currículo integrado de uma política educacional, como é o caso do PROEJA, que unifica um nível 1 Referimo-nos ao Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de jovens e Adultos.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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Edaguimar Orquizas Viriato Renata Cristina da Costa Gotardo


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140 (Ensino Médio) e duas modalidades de ensino (EJA e Formação Profissional). Diante do desafio de construir um currículo que integre o conhecimento científico, tecnológico e cultural para a formação de jovens e adultos deste país, que foram alijados do processo regular de ensino, realizamos a apresentação dos cursos e programas de educação profissional abrangidos pelo Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica, na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA) e, na seqüência, problematizamos a organização curricular dos cursos a serem ofertados, mediante ao disposto no Decreto nº 5.840/2006, ao prever a: observância às diretrizes curriculares nacionais e demais atos normativos do Conselho Nacional de Educação para a educação profissional técnica de nível médio, para o ensino fundamental, para o ensino médio e para a educação de jovens e adultos (Artigo 4º, Inciso III).

Esperamos que, a partir da compreensão da legislação, possamos refletir sobre a implantação e implementação do PROEJA no sentido de averiguar as possibilidades e os limites de ofertar o ensino médio integrado à educação profissional, na modalidade de educação de jovens e adultos, com uma estrutura curricular que efetivamente integre ciência, tecnologia e cultura. 1. O PROEJA O PROEJA, instituído pelo Decreto nº 5.478, de 24 de junho de 20052 , revogado e redefinido pelo Decreto nº 5.840, de 13 de julho de 2006, abrange cursos e programas de educação profissional de formação inicial e continuada de trabalhadores e educação profissional técnica de nível médio (Artigo 1º, parágrafo 1º). Propõese, portanto, formar para o trabalho e, ao mesmo tempo, elevar a escolaridade dos sujeitos que não puderam concluir os estudos na faixa etária adequada. Neste sentido, o PROEJA apresenta-se como uma novidade no cenário educacional brasileiro, ao visar não somente atender uma 2 O Decreto nº 5.478/2005 instituía o PROEJA na rede de instituições federais de educação. Previa carga horária máxima de 1600 horas para formação inicial e continuada e 2400 horas para formação técnica de nível médio. O Decreto nº 5.840/2006 estende a possibilidade de oferta para as redes de ensino estaduais, municipais e privadas e passa a definir carga horária mínima para a formação.

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de ensino camada social que já fora excluída do processo educacional, mas também ao pretender integrar a formação geral à profissionalização. Sem dúvidas, o PROEJA pode significar efetivamente o acesso dos trabalhadores que apresentam distorção idade/escolaridade a um ensino que possibilite qualidade na formação geral e na formação profissional, elevando seu nível de escolaridade. Entretanto, as condições concretas para que essa concepção de educação supere a anterior, caracterizada historicamente por um ensino dual, exige, como já afirmamos, não somente respaldo legal, mas principalmente o comprometimento político com as camadas populares do nosso país, por parte do poder público, expresso em políticas de financiamento público, de formação inicial e continuada de professores, de valorização do magistério público oficial. A instituição do PROEJA pode vir a representar tanto um avanço como um retrocesso diante dos embates políticos, econômicos e sociais que nos encontramos. É difícil reconhecer, mas necessário – senão caímos em ilusionismos educacionais, vivendo como o grande herói grego, Ulisses, que encantado com o canto das sereias deixou-se ser conduzido às profundezas do mar, lá permanecendo e vivendo um grande engodo – que a reestruturação econômica aliada à reforma do Estado brasileiro na perspectiva gerencial influenciam diretamente o modo de organizar e gerir a educação pública. Nunca é demais recapitular que, na última década, a educação brasileira passou por um processo de reforma cuja matriz teórica estava sustentada fortemente pelos anseios do neoliberalismo. Não é à toa que a educação passa a ser compreendida como um serviço público a ser adquirido em conformidade com o poder aquisitivo do cliente. A educação profissional, especificamente, vivenciou trágicas mudanças que a desvincularam inclusive da forma regular de oferta do ensino médio3 . A retomada dessa possibilidade de articulação por meio do Ensino Médio integrado4 não consiste em uma política consolidada, pelo contrário, ainda é o novo sendo construído a partir do velho, até porque, entre outros obstáculos, a questão do financiamento não fora resolvida. Em outras palavras, queremos reafirmar que a disputa política gira em torno da organização e da

3 Referimo-nos particularmente aos efeitos do Decreto nº 2.208/1997 e ao PROEM (Programa Expansão, Melhoria e Inovação do Ensino Médio ), instituído durante o governo Jaime Lerner, no Estado do Paraná. 4 Após alguns anos de questionamento do Decreto nº 2.208/1997 e reivindicações da sociedade ao governo federal, a forma integrada foi regulamentada pelo Decreto nº 5.154/2004.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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142 gestão da educação, confrontando duas perspectivas: numa a educação é um direito social, portanto pública e estatal e, em outra, a educação é um serviço social e como tal, o cliente consome/adquire de acordo com as suas necessidades e possibilidades imediatas. O PROEJA, neste contexto, é mais uma política pública em disputa. Sublinhemos que o neoliberalismo, ao contrapor-se ao keynesianismo, traduz um projeto de organização e gestão societal distinto; porém, ambos perseguem o mesmo objetivo, qual seja, o de reproduzir e ampliar a acumulação do capital. Isto significa que a possibilidade de lutar por uma sociedade embasada nos princípios socialistas resulta do próprio embate colocado pela atual crise manifestada, conforme Netto (1995, p. 183-199), pelo colapso do socialismo real e pela crise do capitalismo democrático. Trata-se, nos dizeres de Netto (1995), de implementar reformas que abram modelos de desenlaces explosivos e insurrecionais, mas sem iludir-se quanto (e preparando-se politicamente para) à inevitabilidade de momentos traumáticos num processo certamente pouco idílico – e sem qualquer concessão a uma pretensão ‘lógica de dois tempos’ (um de ‘reforma’, outro de ‘revolução’); trata-se, aqui, de uma complexa processualidade que sintetiza num só ‘tempo’todas as dimensões do que Marx chamou de ‘época de revolução social’ (p. 199).

A expressão da disputa pode ser exemplificada pelo Decreto nº 5.478, de 24 de junho de 2005, que inicialmente instituiu o PROEJA no âmbito das instituições federais de educação tecnológica. Por que restringir a oferta de cursos e programas de formação inicial e continuada de trabalhadores e de educação profissional técnica de nível médio? Por que limitar a carga horária máxima de mil e seiscentas horas e duas mil e quatrocentas horas, respectivamente aos cursos de formação inicial e continuada de trabalhadores e aos cursos de educação profissional técnica de nível médio? A primeira indagação nos conduz a ações corporativas em detrimento a ações ético-políticas (FRIGOTTO; CIAVATTA E RAMOS, 2005, p. 1097-1098). Argumentam os autores Para a SETEC, a oferta da educação profissional integrada ao ensino médio na modalidade EJA manteria uma incumbência residual com a educação básica, da qual ela foi esvaziada... e a educação de jovens e adultos – com a qual a política de educação profissional nunca havia se ocupado ... Para a rede federal, essa medida contribui para justificar sua manutenção na esfera político-administrativa própria e não na esfera

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Quanto ao limite da carga horária dos cursos significa admitir que “aos jovens e adultos trabalhadores se pode proporcionar uma formação ‘mínima’” (FRIGOTTO; CIAVATTA E RAMOS, 2005, p. 1098). Tais indagações também podem ser interpretadas dentro do contexto de transferência do direito à educação pública estatal para o não-estatal5 , favorecida pela organização e gestão das instituições federais de educação tecnológica. A expressão da disputa pode ainda ser exemplificada pelo Decreto nº. 5.840/2006 ao constatar alguns indicativos que contrariam a possibilidade de implementar a integração da Educação Profissional com a Educação Básica, na modalidade de Educação de Jovens e Adultos. Observemos, por exemplo, a designação “formação inicial e continuada de trabalhadores” (Decreto nº 5.840/2006, Artigo 1º, parágrafo 1º, Inciso I). Essa designação, introduzida pelo Decreto nº 5.154, de 23 de julho de 2004, substitui a denominação “educação profissional básica” adotada pelo Decreto nº 2.208, de17 de abril de 1997, que dava o suporte legal para que instituições públicas, privadas e não-estatais, ofertassem cursos de formação profissional de curta duração e de qualidade duvidosa. O Decreto que institui o PROEJA, mesmo não definindo o que denomina de “formação profissional inicial e continuada de trabalhadores”, articula essa formação “ao ensino fundamental ou ao ensino médio, objetivando a elevação do nível de escolaridade do trabalhador” (Decreto nº. 5.840/2006, Artigo 1º, parágrafo 2º, Inciso I) e vincula essa articulação (ensino fundamental ou ensino médio) aos termos do Decreto nº 5.154/04, Artigo 3º, parágrafo 2º, o qual remete essa formação preferencialmente aos cursos de educação de jovens e adultos, prevendo determinados itinerários formativos. Sublinhemos que “considera-se itinerário formativo o conjunto de etapas que compõe a organização da educação profissional em uma determinada área, possibilitando o aproveitamento contínuo e articulado dos estudos” (Decreto nº 5.154/04, Artigo 3º, parágrafo 2º). Ou seja, após a conclusão com 5 Transferência dos serviços não-exclusivos do Estado para a esfera do público não-estatal, composto por instituições jurídicas, sem fins lucrativos, que embebidas pelo espírito da solidariedade vêm assumindo um serviço público, outrora ofertado exclusivamente pelo Estado. Eficiência, eficácia e produtividade são as metas que orientam tais instituições cujo propósito consiste em melhor servir o cidadão-cliente.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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da educação superior, na qual sua identidade e diretrizes seriam compartilhadas com as demais instituições de ensino superior.


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144 aproveitamento dos cursos e programas do PROEJA, os jovens e adultos atendidos farão jus a certificados de formação inicial ou continuada para o trabalho. A possibilidade de construir itinerários formativos destinados à formação profissional inicial e continuada de trabalhadores, articulada ao ensino fundamental ou ao ensino médio, na modalidade da EJA, poderia representar um avanço legal que repercutiria em ações de intervenção nesse tipo de formação que é ofertada, como já dissemos, com uma qualidade duvidosa e de cunho mercadológico. Entretanto, o Artigo 3º, Inciso I, do Decreto nº 5.840/06, ao prever cursos para a formação inicial e continuada de trabalhadores com uma carga horária mínima de 1400 horas, sendo destinadas no mínimo 1200 horas para a formação geral e 200 horas para a formação profissional, parece não possibilitar a ruptura com o até agora vigente; pelo contrário, pode continuar reforçando a oferta de cursos que se adaptem às demandas do mercado, atendendo a interesses imediatos dos trabalhadores e seus prováveis empregadores. Sublinhemos que não há orientações normativas que regulamentem tais cursos. Se a formação inicial e continuada de trabalhadores (ensino fundamental e médio) prevê uma carga horária mínima de 200 horas destinadas para a formação profissional, essa formação não deveria ser regulamentada? Diferentemente do proposto pelo Decreto nº 2.208/97, que possibilitava cursos básicos restritos à preparação de mão-de-obra para o mercado de trabalho, os cursos e programas destinados à formação inicial e continuada de trabalhadores prevêem qualificação e aumento do nível de escolaridade. Este fato – um ganho legal, sem dúvidas – demanda uma regulamentação para que os cursos não venham a assumir uma proposta curricular que privilegie o mercado, acontecimento que só parece possível mediante mobilização política por parte daqueles que estão diretamente envolvidos com o processo de ensino-aprendizagem, uma vez que não há interesse por parte do governo em implementar ações que favoreçam os trabalhadores em detrimento ao mercado. Outro aspecto a ser considerado quanto à formação inicial e continuada de trabalhadores de nível médio diz respeito às Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (DCN). Instituída pela Resolução 02/98, as DCNs indicam o reconhecimento de saberes relacionados à vida cidadã (art.3º, inciso IV, alínea a) que, a princípio, não parece constituir-se em um problema, uma vez que os adultos estão inseridos diretamente nos aspectos do mundo do trabalho

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(embora não possamos garantir que os compreendam). Como pensar, no entanto, um curso de formação inicial e continuada de nível médio, se não temos a garantia de que os conteúdos do ensino fundamental foram assimilados? Como garantir que o reconhecimento desses saberes estarão embasados no efetivo domínio das ciências que os fundam? Uma vez mais abre-se a possibilidade de, via iniciativa privada, os sujeitos serem certificados, sem garantir efetivamente sua formação escolar e a aquisição de conhecimentos. Além da formação inicial e continuada dos trabalhadores, articulada ao ensino fundamental ou ao ensino médio, o PROEJA abrange ainda a educação profissional técnica de nível médio, de forma integrada ou concomitante, nos termos do Decreto nº 5.154/ 04, Artigo 4º, parágrafo 1º, Incisos I e II, e expressa no Decreto nº 5.840/06 pelo Artigo 1º, parágrafo 2º, Inciso II. Aqui também deve ser prevista a possibilidade de conclusão de curso a qualquer tempo, o que, como já apontamos, rompe com a possibilidade de integração. No caso dos cursos de educação profissional técnica de nível médio do PROEJA, a carga horária mínima prevista é de 2400 horas, sendo que destas minimamente 1200 horas são destinadas para a formação geral; para a habilitação profissional técnica deverá ser respeitada o estabelecido para a devida habilitação (Artigo 3º, Decreto nº 5.840/06). Lembremos que a carga horária da habilitação profissional técnica consta na Resolução CEB nº 4, de 8 de dezembro de 1999, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional de Nível Técnico. A flexibilidade da oferta do ensino médio, no caso da formação inicial e continuada de trabalhadores e no caso da educação profissional técnica de nível médio, integrada ou concomitante, na modalidade da EJA, precisa ser debatida e problematizada para que efetivamente possamos, no âmbito legal, encontrar subsídios que amparem a construção de um currículo voltado para a emancipação social e produtiva do homem. O aproveitamento de estudos com obtenção de certificação a qualquer tempo, previsto no artigo 6º, bem como o reconhecimento de conhecimentos e habilidades obtidos fora da escola, amparado pelo art.7º, ambos do Decreto nº 5.840/06, permitem um arcabouço de possibilidades de formas de oferta e de certificação. Por um lado, isso garante a autonomia por parte dos sistemas de ensino e, por outro, admite que a implantação do programa fique a critério daquilo que for mais conveniente a cada secretaria, seja Estadual ou Municipal. Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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146 No Estado do Paraná, a Secretaria Estadual de Educação – SEED – adotou como política a integração da educação profissional ao ensino médio na modalidade de educação de jovens e adultos de forma presencial e sem previsão de saídas no decorrer do curso6 . Isso aponta para a possibilidade de elevar a escolaridade de sujeitos historicamente alijados do processo educacional, sem perder o horizonte da qualidade do ensino ofertado. Ao considerarmos que a legislação federal possibilita formas de oferta e de certificação diversificadas, torna-se fundamental um posicionamento político por parte das secretarias de estado, o que no Estado do Paraná tem evidenciado, ao menos enquanto política, um compromisso com a qualidade de ensino a ser ofertado pelo PROEJA. A SEED, no I Seminário do PROEJA 7 , apresentou um diagnóstico das possibilidades de oferta do PROEJA no Estado. Para ofertar o programa, os estabelecimentos de ensino deveriam atender aos seguintes requisitos: a) ofertar cursos profissionalizantes na modalidade regular; b) ofertar PROEJA no mesmo curso profissionalizante já existente no estabelecimento. Ambos os requisitos são justificados como forma de garantir uma oferta com qualidade, pois parte-se do pressuposto de que os estabelecimentos já contam com infra-estrutura física e humana e experiência na oferta do curso profissionalizante, para que possam ofertar o PROEJA de forma a minimizar possíveis entraves. Ainda durante o evento acima citado, a Secretaria de Educação mapeou os estabelecimentos que ofertarão PROEJA no ano de 2008: 41% estão em comunidades de baixa renda; 23 % em comunidades com necessidade de acesso à profissionalização; 21% contam com trabalhadores que buscam formação e 15% em comunidades essencialmente agrícolas. Isso demonstra que a oferta do PROEJA no Estado pretende atender a uma demanda efetiva das comunidades. Por esse motivo, a forma como o processo está sendo conduzido 6 Informação obtida através da Chefe do Departamento Educação e Trabalho, SEED/PR, durante o I Seminário PROEJA, realizado em Curitiba, PR, nos dias 07,08 e 09 de maio de 2007. 7 O I Seminário PROEJA foi realizado pela Secretaria de Educação do Estado do Paraná, contando com representantes dos Núcleos Regionais de Educação e das escolas que pretendiam, a partir de um primeiro diagnóstico, ofertar cursos pelo PROEJA em 2008, bem como com representantes das Universidades envolvidas no projeto de pesquisa “Demandas e Potencialidades do PROEJA no Estado do Paraná”, financiado pela CAPES/SETEC. O Seminário foi organizado como tentativa de esclarecer, aos envolvidos ,as bases legais do Programa bem como sobre o processo de implantação na rede estadual de ensino.

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147 parece bastante condizente com as necessidades dos trabalhadores que intencionam ingressar nos cursos do PROEJA, e a decisão de não apenas certificar, e sim formar, é bastante importante para a garantia do acesso a conhecimentos por parte da classe trabalhadora.

O desafio de construir um projeto político-pedagógico que integre o currículo, entendido aqui em sentido stricto, ou seja, um rol de conhecimentos necessários para formar e qualificar jovens e adultos na Educação Profissional integrada ao Ensino Médio, exige enfrentar questões pertinentes aos conteúdos a serem ensinados/ apreendidos por esses jovens e adultos e à metodologia adotada durante o processo ensino-aprendizagem. Ao organizar uma estrutura curricular que atenda a esta exigência, faz-se necessário explicitar de que conhecimentos estamos falando, que jovens e adultos tomamos como referência, em que perspectiva o currículo se fundamenta ao distribuir conteúdos traduzidos em disciplinas, ao longo de determinado tempo escolar, sobretudo considerando que estes jovens e adultos, excluídos até então do processo regular de ensino, poderão elevar sua escolaridade para o ensino médio e ainda obter formação profissional para exercer determinada atividade laboral. Recapitulemos com Moreira e Silva que O currículo não é um elemento inocente e neutro de transmissão desinteressada do conhecimento social. O currículo está implicado em relações de poder, o currículo transmite visões sociais particulares e interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais particulares (MOREIRA E SILVA, 1994, p. 7-8).

A nosso ver, a importância do PROEJA reside justamente na possibilidade de debater e enfrentar, entre outras, essas questões, contrapondo-se inclusive às propostas do governo federal com relação às Diretrizes Curriculares Nacionais que, ainda em vigor, amparam a elaboração dos projetos curriculares dos diferentes Estados da nossa nação, na direção do pragmatismo, desprovidos do viés da luta de classe. Dito de outra forma, reafirmar no espaço da educação pública estatal o compromisso em elaborar uma proposta curricular integrada que agregue conteúdos necessários para instrumentalizar os jovens e adultos a exercerem o poder político, participando ativamente na

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1.1 O Currículo do PROEJA


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148 sociedade. Para tanto, precisamos “... entender a favor de quem o currículo trabalha e como fazê-lo trabalhar a favor dos grupos e classes oprimidos” (MOREIRA E SILVA, 1994, p.16). Nestes termos, compreendemos o currículo integrado em duas dimensões: uma ideológica, envolvendo as questões de conteúdo, método e metodologia, e outra política, comprometida com os interesses da classe historicamente oprimida por aqueles que sempre detiveram os meios de produção e reprodução da vida material. A dimensão política traduz os embates e conflitos em torno do conhecimento que represente os interesses hegemônicos da classe trabalhadora. Lembremos que a política é o “(...) processo mediante o qual se põe em xeque a repartição da riqueza apenas entre os que são proprietários” (FRANCISCO DE OLIVEIRA, 1999, p. 65). Portanto, a dimensão política visa alterar as relações de poder que vigoram em prol das classes dominantes com o intuito de reorganizar os conhecimentos que comporão os conteúdos escolares por meio das disciplinas, organizados numa estrutura curricular. A organização curricular, nesta perspectiva exige a participação dos envolvidos no processo educacional, para que juntos possam elaborar um projeto de curso no qual haja efetivamente a articulação entre ... experiências, trabalho, valores, ensino, prática, teoria, comunidade, concepções e saberes observando as características históricas, econômicas e socioculturais do meio em que o processo se desenvolve (BRASIL, 2006, p. 36).

A dimensão ideológica, intrinsecamente articulada à definição de Sacristán e Gómez (1998, p.125), ao definir currículo como um percurso a ser realizado, expressa uma forma de currículo que orienta o processo de ensino-aprendizagem. Para tanto, deve estabelecer os conteúdos a serem transmitidos para que se formem os sujeitos numa determinada época. Assim como toda a educação, o currículo também é espaço/elemento de disputa no interior da escola: por um lado, busca manter a hegemonia, podendo, no entanto, contribuir para seu questionamento. O modo como se organiza um currículo, portanto, influencia as práticas escolares. Por constituir-se como espaço de luta, é fundamental que os educadores compreendam quais ações e intenções estão implícitas, para que possam agir de forma consciente no processo de ensino-aprendizagem.

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Como já anunciamos, o Decreto nº 5.840/06 indica como referência curricular a observância às diretrizes curriculares nacionais. Isto significa que essas orientações estão inseridas num modelo de educação que apartava a educação profissional do ensino médio. A orientação prevista pelo Decreto nº 5.840/06 para os cursos de educação profissional técnica de nível médio sinaliza, portanto, para as DCNs para a educação profissional de nível médio, para o ensino fundamental, para o ensino médio e para a educação de jovens e adultos (Artigo 4º, Inciso III). Todas num contexto que reforçava a separação entre ensino médio e educação profissional. A substituição do Decreto nº 2.208/97 pelo Decreto nº 5.154/ 04 não provocou mudanças significativas nas Diretrizes Curriculares Nacionais. A Resolução nº 1, de 03 de fevereiro de 2005, que atualizou as DCN para o EM e EP, e a Resolução nº 04, de 27 de outubro de 2005, que incluiu novo dispositivo à Resolução nº 1/ 2005, não alteraram o conteúdo proposto pelas diretrizes referidas. Na prática, o que parece permanecer é um forte indicativo de que as escolas não mudem a forma de ofertar os seus cursos, optando preferencialmente pelos cursos concomitantes ou subseqüentes. Imaginem os integrados ao EJA? Compreendidas dessa forma, as DCNs que regulamentam o PROEJA, ao menos em nível nacional, constituem-se como uma verdadeira “colcha de retalhos”, que propõem a integração curricular a partir de uma legislação que fragmenta educação profissional e formação geral. Sublinhemos que o princípio educativo que fundamenta o currículo integrado é o trabalho. Isto significa compreender as questões econômicas, sociais, históricas, políticas e culturais da Ciência e Tecnologia, portanto, não é possível fragmentar de um lado a educação profissional e de outro a formação geral, elas são indissociáveis. Outro aspecto a ser problematizado diz respeito à possibilidade de conclusão de curso a qualquer tempo. Como pensar na integração de um currículo que prevê “saída” durante o curso? O que podemos considerar como fator que está sendo disputado num currículo organizado dessa forma? Parece-nos um simples atendimento à demanda por elevação da escolaridade e atendimento ao mercado de trabalho, sem a efetiva preocupação com a real formação e qualificação dos alunos-trabalhadores que freqüentarão o programa. A nosso ver, para não ficarmos reféns dos posicionamentos políticos por parte das Secretarias de Ensino, faz-se necessário, por parte do Ministério da Educação, implementar uma política pública

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150 relativa ao currículo condizente com os interesses da classe trabalhadora, para o que torna-se fundamental a organização e luta política dessa classe. Outro aspecto apontado nas DCNs para o Ensino Médio (Resolução 03/98) refere-se à noção de competências, que remete a um modelo próprio de indivíduo a ser formado. Ramos (2002) chama a atenção para o fato de que ao se mudar o termo qualificação para competência, perde-se a noção de coletividade, tanto em seu caráter social quanto no processo de ensino-aprendizagem, instituindo-se a noção de individualidade. Cêa (2007), ao discutir quais saberes estão em disputa no interior da escola, argumenta que nesse momento histórico temos um ethos competitivo, com a naturalização da exclusão, o que confirma os apontamentos de Ramos. Além disso, temos a formação de um modus cambiante, com a instabilidade como norma de vida; e um sapere valorativo, com o pragmatismo do conhecimento. Estes dois últimos aspectos tornam-se bastante elucidativos ao analisarmos o Documento Base “Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na modalidade de Educação de Jovens e Adultos”, que afirma que não há trabalho para todos (instabilidade) e que prevê a certificação de conhecimentos adquiridos fora da escola (pragmatismo). Novamente podemos apontar para os saberes em disputa no interior do currículo. Formar indivíduos que não irão participar do mercado formal de trabalho, dando a eles noções de “empregabilidade”, para que possam constituir-se como empreendedores, é corroborar para que aceitem as condições históricas atuais e acolham a exclusão como um dado natural. No artigo 4º das DCNEM fica clara a orientação dos quatro pilares para a educação contida no relatório de Jaques Delors, quais sejam, aprender a conhecer; aprender a ser; aprender a fazer e aprender a conviver; também é explicitada a sociedade para a qual se pretende formar, ao propor o “desenvolvimento da flexibilidade para novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores” (Inciso IV). Configura-se realmente aquilo que apontamos acima: vivemos numa sociedade em que não há postos de trabalho garantidos a todos e, portanto, devemos formar para as múltiplas possibilidades que o indivíduo terá de criar para poder sobreviver. Há uma indicação de constituir currículos por áreas, bem como a adoção de resolução de problemas ou de projetos como forma metodológica para a interdisciplinaridade ocorrer (Res. 03/ 98, Art. 8º, inciso II). Constituir currículos por áreas é integrar?

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Resolver problemas e trabalhar com projetos garante a interdisciplinaridade? São duas questões que merecem aprofundamento quando o assunto é integração curricular. A princípio, a constituição de currículos por área parece ser a melhor forma de integração. No entanto, parece-nos que, ao conseguir estabelecer o trabalho conjunto de várias disciplinas, através de uma área de conhecimento, não seria necessário trabalhar com projetos e resolução de problemas. Metodologicamente, essas são formas orientadas por correntes pedagógicas/psicológicas que postulam a construção do saber pelo indivíduo, rompendo com o trabalho sistemático dos conteúdos por parte do professor, indicando o ecletismo presente na legislação. O artigo 9º das DCNEM define que os conteúdos devam ser trabalhados a partir da relação teoria-prática, entendida como forma possível de aplicação na realidade do aluno. Se a relação teoria-prática não for explicitada no interior dos currículos, para além da aplicação da teoria à prática cotidiana, podemos reduzir o conhecimento a uma perspectiva utilitária, pragmática, gerando problemas como o não ensinar-aprender o que não se irá utilizar. Se remetermos a afirmação para a EJA, considerando que os alunos já dominam os conhecimentos que necessitam para estar em sociedade e no mercado de trabalho, o que a escola deverá ensinar, então? Nessa perspectiva, parece fácil avaliar e reconhecer saberes prévios. Devemos compreender que aliar teoria à prática numa perspectiva de emancipação é tornar a teoria um guia da ação e não simplesmente aplicar o que se aprende no processo de trabalho. Enfim, as possibilidades de formas de oferta e de organização curricular propostas no PROEJA parecem estar num contexto de embate político no interior do próprio MEC/SETEC, uma vez que tanto possibilita à iniciativa privada maneiras de inserir-se nessa forma de educação, garantindo os interesses do mercado, quanto oferece espaço para uma implantação/implementação de políticas governamentais comprometidas com a efetiva formação escolar/ profissional dos sujeitos que ingressarão nos cursos do PROEJA. PARA CONCLUIR Neste artigo, procuramos esboçar criticamente alguns elementos que podem interferir no processo de implementação do

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152 currículo integrado para o Ensino Médio Profissional na Modalidade da Educação de Jovens e Adultos. Destacamos a importância do currículo como possibilidade de luta pela hegemonia da classe trabalhadora diante do famigerado discurso neoliberal que, reiteradamente, procura sua consolidação/legitimação no campo educacional. Isto exige, no aspecto legal, uma política educacional comprometida com os trabalhadores, que deve ser construída a partir da mobilização e luta política dos mesmos, para que, minimamente, possa ser estabelecida enquanto lei e perseguida enquanto prática. Observamos que vivenciamos um momento peculiar na história da educação brasileira, marcado pela imposição visceral de uma política educacional neoliberal, explicitada por Neves (2005) como uma nova pedagogia da hegemonia do capital. Isso nos obriga, enquanto profissionais da educação, reafirmar os nossos princípios, razão pela qual lutamos pela escola pública estatal. Tomar como reflexão a legislação que direta ou indiretamente se relaciona com o PROEJA, permitiu mostrar as contradições e incoerências a serem enfrentadas para que possamos construir e implementar um currículo que efetivamente expresse os conhecimentos necessários à classe trabalhadora para sua emancipação. Nestes termos, o PROEJA, embora não se proponha a problematizar as causas que produziram a necessidade de implementar a EJA – pelo contrário – carrega um cunho moral e técnico superior aos problemas/entraves educacionais (lembremos que o documento Base denomina o PROEJA como uma política perene), pode, no espaço da contradição, dar conta de uma demanda discriminada, humilhada, marginalizada do processo educacional. Para tanto, as instituições públicas dos sistemas de ensino estaduais e municipais bem como as instituições federais de educação profissional (Universidade Tecnológica Federal do Paraná, os Centros Federais de Educação Tecnológica, as Escolas Técnicas Federais, as Escolas Agrotécnicas Federais, as Escolas Técnicas Vinculadas às Universidades Federais e o Colégio Pedro II) devem assumir o PROEJA com o comprometimento político com as camadas populares, por um lado e, por outro, com a busca de implementar políticas que solucionem os problemas de aprendizagem nas classes regulares. Obviamente, é uma tarefa coletiva, para além do PROEJA. Este é o desafio.

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153 REFERÊNCIAS BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 1996. Estabelece as Diretrizes e 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996 Bases da Educação Nacional. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Parecer nº 04, de 29 de janeiro de 1998 1998. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental.

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BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Resolução nº 2, de 7 de abril de 1998 1998. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental.


154 BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Resolução nº 1, de 3 de fevereiro de 2005 2005. Atualiza as Diretrizes Curriculares Nacionais definidas pelo Conselho Nacional de Educação para o Ensino Médio e para a Educação Profissional Técnica de nível médio às disposições do Decreto nº 5.154/2004.

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BRASIL. Congresso Nacional. Decreto nº 5.478, de 24 de junho de 2005. Institui, no âmbito das instituições federais de educação 2005 tecnológica, o Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos – PROEJA. BRASIL. Congresso Nacional. Decreto nº 5.840, de 13 de julho de 2006. Institui, no âmbito federal, o Programa Nacional de Integração 2006 da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos – PROEJA, e dá outras providências. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos – PROEJA PROEJA. Documento Base, Fevereiro de 2006. CÊA, Georgia Sobreira dos Santos. A reforma da educação profissional e o ensino médio integrado: perspectivas, tendências e riscos. In: __________ (org.). O estado da arte da formação do trabalhador no Brasil Brasil: pressupostos e ações governamentais nos anos 1990. Cascavel: EDUNIOESTE, 2007 (no prelo), p. 133-156. GAUDÊNCIO, F; CIAVATTA, M.; RAMOS, M. A política de educação profissional no Governo Lula: um percurso histórico controvertido. Educação & Sociedade Sociedade. Campinas, vol. 26, nº 92, outubro, 2005. MOREIRA, A. F. e SILVA, T. T. Sociologia e Teoria Crítica do Currículo: uma introdução. In: MOREIRA, A. F. e SILVA, T. T.(orgs). Currículo, Cultura e Sociedade Sociedade. São Paulo: Cortez, 1995. NETTO, J. P. Crise global contemporânea e barbárie. In: Vários Autores. Liberalismo e socialismo socialismo: velhos e novos paradigmas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1995 (seminários e debates). hegemonia: NEVES, Lúcia Maria Wanderley. A nova pedagogia da hegemonia estratégias do capital para educar o consenso. São Paulo: Xamã, 2005.

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155 OLIVEIRA, Francisco e PAOLI, Maria Célia. Os sentidos da demo demo-cracia: políticas do dissenso e hegemonia global. Petrópolis, RJ: Vocracia zes; Brasília: NEDIC, 1999. RAMOS, Marise N.. A Educação Profissional pela Pedagogia das Competências e a Superfície dos Documentos Oficiais. Educação e So So-ciedade ciedade, vol. 23, n.80, setembro 2002, p.401-422.

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ELEMENTOS SOCIAIS DO MUNDO DO TRABALHO NA FICÇÃO CINEMATOGRÁFICA: PROVOCAÇÕES DE “O CORTE”

INTRODUÇÃO O filme O corte (Le Couperet), França, 2005, de Costa-Gavras [...] é mais um filme-bomba com as características semelhantes às de uma explosão que apenas detona o assunto e tem um final aberto a qualquer interpretação. Desfecha inesperadamente uma vigilante mirada. Vale o olhar (GUIMARÃES, 2006)1 .

Concordando com a crítica de cinema e aceitando o desafio de expor uma interpretação acadêmica das provocações do filme, este trabalho tem por objetivo tecer algumas considerações a respeito das mudanças estruturais no mundo do trabalho a partir de temas e situações presentes no filme “O Corte” 2 . Após uma breve apresentação da trama que se desenvolve no filme, ainda nesta introdução, este artigo destaca o contexto econômico e político do desemprego, suas implicações para a conduta humana diante da ausência de oportunidades de ocupação produtiva e reflete, ao final, sobre as alternativas para o enfrentamento da crise atual.

1 Dinara G. M. Guimarães participou como convidada do site <www.críticos.com.br>, tecendo considerações sobre o filme O Corte. Seu texto, intitulado “Costa-Gravas no divã”, de junho de 2006, está disponível em <http://criticos.com.br/new/artigos/critica_interna.asp?secoes =4&artigo=1034>. 2 Baseado em um romance de Donald Westlake (The Ax), o filme tem como título original “Le Couperet”. O roteiro, elaborado por Constantin Costa-Gravas, que também dirige o filme, contou com a colaboração de Jean-Claude Grumberg. José Garcia, Karin Ward e Geordy Monfils integram o elenco. A produção envolveu profissionais da França/Bélgica/Espanha e foi elaborado em 2005. No Brasil ele foi lançado em 2006. 122 min.

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158 O filme que serviu de provocação para a elaboração deste artigo tem roteiro e direção de Costa-Gravas3. Através de “O Corte”, o cineasta retrata com doses de humor as conseqüências que o trabalhador vem sofrendo com a intensa reestruturação produtiva, sobretudo o desemprego por ela causado. “O Corte” apresenta a angustiante rotina de Bruno Davert, um engenheiro, alto executivo da indústria de papel, que é demitido da empresa em que trabalhou durante quinze anos, depois de um processo de fusão empresarial e de reestruturação produtiva que incluiu cortes de funcionários e alocação de filial da indústria em outro país onde a mão-de-obra é mais barata, e a matéria-prima abundante. Durante os primeiros meses de desemprego, Bruno Davert vive como se estivesse gozando merecidas férias. A indenização rescisória permitiu manter a família durante algum tempo com o padrão de vida a que estavam acostumados. Diferentemente do que imaginara, conseguir outro emprego torna-se tarefa muito difícil. A elevada qualificação para o trabalho e os anos de experiência, que dão a seu currículo um nível de excelência de difícil comparação, não lhe ajudam a ingressar numa nova ocupação, ao contrário: suas credenciais são freqüentemente consideradas elevadas demais para as vagas disponíveis e ele próprio se angustia ante a possibilidade de ocupações distantes de suas capacidades. Depois de dois anos desempregado, Bruno entra em desespero. A família de Davert sofre as dificuldades do forçoso rebaixamento do padrão de vida. Somente sua esposa, Marlène, trabalha em dois subempregos (bilheteira de cinema e auxiliar de um consultório) que mal lhe possibilitam arcar com as despesas elementares da casa. Bruno Davert também sofre a depreciação de sua imagem pessoal, pois já não se sente mais digno do convívio social e tem dificuldades em manter a chefia da família, ter segurança na relação amorosa com a esposa e orientar o casal de filhos. No auge do desespero, elabora um plano para conseguir o emprego que, acredita, lhe devolverá a dignidade. Entretanto, seu plano prevê a eliminação física do engenheiro responsável pela produção de papel da Arcádia, maior indústria do ramo de produção de papel. Mas somente isto não bastava: precisava também eliminar todos aqueles em condições de disputar este cargo. O filme se desenvolve a partir dessa trama armada pelo protagonista. 3 Konstantinos Costa-Gavras nasceu em Loutra-Iraias, Grécia, em 1933. Naturalizado francês, o cineasta faz uso da crítica e da denúncia política e social como elementos fortes de seus filmes. Os interessados em sua filmografia podem encontrá-la em <http://www.adorocinema.com/ personalidades/diretores/costa-gavras/corpo.asp>.

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CONTEXTO ECONÔMICO E POLÍTICO DO DESEMPREGO E SU AS INTERF ACES COM A SUBJETIVID ADE: SUAS INTERFACES SUBJETIVIDADE: PROVOCAÇÕES E DENÚNCIAS DE “O CORTE” A situação de desemprego que o personagem principal do filme vivencia integra o cotidiano de milhões de pessoas. Segundo estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2008, p. 9), em 2007 foram identificados 189,9 milhões de desempregados no mundo. Esta situação se agrava mais ainda visto que, no mesmo ano, “cinco de cada diez personas con empleo4 eran trabajadores familiares no remunerados5” (OIT, 2008, p. 12), o que demonstra o significativo crescimento de formas precárias e não formais de emprego. O desemprego, mote central de “O Corte”, é o feito social mais evidente do processo de reconfiguração do capitalismo, iniciado nas últimas três décadas. Esse processo, decorrente das crises de produtividade experimentadas pelo capitalismo6 a partir dos anos 1970, impôs alterações no regime de acumulação fordista e na regulação econômico-

4 Segundo a OIT (2008, p. 9), “A expressão ‘pessoas com trabalho’ compreende todas as pessoas empregadas conforme a definição da OIT, incluídas as pessoas que trabalham por conta própria, as que têm um emprego, os empregadores e os familiares não remunerados. Por conseguinte, não se faz uma distinção entre o sector da economia subterrânea e o da economia oficial” (tradução livre). 5 “[...] cinco em cada dez pessoas com emprego eram trabalhadores familiares não remunerados.” (tradução livre). 6 “Embora haja diferentes interpretações da crise do capitalismo contemporâneo (ARRIGHI, 1996, 1997; CHESNAIS, 1996, 1998; HARVEY, 1999; MÉSZÁROS, 2002, 2003), é traço

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Apesar do aparente suspense que o filme possa representar, o clima predominante da trama é a comédia. As situações em que Bruno Davert se vê envolvido para atingir seu objetivo final são hilárias, e mexem com o ideário do expectador. Afinal, do que seríamos capazes para conseguirmos um emprego? Que diferença há em matar agora por um emprego, ou matar na guerra? Se a sociedade vive em guerra (ainda que não declarada), então matar para sobreviver é ou não um problema moral? Que sentido o trabalho assume na vida dos sujeitos e que tipo de sentimentos e de atitudes sua falta pode desencadear? Essas e muitas outras são questões despertadas pelo filme, e provocam a reflexão no expectador.


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política do Estado keynesiano. O cenário do mundo do trabalho passa a incorporar mudanças que tornam mais flexíveis os processos de trabalho, os mercados de trabalho, os produtos e padrões de consumo (HARVEY, 1992, p. 140); em suma, incorpora a flexibilização das relações de trabalho, que teve como principal conseqüência social a significativa redução quantitativa do trabalho formal na produção. Antunes (1995) afirma que ocorreu uma processualidade contraditória, que de um lado reduziu o operariado industrial e fabril, mas que de outro aumentou o subproletariado, o trabalho precário e o assalariamento no setor de serviços. Segundo o autor, configura-se uma nova morfologia do trabalho, assim descrita: [...] além dos assalariados urbanos e rurais que compreendem o operariado industrial, rural e de serviços, a sociedade capitalista moderna vem ampliando enormemente o contingente de homens e mulheres terceirizados, subcontratados, part-time, que exercem trabalhos temporários, entre tantas outras formas assemelhadas de informalização do trabalho, que proliferam em todas as partes do mundo. [...] Esta complexidade do mundo do trabalho nos instiga a refletir sobre as condições deste ‘novo proletariado’ [...]” (ANTUNES, 2005, p. 17).

A demanda efetiva de força de trabalho, por meio de vínculos formais, que outrora fora um dos principais sinais de êxito da era fordista (HARVEY, 1999, p. 125), perde espaço para uma lógica fundada comum a identificação, no processo de reprodução ampliada do capital, da predominância da sua forma financeira sobre a sua forma produtiva, tornada possível, fundamentalmente, pela abundância de capital proveniente da prosperidade do regime de acumulação fordista, assentado na relação (keynesiana) entre aumento da produtividade do trabalho e ampliação das condições de reprodução do capital e do trabalho. Nesse contexto, a regulação exercida pelo chamado Estado de bem-estar social ou Estado keynesiano (ou outra variante de Estado intervencionista no período, como o militar no Brasil), que visava controlar as relações entre ganhos do capital e do trabalho, se torna inviável. Isso porque se ampliam as possibilidades dos ganhos do capital se efetivarem majoritariamente fora dos limites tributários e geográficos impostos pelos acordos de produtividade e, portanto, ao largo da necessidade de incorporação maciça de trabalhadores na produção (pleno emprego) e longe da intervenção direta do Estado nas relações que passam a se estabelecer entre capital e trabalho, com ampliada vantagem para o primeiro, o que vai exigir a reorganização da esfera produtiva em novas bases [...]. A regulação a ser exercida pelo Estado capitalista, visando sustentar e garantir socialmente o regime de acumulação que se torna predominante, vai ser justificada por teses e mediada por políticas neoliberais, visando legitimar a predominância do individualismo do mercado sobre a socialização da produção. Os custos sociais da predominância do capital financeiro sobre o capital produtivo (desemprego, acentuação das fissuras sociais, ampliação da pauperização e da miséria, etc.) e a ampliação da concentração do capital sem demonstração efetiva do aumento esperado da sua capacidade de acumulação são as principais evidências não só da permanência da crise, mas de seu agravamento” (CÊA, 2003, p. 39).

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no enxugamento do quadro de trabalhadores das empresas. O desemprego, a partir de então, assume um caráter de positividade, uma demonstração de que as empresas estão envidando esforços para o aumento da produtividade. No filme, a empresa Arcádia, após o processo de fusão – que envolveu a empresa em que Davert trabalhava – e de enxugamento de seus quadros profissionais, implementa uma maciça campanha publicitária, informando sobre o processo de reestruturação que lhe permitiu adquirir a liderança no ramo de papel reciclado. O perfil profissional fordista – em que a mão-de-obra era peça central da produção, no qual cabia ao trabalhador a realização de atividades produtivas bem definidas, atendendo às necessidades da produção em massa na empresa verticalizada – passa a sofrer significativas alterações e configura-se uma nova forma de exploração do trabalho, pautada na flexibilidade. A flexibilização contou, dentre outras, com três importantes ferramentas de operacionalização das transformações no mundo do trabalho: a reestruturação produtiva, o neoliberalismo e o processo de financeirização da economia. A reestruturação produtiva afetou de forma direta os meios de produção – empresas, maquinário, tecnologia, matérias-primas, organização do trabalho coletivo, etc. –, as formas de contrato e as exigências de competências profissionais para o uso mais eficiente da força de trabalho; o neoliberalismo, por sua vez, consiste na reforma do Estado, para que este, enquanto estrutura de comando político do capital7, corresponda às novas demandas do regime de acumulação; a financeirização8 ocorreu pela diminuição da 7 Mészáros (2002, 2003) compreende o Estado moderno como a estrutura de comando ou controle político do capital. Conforme explica, “é a completa ‘ausência’ ou ‘falta’ de coesão básica dos microcosmos socioeconômicos constitutivos do capital [produção e controle, produção e consumo, produção e circulação] – devida, acima de tudo, à separação entre o valor de uso e a necessidade humana espontaneamente manifesta – que faz existir a dimensão política do controle sociometabólico do capital na forma de Estado moderno” (id., 2002, p. 123). É a “subordinação necessária do ‘valor de uso’ – ou seja, a produção para as necessidades humanas – às exigências de auto-expansão e acumulação do capital” (id., ibid., p. 100) que proporciona ao capitalismo a sua capacidade de expansão, ao mesmo tempo em que passa a necessitar do Estado como sua estrutura de comando político que deve diminuir, na medida do necessário, os desequilíbrios e as distorções das dimensões constitutivas do sistema do capital. 8 Termo utilizado por diversos autores (CHESNAIS, 1996, 1998; SALAMA, 1999) para designar o sentido e a forma predominantes de expansão do capital, a partir dos anos 1970. Segundo Chesnais (1996, 1998), as empresas (corporações) não atuam somente como unidades produtivas, mas também como ativos financeiros que se desdobram em autofinanciamento e aplicação financeira, num processo que acaba por criar um novo paradigma de organização e uma nova estratégia tecno-financeira.

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162 participação do setor produtivo da mais-valia socialmente produzida, que passou a ser concentrada, em sua maior parte, no setor financeiro. A financeirização da economia e a reestruturação produtiva são expressões de um processo amplo e complexo. Seus impactos atingem todos os setores produtivos, das esferas urbana e rural. Enquanto as indústrias concentram suas produções em atividades centrais, terceirizando serviços e atividades secundárias a empresas menores ou a trabalhadores organizados em subcontratos, a agricultura foi atingida pela inviabilização da produção em pequena escala, ao mesmo tempo em que a propriedade da terra sofreu novo processo de concentração fundiária. Esse conjunto de transformações foi identificado por Harvey (1992) como expressão do esgotamento do fordismo, abrindo espaço para a consolidação de um novo regime de acumulação. Para o autor, está a ocorrer uma transição no regime de acumulação e no modo de regulamentação social e política a ele associado, “[...] um processo de transição rápido, mas ainda não bem entendido” (HARVEY, 1999, p. 134)9 . O autor denomina as constantes transformações nas relações capitalistas como um processo de “acumulação flexível”, que designa: […] flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional (HARVEY, 1992, p. 140).

9 Com base em Harvey (1999), pode-se sintetizar o regime de acumulação flexível da seguinte maneira: “No âmbito da organização do trabalho, observa-se a flexibilização dos processos de reprodução do capital – nos quais as empresas passam a também atuar como ativos financeiros –, a flexibilização dos processos de trabalho – nos quais a aplicação intensiva da tecnologia permite a variabilidade na produção de mercadorias e na prestação de serviços, rompendo com o caráter rígido da base técnica fordista –, além de uma mobilidade intensa nos mercados de trabalho e de consumo. À diminuição exponencial dos custos da produção, por conta do aumento da produtividade advinda das inovações tecnológicas, corresponde um aumento, em mesma medida, da exploração absoluta e relativa da força de trabalho, agravado pelo rompimento com o pacto social fordista de pleno emprego. Daí o sentido de uma base produtiva flexível, que é uma outra dimensão do processo de transferência do capital produtivo para o âmbito da reprodução fictícia do capital financeiro, o que promove a volatilidade deste em relação aos diferentes mercados de capitais mundiais, em busca de maiores rendimentos” (CÊA, 1999, p. 40).

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Como instrumento regulador dessa nova configuração, o Estado capitalista tem as suas funções alteradas. Nos países do capitalismo central, as políticas de caráter neoliberal tiveram como alvo prioritário o estado de bem estar social e suas estruturas adjacentes. Conforme Vasapollo (2005), na Europa, durante a vigência do Estado keynesiano, a população foi massivamente atendida, ao menos no que se refere às necessidades básicas: saúde, educação, trabalho, assistência social. Nos países periféricos, que jamais tiveram a consolidação desta face do Estado, os principais alvos foram as instituições e os mecanismos relacionados aos poucos direitos sociais conquistados pelo trabalho ao longo da história republicana (BOITO Jr., 1998). O trabalho assalariado, condição para a sobrevivência da classe trabalhadora no modo de produção capitalista, é um desses principais alvos. O resultado mais brutal destas transformações foi a expansão, sem precedentes na era moderna, do desemprego estrutural, que atinge o mundo em escala global, sendo a conseqüência social mais impactante das mudanças econômicas e políticas em curso. Como estratégia ideológica mais evidente, o pensamento (neo)liberal burguês produziu o preceito de que a posição dos indivíduos no mercado de trabalho é imediatamente definida pelos méritos individuais, para os quais seriam determinantes a qualidade de seus atributos, a gama de seus conhecimentos e a eficácia real de suas capacidades pessoais (MACHADO, 1998). No filme de Costa-Gravas, tal ideário é posto a nu. Se em outras fases do modo capitalista de produção as mudanças no modo de produzir resultaram mais danosas aos trabalhadores com níveis de qualificação inferiores, o atual modelo consegue dar-se ao luxo de também dispensar trabalhadores altamente qualificados, como é o caso do protagonista do filme. A despeito da complexidade e das contradições deste processo, a cada membro da sociedade se impõe o desafio de se inserir nas relações sociais e realizar suas necessidades pessoais. Para tanto, são necessários, aos trabalhadores, o ingresso, o exercício de atividades e a vivência de experiências no âmbito do mercado de trabalho. A avaliação de sua competência passa, portanto, primordialmente, pela capacidade de internalização, aquiescência, submissão e resposta ao conjunto de preceitos, normas e regulações que caracterizam histórica e concretamente o jogo do mercado de trabalho e da relação salarial. Nesse contexto, verifica-se que as estruturas formais (Estado, empresas), tanto nos países centrais como nos periféricos, têm tomado

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164 iniciativas no sentido de estimular as atitudes individuais de enfrentamento do desemprego, sempre no horizonte e nos limites das possibilidades apresentadas pelo atual momento de configuração do processo de reprodução ampliada do capital (subemprego, terceirização, informalidade, etc.). Segundo Antunes (2004), a partir dos anos 1970, quando ocorrem os primeiros impulsos do processo de reestruturação produtiva, as empresas passam a adotar novos padrões organizacionais e tecnológicos. Na gestão do trabalho, métodos denominados participativos são incorporados à produção, atuando como mecanismos que procuram o envolvimento dos trabalhadores nos planos das empresas. A questão da participação dos trabalhadores no processo de trabalho – seja ela em maior escala (como nos países do capitalismo avançado e nas empresas mais fielmente organizadas segundo o paradigma toyotista), seja ela em menor escala (como no caso de países como o Brasil e das empresas de menor porte, onde ainda predomina o referencial fordista de organização da produção) – evidencia o fato de que as relações de trabalho passam a necessitar, mais que em momentos históricos anteriores, da adesão dos trabalhadores às perspectivas e objetivos empresariais, conforme atestam algumas análises. Segundo Antunes (1995, p. 35), é por meio do “envolvimento cooptado” do trabalhador que o capital apropria-se do “saber e do fazer do trabalho”. Para Alves (2000), a reestruturação produtiva em curso aprimora a articulação entre coerção capitalista e consentimento operário, de forma que a captura da subjetividade operária pela lógica do capital acaba por tornar-se uma necessidade técnica do processo produtivo. Gounet (2002, p. 46-47), numa interpretação semelhante, destaca que a aceitação, a colaboração e a adesão à filosofia da empresa por parte dos trabalhadores tornam-se elementos essenciais para a efetivação de um novo modelo produtivo, de padrão flexível, integrado e competitivo: “Se os trabalhadores rejeitam o sistema, ele não pode funcionar” (id., p. 55). Na ótica empresarial, essa ênfase na subjetividade operária representaria uma ampliação da autonomia do trabalhador frente aos processos de trabalho e uma redução da fragmentação entre pensar e fazer, com significativo aumento da parcela de trabalho intelectual envolvido na produção. Interpretações teóricas que se vinculam a essa

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165 ótica, mesmo que de forma não assumida, postulam que a reestruturação produtiva dos últimos vinte anos transformou, irreversivelmente, o “trabalho operário em trabalho de controle, de gestão da informação, de capacidades de decisão que pedem o investimento da subjetividade” (LAZZARATO e NEGRI, 2001, p. 25). Antunes (1995, p. 34) salienta o caráter aparente da suposta eliminação da ruptura entre elaboração e execução que as alterações nas formas de organização do trabalho estariam promovendo. Segundo ele, essa interpretação prende-se a uma aparência, uma vez que

O que ocorre, de fato, é uma mudança qualitativa na forma de ser da exploração do capital sobre o trabalho, seja agregando valor, via utilização da tecnologia de ponta nos processos produtivos, seja precarizando ainda mais as condições objetivas de trabalho, ou, ainda, estabelecendo como critério de permanência e de inserção nos locais de trabalho a completa adesão e concordância dos trabalhadores aos ideais e objetivos das empresas; de toda forma, aprimora-se e refinase a especificidade do modo de produção capitalista como uma relação de exploração do capital sobre o trabalho. Exploração essa que toma a aparência de uma completa identificação entre os interesses do capital e os interesses do trabalho, como se fosse possível que as necessidades, capacidades, expectativas, sonhos e desejos humanos se tornem imanentes às demandas de produção e reprodução do capital. O personagem Bruno Davert é o emblema do sujeito que incorpora, da forma mais radical, a exacerbação da lógica destrutiva do capitalismo, nos tempos atuais. Ao internalizar a necessidade de conseguir sua inserção produtiva no mercado de trabalho, por sua própria conta e risco, o personagem conclui que deve utilizar-se da mesma estratégia das empresas: é preciso dominar e fazer desaparecer os concorrentes. O filme, ao retratar a subjetividade de Davert, dominada e dirigida pelo desespero do desemprego, e ao apresentar uma possibilidade trágica de enfrentamento individual desse dilema social, estimula a reelaboração das reflexões apresentadas ao final da introdução deste artigo: a lógica destrutiva do capitalismo, típica dos grandes detentores do capital, pode tender a ser assumida pelos

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[...] a concepção efetiva dos produtos, a decisão do que e do como produzir não pertence aos trabalhadores. O resultado do processo de trabalho corporificado no produto permanece alheio e estranho ao produtor, preservando, sob todos os aspectos, o fetichismo da mercadoria (id. ibid; grifos do autor).


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166 homens, na sua individualidade? Essa lógica pode chegar ao extremo da eliminação física dos concorrentes, envolvendo inclusive os próprios trabalhadores? Existem saídas individuais para a crise do capitalismo? A continuidade do tratamento de outros temas provocativos do filme pode proporcionar o enfrentamento dessas questões. Num dos episódios de “O Corte”, quando Bruno e Marlène Davert estão em sessão de terapia para casais, todos os problemas conjugais (adultério da esposa, apatia social e descontrole emocional de Bruno) giram em torno do desemprego de Davert. O psicólogo, procurando convencer Bruno de sua parcela de responsabilidade sobre a situação, diz-lhe: “Você não é o seu trabalho!”, ao que Bruno, imediata e convictamente responde: “O trabalho é a minha vida!”. Davert, convencido de que seus problemas somente serão sanados se conseguir outro emprego, empenha-se de forma insana em prol de seu objetivo. Em tempos em que se pretende discutir o papel do homem na sociedade, procurando retirar do trabalho a centralidade das relações sociais, uma das maiores contribuições reflexivas que “O Corte” pode proporcionar é justamente a recolocação deste tema em debate. Desde o início da crise capitalista instaurada a partir dos anos de 1970, passando pela dissolução da experiência histórica do socialismo no leste europeu, a centralidade ou não do trabalho nas relações sociais passa a ser um tema de disputa entre pensadores pós-modernos e marxistas-marxianos. Os pós-modernos apresentam como principal argumento questionador da centralidade do trabalho a própria inovação tecnológica, o que daria ao homem a possibilidade do não-trabalho, uma vez que a ampliação da capacidade de comunicação e de interação permitiria que se extrapolasse e se subvertesse a ordem “tradicional” de ocupação por meio de empregos. Para os marxistas-marxianos, a possibilidade do não-trabalho não existe para o trabalhador, pois sua condição de existência no capitalismo, enquanto classe, está condicionada à exploração pela outra classe, a detentora do capital. [...] as teses que defendem o fim da centralidade do trabalho como traço constitutivo da chamada “crise da sociedade do trabalho”, sua substituição pela esfera comunicacional ou da inter-subjetividade encontram seu contraponto quando se parte de uma concepção abrangente e ampliada de trabalho, que contempla tanto sua dimensão coletiva quanto subjetiva, tanto na esfera do trabalho produtivo quanto improdutivo, tanto material quanto imaterial, bem como nas formas assumidas pela

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Além desta condição, há ainda uma outra, que aparece com muita clareza no filme, e é parte fundante do pensamento marxiano: o homem só se faz homem pelo trabalho. Essa dimensão dúplice e mesmo contraditória presente no mundo do trabalho que cria, mas também subordina, humaniza e degrada, libera e escraviza, emancipa e aliena, manteve o trabalho humano como questão nodal em nossa vida. E, neste conturbado limiar do século XXI, um desafio crucial é dar sentido ao trabalho tornando também a vida fora dele dotada de sentido (ANTUNES, 2005, p. 13; grifo do autor). No contexto atual, de crise do trabalho abstrato e de individualização da problemática da precarização das ocupações e escassez de empregos, são inúmeros os casos de trabalhadores que têm sua condição física e subjetiva abaladas. A perda de sentido da vida, dentro e fora do trabalho, é um fenômeno cada vez mais abrangente. Segundo Cêa e Murofuse (2007, p. 3-4), Um dos principais objetos degradados [na relação homem natureza, por meio do trabalho] é a própria dimensão biológica do trabalho, expressa pela capacidade humana de mobilizar energias físicas e mentais que restam desgastadas para além dos ambientes laborais. Ou seja, o aniquilamento da saúde por força de uma dada forma de organização do trabalho destrói não apenas o ser trabalhador, mas também o ser humano que se manifesta em outras esferas, além daquela constituída pelo trabalho alienado.

A gravidade desse quadro, subsumida pelos anúncios do fim do trabalho10, é competentemente exposta por Costa-Gravas, numa linguagem ficcional que é ao mesmo tempo denúncia e sinal de alarme. Mas a situação apresentada no filme permite uma outra reflexão: apesar das teses que postulam a centralidade de outras dimensões na vida humana, o uso da força de trabalho não é dispensado como medida de valor, como nos alerta Antunes (2005, p. 17):

10 “Como conseqüência das significativas mutações que ocorreram no mundo da produção e do trabalho, nas últimas décadas do século XX, tornou-se freqüente falar em ‘desaparição do trabalho’ (Dominique Meda), em substituição da esfera do trabalho pela ‘esfera comunicacional’ (Jürgen Habermas), em ‘perda de centralidade da categoria trabalho’ (Claus Offe), em ‘fim do trabalho’ (Jeremy Rifkin), ou, ainda, na versão mais qualificada e critica à ordem do capital, Robert Kurz, para citar as formulações mais expressivas” (ANTUNES, 2005, p. 59).

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divisão sexual do trabalho, pela nova configuração da classe trabalhadora, entre os vários elementos aqui apresentados (ANTUNES, 2005, p. 38).


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[...] se o trabalho ainda é central para a criação do valor, o capital, por sua parte, o faz oscilar, ora reiterando seu sentido de perenidade, ora estampando a sua enorme superfluidade, da qual são exemplos os precarizados, flexibilizados, temporários, além, naturalmente, do enorme exército de desempregados e desempregadas que se esparramam pelo mundo.

O drama vivenciado pela família de Davert – por ele e sua esposa, especialmente – expõe claramente tal superfluidade. Precarizados e desempregados, muitas vezes tratados como simples números em estatísticas do mercado de trabalho, são homens e mulheres de carne e osso, lutando por sua sobrevivência, encontrando estratégias diversas para se manifestarem como mercadoria, ao mesmo tempo em que suas angústias, desesperos, carências e traumas denunciam os riscos humanos da exacerbação da alienação do trabalho. CONSIDERAÇÕES FINAIS Numa das mais contundentes e profundas análises da forma de ser do capital nos últimos tempos, Mészáros (2002, p. 41) adverte: Encher buracos cavando buracos cada vez maiores – o que tem sido a maneira predileta de solucionar os problemas na presente fase do desenvolvimento – é algo que não pode continuar indefinidamente. Descobrir uma saída do labirinto das contradições do sistema do capital global por meio de uma transição sustentável para uma ordem social muito diferente é, portanto, mais imperativo hoje do que jamais o foi, diante da instabilidade cada vez mais ameaçadora.

Na ficção que deu origem às reflexões aqui apresentadas, é outro personagem, que não Davert, que aponta a necessidade de se vislumbrar uma lógica social capaz de eliminar o capitalismo e a desumanização que lhe é parte integrante. Enquanto Bruno Davert coloca em ação seu plano para reconquistar o emprego, acaba, mesmo sem querer, estabelecendo uma relação próxima com um de seus adversários que, assim como ele, passou um longo tempo desempregado. Diante disso, teve que se submeter a ocupações completamente distintas da anterior; de alto executivo, passou a subempregado, atuando como balconista de um pequeno e decadente restaurante. Bruno fica perplexo ao perceber que Etienne Barnet, apesar de todas as dificuldades, consegue lidar de forma centrada e tranqüila com a situação, apesar das adversidades.

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Barnet, diferentemente de Davert, percebe que o problema não é individual, portanto não o carrega como se fosse um estigma. Etienne compreende que o desemprego e todas as demais mazelas que atingem os trabalhadores são causadas pela lógica do capitalismo – ele esteve desempregado, hoje desempenha uma atividade precária, distante de sua capacidade produtiva e intelectual, mas sobrevive; mas se não fosse ele a passar por isso, seria qualquer outra pessoa. Para o sistema é indiferente quem fica desempregado ou não. Para o sujeito que está desempregado é que isso ganha a conotação de um problema. Etienne não prevê uma solução isolada ou individualizada para as dificuldades por que vêm passando os trabalhadores: na sua concepção, eles só terão solução quando o sistema inverter sua lógica, colocando o homem no centro de tudo. Quando, finalmente, Bruno Davert consegue dar cabo ao seu plano e atingir seu objetivo, eliminando todos os seus adversários e ainda o sujeito que ocupava a vaga pleiteada, o expectador é induzido a refletir sobre a possibilidade de que a solução idealizada pelo personagem para resolver o seu problema pessoal pode não ser inédita, e que ele próprio pode ser vítima de semelhante estratagema. Isso porque, se o problema do desemprego, para Davert, foi solucionado, para os demais desempregados ele ainda persiste. Portanto, a mensagem final que a obra cinematográfica “O Corte” nos deixa é: quando a solução dos problemas sociais é individualizada, eles tendem a persistir. Se solucionados para alguns, são aguçados para outros. E se todos, absurdamente, tiverem a mesma idéia para resolver o problema do desemprego11 , então a humanidade tende a se extinguir.

11 No Brasil, em janeiro de 2006, a imprensa noticiou amplamente um crime movido pelo mesmo motivo encenado na trama de Costa-Gravas: uma estagiária confessou ter planejado a morte de duas colegas para conseguir uma vaga de emprego em uma indústria de derivados de petróleo, em Cubatão, São Paulo. A jovem confessou que queria recuperar o emprego na empresa e, como não havia mais vagas, decidiu planejar o assassinato. Uma das vítimas sobreviveu, mas ficou gravemente ferida. Outra foi morta com cinco tiros na porta de casa, em Santos. Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI841213-EI5030,00.html. Acessado em 20 fev. 2008.

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GRAMSCI E A EDUCAÇÃO: A RELAÇÃO ESCOLA-PARTIDO NO CONTEXTO DA CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE SOCIALISTA Luiz Carlos de Freitas

Gramsci é hoje no Brasil o mais citado intelectual da esquerda, que fundamenta teoricamente os projetos de educação institucional, a partir da ótica da classe trabalhadora. Possivelmente nenhum intelectual da educação voltada para os trabalhadores consegue esboçar qualquer reflexão teórica sobre este tema, sem lançar mão do pensamento gramsciano. Contudo, percebe-se algumas lacunas na interpretação da concepção de educação proposta por Gramsci. Creio que a grande dificuldade destas interpretações está em relacionar a concepção de educação gramsciana ao projeto de escola proposto por Gramsci e como se daria a relação desta com a sociedade no contexto da luta de classes. Com isto não estamos afirmando que as teorias educacionais, fundamentadas no pensamento gramsciano, não demonstrem teoricamente que Gramsci era um defensor ardente do socialismo e que se dedicava a esta causa agindo politicamente através de um partido. A questão que levantamos é que a defesa de um modelo de escola, aos moldes da Escola Única proposta por Gramsci, que não leve em consideração a necessidade de uma ação mais organizada fora dos muros da escola, contrapondo-se ao estado burguês, parece-nos que não nos possibilita uma compreensão clara da proposta gramsciana de escola. Neste texto pretendemos analisar a forma como Gramsci pensou um modelo de escola voltada para a formação integral do ser humano e como esta escola se relaciona com a sociedade e com o partido político. Para dar conta minimamente desta questão é preciso que se leve em consideração o momento histórico vivido por Gramsci, seu envolvimento com o movimento revolucionário internacional e sua

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INTRODUÇÃO


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174 preocupação com as peculiaridades nacionais da Itália. É neste contexto que Gramsci desenvolve seu projeto de Escola Unitária. Levando em consideração o critério de totalidade do pensamento de Gramsci, procuramos desenvolver nossa reflexão sobre a escola a partir do entendimento de alguns de seus conceitos centrais. O conceito de partido e o conceito de hegemonia foram considerados em nosso trabalho como essenciais para a compreensão da relação de seu projeto de educação com o seu projeto de sociedade. De posse de uma compreensão mínima destes conceitos pudemos avançar com maior clareza em sua teoria sobre os intelectuais, sobre a educação em seu sentido amplo e sobre a educação formal proposta para a Escola Unitária. Após este percurso, poderemos então ter uma visão um pouco mais transparente do projeto de educação e de escola propostos por Gramsci e, talvez, possamos também melhor compreender se a escola defendida por ele foi pensada como possível em qualquer sociedade, se apenas para a sociedade socialista ou ainda enquanto interlocutora entre a sociedade capitalista e o horizonte socialista a ser alcançado, desde que acompanhada de uma luta pela transformação radical na sociedade.

A CONCEPÇÃO DE PARTIDO EM GRAMSCI Podemos observar dois momentos da compreensão de Gramsci sobre o partido político. Um primeiro momento caracterizado pela sua militância no Partido Socialista Italiano, de 1913 a 1919. E um segundo momento que se inicia a partir da experiência “derrotada” das greves que ocorreram em Turim no ano de 1919 e que culminam com seu desligamento do PSI e a criação do Partido Comunista Italiano em 1921. Compreender este processo de amadurecimento do pensamento de Gramsci é essencial para a compreensão do desenvolvimento de sua principal contribuição teórica para a organização da classe trabalhadora. O conceito de hegemonia desenvolvido por Gramsci e o papel do partido e demais instituições proletárias, incluindo a escola, na construção da revolução socialista será gestado a partir das constatações concretas que Gramsci tirou da sua militância prática deste período. No período de 1913 a 1919, Gramsci teve uma militância comum dentro do PSI. Até aquele momento não havia perspectiva Política, Educação e Cultura


revolucionária, a curto prazo, na Itália. A avaliação feita pela II Internacional, a qual era filiado o PSI, era de que não estavam dadas as condições objetivas para ocorrer uma revolução proletária, e que portanto, caberia aos partidos de cunho socialista disputar o parlamento como caminho para a tomada do poder. A revolução socialista na Rússia, iniciada em 1917, coloca em xeque o que era unanimidade em todos os partidos socialistas do mundo que estavam ligados à II Internacional. O pensamento mecanicista do marxismo, que direcionava as ações destes partidos, os colocava em uma posição cômoda. Dado que a realidade concreta do desenvolvimento capitalista não era ainda suficiente para que estourasse uma revolução, não haveria porque se preocupar com ela. No entanto, contrariando esta avaliação, Lênin e os bolcheviques tomam o poder na Rússia, mesmo este sendo um país de capitalismo extremamente atrasado. Teoricamente Lênin comprovou, através de seu escrito Imperialismo: etapa superior do capitalismo, que o capitalismo já estava suficientemente desenvolvido a nível mundial e que esta seria sua última etapa. Observando-o na sua totalidade, era possível derrotar o capitalismo mesmo em países atrasados, desde que isto desencadeasse uma onda revolucionária nos países desenvolvidos. No caso dos socialistas da Itália, mantiveram, mesmo depois da tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia, uma posição bastante apática. O socialismo italiano da época de Gramsci era vítima do ‘esperismo’, tanto da sua ala reformista, comandada por Filippo Tuiratti, para quem a evolução econômica levaria ao socialismo (...) quanto da ala maximalista (defensora do programa máximo da social democracia), cujo líder, Serratti, dissera: ‘Nós marxistas, interpretamos a história e não a fazemos’, o que o levava a ficar à espera do ‘grande dia’ da revolução (SECCO, 2006, p.24).

Por este motivo, em 1919 Gramsci, juntamente com outros militantes do PSI, dentre eles Tasca, Togliatti e Terracini, iniciaram um debate interno no partido, tendo como principal instrumento de divulgação de suas idéias a revista, criada por eles, denominada Ordine Nuovo. A interpretação dada por este grupo, em especial Gramsci, sobre o caminho revolucionário na Itália divergia daquele pelo qual trilhava o PSI, esta visão do Ordine Nuovo era fruto da experiência concreta da revolução bolchevique na Rússia.

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176 Os textos publicados nesta revista, especialmente os de Gramsci, buscam demonstrar e convencer os militantes da necessidade da construção da revolução já, ou seja, a partir do momento histórico em que estavam vivendo. Por isso vão buscar nas organizações de trabalhadores já existentes na Itália os embriões por onde começar o processo de construção de um pensamento revolucionário que tencione a luta de classes para a tomada do poder. Neste aspecto, cabe observar duas questões que consideramos relevantes para diferenciar o pensamento de Gramsci do pensamento do movimento socialista dominante naquele momento: primeiro que este percebe a importância da subjetividade para que a revolução ocorra de fato; e depois que já havia condições objetivas, pelo menos na Itália, de se organizar a revolução. A partir destas duas constatações, possíveis principalmente por causa do exemplo histórico dos bolcheviques, Gramsci se dedicará a pensar formas de instrumentalizar politicamente e cientificamente o proletariado para tomarem e assumirem o poder na direção do Estado. Como fazer esta formação é a grande preocupação de Gramsci, que o levará a buscar nas condições objetivas que se apresentavam naquele momento, observando principalmente a região mais desenvolvida da Itália, em especial a cidade de Turim. Como deveria agir o partido diante desta realidade? Qual deveria ser sua função num momento de perspectiva revolucionária? Diante de tais questões, Gramsci passará a valorizar as iniciativas dos trabalhadores e a, ao mesmo tempo, defender que o partido será o catalisador destas iniciativas. Não de forma passiva, mas de forma dialética, influenciando e deixando-se influenciar pelas organizações proletárias de massa: “Gramsci inventa os Sovietes italianos procurando-os no movimento real, naquilo que já existe, isto é, nas Comissões Internas, que devem ser desenvolvidas e transformadas em organizações com um poder e com uma capacidade representativa muito maior” (GRUPPI, 1980; p.74). As greves ocorridas em 1919, na cidade de Turim, apontaram os Conselhos de Fábrica como o órgão de representatividade legítima do proletariado. Em muitos casos, estes conselhos ocuparam as fábricas e passaram a dirigi-las, demonstrando uma alta capacidade organizativa dos operários. Estes acontecimentos levam Gramsci a entender os Conselhos de Fábrica da mesma forma que Lênin compreendeu os Sovietes na Rússia pré-revolução socialista. Quando Lênin, em 1917, afirma que os Sovietes são organizações com as quais o partido deve ter relações diretas, certamente tem a clareza de que o partido não

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conseguiria atingir a massa que os sovietes conseguiam, por isso seu lema “Todo poder aos sovietes”. Gramsci terá a mesma compreensão com relação aos conselhos de fábricas, afirmando que estes demonstram capacidade de dirigir a massa, desse modo, o partido deve então estar junto a estes conselhos, visto que os militantes alcançados pelas organizações dos Conselhos de Fábrica são um número muito maior do que os militantes do Partido Socialista. A partir deste entendimento, a questão que se coloca ao partido socialista é: como estreitar as relações políticas com os Conselhos de Fábrica? Na visão de Gramsci e do grupo da Ordine Nuovo seria necessário levar estes Conselhos a tomar as fábricas e passar a dirigilas. O papel do partido então seria o de radicalizar este processo através de uma formação teórica e do convencimento político dos conselhos, levando sempre em conta esta experiência concreta surgida dos próprios operários e não transformando os conselhos em apêndice do partido. O que Gramsci desenvolve neste caso é uma concepção de partido muito próxima da concepção que Lênin desenvolveu, em sua obra “Que Fazer?” para a Rússia, em 1902, principalmente no que diz respeito às críticas da linha social democrata assumida na II Internacional. O PSI não passava de “um pobre tabelião que registra as operações realizadas espontaneamente pelas massas” (GRAMSCI. IN: GRUPPI, 1978, p.56). A principal crítica de Gramsci ao PSI era sua impossibilidade de influenciar na formação da consciência revolucionária do proletariado; esta impossibilidade não estava ligada às questões objetivas do desenvolvimento histórico do capitalismo, como afirmavam os dirigentes do partido, mas à concepção de partido assumida pelo PSI. O PSI: move-se, e não pode deixar de fazê-lo, preguiçosa e tardiamente: expõese continuamente ao perigo de transformar-se em objeto de conquistas de aventureiros, de carreiristas, de ambiciosos. Por causa de sua heterogeneidade, nos inumeráveis atritos de suas engrenagens, não está nunca em condições de assumir o peso e a responsabilidade das iniciativas e das ações revolucionárias, que os eventos incessantemente colocam diante dele (Idem, p. 56).

Gramsci entendia o partido como a vanguarda do proletariado e não como a massa de proletários. Contudo afirmava a importância do trabalho do partido junto às massas sem se deixar levar pelos interesses imediatos desta, mas também não negando a importância de sua organização espontânea, como dos Conselhos de Fábrica.

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178 Outra questão que fica clara a partir da citação de Gramsci vista acima é sua não aceitação de um modelo de partido aberto, em que muitas tendências possam se abrigar para militar. Este modelo de partido também foi duramente atacado por Lênin no período do governo provisório russo, após a revolução democrático-burguesa de março de 1917. Em “As Teses de Abril” podemos ver a seguinte declaração de Lênin ao expor sua primeira tese, tratando sobre a questão da guerra: “Não somos embromadores. Devemos apoiar-nos tão somente na consciência das massas. Se é necessário permanecer em minoria, pois bem, fiquemos em minoria. É conveniente, às vezes, recusarmos a ocupar uma posição majoritária, não podemos ter medo de ficar em minoria” (LÊNIN, 1967, p. 21). O partido, tanto para Gramsci quanto para Lênin, deveria dar conta de criar um núcleo centralizado com sólida formação política e disposição para a luta revolucionária e ao mesmo tempo, manter a ligação com as massas para elevar sua consciência sem, contudo, tirar sua capacidade criadora. Um novo elemento trabalhado por Gramsci de forma bastante aprofundada é o conceito de hegemonia. Este conceito, que parte de uma questão prática, coloca um grande desafio para o partido revolucionário, que é a conquista da hegemonia. Mas afinal o que vem a ser a hegemonia para Gramsci? Este termo não foi utilizado somente por Gramsci, mas este dá uma centralidade a esta questão, devido à realidade histórica colocada para ele: “Gramsci recupera explicitamente o conceito teórico-prático de hegemonia, tomado de Lênin. O contexto que preside a essa recuperação revela-se tão esclarecedor quanto uma simples análise interna de seus componentes” (BUCI-GLUCKSMANN, 1980, p.229). Embora Lênin tenha trabalhado com este conceito, acaba por não se prender em uma análise mais sistemática sobre isto. Dado o momento histórico russo, as vésperas da tomada do poder pelo proletariado, coloca-se a necessidade de canalizar a energia para aprofundar na questão da ditadura do proletariado. Por isso Lênin concentrou seus esforços na busca de embasar teoricamente uma forma de governo que conseguisse se manter no poder em um Estado socialista. Além disso, havia neste período a social democracia da II Internacional, que dava linha aos partidos e movimentos revolucionários; sua tese era a de que seria possível a destruição do capitalismo pela via pacífica e não haveria mais a necessidade da revolução violenta do proletariado, portanto o papel dos comunistas seria o das alianças

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políticas para a conquista de cargos no parlamento como forma de garantir a transformação do estado burguês em estado socialista. Segundo Lênin os principais teóricos que davam linha à II Internacional, em especial Karl Kautsky, estavam deformando completamente o marxismo e transformando-o em um pensamento liberal, abandonando a sua essência, ou seja, a da necessidade da revolução violenta e da instituição da ditadura do proletariado: “Com o auxílio de sofismas patentes, extirpa-se do marxismo o que constitui sua vida, a essência revolucionária; admite-se tudo no marxismo, exceto os métodos de luta revolucionaria, a propaganda, o preparo desta luta e a educação das massas nesse sentido” (LENIN, p.92). Esta realidade colocada para Lênin o obriga a enfatizar exaustivamente a defesa da ditadura do proletariado como a essência de todo o pensamento marxista. Muitas vezes, por falta de contextualização histórica, isto vem sendo interpretado como a negação da importância da questão da hegemonia, a interpretar a hegemonia como sinônimo de ditadura do proletariado e até mesmo em colocar em contraposição um conceito a outro. Desenvolveremos, a seguir, a concepção de hegemonia em Gramsci e a relação da hegemonia com o partido. O PARTIDO E A CONSTRUÇÃO DA HEGEMONIA Conforme já salientamos anteriormente o conceito de hegemonia é desenvolvido por Gramsci, a partir de Lênin. Segundo Gruppi, o termo hegemonia foi utilizado por Lênin pela primeira vez em 1905. Não é por acaso a data de 1905, pois cabe lembrar que este foi o período em que estourou, na Rússia, o “ensaio geral” da revolução que desembocou na tomada do poder pelo proletariado em novembro de 1917. O contexto histórico em que Gramsci desenvolve o conceito de hegemonia é diferente deste, embora com elementos comuns. Sem negar o pensamento de Lênin, o que Gramsci faz é alargar o conceito de hegemonia: “(...) Gramsci – quando fala de hegemonia – refere-se por vezes à capacidade dirigente, enquanto outras vezes pretende referir-se simultaneamente à direção e à dominação. Lênin ao contrário, entende por hegemonia, sobretudo, a função dirigente” (GRUPPI, 1978, p. 11). O conceito de hegemonia em Gramsci, conforme frisamos na citação acima, diz respeito não apenas à ditadura do proletariado

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180 enquanto força de coerção, mas também enquanto um mecanismo de convencimento de classes sociais divergentes a trilharem juntas um mesmo caminho. Além desta capacidade de convencimento, a hegemonia em Gramsci também diz respeito às alianças que o proletariado pode e deve fazer para conquistar o poder. Neste caso, o conceito de hegemonia é utilizado como direção ideológica de um movimento ou partido de massas. Quando Gramsci desenvolve este aspecto da hegemonia, está partindo de uma realidade concreta de seu país e suas diferenças regionais e o que ele tenta unificar é a luta do proletariado de Turim com a dos camponeses de regiões ainda não industrializadas da Itália. Segundo ele, “a revolução apresenta-se praticamente como hegemonia do proletariado que guia seu aliado: a classe camponesa”. (Ordine Nuovo, 1 de novembro de 1924. In: BUCI-GLUCKSMANN, 1980, P. 231). Gramsci não descarta as alianças com outras classes, como a pequena ou a média burguesia, por exemplo. Neste caso a hegemonia aparece não só como direção, mas também como domínio dos demais grupos com os quais o proletariado se aliou. Um terceiro elemento que podemos destacar no conceito de hegemonia formulado por Gramsci diz respeito diretamente à questão ideológica. Por questão ideológica entende-se a capacidade de convencimento teórico de uma classe sobre os indivíduos desta mesma classe através do conhecimento científico e do aprimoramento cultural. Quanto a esta questão, Gramsci salienta três graus de avanço de consciência do proletariado para se constituir em pensamento hegemônico: 1) econômico-corporativo, quando o pensamento deste grupo se alinha por questões de lutas imediatas ligadas a uma categoria de pessoas (comerciante, professor, metalúrgico, etc); 2) quando se atinge a capacidade de se solidarizar com o grupo social mais amplo, exigindo do estado mudanças legislativas que lhes garantam igualdade jurídica. Contudo, este grau de consciência permanece ainda no campo econômico e nos limites do Estado em vigor; 3) quando se adquire a consciência de classe, isto é, quando percebe-se e convence-se da necessidade de tomar o poder da classe dominante que dirige o Estado, colocando em seu lugar outra classe que lhe dê nova direção (Cf GRAMSCI, 2000, vol. 3, p. 41). O conceito de hegemonia em Gramsci, conforme relato acima, possui uma dimensão bastante ampla. As três características apontadas são centrais para a compreensão da relação entre a construção da hegemonia e o partido. As greves dos operários de Turim em 1919 e 1920 marcam a reflexão de Gramsci sobre o papel

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do partido diante das organizações dos trabalhadores. Até este momento Gramsci enxergava os Conselhos de Fábrica como o agente central da revolução na Itália. O “fracasso” destas greves e a impossibilidade dos Conselhos tomarem o poder é que levam Gramsci a teorizar sobre a função de um partido revolucionário: “(...) só a derrota dos conselhos de Turim impôs a Gramsci a necessidade teórica de aprofundar o conceito de hegemonia e a necessidade de uma ação cultural que já se esboçava na experiência do semanário L’Ordine Nuovo” (SECCO, 2006, p. 33). A partir de então podemos compreender que quando Gramsci e seu grupo de Ordine Nuovo rompem de vez com o PSI e criam o Partido Comunista da Itália, a situação não era mais a mesma dos anos de 1919 e 1920, quando parecia que o proletariado estava a um passo da tomada do poder. Ao observar a derrota dos Conselhos de Fábrica de Turim no que tange à ação revolucionária, Gramsci passa a teorizar a importância da ação do partido, não apenas como dirigente político do movimento proletário, mas também enquanto agente construtor da hegemonia. Isto significa que a tarefa do partido era muito mais ampla do que se imaginava, ou seja, não era mais possível acreditar que a revolução estava por acontecer e que, portanto, bastava ao partido preparar-se para a tomada do poder e dar direção ao movimento operário. Tampouco se podia concordar com as alianças que o PSI realizava afirmando o caminho reformista para a tomada do poder. Uma tarefa muito mais complexa estava colocada para o partido que se propusesse a dirigir as massas, este deveria ser um agente de formação e construtor da revolução. Diante desta realidade é que o PCI, criado pelo grupo do Ordine Nuovo vai ganhando um novo caráter, o de pensar as táticas para a construção da revolução na Itália. Isto não será tranqüilo dentro do partido, pois se por um lado o rompimento com o PSI se dá principalmente pelo caráter reformista deste, por outro deve evitar o sectarismo. “De fato, durante o congresso de separação a questão principal era distinguir os revolucionários dos não revolucionários (reformistas). (...) Mas havia também naquele Congresso muitíssimos comunistas que achavam que a revolução era imediata” (NOSELLA, 2004, p. 85-86). É este o ponto principal em que o conceito de hegemonia, aprofundado por Gramsci, ganha importância no interior do Partido. Gramsci rompe com o PSI por este ser um partido reformista, mas também discorda daqueles que acham ser possível a revolução sem a construção de alianças.

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182 Neste período o fascismo bate às portas do Estado italiano, colocando para o PCI e outros partidos e movimentos populares a necessidade de uma ação política para combater este fenômeno. Duas posições se criam no PCI: uma, representada por Bordiga, era a de radicalizar a luta pela tomada do poder unicamente por este partido; e outra, representada por Gramsci, defendia a formação de uma Frente Única construindo alianças com outros grupos ou partidos de cunho popular. Nesta discussão, entre estas posições divergentes dentro do PCI, Gramsci vai desenvolvendo e aprofundando teórica e praticamente o seu conceito de hegemonia. Neste caso, podemos observar que o partido, na visão de Gramsci, tinha duas tarefas importantes: a de convencer os grupos de seu próprio partido a lançarem mão de uma ação hegemônica contra o fascismo e a de conseguir fazer alianças com outros grupos sociais, podendo trilhar um mesmo caminho, mas sem perder a perspectiva da revolução. Como vemos, a função do partido revolucionário para Gramsci tem uma tarefa muito mais complexa do que apenas pensar formas de ação política para governar. Além da capacidade de convencimento de seus militantes e da agilidade para fazer alianças sem perder sua identidade, a ação deste partido deve ser a de construir, mesmo antes da existência de uma situação revolucionária, um pensamento hegemônico entre as classes potencialmente revolucionárias: É necessário então todo um processo afim de que as classes subordinadas fiquem autônomas, se dêem um partido, uma linha política, uma concepção cultural. Então conquistada esta autonomia, lutam para ficar hegemônicas, dirigentes. Elas podem ficar hegemônicas ainda antes da conquista do poder, isto é, podem difundir em toda a sociedade sua própria concepção não só política, mas cultural. A hegemonia se conquista antes da conquista do poder, e é uma condição essencial da conquista do poder (GRUPPI, 1980, p. 82).

Talvez esta seja a maior contribuição do conceito de hegemonia desenvolvido por Gramsci. Ao observar a realidade concreta italiana após 1919, Gramsci avalia que a revolução naquele caso não aconteceria sem uma sólida formação de consciência proletária. Esta formação não se daria apenas no partido e com os militantes do partido, mas deveria se estender a todas as classes oprimidas, ou seja, caberia ao partido também a função de trabalhar na construção de uma formação cultural que se contrapusesse ao pensamento burguês dos opressores em todos os espaços que estivessem presentes os oprimidos.

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183 Aqui, passamos então a perceber a importância da atuação do partido na formação cultural da classe oprimida, entendendo esta formação como instrumento necessário na construção do pensamento hegemônico das classes oprimidas. È nesta perspectiva que Gramsci vai desenvolvendo sua concepção de educação.

Segundo Nosella (2004, p. 106), antes de ser preso Gramsci já havia desenvolvido escritos sobre a questão da formação cultural das massas. Em um texto, inacabado, chamado “Alguns Temas sobre a Questão Meridional”, Gramsci discute o papel dos intelectuais na sociedade. Quando pensa sobre este assunto tem em vista a dificuldade de unificação ideológica entre os operários do norte da Itália e os camponeses do sul desta. Por isso podemos afirmar que os escritos de Gramsci do cárcere, no tocante à questão da educação e formação dos intelectuais orgânicos do proletariado, não são meras reflexões teóricas, mas uma necessidade concreta colocada pela realidade social italiana ao partido, percebida por Gramsci na sua militância antes da prisão. Por isso, apesar de Gramsci ter sistematizado seu pensamento sobre o partido e sua relação com a educação nos seus escritos na prisão (cadernos do cárcere), parece-nos não ser possível uma interpretação fiel deste pensamento se não levarmos em consideração a preocupação central deste pensador, que era a construção da revolução através da conquista hegemônica das classes trabalhadoras (operários e camponeses). Esta construção da hegemonia seria a tarefa primordial do partido. Em outras palavras, a concepção de educação gramsciana está ligada à totalidade de seu pensamento social e, em especial, à preocupação de como o partido deveria pensar um projeto de educação que formasse os intelectuais orgânicos do proletariado: O moderno príncipe deve e não pode deixar de ser o anunciador e o organizador de uma reforma intelectual e moral, o que significa, de resto, criar um terreno para um novo desenvolvimento da vontade coletiva nacional-popular no sentido da realização de uma forma superior e total de civilização moderna (GRAMSCI, 2000, p.18).

O partido, denominado por Gramsci de “o moderno príncipe”, portanto é o que deve definir e organizar a educação das massas, ou seja, só faz sentido falar de educação em Gramsci e ser fiel ao seu

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O PARTIDO E A EDUCAÇÃO


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184 pensamento se a discussão levar em conta o projeto político revolucionário vivenciado por este pensador. Nesta perspectiva, Gramsci desenvolve seu conceito-proposta de educação dos trabalhadores. Esta proposta será sistematizada por Gramsci, apenas nos anos de 1931 e 1932, em especial no caderno 12 dos cadernos do cárcere. Cabe lembrar que, durante todo este tempo que Gramsci estava na prisão, sempre procurou ser informado o máximo possível, através de cartas de familiares, amigos e companheiros do partido, sobre os acontecimentos políticos da Itália e da União Soviética, onde estavam sua mulher e filhos. É importante frisarmos esta questão para afastarmos a interpretação de que o pensamento de Gramsci estava apenas no campo teórico. Pelo contrário, a leitura deste texto nos deixa claro seu diálogo com a realidade histórica daquele momento, tanto na Itália fascista, quanto na Rússia socialista. A questão sobre a qual nos cabe refletir então é: qual seria a relação da educação proposta por Gramsci nos cadernos do cárcere com a sociedade e o partido? No caderno 12, intitulado “Apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais”, esta questão é trabalhada por Gramsci a partir de um duplo entendimento de educação. A princípio fala da educação em seu sentido amplo, entendendo-a como toda formação humana, portanto ressalta a importância de várias organizações que possuem um papel educativo. Num segundo momento detém-se no conceito de educação escolar institucional, neste caso pensa sobre a influencia da escola tradicional na formação do ser humano. No caderno 13, “Breves notas sobre a política de Maquiavel”, Gramsci ressalta o papel do partido na construção de uma educação voltada para a formação completa do ser humano. Prenderemos-nos, especialmente, na análise destes dois textos para buscarmos uma melhor compreensão sobre como Gramsci relaciona a educação, a escola e o partido. A educação, tomada por Gramsci em sentido amplo, não ocorre apenas na escola, mas em todos os grupos sociais. Com base nesta afirmação é que ele define o conceito de intelectual orgânico e o diferencia do intelectual tradicional: “O ponto central da questão continua a ser a distinção entre intelectuais como categoria orgânica de cada grupo social fundamental e intelectual como categoria tradicional, distinção da qual decorre toda uma série de problemas e de possíveis pesquisas históricas” (GRAMSCI, 2001, p. 23). De acordo com Gramsci todo grupo social forma seus intelectuais orgânicos, estes são responsáveis pela continuidade da

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reprodução do modelo de sociedade defendido pelo grupo ao qual faz parte ou pelo qual é formado. Na sociedade capitalista, por exemplo, a burguesia, classe detentora do poder econômico, forma seus intelectuais nas diversas instâncias da sociedade para que possam reproduzir este sistema. Neste caso, a educação para a formação do intelectual orgânico da burguesia começa desde o espaço da casa, passando pelo trabalho e atingindo a sistematização dos currículos escolares. Quanto a este tipo de intelectual, ressalta Gramsci, não é formado apenas pela classe dominante. O proletariado, enquanto classe dominada no sistema capitalista, também forma seus intelectuais orgânicos. Neste aspecto não é difícil afirmarmos a importância fundamental do partido revolucionário na formação do intelectual orgânico do proletariado. Além do partido, também faz este papel de formador os sindicatos e outros grupos que reúnam trabalhadores em defesa de algum direito. No entanto, a necessidade imprescindível do partido se faz no sentido de ligar as diversas lutas econômicas dos trabalhadores à luta política-ideológica: “No partido político, os elementos de um grupo econômico superam este momento de seu desenvolvimento histórico e se tornam agentes de atividades gerais, de caráter nacional e internacional” (Idem, p.25). O partido revolucionário deve ter como preocupação central a formação de quadros para a militância em todos os espaços onde se encontre aglomeração de trabalhadores. Esta tarefa é muito mais importante para a classe proletária do que para a burguesia, pois se a ideologia burguesa está presente em todos os espaços da sociedade, visto que esta vive sob a égide do capitalismo, o proletariado não dispõe da mesma vantagem. Neste sentido, a formação de intelectuais orgânicos e seu papel na sociedade já são algo bem definido, pois estes se formam com clareza nos objetivos de sua formação e com visão de classe bem definida. Por isso Gramsci se preocupará mais profundamente com os intelectuais tradicionais, desenvolvendo então uma teoria educacional paralela a um modelo de escola que garantisse a formação completa do ser humano. Se a formação dos intelectuais orgânicos se dá nos espaços fora da escola institucionalizada, o mesmo não ocorre com os intelectuais tradicionais. Estes, por não estarem militando em nenhum partido ou grupo social, consideram-se e são considerados livres de qualquer influência dos antagonismos de classes presentes na sociedade. Contudo, dada a impossibilidade de neutralidade numa sociedade de classes:

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uma das características mais marcantes de todo o grupo que se desenvolve no sentido do domínio é sua luta pela assimilação e pela conquista ‘ideológica’ dos intelectuais tradicionais, assimilação e conquista que são tão mais rápidas e eficazes quanto mais o grupo em questão for capaz de elaborar simultaneamente seus próprios intelectuais orgânicos (Idem, p. 19).

Aqui, Gramsci deixa clara a importância da influência do intelectual orgânico na educação do intelectual tradicional, além disso, coloca um desafio ao partido, representante e organizador dos interesses da classe dominada: pensar um modelo de educação que garanta a formação completa do ser humano, possibilitando-o as capacidades para dirigir a sociedade. Cabe-nos então a seguinte questão: como o partido revolucionário deve pensar a construção de um modelo de escola e educação? È possível a construção deste modelo antes da revolução? Estas indagações são sistematizadas por Gramsci no contexto da crise da educação tradicional e emergência da educação profissionalizante na Itália. É neste contexto que Gramsci desenvolve a sua concepção de educação e escola, chamando de Escola Única. O PARTIDO E A ESCOLA O avanço da indústria e a necessidade de mão de obra para seu funcionamento determinam o tipo de escola e educação oferecidas pelo Estado aos trabalhadores. No caso da Itália nas primeiras duas décadas do século XX, realidade da qual Gramsci vai partir para sua proposta de escola, a tendência era a: “(...) de abolir qualquer tipo de escola ‘desinteressada’ (não imediatamente interessada) e ‘formativa’, ou de conservar um reduzido exemplar, (...) bem como a de difundir cada vez mais as escolas profissionais especializadas” (Ibidem, p. 33). O que Gramsci chama de escola “desinteressada” é a escola humanista que se preocupa com a formação intelectual do ser humano, e as escolas profissionais, que eram meros treinamentos de mão de obra para o mercado de trabalho. Diante deste contexto, resgata os valores da escola tradicional, que não estava preocupada com a formação de mão de obra, mas com a formação humana. Ao resgatar estes valores o faz, não no sentido de defesa ao retorno da escola tradicional, mas no sentido dialético de superação e transformação, contudo, sem negar as contribuições deste modelo. É neste sentido que Gramsci desenvolve um conceito de escola capaz de superar a dicotomia entre a formação Política, Educação e Cultura


profissional e a formação humanista, e a denomina de Escola Única ou Unitária. Na perspectiva de Gramsci, a Escola Unitária deve ser a educação sistematizada para as crianças e adolescentes até os quinze ou dezesseis anos. Neste período, a educação escolar deve-se preocupar com a formação geral e desinteressada, ou seja, não se pode dar um caráter pragmático aos conteúdos escolares. Por outro lado, deve-se garantir um equilíbrio entre o trabalho intelectual e o trabalho físico, deixando a especialização profissional para a fase posterior à Escola Unitária. Esta escola deve ser em período integral e mantida pelo Estado, garantindo todos os espaços necessários para o bom desenvolvimento da aprendizagem, inclusive os espaços físicos, tais como, bibliotecas, dormitórios, refeitórios, salas de estudos, etc. Juntamente com os aspectos físicos também se faz necessário uma reestruturação do currículo e a ampliação do corpo docente, visto que quanto maior a possibilidade do professor relacionar-se individualmente com o aluno, maior a garantia de aprendizagem. Gramsci divide a educação escolar em dois níveis: o primeiro nível, correspondendo a três ou quatro anos, em que a criança aprenderia a ler, escrever, fazer contas e ter uma noção inicial de história e geografia. Paralelo a esta aprendizagem deve-se introduzir lições de direitos e deveres já criando o hábito de responsabilidade social. No segundo nível da Escola Unitária deve-se se preocupar com a formação da autonomia do estudante: “(...) criar os valores fundamentais do ‘humanismo, a autodisciplina intelectual e a autonomia moral necessária a uma posterior especialização, seja ela de caráter científico (estudos universitários), seja de caráter imediatamente prático-produtivo (indústria, burocracia, comércio, etc.)” (Ibidem, p. 39). Embora a especialização profissional não seja a preocupação da Escola Unitária, esta não deixa de tomar o trabalho como princípio educativo. Contudo o conceito de trabalho desenvolvido nesta escola não será o mero trabalho braçal, mas o conceito amplo de trabalho enquanto atividade teórico-prática. Para Gramsci, não há possibilidade de divisão total entre pensar e fazer, visto que toda atividade teórica carece de esforço físico e toda atividade prática carece de teoria. “Isto significa que, se pode falar de intelectuais, é impossível falar de nãointelectuais, porque não existem não-intelectuais” (Idem, p. 52). A Escola Unitária, portanto, deverá formar um novo tipo de intelectual, diferente do intelectual tradicional e diferente do intelectual orgânico e, ao mesmo tempo, comprometido com o conhecimento científico e político da nova sociedade. Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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O problema da criação de uma nova camada intelectual, portanto, consiste em elaborar criticamente a atividade intelectual que cada um possui em determinado grau de desenvolvimento, modificando sua relação com o esforço muscular-nervoso no sentido de um novo equilíbrio e fazendo com que o próprio esforço muscular-nervoso, enquanto elemento de uma atividade prática geral, que inova perpetuamente o mundo físico e social, torne-se o fundamento de uma nova e integral concepção do mundo” (Ibidem, p. 53).

Exposta sinteticamente a proposta de escola de Gramsci, não podemos deixar de nos remeter à reflexão sobre a totalidade de seu pensamento. Conforme demonstramos acima o intelectual Gramsci foi antes de tudo um militante revolucionário, com formação política dentro do partido político, por isso afirmamos que não se poderia ter uma boa compreensão de sua proposta de escola sem levar em consideração os outros elementos que Gramsci julgava imprescindíveis para a realização deste tipo de escola. “O advento da escola unitária significa o início de novas relações entre trabalho intelectual e trabalho industrial não apenas na escola, mas em toda a vida social” (Ibidem, p. 40). Por isso devemos buscar o entendimento da escola unitária a partir da relação desta com o tipo de sociedade que ela está inserida ou deve se inserir. Tomando o partido revolucionário como agente educativo e organizador da hegemonia do grupo ao qual ele representa (o proletariado), é este que estaria encarregado de assumir esta proposta de escola. O partido revolucionário, ao se fazer presente nas organizações populares, deverá buscar sempre convencer os trabalhadores a unirem seus interesses imediatos com os interesses históricos. No sindicato, organizar a luta econômica, mas sempre apontando e puxando a massa para a necessidade da revolução. Na escola defender a educação estatal, mas lutando constantemente para a destruição do Estado burguês e a construção do Estado proletário. No caderno do cárcere número 13, Breves notas sobre a política de Maquiavel, Gramsci aponta, em algumas passagens, a importância do partido para uma reforma intelectual e moral. Uma questão central colocada neste texto por ele é a se há possibilidade de uma mudança cultural na escola sem uma mudança na sociedade. Ao que parece sua resposta é não, pois: “(...) uma reforma intelectual e moral não pode deixar de estar ligada a um programa de reforma econômica; mais precisamente, o programa de reforma econômica é exatamente o modo concreto através do qual se apresenta toda reforma intelectual e moral” (GRAMSCI, 2000, p. 19).

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E quem seria o responsável por esta reforma na sociedade? Segundo Gramsci o partido político revolucionário, chamado por ele de príncipe, aquele que: “(...) toma o lugar, nas consciências, da divindade ou do imperativo categórico, torna-se a base de um laicismo moderno e de uma completa laicização de toda a vida e de todas as relações de costumes” (Idem, p.19). Diante de tais afirmações, parece ser possível constatar a profunda ligação do partido com a transformação da escola, contudo, também podemos perceber que a defesa que Gramsci faz da escola unitária não é no sentido de um projeto utópico incapaz se realizar ou que se deve esperar de uma mudança na sociedade para buscar sua realização, mas de uma disputa constante no campo da ideologia presente na escola. É exatamente nisto que consiste o papel do partido, trabalhar incansavelmente na formação de intelectuais que possam atuar nas escolas do capitalismo, sem se iludir com ela, e que ao mesmo tempo consigam conquistar a massa para a defesa de um outro modelo de escola e de sociedade. Dadas estas constatações, entendemos que a proposta de escola formulada por Gramsci é bem mais complexa do que transplantála mecanicamente de uma realidade histórica, datada e localizada, para qualquer outra realidade. Também não se pode pinçar de uma totalidade complexa, como é o pensamento político de Gramsci, apenas a questão educativa em seu sentido restrito. Por isso consideramos importante e buscamos ressaltar neste texto alguns dos conceitos centrais do pensamento gramsciano, como a questão da hegemonia, dos intelectuais, da educação e da escola. Notamos que todos estes conceitos desenvolvidos por Gramsci estão ligados a uma concepção de sociedade e de partido. Isto nos possibilita afirmar que a luta pela escola unitária, a partir de uma concepção gramsciana, só se justifica se conjugada com a luta pela sociedade igualitária, que rompa com a divisão do trabalho intelectual e físico garantindo a todos a possibilidade de agirem como intelectuais. Se “(...) todos os homens são intelectuais, mas nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais (...)” (GRAMSCI, 2000, p.18), é porque a sociedade capitalista não garante igualdade de fato para que todos possam desenvolver suas capacidades. Logo é preciso um outro modelo de sociedade para que a intelectualidade seja comum a todos os seres humanos e para que a escola desempenhe esta função.

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A EDUCAÇÃO PELA CENSURA: O CONTROLE MUSICAL COMO AGENTE DE EDUCAÇÃO NÃO-FORMAL NA DITADURA PORTUGUESA

Qual relação pode ser estabelecida entre a música e a educação? Parte-se da recorrente premissa de que a educação não se dá unicamente através de processos formais, mas igualmente mediante outras instâncias, entre estas destacamos os objetos artísticos, em particular neste trabalho, a canção. Esta última, por sua vez, mescla duas potencialidades presentes na palavra e no som. Sua conjunção produz uma rica e influente manifestação artística. Por conseguinte, a opção por se abordar a canção neste texto também se justifica por sua inserção social através dos meios de comunicação e da indústria fonográfica e editorial. Esta manifestação cultural certamente contribuiu na formação cultural dos ouvintes, inclusive em sua faceta de agente educativa. Há que se apontar ainda o papel desempenhado pela canção na popularização da poesia portuguesa a partir da década de 1960. Uma outra particularidade da canção é a de que ela se trata de uma produção cultural de largo, rápido e freqüente alcance. Sua utilização abarcou quase todo o conteúdo televisivo e radiofônico das décadas de 1960 e 1970, e não somente naqueles anos. Logo, cabia aos artefatos culturais um papel significativo de agente educativo não-formal, por isso a emergência de seu controle pelo regime ditatorial português (1926-1974). Há que se enfatizar que a censura não foi unicamente um jogo de opostos que contrapôs ideologias políticas, dogmas, códigos de ética e de moral distintos. Havia também em sua essência uma perspectiva de preservação do status quo, uma política deliberada de calar uma outra proposta de sociedade que viesse a alterar as estruturas de poder. Tudo que fosse visto como indicativo de negatividade para o regime era passível de veto: crimes, suicídios, greves e atuação de sindicatos, benesses às multinacionais, denúncias de corrupção, mortes por enchentes e por fome, guerra colonial, queda de avião, mendicância, Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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192 a doença do ditador português António Salazar, o nome e as ações de opositores políticos, entre outros temas. Neste index também estavam relacionados os nomes dos cantores de oposição que, na maioria das vezes, não podiam sequer ser citados. No arquivo da Censura portuguesa são dezenas de matérias de jornais em que os nomes dos músicos José Mário Branco, Sérgio Godinho, Adriano Correia de Oliveira, Zeca Afonso, Francisco Fanhais1 , estão riscados pela caneta implacável dos censores. Estes e outros vetos nos textos, por sua vez, retiravam a inteligibilidade dos textos e, como diria o jornalista português Mário Castrim: “Os cortes eram tais que alguns amigos chegaram, pelo que liam, a julgarem-me lelé da cuca” (CASTRIM, 1996, p. 08). Se a canção contestatória foi controlada quando de sua veiculação radiofônica, a ditadura não restringiu suas atividades ao controle destas emissões. O rádio foi amplamente utilizado em diferentes fases pelo regime salazarista. Uma das searas raramente observada pela historiografia portuguesa refere-se à política educacional do regime, consubstanciada na programação da Rádio Escolar. Por exemplo, este programa educativo, no período de outubro de 1960 a junho de 1970, contou com uma série de disciplinas, tais como: História, Música, Educação Moral, Canto Coral, Conto Infantil, Língua Materna, Moral e Religião, Segurança no Trânsito, Recitação, Educação Cívica, Educação Física, Educação Musical, Higiene, Geografia, Língua Portuguesa, Audição Musical, Trabalhos Manuais e “Coisas e Casos”. Uma constante previsível nestes estudos refere-se à vulgarização de uma moral e de uma política capitaneada pelo regime e por suas organizações, como a Mocidade Portuguesa, a Mocidade Portuguesa Feminina, a Legião Portuguesa, a Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, entre outras. Estas instituições tiveram seu auge nas décadas de 1930 e 1940, mas ainda reverberaram nas duas décadas seguintes. Notadamente, boa parte da programação cultural destas instituições ignorava a produção intelectual e musical dos opositores a Salazar, o que se traduziu numa freqüente exposição de uma imagem folclorizada e ideologizada da “aldeia feliz” que era o país dos portugueses 1 Por exemplo, como aparece nas ordens transmitidas por telefone: “24/11/70 – Disco Década de 60, de Luís Filipe Costa – SUSPENDER anúncio ou qualquer referência – coronel Garcia da Silva”, ou ainda a proibição em relação ao entrevistado desta pesquisa, o ex-padre Francisco Fanhais: “26/4/70 – Queima das Fitas do Porto. Espectáculo no teatro Sá Bandeira com baladas – CORTAR o nome do abade Fanhais. Mas, para não se notar o CORTE, é melhor CORTAR os nomes de todos intervenientes. Coronel Saraiva” (PRÍNCIPE, 1979, p. 59-51).

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“orgulhosamente sós” de que falava Salazar, e que representavam também as marcas de grandiosidade de uma “estética” defendida pelo salazarismo. A programação da Rádio Escolar é passível de comparação com dois projetos implementados durante a ditadura brasileira: o MOBRAL - Movimento Brasileiro de Alfabetização, criado através da Lei número 5.379, de 15 de dezembro de 1967, que durou até o início da década de 1980, e o Projeto Minerva, criado em 1970, que oferecia uma emissão radiofônica “educativa” e “cultural”. Desde os primeiros anos da ditadura salazarista, o processo educacional implementado privilegiou uma verticalização cada vez maior, mediante o controle das escolas de formação de professores, da diminuição da escola obrigatória de cinco para três anos2, do controle e da inculcação ideológica por meio dos manuais escolares, das associações de cunho fascista, da repressão e da censura. Em meio a tal política, a ausência de um projeto de erradicação do analfabetismo manteve Portugal entre os países europeus de menor índice de alfabetização. Em 1925, por exemplo, a França possuía uma taxa de 5% de analfabetismo, enquanto Portugal registrava uma taxa de 64% de analfabetos3. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatísticas de Portugal, o analfabetismo atingia 49 % em 1940, trinta anos depois ainda mantinha 33,7 % da população na mesma situação. Numa sociedade com tão baixo nível de escolarização a canção poderia ser um meio de formação cultural importante. Obviamente não advogamos a mera inter-relação entre analfabetismo e consumo musical. A canção é um fenômeno cultural de forte inserção social nos mais diferentes países, independente da diferenciação entre as economias nacionais. Apesar da dificuldade em se mensurar a recepção destes textos musicais pela população, as canções podem ter contribuído para fomentar o debate de uma série de temas abordados pelos compositores portugueses. O que se sabe com segurança é a sua forte inserção nos setores mais escolarizados da população, em particular entre setores oposicionistas. Isto não quer dizer que tais discursos não encontraram ressonância entre as classes populares, mesmo nas mais próximas de uma cultura política de sujeição ao regime autoritário. 2Base III da Reforma do Ensino Primário. Dec. – Lei n º 1969, de 20-5-1938. 3Disponível em: <http://www.setubalnarede.pt/content/index.php?action=articlesDetail Fo&rec=1265>. Acesso em: 13 jun. 2007.

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194 Há que se levar em consideração que a censura que atingiu as notícias e as canções não se restringiu aos textos mais politizados. A exemplo do que aponta o pesquisador brasileiro Paulo César Araújo, em seu livro Eu não sou cachorro não (2002), em relação ao veto aos “cafonas” no Brasil, também em Portugal a Censura não teve apenas como alvo os músicos e os textos mais engajados politicamente. Os vetos baseados no âmbito moral, embora também indicativos da desigualdade social, também foram recorrentes em relação ao que pejorativamente se enquadra como “música pimba” portuguesa. Estes temas proibidos aparecem, por exemplo, na resposta da Censura ao pedido de aprovação das canções enviado pela Casa Rapsódia4 . Neste parecer são examinadas sete canções, em três delas, ao invés do “nada a opor”, é imposta a sentença “não é de divulgar”. Por exemplo, o censor Manuel Nunes Barata vetou a letra de O Patrão e a Criada, cujo trecho do texto dá a tônica do tema: “A mulher do Aguiar/ Ouviu barulho de noite/ e acordou sobressaltada/ levantou-se sem ruído/ e foi dar com o marido/ agarrado à criada [...]”. Com o mesmo espírito da letra anterior, Rosa do Fole também é vetada: “Lá na minha rua/ vai subir pra lua/ mais um foguetão/ a rosa engordou/ e o povo já diz/ que foi o João [...]”. Neste processo, aparece unicamente o parecer do censor, datado de 30 de maio de 1974, e as letras das canções em anexo. O nome dos compositores e dos discos que seriam gravados não foram citados. Na mesma pasta aparece um outro compositor atingido pelo veto, desta feita em razão de uma crítica social um pouco mais ingênua. Logo, compositores não enquadrados no que se convencionou chamar de “músicos de contestação” (depois do 25 de abril, de “intervenção”) também podiam ver suas canções proibidas quando expunham as mazelas sociais presentes no país. Citamos trechos do parecer: À Gerencia Discos Rapsódia Em referência às seguintes letras que submetem a exame prévio cumpreme informar que superiormente se entendeu o seguinte: A SAFIRA É QUEM SE AMOLA – não é de divulgar S. PEDRO RAPIOQUEIRO – nada a opor O POBREZINHO – não é de divulgar [...]

4 IAN/ TT (Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo), SNI (Secretariado Nacional de Informação)/ Censura, cx. 461, RIAV, pacote 440, Pasta 1: Censura de Letras de Trechos Musicais – Casa Rapsódia (Discos).

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195 Lisboa, 31 de outubro.

Os dois vetos acima atingem os dois campos mais visados: o moral e o político. Em A Safira é quem se amola, a dubiedade do texto é percebida pelo censor, talvez em sua altamente “subversiva” mensagem de cunho erótico: “Se o disco rola, consola/ também alegra, a mocidade/ e a safira é quem se amola/ a rossar na cavidade [...]”. O outro veto, de O Pobrezinho, perpassa o campo político, em particular a mendicância tão escondida e combatida durante a ditadura, inclusive em falas do próprio Salazar, aqui abordadas pelo compositor: “[...] É tão triste, mendigar/ E tanto custa a sofrer/ Sai de casa, pra pedir/ Buscando o pão pra comer [...]”. Novamente os nomes dos compositores não aparecem no processo. Num outro parecer emitido novamente pelo mesmo censor anterior, desta feita em 20 de abril de 19746, a apenas cinco dias do fim da ditadura e da Censura, são aprovadas as letras de Ai Alice, Sete e meia e Eu não sei o que fazer. Quanto à letra de A culpa é do mexelhão, ao invés de colocar o freqüente “não é de se divulgar”, aparece a seguinte justificativa para o veto: “Falta o mínimo de construção poética e demasiado prosaico”. Logo, desta vez, a censura é, digamos, de ordem lingüística/ literária. Aqui o censor assume sua vertente de crítico literário, como nos pareceres encontrados no Brasil. Num outro processo da Censura portuguesa, encontra-se registrado um desabafo do censor em torno desta questão: Todos estes poemas (poemas isto?!) são de uma mediocridade que, muito embora, não subvertam no ponto de vista político, subvertem a cultura e a língua Portuguesa, o que é ainda pior. Na realidade, a quem servirá qualquer música que tenha por letras tais poemas?! Talvez que no espírito com que se redigiram as instruções que oportunamente se dirigiram às editoras de discos, se encontrem razões para não se aprovarem as letras em causa.7

Para descontentamento do mesmo censor, seus “pedidos” não são cumpridos e no mês seguinte ele redige um novo parecer em resposta a Discos Rapsódia, desta vez em relação a sete canções (cujas letras não estão anexas ao processo consultado). Destas, três foram 5 IAN/ TT, SNI/ Censura, cx. 461, RIAV, pacote 440, Pasta 1: Censura de Letras de Trechos Musicais – Casa Rapsódia (Discos). 6 Idem. 7 Idem, nº. 1/ RIAV/ DGI, 03 jan. 1974.

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O Chefe da Rep. Da Inf. Áudio-Visual – Manuel Nunes Barata. 5


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196 vetadas, enquanto duas receberam o julgamento: “pelas mesmas razões referidas julgo não divulgar”, a terceira letra foi objeto de uma reflexão um pouco mais atenciosa: “Em relação à letra denominada A Seringa do Zé da Pinga, esta é de tal modo abastarda, revelando uma subcultura que julgamos prejudicial divulgá-la de qualquer modo, mesmo através da música popular”.8 Portanto, não bastasse a ausência do Estado no que se refere à democratização da Educação, a produção musical advinda ou representativa dos setores populares também foi perseguida e enquadrada como subcultura. Por outro lado, estas canções também foram objeto de crítica pelos músicos mais engajados, por sua simplicidade discursiva e musical. O que não se atentou na altura é o fato que ambos setores foram vítimas do mesmo controle censório. Nossas últimas pesquisas realizadas numa outra documentação da Censura, liberada no final do ano de 2006, revelam um grande número de canções e poesias proibidas. No acervo do Serviço Nacional de Informações, em particular na documentação da Direcção dos Serviços de Espectáculos, lotado na Torre do Tombo, encontramos uma série de canções e poesias vetadas pelo setor. A título de ilustração, no dia 25 de abril de 1974, data da queda da ditadura portuguesa, estava previsto um evento na Escola Secundária Gago Coutinho de Alverca. A diretora da escola enviou um pedido de autorização à Direcção Geral de Espectáculos para a realização de um evento de teatro e de variedades9. Do programa foram proibidas três letras de canções, entre elas, Venham mais cinco, de José Afonso: “[...] A bucha é dura/ mais dura é a razão/ que a sustém/ só nesta rusga/ não há lugar/ para os filhos da mãe”10. Se a canção foi uma arma para a oposição, ela também foi utilizada até fins da ditadura como agente formadora de opinião pelo governo e por simpatizantes deste ideário. A instituição fascista

8 Idem, 10 fev. 1973. 9 IAN/ TT, SNI/ Censura, IGAC, proc. 27, 15 abr. 1974. 10 Esta canção foi gravada em 1973, mas parece tratar de Salazar que havia morrido três anos antes. Afinal, depois de cair da cadeira, em agosto de 1968, foi exonerado pelo Presidente da República de seu cargo de Presidente do Conselho. Acredita-se que ele tenha vivido um período senil e que no início sequer sabia que não era mais o Presidente do Conselho (como ficou claro numa entrevista a um jornal francês, cerca de um ano depois de seu afastamento). É a esta fase que parece se referir a irônica letra da canção: “[...] Se o velho estica/ eu fico por cá/ se tem má pinta/ dá-lhe um apito/ e põe-no a andar/ de espada à cinta/ já crê que é rei/ d’aquém, e d’além-Mar [...]”. In: AFONSO. José. Venham mais cinco. Orfeu, 1973, nº. STAT-017.

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Mocidade Portuguesa possuía inúmeros corais, e para disseminar seu “canto colectivo”, publicava cadernos com letras e partituras dos hinos e canções a serem executadas por todo o país. Por exemplo, em 1969, publicou Cancioneiro para a Mocidade: canto colectivo, com músicas já conhecidas desta “mocidade”, em que temas caros à ditadura eram trabalhados: a guerra colonial, a nação unida, o passado heróico e o folclore. Na marcha Aqui é Portugal, letra de Mário Ribeiro e Manuel Tino, temos a confluência de um dos dois temas mais recorrentes, ou seja, do heroísmo e da unidade nacional: “A nossa história bela/ Está cheia de tais feitos [...] Que Portugal, uno e valente/ Viverá eternamente!” (CANCIONEIRO, 1969, p.19). Em Angola é Portugal, também de Mário Ribeiro, a guerra colonial é justificada: “Com as carnes retalhadas/ Pela acção do banditismo/ Angola dá grandes mostras/ Do mais são portuguesismo!”. Portanto, os militares portugueses eram heróis, ao passo que os rebeldes independentistas eram “bandidos”. Tal imagem é reiterada e de forma mais explícita ainda: “O inimigo é perverso/ Persistente e desleal/ E acima de tudo quer/ Dar cabo de Portugal”. Além destas máximas, o autor enfatiza na partitura o ritmo exigido: “Marcial, sempre deciso [sic!] e bem ritmado” (CANCIONEIRO, 1969, p. 23). Como diria o escritor português José Cardoso Pires em seu livro Dinossauro Excelentíssimo: “A Rádio e a Televisão transmitiam-na entre marchas invencíveis e compassos de procissão, um-dois, esquerda-direita, Laus Deo; o altifalante do gabinete despejava-a continuamente” (PIRES, 1974, p. 65). Em relação à documentação da Censura portuguesa, deve-se atentar à natureza das fontes na medida em que são expressão da visão oficial produzida pelo Estado e, como tais, devem ser balizadas a partir dos debates políticos e culturais atinentes ao período. Logo, a observância de grupos sociais concretos, como os músicos e as expressões políticas que estes carregam, é fundamental para o entendimento do embate entre músico e Estado.

A Censura, em seu oficio quase inquisitorial, interditava textos de cunho político, erótico ou qualquer outro tema que questionasse a ideologia do Estado Novo português. Contudo, nem sempre era o texto o objeto do veto, por vezes, bastava o nome do autor (a) para que viesse a interdição da obra, chegavam a proibir até mesmo o nome de tradutores de obras estrangeiras quando estes não fossem ligados ao governo. O fato é que após a queda da ditadura, os

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pesquisadores entraram em contato com inúmeros documentos que apontaram a incidência e o alcance da atividade censória em Portugal. Por exemplo, somente em janeiro de 1974, segundo relatório da Comissão de Censura à Imprensa, foram suspensos de circulação 138 títulos e, destes, 71 foram reprovados e proibidos de circular (RODRIGUES, s/d, p. 78). Na literatura não era muito diferente, o que levou a uma progressiva autocensura e uso freqüente de metáforas, a exemplo das letras das canções: A censura oficial ou oficiosa impunha ao escritor uma permanente e insidiosa auto-censura, apenas ultrapassada pelo engenho próprio de escrever entrelinhas ou de encontrar metáforas apropriadas. Assim, palavras como aurora ou amanhecer passaram a significar socialismo, primavera/ revolução, camarada/ prisioneiro, vampiro/ polícia, papoila/ vitória popular. (RODRIGUES, s/d, p. 80)

Um dos mais censurados no campo da música e da poesia foi o compositor José Afonso11. Mesmo com o acidente sofrido por Salazar (ao cair, literalmente, da cadeira - fato que o afastou definitivamente do poder em 1968 e que o levou à morte em 1970), seu sucessor, Marcelo Caetano, a exemplo do primeiro, professor universitário da cadeira de Direito, manteve a similar política repressiva e econômica de seu antecessor. Assim, continuaram a todo vapor as atividades da Censura, como se vê num parecer censório de março de 1971, sobre uma coletânea de poesias (algumas delas transformadas, antes ou mesmo depois, em canções) de José Afonso, intitulada Cantar de Novo: Trata-se de uma colectânea de poesias do Dr. José Afonso, algumas das quais musicadas e não raro transmitidas por Rádio Argel, no seu programa contra o nosso País. Exemplos: A morte saiu à rua; Olhai o nardo e a cicuta; Cantar alentejano – poema dedicado a Catarina Eufémia, a mulher que um soldado da GNR matou e é considerada heroína pelo Partido Comunista Português; Coro dos caídos; Vampiros – este poema está musicado e é constantemente transmitido por Rádio Argel [...] Conclusão: Se estes poemas fossem retirados do livro não haveria mal pois todo o resto é inofensivo e artisticamente válido. Julgo ser um livro para proibir (AZEVEDO, 1999, p. 573-4).

11 Aliás, há de se referir que este músico foi um dos maiores símbolos da resistência à ditadura. Foi o autor de Grândola, Vila Morena (a primeira foi E depois do adeus, de José Calvário e José Niza, interpretada por Paulo de Carvalho), para a saída dos capitães dos quartéis para a chamada “Revolução dos Cravos”, que pôs fim à ditadura. Em 2007, completaram-se vinte anos da morte de Zeca Afonso, como também era chamado.

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Com este parecer o livro foi proibido e só poderia ser relançado após a retirada dos poemas citados pelo censor. Apesar da Censura portuguesa ter atuado ao longo dos 48 anos de ditadura, não foi um controle homogêneo, afinal as circunstâncias também determinaram adaptações e a criação de leis que fizessem frente à Imprensa e às manifestações artísticas. Na chamada “primavera marcelista”, ou seja, durante o exercício do governo do primeiro Ministro Marcelo Caetano, entre 1969 e 1974, houve uma confusão também entre os censores para saber o que havia de fato mudado. Para a sociedade também não ficavam claros os limites desta “censura” agora chamada de “exame prévio”. Por exemplo, no ofício circular nº 12427 emitido pela DirecçãoGeral de Segurança12 , há uma lista de onze livros proibidos de circular no país, entre eles Pedagogia do Oprimido, do educador brasileiro Paulo Freire. No mesmo documento constavam ainda revistas dos EUA, Alemanha, Inglaterra e Itália também proibidas de circularem em Portugal. No mesmo dia, uma outra circular, de nº 1242613, também emitida pela DGS, elencava 17 livros “autorizados a circular no país”. Entre eles, A Internacional, de Marx e Engels; o irônico e clássico livro Dinossauro Excelentíssimo, de José Cardoso Pires, e uma coletânea de poesias de José Afonso, organizada por Viale Moutinho. Apesar deste controle, até o início de 1972, não havia a censura prévia dos discos em Portugal, o que fazia com que os discos considerados subversivos fossem freqüentemente apreendidos pela polícia, bem como os editores das gravadoras pressionados a não investir em trabalhos que atentassem à moral e à política divulgadas pela ditadura portuguesa. Tal pressão levou a uma autocensura dos compositores e também das gravadoras, estas últimas movidas ainda pelo risco financeiro de terem seus discos apreendidos e seu investimento perdido. O governo português, frente à forte inserção social dos “cantautores” portugueses, potencializou seus serviços de censura junto à produção discográfica. Convém ressaltar que, se para a sociedade civil o governo utilizava o eufemismo de “exame prévio”, nos documentos internos e/ou confidenciais deixava muito claro sua atividade, como se vê na Circular 26 - DGI, de 19 de fevereiro de 1972, enviada à Rádio Triunfo e Discos Alvorada:

12 Documento datado de 30 de maio de 1973, nº. de entrada 139. Cópia existente no Arquivo do Centro de Documentação 25 de Abril, em Coimbra. 13 Idem.

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200 Em 28 de Janeiro de 1971, enviei a V. Exa. o ofício confidencial n. 36DGI/G, em que dava conta de que “resulta expressamente das leis em que deve ser vedada a edição ou radiodifusão de canções ou outras formas musicais que, pelo seu conteúdo e objectivos, ou em face das circunstâncias em que foram compostas, possam pôr em causa interesses legalmente protegidos” [...].14

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Por fim, neste mesmo documento, o Director-Geral da Informação reproduz as proibições em relação às canções: a) as que contenham, ainda que veladamente, ultrajes às instituições ou injúria, difamação ou ameaça contra as autoridades ou os seus agentes ou contra os poderes constituídos, e bem assim as que se proponham ridicularizá-los; b) as que aconselhem, instiguem ou provoquem os ouvintes a faltar ao cumprimento dos deveres militares ou ao cometimento de actos atentatórios da integridade e independência da Pátria; c) as que contenham palavras ou idéias ofensivas da dignidade e do decoro nacional; d) as que contenham expressões obscenas ou ofensivas das leis, da moral e dos bons costumes; e) as que incitem à depravação e ao vício ou exaltem formas de conduta ou comportamento imorais ou anti-sociais; f) as que, por qualquer modo, incitem ao crime ou exaltem actividades criminosas e concitem os cidadãos a impedirem a acção da justiça na investigação de crimes ou na perseguição de criminosos; g) as que, contendo alusões a factos da vida nacional, os deturpem no seu significado, por forma a estabelecer confusão ou desorientar os espíritos; h) as que se propuserem divulgar factos ou acontecimentos manifestamente falsos, com ou sem comentários; i) as que em geral, não pudessem ser apresentadas em espetáculos públicos sem risco do decoro, da moral, do respeito devido às instituições autoridades e ao bom nome e prestígio do País. 15

14 IAN/TT, SNI/ Censura, cx. 4610. 15 IAN/TT, SNI/ Censura, cx. 4610.

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Tais prerrogativas legais guardam profundas semelhanças com seus similares brasileiros, abarcando um universo tão amplo que possibilitavam um leque ainda maior de casos passíveis de interdição. Contudo, nos processos portugueses, os censores não citavam a legislação que embasava o veto, como o que foi feito no Brasil para dar uma imagem de cumprimento da lei. Ao censor cabia uma tarefa subjetiva, apesar dos preceitos legais a que estava submetido, afinal bastava elaborar a sua interpretação da mensagem, seja ela, na visão do censor, explícita ou subliminar. Vale ressaltar que, caso aprovasse uma letra muito ofensiva ao poder e que esta viesse a se configurar num “sucesso”, o censor corria o risco de até mesmo ser alvo de um processo interno ou mesmo de demissão. Logo, temos uma legislação censória a ser observada e, concomitantemente, uma certa independência interpretativa, por mais que pudessem ser questionadas em grau de recurso pelos interessados. Apesar do controle da cultura, no campo musical as vozes opostas ao poder ditatorial foram ouvidas explícita e implicitamente nos discursos sonoros e nos movimentos musicais. Em meio à violenta Guerra Colonial iniciada em 1961, muitos dos militares portugueses encontravam nas canções de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Luís Cília, entre outros músicos, um exercício de lembrança de seu país e familiares, bem como um meio de politização e de elaboração de uma crescente crítica à guerra e à exploração dos africanos. Todavia, nem todas as críticas à ditadura foram vetadas, mesmo as que possuíam um discurso mais direto. Concomitante, as possibilidades do discurso presente nas letras, as entonações, os arranjos, a tessitura musical da canção também podiam remeter a uma leitura sombria da realidade. Mesmo as letras mais cifradas podiam produzir efeitos em diferentes públicos. As canções de cunho engajado não fizeram as revoluções, mas contribuíram para este intento. Além disso, não foi o discurso sonoro que engessou as lutas políticas ao sublimar ou ao poetizar as ações práticas. Enfim, apesar dos limites da mensuração de seus efeitos, a canção, engajada ou não, teve um papel importante na formação das pessoas que viveram aqueles conturbados anos.

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202 REFERÊNCIAS ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro, não. Música popular cafona e ditadura militar. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 2002. AZEVEDO, Cândido de. A censura de Salazar e Marcelo Caetano - imprensa, teatro, cinema, televisão, radiodifusão, livro. Lisboa: Caminho, 1999.

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CANCIONEIRO para mocidade: canto colectivo. Lisboa: Serviço de Publicações da Mocidade Portuguesa, 1969. CASTRIM, Mário. Televisão e censura. Porto: Campo das Letras, 1996. (Campo das Media; 1). FIUZA, Alexandre Felipe. Entre um samba e um fado: a censura e a repressão aos músicos no Brasil e em Portugal nas décadas de 1960 e 1970. Assis, SP: UNESP, 2006. (Tese de Doutorado). PIRES, José Cardoso. Dinossauro excelentíssimo. 6 ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1974. PRÍNCIPE, César. Os segredos da Censura. Lisboa: Editorial Caminho, 1979. RODRIGUES, Graça Almeida. Breve história da censura literáPortugal. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, ria em Portugal s./d.

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MULTICULTURALISMO E DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS: UMA QUESTÃO EM DEBATE

Neste artigo, que se constitui como apresentação de discussões suscitadas na pesquisa que vem sendo desenvolvida sobre o multiculturalismo e as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental – DCNs – no programa de mestrado em Educação da Unioeste – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, pretende-se discutir a questão acerca da cultura e do multiculturalismo. Estes conceitos fazem parte do norte para a educação apresentados nas DCNs. A defesa da cultura e do respeito à diversidade cultural são incisivas no documento, desta forma, pretendo analisar estes conceitos à luz do método materialista histórico dialético, buscando compreender e apontar as divergências que existem na defesa da cultura nas Diretrizes e a compreensão de cultura na perspectiva materialista. Na pesquisa, vem se buscando compreender a presença do multiculturalismo nas Diretrizes e a sua difusão nas propostas curriculares elaboradas no contexto deste documento, que propõe a cultura como eixo central dos currículos, uma vez que reiteram a abertura da produção curricular de forma a atender as peculiaridades culturais e regionais do país. Para tanto, discutir e compreender a cultura nesta sociedade torna-se central, pois a partir desta definição do que se entende, nesta pesquisa, por cultura, se assentará o debate. Outra questão igualmente importante e pertinente é o papel do Governo, como expressão do Estado, na elaboração, aprovação e execução das políticas sociais, entre elas as políticas educacionais, porém, devido a espaço e tempo, não se tratará de aprofundar esta questão neste trabalho. Porém, aponta-se que se entende que o Estado, na sociedade capitalista, atende prioritariamente aos interesses da classe economicamente dominante, isso se expressa, entre outras práticas, na proposição de leis. Este fato denota que as Diretrizes Curriculares Nacionais não são produzidas desinteressadamente, mas se articulam a uma organização do Estado liberal.

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Vanice Schossler Sbardelotto


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204 Ao analisar as Diretrizes Curriculares Nacionais fica explícito – como não poderia deixar de ser um documento propositivo, norteador – a concepção de homem, projeto social, entendimento sobre cultura, valores sociais e éticos que se pretendem difundir nos currículos escolares. Existindo um apelo à educação como sendo a grande integradora da sociedade, promotora de paz, felicidade e equidade social. É sobre estes aspectos que se propõem as discussões neste trabalho. A discussão a respeito das funções que vêm sendo atribuídas à escola foi temática de um artigo de Newton Duarte, apresentado em uma mesa redonda do X Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 1999. O autor faz uma análise sobre o papel que vem sendo atribuído à escola nos últimos anos, como sendo, esta e a educação, o meio de enfrentar e superar a “crise dos valores” morais e ético. Neste artigo se apresenta que tal crise está vinculada a forma de organização da sociedade e, desta forma, somente pela reorganização desta se poderiam resolver tais problemas. O apelo à educação faz parte do jogo ideológico presente nesta sociedade, que busca camuflar, ocultar sua natureza avessa à harmonia e à igualdade material. O autor problematiza da seguinte maneira: Ressalto já de início que estou partindo de um pressuposto: o de que o capitalismo passa pela mais profunda e grave de todas as suas crises. [...] Esse pressuposto leva-me a concordar com o que escreveu Saviani (1991, p. 103 e 1996, p. 181) acerca da escolha que essa crise exige de todos nós: a escolha entre o socialismo ou a barbárie, isto é, a escolha entre lutar de forma coletiva e organizada pelo socialismo ou ficar, a cada ano que passa, em estado de cada vez maior perplexidade perante o crescimento da barbárie. Não seria justamente esse crescimento que estaria produzindo o crescente apelo por um pretenso “resgate” de determinados valores morais? Não seria esse crescimento da barbárie que estaria tornando temas como educação e ética tão recorrentes na retórica dos governantes, dos empresários e dos meios de comunicação? (DUARTE, 2000a, p. 177).

Pretende-se articular esta discussão de Duarte à defesa do multiculturalismo presente nas DCNs, que será abordado posteriormente. Nas DCNs, o resgate e respeito à diferença entre as culturas está posto de forma desarticulada do contexto social em que é gerada, como se a desigualdade entre as pessoas tivesse outra causa que não a desigualdade material oriunda da sociedade capitalista (WOOD, 2003). A defesa de que as diferenças culturais, étnicas e

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Aí está o grande erro das esquerdas: acham que a discriminação racial é secundária o que a determinante é a discriminação social. Na verdade, as duas são extremamente arrasadoras. Todo branco pobre sofre discriminação social. No entanto, o negro pobre, além de sofrer discriminação social, sofre também a DISCRIMINAÇÃO RACIAL. Se você der mais ênfase à discriminação social, corre o perigo de reproduzir o sistema, negando à maioria do povo seu espaço, pois, segundo a UNESCO, 70% do povo brasileiro é afrodescendente (SANTOS, 2000, p. 70, grifos no original).

Tais argumentações acerca da discriminação e das diferenças partem da suas existências na sociedade, não buscando, assim, as causas desta problemática, que tanto para Duarte (2004) como Wood (2003) estão na sociedade capitalista. Como cita a última autora, “o capital luta por relações diretas e não mediadas por indivíduos, homens ou mulheres, que do ponto de vista do capital assumem a identidade abstrata do trabalho” [grifo do autor] (p. 239). Ou seja, a exploração do trabalho para a obtenção da mais-valia e para a acumulação do capital (MARX, ENGELS, 1999) não vê cor, raça, etnia; interessa somente “sugar as energias” dos indivíduos no processo de produção e é na base material que se configuram as diferenças entre as classes, entre as pessoas. Desta forma, retornando ao primeiro fragmento exposto, é essa sociedade capitalista que é oposta ao desenvolvimento moral dos indivíduos, pois em uma sociedade onde todos competem com todos, sejam brancos, negros, mulheres, minorias étnicas, etc, o que está no centro desta sociedade é a exploração do trabalho do outro. Logo, a discussão sobre a cultura ou a multiplicidade de culturas não pode ser empreendida fora da compreensão de luta de classe. Nesta perspectiva, pretende-se analisar a cultura buscando categorizá-la la nos clássicos

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religiosas segregam grupos, coloca em segundo plano a diferença material produzida nesta sociedade e colabora para a associação momentânea dos indivíduos em torno de questões que parecem ser “politicamente corretas” (DUARTE, 2004), mas que articulam magistralmente a desagregação da classe trabalhadora. Exemplos destas defesas encontram-se facilmente nos debates sobre a função da escola e da educação. Tanto que para o mesmo evento em que foi publicado o referido artigo de Newton Duarte, encontra-se outro, de Frei David Raimundo Santos, integrante do EDUCAFRO – Educação e Cidadania de Afrodescendentes Carentes, São Paulo. Segundo Santos,


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206 do materialismo histórico dialético Karl Marx, Friedrich Engels, Alexis Leontiev e no contemporâneo Newton Duarte. Como assinalado anteriormente, depreende-se das Diretrizes Curriculares Nacionais, um projeto multicultural de Educação. Esta afirmação pode ser construída analisando o texto das diretrizes. No texto introdutório às diretrizes, é exposto que um marco fundamental destas é o seu caráter flexível, pois permitem o ajuste dos currículos às necessidades, realidades e culturas regionais. O que em si não caracteriza nenhum problema, porém esta flexibilidade, da forma como é exposta, apresenta a cisão do conhecimento científico da realidade em que ele é produzido, tratando conhecimento científico e realidade cultural como coisas distintas. Isso difere do que é exposto por Leontiev (1978) que afirma que a cultura é o produto da ação dos homens sobre a natureza na produção da sua vida e que desta ação resulta o conhecimento sobre a própria natureza. Este conceito de conhecimento também é abordado por Mao Tsé Tung (2001), quando defende que todo conhecimento é uma elaboração teórica sobre a prática. Desta forma, conhecimento científico e realidade estão no mesmo terreno, não sendo opostos nem cindidos. O caráter multicultural das diretrizes é evidenciado em todo o seu texto. Na introdução, é assinalada a defesa do pluralismo de idéias como sendo uma das maneiras a se atingir o objetivo da educação que, conforme as Diretrizes, é formar o cidadão pleno, “tendo como meta o ideal de uma crescente igualdade de direitos entre os cidadãos, baseado nos princípios democráticos” (BRASIL, 1998, p. 03). O texto vai explicitando, com argumentos de difícil refutação, o seu objetivo para a educação: O exercício do direito à Educação Fundamental supõe, também todo exposto no artigo 3° da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, na qual os princípios de igualdade, da liberdade, do reconhecimento do pluralismo de idéias e concepção pedagógicas, da convivência entre instituições públicas e privadas estão consagradas (BRASIL, 1998, p. 01).

Prever a consagração e, portanto, o direito ao pluralismo de concepções pedagógicas evidencia que toda e qualquer corrente será aceita, o respeito a estas diferenças, sob o tom da democracia, deixa o caminho livre para práticas pedagógicas de qualquer natureza. Duarte (2004), apoiado em Marx, comprova que tal defesa é a negação de que existam conhecimentos mais desenvolvidos que outros, “conhecimentos universais a serem transmitidos na escola” (p. 229).

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Desta forma, destaca o autor que “a escola seria então nada mais do que um espaço, entre muitos outros, de troca e de compartilhamento de crenças culturalmente estabelecidos” (p.227). A ausência de um projeto social único, ou a explicitação da fragmentação da educação proposta pelas DCNs, dá-se na medida que cada escola tem a “liberdade” de realizar seu próprio plano curricular, levando em conta a necessidade da sua comunidade local. Teríamos ou teremos, desta forma, no país, inúmeros projetos que podem ser até transformadores das suas micro-realidades, porém, o “fato de uma situação ter suas particularidades não a isola do todo social” (DUARTE, 2000a) e o “todo” é proposto nas DCNs através dos conteúdos mínimos, que, como exposto anteriormente, cindiu o conhecimento científico da vida cidadã, impossibilitando assim a compreensão da totalidade social, ao menos no plano legal. De acordo com Duarte (2000b), existe um movimento empreendido pelos pósmodernos de desconsideração da totalidade, como se ela não fosse apreensível, ressaltando que “ a unidade, ainda que conserve as características essenciais da totalidade, (...) ela é objetivamente parte de um todo e o processo de conhecimento deve caminhar da análise abstrata dessa unidade para a síntese concreta do todo no pensamento” (DUARTE, 2000b, p. 89). Os princípios a serem desenvolvidos pela educação escolar, de acordo com as DCNs, privilegiam comportamentos éticos, de respeito aos direitos e deveres, ao bem comum e à ordem democrática, além do respeito à diversidade de manifestações artísticas e culturais. Estes princípios, expostos na primeira das sete diretrizes, se seguem de mais três outras questões, que são tratadas com maior relevância pelo texto, antes de chegar à questão do conhecimento científico, este que para Duarte (2000b, 2004) deve ser o centro da escola, de forma que esta não se guie pelo cotidiano, pelo espontaneísmo, mas deve aproximar os alunos dos conhecimentos científicos universais, diminuindo a distância entre os indivíduos e a riqueza intelectual do gênero humano. Desta forma, segundo Duarte (2000b), seria possível a escola contribuir na luta contra a alienação. Esta quarta diretriz traz textualmente a cisão entre os conhecimentos científicos e os conhecimentos da vida cidadã; esta demarcação de conhecimentos como sendo diferentes, de campos diferentes, explicita uma concepção de educação: IV – Em todas as escolas, deverá ser garantida a igualdade de acesso dos alunos a uma Base Nacional Comum, de maneira a legitimar a unidade

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e a qualidade da ação pedagógica na diversidade nacional; a Base Nacional Comum e sua Parte Diversificada deverão integrar-se em torno do paradigma curricular, que visa estabelecer a relação entre a Educação Fundamental com: a) a Vida Cidadã, através da articulação entre vários dos seus aspectos como: 1. a Saúde; 2. a Sexualidade; 3. a Vida Familiar e Social; 4. o Meio Ambiente; 5. o Trabalho; 6. a Ciência e a Tecnologia; 7. a Cultura; 8. as Linguagens; com, b) as Áreas do Conhecimento de: 1. Língua Portuguesa; 2. Língua Materna (para populações indígenas e migrantes) 3. Matemática; 4. Ciência; 5. Geografia; 6. História; 7. Língua Estrangeira; 8. Educação Artística; 9. Educação Física; 10. Educação Religiosa (na forma do art. 33 da LDB) (BRASIL, 1998, p. 7)

Pode-se perceber que os conhecimentos a serem trabalhados na escola estão de acordo com os princípios estabelecidos na primeira diretriz. Os conteúdos privilegiam primeiramente conteúdos atitudinais, que exprimem que a escola deve ocupar-se de “moldar” o cidadão responsável, cooperativo, preocupado com as questões culturais, ambientais, etc, para, depois, ensinar o que é conhecimento científico. Para Vigostski (2005), os conceitos cotidianos elevam-se à categoria de conceitos científicos, após passarem pelo processo de reelaboração em pensamento; desta forma, não existiriam dois “tipos” diferentes de conteúdos a serem ensinados, o foco de ensino deveria estar nos conceitos científicos. Duarte (2000b), articulando os conceitos de Vigostki, afirma que “os conceitos científicos, ao serem ensinados à criança através da educação escolar, superam por incorporação os conceitos cotidianos, ao mesmo tempo que a aprendizagem daqueles ocorre sobre a formação destes” (2000b, p. 86).

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Nesta diretriz é possível depreender que conhecimentos científicos e conhecimentos cotidianos têm, respectivamente, o mesmo grau de importância, desta forma, um não é superior ao outro e a escola, portanto, não pode privilegiar um em detrimento do outro. Este relativismo em relação ao conhecimento, Duarte (2004) associa a compreensão pós-moderna de conhecimento, em que todos seriam válidos e não existiriam conhecimentos mais desenvolvidos que outros. Para Marx e Engels (1978) os conhecimentos resultam do processo de interação do homem com a natureza. É neste processo de produção da vida material que o homem vai formulando teorias, vai criando representações sobre este mundo. Os autores afirmam que “a produção de idéias, de representações, da consciência, está de início, diretamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real “ (p. 36). Desta forma, os conhecimentos da “vida cidadã”, contidos nas Diretrizes Curriculares Nacionais, sobre a saúde, sexualidade, vida familiar e social, etc, foram produzidos ao passo que o homem foi interagindo com a natureza e com os outros homens, como resposta às suas necessidades. Esta separação que ocorre com os conhecimentos tem influência direta do relatório da UNESCO, formulado por uma comissão presidida por Jacques Delors. Neste relatório aparece que a educação deve resolver um problema causado pelo desenvolvimento da ciência. Pois para esta comissão, o distanciamento entre as nações e as diferenças entre as pessoas é resultado do desenvolvimento tecnológico do século XX. Neste quadro, a educação deve resolver este problema fornecendo pessoas qualificadas para o mercado e ainda produzir indivíduos harmoniosos, responsáveis, que respeitem a natureza, a diversidade de tradições e culturas. (DUARTE, 2000a) Para Duarte (2000a), existe uma inversão ideológica no relatório desta comissão: Para a comissão não são as relações capitalistas de produção que limitam os objetivos da ciência e da educação, mas sim estas que limitam o desenvolvimento social ao progresso econômico. Basta, portanto, que os educadores, cientistas e demais membros da sociedade abandonem suas antigas concepções e abracem uma concepção mais ampla de desenvolvimento e dos objetivos da Educação (p. 186).

A elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais seguiu esta concepção. Tanto que o ensino de diferentes culturas, o destaque e resgate das diferenças culturais, para este documento, pode resolver

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210 o problema das minorias e acabar com a discriminação, pois estaria criando uma “consciência cidadã” de respeito ao outro, invertendo a lógica da produção da consciência. Para Marx e Engels (1999) “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (p. 37). Desta forma se explicita o caráter conservador e a lógica multicultural desta política educacional materializada nas Diretrizes Curriculares Nacionais. Conforme explicitado no início do texto, após esta breve análise das DCNs, parte-se para abordar a cultura e o multiculturalismo. O primeiro na concepção de Leontiev (1978) e o segundo a partir do texto “A rendição pós-moderna à individualidade alienada e a perspectiva marxista da individualidade livre e universal” (DUARTE, 2004), por entender que ambos os autores trazem elementos para compreensão dos referidos conceitos, indicando, desta forma, uma possibilidade de compreensão das políticas neoliberais. Para Leonitev (1978), o homem é um ser da natureza e tudo o que tem de humano é decorrente da sua vida em sociedade, a partir da apropriação de todos os objetos da cultura humana. Desta forma, seu processo de hominização1 segue o desenvolvimento social e não biológico, a partir da organização social do trabalho para a satisfação das suas necessidade e do desenvolvimento da linguagem pela necessidade de comunicação. As mudanças físicas pelas quais passou o homem, segundo o autor, são decorrentes da necessidade de produção: o desenvolvimento dos sentidos, a utilização das mãos, etc. No momento em que as condições físicas estavam dadas, estavam dadas também as condições para o desenvolvimento cultural ilimitado do homem, “a passagem do homem a uma vida em que a sua cultura é cada vez mais elevada não exige mudanças biológicas hereditárias” (LEONTIEV, 1978, p. 263 264). No processo de produção material, o homem cria objetos que passam a conter o significado da sua criação e utilização. Leontiev (1978) chama esse processo de objetivação do trabalho, de forma que os objetos carregam a cultura humana. As novas gerações se apropriam da cultura universal a partir do contato com estes objetos mediados por sujeitos mais desenvolvidos, que já os compreendam, sejam estes objetos, ferramentas de trabalho ou a linguagem, por exemplo. 1 Para Leontiev (1978) o processo de hominização é o processo pelo qual passou a espécie “homo sapiens” para se distinguir dos animais.

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Ao nascer, o indivíduo está inserido em um meio cultural e absorve as características deste meio, com condições de apropriar-se dos objetos culturais desenvolvidos e, a partir desta apropriação, dar continuidade ao desenvolvimento humano. Este meio cultural do qual fala Leonitev (1978) não se restringe à cultura imediatamente local, mas à universal, que inclui o modo de produção, divisão das classes sociais, etc. A apropriação dos objetos da cultura universal sofre inevitavelmente a influência deste meio social. Desta forma, as diferentes culturas são provenientes da apropriação desigual da cultura universal, devido à desigualdade econômica do modo de produção em que se encontram os indivíduos. Para Leontiev (1978), a cultura é a objetivação da ação dos homens, é o saldo da sua transformação histórica, constituindo-se de fenômenos e objetos criados pela humanidade. Os objetos carregam o resultado da ação humana, carregam a cultura humana. As novas gerações precisam entrar em contato com estes objetos através de uma ação mediada. Para se apropriar destes resultados, para fazer deles as suas aptidões, <<os órgãos da sua individualidade>>, a criança, o ser humano, deve entrar em relação com os fenômenos do mundo circundante através doutros homens, isto é, num processo de comunicação com eles (LEONTIEV, 1978, p. 272 – grifos no original).

A educação é o processo pelo qual se transmite às novas gerações a cultura do gênero humano. Este processo deve ser desenvolvido por quem tenha se apropriado desta cultura. O processo educacional reflete o estágio de desenvolvimento das forças produtivas, logo, quanto mais estas se complexificam, maior deve ser a complexificação também do processo educacional, para que não ocorra um distanciamento entre os indivíduos e o produto do trabalho, o que Marx e Engels (1999) chamam de alienação. A apropriação deste desenvolvimento cultural está ligada ao desenvolvimento da sociedade, à divisão do trabalho e à exploração de uma classe pela outra, desta forma, A concentração das riquezas materiais nas mãos de uma classe dominante é acompanhada da uma concentração da cultura intelectual nas mesmas mãos. Se bem que as suas criações pareçam existir para todos, só uma ínfima minoria tem o vagar e as possibilidades materiais de receber a formação requerida, de enriquecer sistematicamente os seus conhecimentos (...) (LEONTIEV, 1978, p. 175).

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O que ocorre, portanto, é a apropriação privada, por parte da classe dominante, da cultura universal humana; não se trata de ter uma cultura da burguesia e outra do proletariado. Esta apropriação privada da cultura produz uma estratificação desta mesma cultura, pois a minoria que detém os meios de produção detém também os meios de difusão da cultura intelectual (LEONTIEV, 1978). Em relação à determinação econômica da difusão da cultura, Leontiev (1978) continua: O processo de alienação econômica, produto do desenvolvimento da divisão social do trabalho e das relações de propriedade privada, não tem, portanto por única conseqüência afastar as massas da cultura intelectual, mas também dividir estas em elementos de duas categorias, umas progressistas, democráticas, servindo o desenvolvimento da humanidade, as outras que levantam obstáculos a este progresso, se penetram nas massas, e que formam o conteúdo da cultura declinante das classes reacionárias da sociedade (LEONTIEV, 1978, 276)

Segundo o autor, estas diferenças na apropriação da cultura geradas pela desigualdade econômica são utilizadas, muitas vezes, pela classe dominante, para querer classificar raças como inferiores e superiores, da mesma maneira como se divulga atualmente haver a necessidade de resgatar as diferentes culturas, não se postulando que estas decorrem das desigualdades econômicas. Afirmar que existe uma única cultura universal do gênero humano, resultante da interação dos homens com a natureza e com os outros homens na produção de meios para a satisfação das necessidades, parece opor-se à classe trabalhadora e discriminar as variações culturais, isso porque tão forte tem sido o jogo ideológico desta sociedade. Este jogo ideológico, Duarte (2004) credita à concepção pósmoderna que se tem veiculado atualmente. Para este autor, os pósmodernos têm atitude cética em relação ao desenvolvimento da sociedade, pois compreendem-na num profundo processo de fragmentação e dissolução dos objetivos totalizantes, universais. Negam a possibilidade de conhecer a realidade cientificamente e por isso postulam não haver conhecimentos mais desenvolvidos em relação a outros, e negam a possibilidade de transmitir conhecimentos. Com estas explicitações do autor, torna-se possível compreender que base teórica tem fundamentado as Diretrizes Curriculares Nacionais, Atacar a concepção moderna de sujeito é, portanto, atacar a concepção moderna de ser humano (...). A idéia de um desenvolvimento universal da humanidade é acusada de ser eurocêntrica, colonialista, centrada na

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Esta passagem tem valor didático imenso, pois tem condições de auxiliar o esclarecimento da ligação entre esta concepção de educação multicultural e o processo de alienação dos homens da cultural universal humana, pois “nesta perspectiva, o conhecimento é apenas e tão somente aquilo que é ‘tido como verdadeiro’ num específico contexto cultural” (DUARTE, 2004, p. 227). Estas considerações acerca da cultura e da concepção de multiculturalismo são fundamentais para a continuidade da pesquisa da qual trata o presente texto, pois servem de base, ou formulam a base para posteriores análises acerca da política educacional implementada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais. Identificar o multiculturalismo à perspectiva pós-moderna explicita toda lógica liberal que tem fundamentado as políticas do Estado na sociedade capitalista. A temática do presente texto, bem como outras questões referentes à política social e Estado, serão retomadas e aprofundadas em estudos futuros. REFERÊNCIAS BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais. Conselho Federal de Educação, 29 de janeiro 1998, Brasília. DELLORS, J. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre educação para o século XXI. São Paulo: Cortez/Brasília: MEC/UNESCO. 1998. DUARTE, N. Educação e moral na sociedade capitalista em crise. In: Ensinar e Aprender: sujeitos, saberes e pesquisa/ Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (ENDIPE) – Rio de Janeiro: DP&A, 2000a. ---. A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco: a dialética em Vigotski e em Marx e a questão do saber objetivo na educação escolar. Educação e sociedade, SP, 2000b.

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cultura e na tecnologia ocidentais. Tal noção de desenvolvimento ou de progresso humano seria, segundo os pós-modernos, uma das maiores, senão a maior responsável pela destruição de outras culturas, pelo desequilíbrio ecológico e pelo racismo. Isso tem repercussões fortes no campo da educação, bastando citar como exemplo a idéia de educação “pós-colonialista” e “multicultural” que se oporia ao princípio de que existam conhecimentos universais a serem transmitidos na escola (DUARTE, 2004, p. 226 – 227)


214 ---. “A rendição pós-moderna à individualidade alienada e a perspectiva marxista da individualidade livre e universal”. In: DUARTE, Newton. (org) Crítica ao Fetichismo da Individualidade. Campinas, SP: Autores Associados, 2004. MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã (Feuerbach). 11ª Ed. Tradução de José Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: HUCITEC, 1999.

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SANTOS, D. R. Multiculturalismo e processos educacionais. In: Cultura, linguagem e subjetividade no ensinar e aprender. CANDAU, Vera Maria (org) – Rio de Janeiro: DP&A, 2000. VIGOTSKY, L. S. A formação Social da Mente. Ed. Martins Fontes, SP, 2005. LEONTIEV. A. N. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizontes, 1978. TUNG, M. T. Sobre a prática e sobre a contradição. São Paulo, Ed. Expressão Popular, 2001. WOOD, E. M. Capitalismo e emancipação humana: raça, gênero e democracia. In. Democracia contra Capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2003.

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SOBRE OS AUTORES

Alfredo Roberto de Carvalho Graduado em Pedagogia, Especialista em Fundamentos da Educação e Mestrando em Educação junto ao Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Educação da UNIOESTE. Professor Pedagogo da rede pública do Governo do Estado do Paraná. Cezar Ricardo de Freitas Graduado em Pedagogia pela UNIOESTE, Especialista em Ensino de Geografia e História pela União das Escolas Superiores do Vale do Ivaí, Especialista em História da Educação Brasileira pela UNIOESTE e Mestrando em Educação junto ao Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Educação da UNIOESTE. Professor da rede pública do Governo do Estado do Paraná. Edaguimar Orquizas Viriato Graduada em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de São Bernardo do Campo e em Letras pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Nossa Senhora Medianeira, Mestre em Educação pela UNICAMP, Doutora em Educação pela PUC/SP, Pós-Doutora em Educação pela USP e pela Universidade do Minho. Professora do Colegiado de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Educação da UNIOESTE. Eneida Oto Shiroma Graduada em Terapia Ocupacional pela Universidade Federal de São Carlos, Doutora em Educação pela UNICAMP e em Industrial Relations - London School of Economics And Political Sciences. Pós-Doutora pela Universidade de Nottingham. Professora Associada da UFSC. Foi Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Educação da UFSC (2006-2008) e Coordenadora do Fórum Sul de Coordenação de Programas de Pós-graduação em Educação (2007-2008). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2. Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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Alexandre Felipe Fiuza Licenciado em História pela UFPB, Mestre em Educação pela UNICAMP, Doutor em História pela UNESP (com estágio de doutorando junto à Universidade de Lisboa) e Pós-Doutor em História Contemporânea pela UAM (Espanha). Professor do Colegiado de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Educação da UNIOESTE.


SOBRE OS AUTORES

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Enio Rodrigues da Rosa Graduado em Pedagogia, Especialista em Fundamentos da Educação e Mestrando em Educação junto ao Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Educação da UNIOESTE. Atua como professor pedagogo da Rede Estadual de Ensino do Paraná. Militante da Associação Cascavelense de Pessoas com Deficiência Visual (ACADEVI), do Fórum Municipal em Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Vicepresidente do Conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos das Pessoas com Deficiência (COEDE). Georgia Sobreira dos Santos Cêa Graduada em Pedagogia pela UERJ, Mestre em Educação pela UFF e Doutora em Educação pela PUC/SP. Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Atua como colaboradora externa do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Educação da UNIOESTE. É membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Estado, Sociedade e Educação - GP-TESE (UNIOESTE/CNPq) e membro participante do Coletivo de Estudos de Política Educacional (FIOCRUZ/CNPq). Participa do GT Trabalho e Educação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd); atualmente integra o Comitê Científico ad hoc do referido GT. Gilmar Henrique da Conceição Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena e em Ciências Contábeis pelo Centro de Ensino Superior de São Carlos, Mestre em Fundamentos da Educação pela UFSCAR e Doutor em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Atualmente é Mestrando em Filosofia pela UNIOESTE e Professor adjunto do Colegiado de Pedagogia e do Programa de PósGraduação stricto sensu em Educação da UNIOESTE. É editor da Educere et Educare - Revista de Educação. Lizia Helena Nagel Graduada em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Bagé, Especialista em Metodologia da Pesquisa em Educação pela Cenafor, Mestre em Educação pela UFRGS, Doutora em Educação pela PUC/SP. Atualmente é professora titular do Centro Universitário de Maringá e consultora do Centro Universitário de Maringá.

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SOBRE OS AUTORES

Luiz Carlos de Freitas Graduado em Filosofia, Especialista em Fundamentos da Educação e Mestrando em Educação junto ao Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Educação da UNIOESTE. Atua como professor na Rede Estadual de Ensino do Paraná. Maria Inalva Galter Graduada em Pedagogia pela UNIOESTE, Mestre em Educação e Especialista em Educação Pública no Brasil pela UEM, Doutoranda em Educação pela UNICAMP. Professora do Colegiado de Pedagogia da UNIOESTE. Olinda Evangelista Graduada em Filosofia pela UFPR, Mestre em Educação e Doutora em Educação pela PUC/SP, e Pós-doutora pela Universidade do Minho. Atualmente é professora Associada I da Universidade Federal de Santa Catarina atuando no cargo de Coordenadora do Curso de Pedagogia. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2. Paolo Nosella Licenciado em Filosofia na Itália com titulação reconhecida pela UNISINOS, Bacharel em Teologia pela mesma Instituição, Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela PUC/SP. Professor Titular em Filosofia da Educação na Universidade Federal de São Carlos/SP e do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Nove de Julho de São Paulo (UNINOVE). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 1A

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Luis Fernando Cerri Graduado em História, Mestre em Educação, Doutor em Educação pela UNICAMP e Pós-Doutorando em Educação pela Universidad Nacional de La Plata (Argentina). Atualmente é professor associado da UEPG. É líder do Grupo de Pesquisa em Didática da História, da UEPG. É um dos coordenadores nacionais do GT de Ensino de História e Educação da Associação Nacional de História (ANPUH). É bolsista de produtividade em pesquisa da Fundação Araucária desde Agosto de 2008, e coordenador brasileiro do Programa Centros Associados para o Fortalecimento da Pós-Graduação Brasil-Argentina (convênio UEPGUNLP).


SOBRE OS AUTORES

Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação http://www.unioeste.br/pos/educacao/

enata Cristina da Costa Gotardo Graduada em Pedagogia, Especialista em Fundamentos da Educação e Mestranda em Educação junto ao Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Educação da UNIOESTE. Pesquisadora do projeto de pesquisa interinstitucional Demandas e Potencialidades do PROEJA no Estado do Paraná. Rosane T oebe Zen Toebe Graduada em Pedagogia, Especialista em Fundamentos da Educação e Mestranda em Educação junto ao Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Educação da UNIOESTE. É membro do Grupo Estudos e Pesquisa sobre Trabalho, Estado, Sociedade e Educação (TESE) da UNIOESTE. Vanice Schossler Sbardelotto Graduada em Pedagogia (2000), Especialista em Fundamentos da Educação (2003) e Mestre em Educação (2009) pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Professora do curso de Pedagogia UNIOESTE/Francisco Beltrão e Pedagoga da UTFPR - Campus Dois Vizinhos.

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E

GRÁFICA UNIVERSITÁRIA

Assessoria Especial do Gabinete da Reitoria

Assistente Administrativa Criação e Diagramação

Impressão

Acabamento

Paulo Konzen Laurenice Veloso Hélio A. Zenati Geyze Colli Alcântara Lima Antonio da Silva Junior Vinícius Thomas Back Rachel Cotrim Gilmar Rodrigues de Oliveira Izidoro Barabasz Gentil David Teixeira Leandro Miranda Paulo Henrique Soares Vera Müller

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