A propriedade da cultura: ensaios críticos sobre literatura e indústria cultural na América Latina

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graciela montaldo a propriedade da cultura ensaios crĂ­ticos sobre literatura e indĂşstria cultural na amĂŠrica latina

os melhores ensaios


a propriedade da cultura


Coleção Vozes Vizinhas - Os Melhores Ensaios V. 4 Raúl Antelo Maria Lucia de Barros Camargo Coordenadores

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graciela montaldo a propriedade da cultura ensaios críticos sobre literatura e indústria cultural na américa latina tradução eduard marquardt

Chapecó, 2004


Av. Senador Attilio Fontana, 591-E Fone/Fax (49) 321-8000 Cx. Postal 747 - CEP 89809-000 - Chapecó - SC REITOR: Gilberto Luiz Agnolin VICE-REITORA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO: Maria Assunta Busato VICE-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: Gerson Roberto Röwer VICE-REITOR DE ENSINO: Odilon Luiz Poli

869.09 M762p

Montaldo, Graciela A propriedade da cultura: ensaios críticos sobre literatura e indústria cultural na América Latina / Graciela Montaldo. - Chapecó : Argos, 2004. 325 p. - - (Vozes vizinhas. Os melhores ensaios; 4)

1. Literatura – Crítica e interpretação. 2. Comunicação de massa – América Latina. 3. Indústria cultural. I. Título. CDD 869.09 ISBN: 85-7535-056-0

Catalogação: Yara Menegati 14/488

Conselho Editorial: Josiane Roza de Oliveira (Presidente); Ricardo Rezer (Vice); Alexandre Mauricio Matiello; Arlene Renk; Eliane Marta Fistarol; Flávio Roberto Mello Garcia; Hermógenes Saviani Filho; José Luiz Zambiasi; Juçara Nair Wolff; Antonio Zanin; Maria Assunta Busato; Maria dos Anjos Lopes Viella; Maria Luiza de Souza Lajus; Monica Hass Coordenadora: Monica Hass Assistente Editorial: Hilario Junior dos Santos Assistente Administrativo: Neli Ferrari Secretaria: Paula Cristina Primo Divulgação: Daniela Lanhi Zancanaro Projeto gráfico e capa: Hilario Junior dos Santos Diagramação: Nícia Eliani Jahnke Revisão: Fabiana Cardoso Fidelis Foto de capa: Regina Stella Tiragem: 2000


sumário

prefácio josefina ludmer .................................................... 07 introdução ......................................................................... 09 primeira parte as multidões e a indústria cultural .............. 15 de mãos dadas com o caos: sujeitos e práticas culturais ......................... o terror letrado (sobre o modernismo latino-americano) ...................... integrar, homogeneizar: revistas de esquerda em buenos aires ....................................................................................................... borges e as fábulas de fidelidade de classe ................................................. um caso para o esquecimento: estéticas bizarras na argentina (livros, indústrias culturais e ficções) ...........................................

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segunda parte territórios e migrantes ................................ 97 o corpo da pátria: espaço, natureza e cultura em bello e sarmiento ............................................................................................. 99 espaço e nação.................................................................................................. 123 nosso oriente é a europa ................................................................................ 141 de repente, o campo ....................................................................................... 159 um clássico da vanguarda .............................................................................. 183


terceira parte à margem da modernidade ......................... 205 quiroga: o fracasso do dândi, o fracasso do aventureiro ........................ 207 territórios e escalas: ficções de fronteira ...................................................... 225 o país da selva ................................................................................................... 247 mulheres e imagens do saber: a escritura da ignorância (sobre textos de alfonsina storni, teresa de la parra e gabriela mistral) ............................................................................................. 279 identidades vacilantes: a natureza sob suspeita ........................................... 301


prefácio

Nesta antologia de ensaios de Graciela Montaldo pode reconhecer-se, nítida, uma das escrituras críticas do presente na América Latina. A imaginação territorial que a sustenta constrói uma máquina de leitura com espaços e territórios, natureza e fronteiras. Uma linguagem fundada ou produzida por outrem, um aparato verbal de segundo grau para ler (ou analisar, ou explicar, ou interpretar ou usar de algum modo) o primeiro. A máquina de leitura de Montaldo é um vocabulário, um conjunto de objetos, sujeitos e protagonistas, uma série de relações, de operações, e de processos. Seus «campos» são diversos. Primeiro, un campo literário e cultural nacional, argentino. Uma história da literatura que Montaldo domina totalmente: esse saber de uma das histórias literárias nacionais é a condição para poder sair das fronteiras. Assim, o campo nacional insere-se em outro, hispano-americano e latino-americano, que se situa, por sua vez, em mais um. O nacional pode não só estender-se indefinidamente, mas pode mesmo ser lido em contextos dúplices e tríplices: contextos culturais (as culturas altas, populares e de massa),


contextos políticos (processos de modernização e democratização) e contextos materiais (editoriais e revistas). A máquina territorial de Graciela Montaldo atravessa fronteiras todo o tempo. O desejo é sair do confinamento nacional ou literário, e sair, ainda, do confinamento no cânone: são lidos textos clássicos como Facundo, La cautiva ou os de Rubén Darío, e até mesmo os de Enrique Gómez Carrillo e Jules Supervielle. Há sempre voracidade por algo além, para não deixar zonas ou espaços sem questionar. O tipo de periodização cultural e literária corresponde a esse desejo de sair da redoma. A máquina-Montaldo movimenta-se com uma série de operações historiográficas: a base da periodização são os momentos chave ou fundacionais da história e da cultura latinoamericanas. Esses momentos fundamentais, como o das independências latino-americanas e o do modernismo Belle-Époque, são os momentos de transnacionalização da literatura e da cultura, os momentos globais da América Latina. E até mesmo momentos de violenta modernização. Nesses campos e nesses momentos aparece um tipo específico de «objetos» do presente: a nação, a modernidade e a anti-modernidade como problemas; a «América Latina» como problema; a literatura como cultura e sua relação com o Estado; a autonomia literária e cultural como problema. E até aparecem os protagonistas dos processos de nacionalização cultural e de modernização e da constituição de identidades e de subjetividades na esfera pública: os escritores como letrados e intelectuais; os imigrantes, os bárbaros, as mulheres e as multidões. A crítica de Graciela Montaldo descarta toda estética e toda fetichização da literatura; pensa em sua materialidade, nos suportes concretos dos livros, na indústria literária e cultural, as editoras e as revistas. Também descarta binarismos e oposições como vanguardismo e literatura social. É, ao mesmo tempo, erudita, informativa e leve. Nessa combinação também podemos ver, nítida, uma das escrituras críticas do presente na América Latina. Josefina Ludmer


introdução

O convite, inesperado e generoso, para integrar esta série crítica é duplamente importante para mim, e agradeço a todos que estão por trás deste projeto. Em primeiro lugar, a proposta de fazer um livro com materiais que eu mesma deveria selecionar me devolveu ao lugar da leitora, de alguém que não deveria escrever, e sim ler, percorrer investigações já de alguns anos, eventualmente corrigir; em segundo, deparei-me com a passagem para uma outra língua, para uma leitura distanciada de minha própria escritura, pois tudo seria «reescrito». O paradoxo de ser autora de um livro sem escrevê-lo, de certo modo, retrata uma representação da prática crítica: o conjunto de versões que recombinamos para estabelecer um que de sentido, os múltiplos e pequenos passos que damos, definitivamente, para continuar explorando diálogos possíveis. Essa é a «propriedade da cultura» que tento delinear nos capítulos que seguem; aquilo que pertence a comunidades culturais e que também lhes escapa, aquilo que jamais terá dono, mas que, ao mesmo tempo, está em permanente disputa.


a propriedade da cultura

A primeira parte, As multidões e a indústria cultural, recolhe trabalhos bastante recentes e outros mais antigos, unidos por uma preocupação comum: o modo como se relaciona a literatura da tradição letrada à emergência de novas práticas culturais. «De mãos dadas com o caos», redigido em 2002, expõe algumas hipóteses acerca de determinadas formas da arte e da cultura hispano-americana ao fim dos séculos XIX e XX através das categorias de massa e multidão, bem como da idéia da reprodutibilidade mecânica dos bens culturais. Trata-se de uma proposta de leitura do modo como a massa, sujeito político e cultural, novo e perigoso, afetou o conjunto da produção de bens simbólicos e de como, com sua aparição, se estabeleceu uma nova dinâmica entre as diferentes formas de produção da cultura. O trabalho também se questiona acerca das intervenções dos artistas, intelectuais, do Estado e do mercado nas inter-relações culturais e, ainda, sobre o peso das instituições no marco da nação. «O terror letrado», 1994, foi uma de minhas primeiras tentativas de compreender o fin-de-siècle hispano-americano, bem como a desarticulação da fortaleza letrada. Sob a influência dos trabalhos de Ángel Rama, tratei de entender de que maneira as multidões, o jornalismo, os escritores decadentes, a pose intelectual, as máscaras irrompem, todos, com força, impondo-se num mundo cultural ainda regido pela tradição, mas que está se transformando pelas novas práticas dos públicos ampliados em função das políticas de alfabetização e pelo impulso nos media. «Integrar, homogeneizar: revistas de esquerda em Buenos Aires» me fez retomar, em 1999, uma de minhas primeiras investigações, acerca do projeto cultural de um grupo de escritores vinculados à esquerda política. Quando iniciei essa pesquisa, ainda nos anos 80, tentei me aprofundar sobre o projeto desse grupo relacionado ao Partido Socialista argentino, vendo de que modo tratavam de difundir nos setores operários e de classe média baixa aquilo que a cultura da tradição havia reservado, a partir da modernidade, à burguesia e às elites. Através de uma editora e de várias revistas, o grupo Claridad tentou, através de uma periferia

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introdução

da cultura, apropriar-se da grande tradição letrada, redistribuindo-a simbolicamente entre os setores emergentes. Reescrevi o trabalho em 1997, pensando na conformação da cultura popular como uma necessidade da modernização e de seus alcances. Em «Borges e as fábulas de fidelidade de classe», escrito em 2000, ocupo-me de um escritor clássico, venerado pelas elites mas que, ao mesmo tempo — conforme trato de reconhecer nesse trabalho —, foi quem desencadeou algumas das mudanças mais radicais na relação da literatura culta com os produtos da indústria cultural na Argentina. Desde o início de sua carreira, Jorge Luis Borges esteve atento às formas com que a elite dos media ensaiava suas novidades, particularmente interessado pela recepção e circulação das formas representacionais de uma cultura. Por fim, em «Um caso para o esquecimento: estéticas bizarras na Argentina (livros, indústrias culturais e ficções)», redigido no mesmo ano, trato da figura do escritor César Aira e da proposta de uma nova vanguarda na Argentina do espelhamento da globalização. A partir da idéia de uma vanguarda radical, quis analisar sua proposta de construir uma «arte da pobreza e da feiúra». A segunda parte, Territórios e migrantes, reúne trabalhos vinculados a dois de meus livros, De pronto, el campo (1993), e Ficciones culturales y fábulas de indentidad en América Latina(1999). «O corpo da pátria: espaço, natureza e cultura em Bello e Sarmiento», que escrevi em 1993, analisa dois clássicos da cultura hispano-americana, tentando ver de que modo ambos os escritores armam seus projetos culturais, fundadores de uma nova identidade para a América recém-independente. Suas obras estabelecem categorias que regerão grande parte da discussão cultural no continente durante todo o século XIX: natureza/cultura, civilização/ barbárie, ordem/caos, bem como asseguram os modelos culturais do liberalismo. «Espaço e nação», de 1995, trata-se de um estudo acerca da construção do espaço através da cultura no século XIX; lendo os relatórios econômico-geográficos de viajantes europeus pelo continente, nesse ensaio tento reconstruir a delimitação do espaço durante a organização do Estado

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nacional na Argentina do início do século XIX. A idéia dedeserto é central nesses olhares estrangeiros, sendo posteriormente retomada pelos regionais, na intenção de se elaborar as primeiras versões da realidade nacional. Deserto e nação se convertem, portanto, nos eixos de sentido para a origem da história independente. Em «Nosso Oriente é a Europa», 1996, analiso o livro de viagem de Domingo Faustino Sarmiento; viagem esta que o leva à Europa, mas também à África e aos Estados Unidos. Trata-se de um registro da modernidade, mas também da comprovação de que a barbárie não é privilégio americano, e sim umresíduo no mundo moderno, uma extensão da modernidade que sobrevive sobre suas ruínas. Esse relato também permite a Sarmiento reorganizar o mapa do mundo, re-situando a América; por fim, mostra a barbárie como algo que está além do pampa. «De repente, o campo» (1993) é um trabalho no qual me ocupo do que acredito constituir um paradoxo fundador da cultura argentina: a grande modernidade, a maior recuperação da tradição rural, seja na literatura ficcional seja na ensaística. Quando os estudos acerca da modernidade perfilaram-se como um tema quase excludente na crítica argentina dos anos 80, o problema da persistência da tradição rural foi para mim um incentivo, que me fez estudar as formas com que modernidade e tradição se auto-implicaram no país; tratei, portanto, de armar uma hipótese, um modo de ler a história da literatura argentina. «Um clássico da vanguarda», por sua vez, redigido em 1996, tenta perceber a elaboração e constituição de um clássico nacional durante os anos 20: Dom Segundo Sombra, de Ricardo Güiraldes. A modernidade e o arcaísmo do texto, em conjunto, permitem sua entrada no cânone; tratase de um livro, pois, que capta tanto as ansiedades dos intelectuais face à mudança da fisionomia do país, quanto o gosto do público, ampliado em função das políticas de alfabetização. Além disso, Dom Segundo Sombra entende novos formatos culturais: o melodrama e o sentimentalismo. Por fim, em À margem da modernidade, incluo ensaios que percorrem certas figuras ou textos deslocados do cânone, os quais me interessaram ler como problemas. «Quiroga: o fracasso do dândi, o

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introdução

fracasso do aventureiro», de 1998, também se arma sobre um relato de viagem, a que Horacio Quiroga fez a Paris, em 1900; analiso, então, o desgosto do escritor decadente face a uma modernidade que não é para todos. A partir desse deslocamento, persigo Quiroga em seus contos da selva, outra periferia para onde são lançados os dejetos da cultura e da vida moderna, tentando entender sua literatura como um laboratório dos limites da modernidade latino-americana. Em «Territórios e escalas: ficções de fronteira», 1997, estudo a escritura sem-lugar de W. H. Hudson, escritor, naturalista, viajante, nascido na Argentina e emigrado para a Inglaterra que no fim do século XIX inscreve, a partir do centro do Império, os territórios do sul como problema do mundo contemporâneo. Hudson desagrega a natureza estranha da América e de seus tipos mesclados em ficções que serão retomadas pela tradição argentina, de Martínez Estrada a Borges e Juan José Saer. «O país da selva» constitui um prefácio, escrito em 2002, para a reedição do livro com o mesmo título de Ricardo Rojas. El país de la selva se trata de um texto menor e misterioso do autor de Historia de la literatura argentina, no qual é possível ver de que modo se inicia o pensamento nacionalista, quais as transformações sofridas e como se imagina e se consolida uma imagem pública de intelectual durante os anos do Centenário, na Argentina; além disso, mais uma vez tento ver o que fizeram os intelectuais modernos com as tradições e culturas dos setores marginalizados. Em «Mulheres e imagens do saber: a escritura da ignorância», de 2000, analiso ensaios de Alfonsina Storni, Teresa de la Parra e Gabriela Mistral em dois aspectos cuja importância acho fundamental: a construção de genealogias culturais, bem como a relação que essas autoras mantêm com a política. Trato de ver alguns modelos de ingresso de sujeitos subalternos na comunidade letrada, procurando detectar as estratégias utilizadas por eles/elas a fim de se legitimarem no mundo intelectual; a mim interessou, particularmente, o valor de gênero nesses escritos. Finalmente, «Identidades vacilantes: a natureza sob suspeita», que redigi em 2002, é uma tentativa de confrontar ao

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cânone estes textos completamente excêntricos, L’homme de la pampa , de Jules Supervielle, e Zogoibi, de Enrique Larreta, a fim de saber o modo como se estabelecem, numa cultura e em suas representações, as lutas pelas identidades.

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Nesta antologia de ensaios de Graciela Montaldo pode reconhecer-se, nítida, uma das escrituras críticas do presente na América Latina. A imaginação territorial que a sustenta constrói uma máquina de leitura com espaços e territórios, natureza e fronteiras. Uma linguagem fundada ou produzida por outrem, um aparato verbal de segundo grau para ler (ou analisar, ou explicar, ou interpretar ou usar de algum modo) o primeiro. A máquina de leitura de Montaldo é um vocabulário, um conjunto de objetos, sujeitos e protagonistas, uma série de relações, de operações, e de processos. A crítica de Graciela Montaldo descarta toda estética e toda fetichização da literatura; pensa em sua materialidade, nos

vozes vizinhas

suportes concretos dos livros, na indústria literária e cultural, as editoras e as revistas. Também descarta binarismos e oposições como vanguardismo e literatura social. É, ao mesmo tempo, erudita, informativa e leve. Nessa combinação também podemos ver, nítida, uma das escrituras críticas do presente na América Latina. Josefina Ludmer I S B N

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