Zine Alfato #1

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São Paulo - Brasil

-Edição - 01


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Nesse primeiro número do zine, sintetizamos e compartilhamos as nossas análises e percepções baseadas no projeto Vozes do Minhocão, que fizemos no início do ano de 2015, em São Paulo. Neste projeto, abrimos uma câmera e levamos uma cadeira que circularam pelo espaço durante 4 finais de semana, com o objetivo de dar voz e ouvir as pessoas que frequentam o Minhocão como pedestres, como pessoas. O objetivo principal era entender a relação que elas estabeleciam com esse espaço quando ele se fechava para os carros e se abria para as pessoas. Como frequentadoras do Minhocão, queríamos contribuir com as discussões sobre o seu futuro com uma perspectiva que não fosse a arquitetônica e urbanística. Resolvemos então fazer um recorte e ouvir quem o frequenta enquanto espaço de lazer.

Para a gente, esse processo de escutar também foi importante para a formação da nossa própria opinião sobre o futuro desse espaço público. Após ouvir muito, continuamos a favor do espaço como área permanente de lazer, que privilegia as pessoas e não os carros. Ficou também evidente que o Minhocão, mais do que uma construção de concreto, é um organismo vivo, e por isso mesmo ele tem que ser

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pensado como um todo que inclui não somente a parte de cima, mas a parte debaixo, o entorno, as praças e os diferentes bairros que ele corta. Um projeto de área de lazer permanente para ser de fato transformador tem que considerar todas essas variáveis, levando também em conta todos os que se relacionam com esse organismo vivo. A captação dos depoimentos foi aleatória, ou seja, qualquer um que quisesse sentar e conversar era bem vindo. E essa escolha foi acertada pois a heterogeneidade que marca o Minhocão, marcou também o perfil de quem sentou na nossa cadeira. Falamos com crianças, jovens, adultos e idosos; a maioria morador do entorno, mas também pessoas de outros bairros, moradores de ocupações e pessoas que passavam por ali pela primeira vez. Através das conversas, percebemos que para entender o Minhocão enquanto área de lazer é preciso esquecer do Minhocão enquanto suporte físico, pois não será nas estruturas físicas que se encontrará o que ocorre por lá quando transitam pessoas. Se, por um lado, vê-se uma materialidade degradada, o mesmo não acontece com os seus usos e a sua ocupação de lazer, que não se encontram de forma alguma degradados. Não enxergamos o Minhocão como totalidade, enquanto suporte material, arquitetônico e urbanístico. Não o enxergamos segundo seus quilômetros, sua composição material. Enxergamos o Minhocão como um cadinho, dotado de símbolos, memórias, relações. Enxergamos um Minhocão vivido, sentido e em processo, sob o ponto de vista das pessoas que o frequentam e que o experienciam. 2


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Onde moram as vozes do projeto?

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Minhocão: um espaço entredois*

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onde cabem quaisquers manifestações. Surge um pedacinho de terra emancipada no centro da cidade. Que provoca sensações do tipo: será que eu posso fazer isso aqui? Colocar uma cadeira no meio da rua e pedir para as pessoas darem as suas opiniões? Será que eu preciso pedir a autorização de alguém? Será que posso isso? Será que não posso aquilo? Questionamentos involuntários, condicionados por uma situação de opressão (simbólica ou não) que vivemos nos diferentes espaços da cidade... Quando passeamos, corremos, andamos de skate, de bike, de patins... algo de familiar acontece no Minhocão. Não se trata de um espaço que é privado, mas que também não é totalmente estranho como outros espaços públicos (como a Praça da Sé, por exemplo). Ele é, assim, um espaço entre esses dois espaços (público e privado), um espaço entredois, pois ele carrega em si mesmo características de ambos. Esse espaço entredois oferece sensações híbridas, abre portas para a experimentação da liberdade e para a ocupação criativa, características centrais que permitiram a sua ocupação espontânea; assim, o Minhocão não é definido segundo uma lógica arquitetônica ou geográfica, trata-se, antes, de uma dimensão simbólica e subjetiva que o inunda através das pessoas que o ocupam. A sua ocupação espontânea demonstra uma vontade latente de estar no espaço público, de estar ao ar livre, de estar fora das paredes de casa, de ter um espaço de convivência que seja comum, que seja democrático, e essa vontade inunda os diferentes perfis daqueles que andam por lá, construindo uma ocupação heterogênea, sem ser preciso criar regras e imposições formais. Não é a toa, que essa pluralidade e polissemia do Minhocão atrai diferentes colectivos e ocupações artísticas que expressam e alargam todo o potencial criativo contido nesse local.

*conceito emprestado do antropólogo Michel Agier, em seu livro Antropologia da Cidade

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1- Erva SP 2 - Grupo Esparrama

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3 - Festa Junina no Minhocão 4 - Felipe Morozini

Créditos: Essas fotos são de propriedade dos coletivos aqui citados, sendo utilizados apenas para ilustração.

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O centro de S達o Paulo tem? 10


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O centro de São Paulo, conhecido por aparentemente ter tudo, é carente de opções de lazer que permitam as diferentes modalidades ali praticadas no Minhocão, de forma tal que os usos feitos ali são relacionados com o Parque do Ibirapuera e com o Parque Villa Lobos.

A demanda é tal que o próprio horário de fechamento durante a semana é tido como tarde, uma vez que muitos acordam cedo, não podendo esperar até tão tarde para dar início à prática de exercício físico diária. O Minhocão é uma das principais opções de lazer para os moradores dos bairros por ele cortados (se não a principal para boa parte deles). É lá que muitos podem desfrutar as horas de descanso. O momento de lazer é, sem dúvida, um dos melhores momentos da vida, que proporciona liberdade criativa e abre uma janela de respiro na rotina diária. Ele apresenta-se como uma opção para estar fora de casa, uma opção gratuita, uma opção para encontrar e ver pessoas, para tomar um 11

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vento, para praticar um esporte, passear com a família e com os cachorros, para fazer um churras, uma festa. Ele oferece um espaço outro que não a rua recortada por carros. Convidamos você para fazer uma caminhada e uma corrida comparativa, entre o Minhocão e uma outra grande avenida da cidade, como a própria Av. São João, ou então a Av. Sumaré, trata-se de uma experiência completamente diferente, você não acha? É interessante, ainda, notar que, mesmo não havendo nenhuma regulamentação formal, existem regras de convivência implícitas e respeito ao espaço do outro e da sua prática esportiva; existe uma distribuição quase temática e espontânea ao longo do Minhocão: em lugares mais planos ou na extremidade que funde com a Barra Funda ficam as crianças jogando futebol; em lugares planos e em descidas menos íngremes ficam as pessoas que estão aprendendo a andar de skate ou de patins... Na parte da manhã, o local é ocupado sobretudo por adultos, praticando caminhadas e corrida. Na parte da tarde, você pode observar um maior número de crianças e também de jovens.


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“As fragmentações sociais e raciais das grandes cidades, as rodovias urbanas que atravessam aglomerações intermináveis, os universos de desolação formados pela construção dos muros, as barreiras, e pela invenção permanente das fronteiras revelam brutalmente, contracorrente, uma pergunta: o que permanece de cidade nas nossas vidas?” Michel Agier

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Um espaço para o encontro de diferentes O Minhocão quando se abre para as pessoas acaba por ter uma importante função social para o entorno (e também para a cidade) por ser palco para o encontro de diferentes, de ser convidativo e democrático. 13


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Indo, assim, na contramão da maior parte dos bairros do centro expandido, que seguem a lógica da urbanização através dos condomínios fechados (mini-clubes), que constroem bolhas cada vez mais impossíveis de se estourar, onde as pessoas somente convivem com seus iguais, o que é significativamente ruim para a construção de uma cidade para todos. Esses muros e barreiras que permeiam a cidade, constroem um quadro de negação do mundo comum e somente espaços públicos com características abertas, de entredois, como o Minhocão conseguem contribuir para uma quebra mais sistemática desse paradigma. Ele assim, contribui para a construção de um paradigma de cidade para as pessoas e de uma cidade democrática, pois somente a percepção e a tolerância da existência da diferença (e também da convivência com a mesma) contribuem para isso. Neste sentido, estamos querendo falar de uma cidade onde os espaços sejam mais espaços em branco do que espaços previamente rotulados, segmentados, segregados. A possibilidade infinita de uma ocupação criativa oferecida por ele possibilita atividades que recriam coletivos, indo na contramão da lógica desagregadora habitual do dia-a-dia na cidade. O Minhocão age como um mediador simbólico que promove a identificação para que essa comunidade em movimento se componha e se recomponha na medida em que ele se abre para as pessoas. Parece que ali em cima acontece algo subjetivo, da ordem da magia e do segredo, que faz com que os olhares se cruzem e

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enxerguem no outro, o outro, e que haja uma sensação de compartilhamento de fato que somente quem frequenta aquele espaço é capaz de sentir (e que é impossível descrever em palavras, pois elas não dão conta de outras categorias sensórias por ele ativadas). Esses momentos de identidades suspendem o ordinário, o cotidiano, criam uma condição extraordinária e partilhada. Mas [ fique atento mermão ] um movimento de muros já vem se consolidando no centro (basta dar uma caminhada pelas regiões residenciais ali) através dos novos empreendimentos que são verdadeiros clubes e que carregam em sua essência a ideia de que quanto menos a pessoa sair de casa (e por consequência tiver menos contato com o diferente), melhor, mais protegida ela estará. 14


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Elemento de identificação e pertencimento O Minhocão se mostra como um elemento icônico da cidade que já se descola de seu passado sombrio. E para aqueles que moram no entorno, ele é um símbolo identitário e de pertencimento, muitas vezes porque ele provoca, entre os que não moram ali e não o conhecem, um preconceito que é, em grande parte, gerado pelo fluxo de imagens televisivas e não por experiências individuais ali vividas.

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Essa identidade é situacional, ou seja, aqueles que se relacionam com o Minhocão somente como passagem (seja de carro ou não) não estabelecem com ele o mesmo tipo de relação daqueles que o percorrem e o ocupam em seu momento de lazer. As situações de passagem são individualizadas e a relação com a cidade é marcada pela mediação material, não existe um sentido partilhado com aquele lugar, aquele percurso, aquele espaço de passagem. Já aqueles que se relacionam com o espaço do Minhocão quando ele se abre para pessoas, vive ali uma espécie de situação ritual, que subverte a ordem do cotidiano, e que cria relações e experiências que são mediadas por um espaço que não é material, mas subjetivo, do qual o material somente é suporte. O seu quase meio século de existência o inseriu de uma forma simbólica na memória afetiva daqueles que moram no entorno e o frequentam, e não se trata de uma memória urbanística, mas de uma memória das relações e experiências vividas ali. São gerações que cresceram ali e que encontraram um espaço para viver as suas histórias individuais e viver o bairro de uma forma cada vez mais rara na cidade de São Paulo. Se, por um lado, em sua construção, inúmeras memórias foram destruídas com a criação de uma nova configuração de espaço; por outro lado, após a sua existência e permanência, ele possibilitou o nascimento de novas memórias, memórias essas que também devem ser levadas em conta em meio às discussões sobre o seu futuro.

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Ele é assim um lugar de identidade, pois as pessoas com ele se identificam de forma espontânea e há quase que uma sobreposição entre o físico e o sentimento de pertencimento a uma coletividade. De alguma forma, o espaço do Minhocão parece quase que prolongar o espaço doméstico. Sujeito e objeto não estão separados, fazem parte do mesmo todo, se prolongam mutuamente. Este Minhocão que reúne a vizinhança e proporciona momentos de liberdade em meio ao caos da cidade e da rotina, desperta uma relação de carinho e de afeto com o espaço físico, como se ele tivesse uma persona, como se fosse um ser animado, “dá até vontade de abraçar o Minhocão” como disse um dos moradores da região. Esse lugar de pertencimento e sentimento de bairro, no entanto, não exclui quem não é do bairro e também é reconhecido enquanto um símbolo da cidade, é um portal para viver SP, é um ponto de vista de São Paulo. É da cidade, é um marco de referência dela. 16


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Antonio Augusto Arantes Neto

“O deslocamento excita a imagincão, libera lembranças e emoções. Faz reviver narrativas e flagrantes de experiências passadas. Leva ao encontro de referências pessoais e dos lugares de memoria social. A lembrança constitui o trajeto, obscurece as distâncias, estabelece relações. O caminhar permite a recolha de fragmentos de histórias pessoais e do lugar."

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Minhoc達o imaterial 19

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Assim, para além de uma materialidade urbanística, arquitetônica, geográfica... O Minhocão possui uma dimensão subjetiva, imaterial, que emana de seus usos e ocupações. Ao ser povoado e ocupado por pessoas, e não somente atropelado por carros, ele oferece uma experiência sinestésica, uma experiência de cidade. Ele está inserido, assim, em uma cartografia imaginária (mas não irreal) da cidade, composta por experiências, boatos, notícias de jornais, trajetos, construções e outros elementos urbanos. Vemos assim, o Minhocão enquanto MINHOCÃO VIVIDO e não em sua forma material. O Minhocão imaterial não é irreal, ele carrega em si algo a mais que existe ali, para além do que é visível aos olhos.

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Quem ama o feio, bonito lhe parece... mas o que ĂŠ feio mesmo?

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Essa imaterialidade do Minhocão e as experiências sinestésicas que por lá ocorrem são como uma lente que definem os pensamentos e sentimentos que as pessoas estabelecem com o suporte material. Lembranças e experiências boas são as lentes que irão definir o que é belo. Se a pessoa só se relaciona com este espaço quando está de passagem, em trajeto, essa também será a lente que irá definir o seu conceito de feio, pois não existe uma relação simbólica e afetiva com ele.

O objeto arquitetônico reflete o próprio sujeito, por isso, os suportes materiais considerados belos são aqueles que carregam em si um algo humano. A partir do momento em que você vive algo positivo, aquilo se torna belo para você. É a imaginação (ou a falta dela) que convence a razão.

“Colocar o mesmo objeto em diversos pontos de vista, e ele mal parecerá o mesmo, no entanto, nada terá mudado, a não ser o olho do espectador” Rousseau

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Crônica de um Minhocão arrependido

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Fontes onde fomos matar a nossa sede de conhecimento .Pessoas .Michel Agier – Antropologia da Cidade .Festa no Pedaço - Magnani .Antonio Augusto Arantes Neto – Paisagens Paulistanas: transformações do espaço público .Michel De Certau – Invenção do cotidiano .Teresa Pires do Rio Caldeira – Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo .Arquitetura da Gentrificação: http://reporterbrasil.org.br/privatizacaodarua/ .David Harvey – Cidades Rebeldes .Milton Santos – A Natureza do Espaço .Marc Augé – Não lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade .Mauricio Puls - Arquitetura e Filosofia

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