Literatura do Presente: história e anacronismo dos textos

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LITERATURA DO PRESENTE


É vedada a reprodução total ou parcial desta obra.

Associação Brasileira de Editoras Universitárias


SUSANA SCRAMIM

LITERATURA DO PRESENTE: histรณria e anacronismo dos textos

Chapecรณ, 2007


REITOR: Gilberto Luiz Agnolin VICE-REITORA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO: Maria Assunta Busato VICE-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: Gerson Roberto Röwer VICE-REITOR DE GRADU AÇÃO GRADUAÇÃO AÇÃO:: Odilon Luiz Poli

S433p

Scramim, Susana Literatura do presente: história e anacronismo dos textos / Susana Scramim. – Chapecó: Argos, 2007. 190 p. 1. Literatura - Teoria. 2. Literatura – História e crítica. I. Título. CDD 801

ISBN: 978-85-98981-81-9

Catalogação: Yara Menegatti CRB 14/448 Biblioteca Central Unochapecó

Conselho Editorial: Elison Antonio Paim (Presidente); Priscila Casari (Vice); Alessandra Machado; Alexandre Mauricio Matiello; Antonio Zanin; Arlene Renk; Edilane Bertelli; Jacir Dal Magro; José Luiz Zambiasi; Juçara Nair Wollf; Maria Assunta Busato; Maria dos Anjos Lopes Viella; Monica Hass; Ricardo Brisolla Ravanello Coordenadora: Monica Hass


As idéias expostas neste livro foram discutidas na primavera de 2005 no transcurso de uma disciplina, Crítica e Ficção, ministrada por mim no curso de pós-graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. Portanto, este livro é fruto de um trabalho “comum”. Esta nota quer ser um agradecimento aos que com entusiasmo ouviram e contribuíram para o desdobramento das análises neste livro apresentadas.


[...] a tarefa original de uma autêntica revolução já não é simplesmente “mudar o mundo”, mas também e, sobretudo, “mudar o tempo”. Giorgio Agamben, Infância e história


SUMÁRIO

11 ...... Abertura: historiar o presente – um problema metodológico 37 ...... PRESENTE ANACRÔNICO I 39 ...... P OESIA

E PENSAMENTO

41 ....... Infância, arquivo e experiência 59 ....... A metáfora. Um lugar mais originário que o espaço 83 ....... Os fractais do modernismo 103 ..... A literatura e o mal. O arco floral Torquato Neto e Marcos Siscar


123 ..... PRESENTE ANACRÔNICO II AÇÃO 125 ..... D ERIV ERIVAÇÃO

E PROCEDIMENTO NARRA TIV O NARRATIV TIVO

127 ..... Wilson Bueno e a “Sintesis Misteriosa” 143 ..... Dobrar e desdobrar: procedimentos da literatura do presente no relato de Bernardo Carvalho 159 ..... A plenitude do tempo e a prática do desvio em César Aira 175 ..... Relato de um certo oriente: recordar o presente


ABER TUR A: HISTORIAR O PRESENTE – ABERTUR TURA: UM PROBLEMA METODOLÓGICO

O que é o presente?

Quando Giorgio Agamben introduz-nos na discussão sobre o tempo, previamente nos alerta que uma experiência com o tempo acompanha cada concepção de história; e que numa concepção de história reside uma experiência com o tempo que inclusive a condiciona. Sendo assim, não se produz uma nova cultura, que é resultado de uma experiência com o tempo, se não se muda a relação com o tempo e não se altera nossa percepção da história. Não podemos acercar-nos da idéia de presente sem que entremos na discussão sobre uma concepção de tempo. Muitos pensam que quando incluem um pensamento sobre a história em seus trabalhos estão, conseqüentemente, refletindo sobre o tempo; se assim fosse, a produção criativa feita no decorrer do tempo somente poderia ser vista como um mero documento da história. Sabemos que a história não se resume a uma sucessão de fatos no tempo cronológico; entretanto, ainda assim, é preciso sublinhar que o tempo não se opõe à história, e não podemos ignorar a historicidade


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dos atos criativos dada pelos estratos de tempo que neles encontramos. No entanto, segundo Didi-Huberman, em seu livro Devant le temps, o princípio de síntese é ilusório tanto na disciplina história da arte como na história da literatura. Na modernidade, o saber histórico se vê confrontado com as questões fundamentais da disciplina, que são o anacronismo e o eterno retorno. Segundo Huberman, com isso estamos no “pliegue exacto de la relación entre tiempo e historia. Cabría preguntar ahora a la misma disciplina histórica qué quiere hacer de este pliegue: ¿ocultar el anacronismo que emerge, y por eso aplastar calladamente el tiempo bajo la historia – o bien abrir el pliegue y dejar florecer la paradoja?” (Huberman, 2006, p. 31). Esse é um aspecto fundamental para refletir sobre a categoria de presente, isto é, a densidade de tempo histórico que “pervive”1 nas obras, a absorção das afecções que as obras produzem, isto é, o seu “efeito”, a sua “duração”2. Raúl Antelo, em seu ensaio O arquivo e a política do anacronismo, ressalta que graças ao anacronismo o tempo passa a ser definido como “tempo-com”. Retomando a reflexão de Giorgio Agamben de que a imagem pertence a um tempo no qual os homens encontram-se ou perdem-se, Antelo propõe que o anacronismo é a “con-temporização” ou temporalização do acontecido, é o tempo posicionado na diferença e no “diferimento”. Antelo ainda ressalta que:

Walter Benjamin desenvolve o conceito de pervivência, Fortleben, como algo que faz com que alguns elementos ou mesmo as obras de arte sobrevivam para além da época que as viu nascer. Na argumentação que Benjamin constrói do conceito de Fortleben ou da “pervivência” da obra na memória coletiva sobressaem as observações sobre “transformação” (Wandlung) e sobre “renovação” (Erneuerung), a isso o filósofo alemão chama o “pós-amadurar” (Nachreife) da linguagem da obra, “um dos processos históricos mais fecundos” (Benjamin, 2001). 2 Gilles Deleuze em seu trabalho sobre Spinoza ressalta que a característica do signo para o filósofo da Ética era a de ser sempre um efeito. O efeito num primeiro momento é um vestígio de um corpo sobre outro, é o estado de um corpo que sofreu a ação de outro corpo. Dessa forma, segundo Deleuze, em Spinoza é o efeito de uma “affectio”. As afecções são conhecidas pelas idéias que temos, pelas sensações ou percepções. Porém, essas afecções não são efeitos instantâneos de um corpo sobre outro, mas são, especialmente, efeitos sobre a própria duração. Deleuze dirá que esses efeitos pensados, enquanto duração, não podem mais ser chamados de afecções, mas antes devem ser pensados como “afectos” propriamente ditos, pois indicam que as durações constituem “passagens, devires, ascensões e quedas, variações contínuas de potência que vão de um estado a outro” (Spinoza, 1997, 2002). 1


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[...] esse tempo-com defende a noção de que a essência do tempo é uma co-essência, ativada no presente de uma leitura, de tal sorte que o anacronismo crítico não pode ser definido como um amálgama aleatório ou impróprio de tempos quaisquer. A temporalização do anacronismo significa, pelo contrário, uma participação temporal na temporalidade e ela revela, além do mais, uma hiper-temporalização, infinita e potencializada, do evento. Se o que define o anacronismo é, portanto, a ‘con-temporização’, então, não é o tempo natural o que interessa ao comparatista ou ao historiador cultural. Aquilo que define a temporalidade de uma cultura (lida com outras culturas) é, pelo contrário, a sua sintaxe ou composição, seu uso, sua política, e não uma fórmula autonômica e racional. (Antelo, 2007, p. 11-12).

A discussão do tempo presente na literatura não se resume a um “agora” das obras baseado em uma causa que provoca uma alteração ou uma mudança a qual fornece um caráter único e irreversível aos acontecimentos e às obras. O tempo presente é um “agora” das obras nos efeitos que produz nos tempos do “agora” de outras obras, bem como da “duração” e da absorção desses efeitos, isto é, da absorção dos “afectos” que essa obra produz, o que de toda maneira cria as condições de sua sobrevivência como forma primordial. No entanto, essa sobrevivência atesta que as formas primordiais elas mesmas são, ainda segundo Didi-Huberman, configurações de uma mesma complexidade temporal, outras montagens de tempos heterogêneos que permanecem emergindo. Essa relação não ocorre apenas no nível formal do texto, uma vez que as homologias morfológicas indicam apenas alterações de caráter cíclico e repetitivo e não satisfazem a necessidade de compreensão dos estratos de tempo que sobrevivem nas obras. É preciso ultrapassar a constatação de que as formas se repetem. Também é importante compreender que esses estratos de tempo não se referem a uma confluência ou uma concordância entre o tempo em que se produz a obra e o tempo da obra; não se referem a uma “eucronia”. Tampouco esses estratos de tempo que sobrevivem na obra se manifestam nos conteúdos; ao contrário, ganham forma mediante uma economia das


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paixões e dos afetos dos corpos que se manifestam nos valores de uma determinada época. Essa economia das paixões promove uma mímica de determinadas formas cujos modelos encontram-se sob a forma de ruínas, objetos destruídos e depositados nas camadas de tempo das obras criativas daquilo que chamamos de história. No entanto, os modelos selecionados mediante as “affectios” de uma época são carregados de novos sentidos, polarizando-se muitas vezes com o seu sentido original 3. Com esse procedimento, mais do que uma atualização de uma forma, o que se opera é uma apropriação crítica de um meio, descobrindo não somente os estratos de tempo ali presentes, mas despertando a sua temporalidade, isto é, sua capacidade de intervir, sua potência crítica. Dessa maneira, chegamos a uma definição possível de temporalidade do presente. As obras que consideraremos portadoras desses estratos de tempo “presente” serão aquelas que lograram selecionar os valores que se encontram formalizados numa economia dos afetos, que não são precisamente uma forma, mas antes maneiras de combinar os efeitos do processo de “vir-a-ser” e extinguir-se das obras. Daí que o presente seja uma categoria que não esteja na obra senão como traço de sua vida, aquilo que Walter Benjamin denominou como vida natural da obra. Vida natural das obras, isto é, o seu processo de “vir-a-ser”e de seu declinar.

O conceito de origem aqui empregado é o desenvolvido por Walter Benjamin em seu trabalho sobre o Barroco. Para Benjamin no processo de transmissão da tradição ou na leitura histórica do legado cultural o conceito de “origem” não pode ser lido sem o de destruição. “O termo origem”, lê-se na tradução daquele trabalho de Benjamin feita por Sérgio Paulo Rouanet, “não designa o vira-ser daquilo que se origina, e sim algo que emerge do “vir-a-ser” e da extinção.” Segundo a reflexão que Walter Benjamin propõe, para que o presente possa apropriar-se da lição do passado seria necessário que ela fosse destruída, transformando sua vida em algo diferente, mas que não cessa de passar. Assim que a origem (Die Ursprung) para Benjamin, mesmo sendo uma categoria histórica, não se refere à genese (Die Entstehung). Não se objetiva com a reflexão sobre a origem descrever o processo pelo qual o existente veio a ser, mas antes contemplar o que emerge do processo de “vir-a-ser” e desaparecer. Dessa maneira, ao discutirmos a origem como efeito, como “duração” do processo de “vir-a-ser” e desaparecer, estamos discutindo também a potência das formas primordiais, digam-se originárias, que são produzidas nesse processo, estamos discutindo as categorias de presente que emergem da observação da “pré” e “pós-história” daquilo que estamos a contemplar.

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Como produzir literatura do presente?

Uma literatura do presente mais do que pressupor uma contemporaneidade implica uma noção compartilhada do fazer literário. Os “escritores do presente” não são necessariamente contemporâneos, mas produzem um pensamento comum acerca do literário cujo efeito não é o de reuni-los em um grupo, mas o de criar uma comunidade sem laços, uma comunidade de singularidades movidas por um desejo de arte e não propriamente por um fazer artístico. Walter Benjamin escreveu o seu trabalho sobre o drama barroco alemão motivado por esse conceito do presente, isto é, um presente artístico-filosófico. O que Benjamin buscava eram “as formas originárias” da arte, intimamente ligadas ao próprio conceito de origem desenvolvido nesse mesmo trabalho. Encontrou as formas originárias do drama barroco alemão no século XVI e XVII e detectou como elas sobreviviam nas formas originárias do expressionismo alemão da primeira década do século XX. Além de formular uma teoria das formas primordiais na arte, baseado na leitura de Goethe sobre as formas originárias, Walter Benjamin produz um conceito de temporalidade do presente na arte. O tempo presente se constitui com base no conceito de forma originária. Desse modo, as obras do tempo presente, além de manifestarem uma forte opção pela arte produtora de pensamento, estariam ligadas a certas noções de fazer literário que incluem um não-fazer, reafirmam, ao contrário, apenas um “querer” fazer, isto é, incluem uma noção de abandono do próprio ato de “fazer” literatura. Walter Benjamin detecta essa modulação de arte do presente no barroco do século XVII e no expressionismo. Partindo desse método, que deve ser entendido como um procedimento crítico, essa comunidade do presente pode ser aumentada mediante uma modulação desses mesmos procedimentos na arte. Assim, uma tentativa de fazer conjunto crítico dessas obras, abrigando-as em uma nova tendência ou grupo, estará sempre marcada por sua mais fiel característica: a de ser incompleta ou de ser provisória,


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uma vez que obras serão justamente analisadas com base em um “querer ser” e não efetivamente em um “ser” arte. É daqui que surge a posição política de algumas obras do presente de abdicarem definitivamente da característica de “ser arte”. Esse “abandono” pode levar a uma ultrapassagem dos limites de mediação entre a realidade e a ficção nos quais a arte modernista se situa, assumindo-se como uma prática fluida que promove o trânsito entre as fronteiras dos gêneros da crítica e da ficção ou ainda levando à enunciação de uma forte negatividade ativa. Nesse sentido, a arte do presente, ou ainda, a literatura do presente é ficção no mesmo momento em que é ensaio ou crítica, no entanto, sendo ao mesmo tempo todas essas modalidades discursivas, não é nenhuma delas autonomamente. Essa atitude afirmativa frente ao “ser” arte que se manifesta apenas em “querer ser arte” acontece justamente quando se arrisca com desconhecido para se chegar a outros lugares igualmente desconhecidos e assim produzindo uma “modulação”, um “movimento” que não é de ruptura e tampouco é de continuidade, ao contrário, pertence a uma deriva da tradição moderna. A modernidade com sua tradição caracterizada pela ruptura revelou-se incapaz de elaborar um pensamento para o tempo presente, bem como para o de literatura do presente. A literatura do presente que envolve uma noção muito maior do que a noção de contemporâneo é aquela que assume o risco inclusive de deixar de ser literatura, ou ainda, de fazer com que a literatura se coloque num lugar outro, num lugar de passagem entre os discursos, entre os lugares originários da poesia, e que não devem ser confundidos com o espaço, com a circunscrição de um território para a literatura. Escrever literatura do presente hoje tem a função de fazer coincidirem duas coisas que a modernidade esgotou há muito: a possibilidade do conhecimento e da experiência. O problema é como fazer experiência poética e ao mesmo tempo produzir conhecimento se nosso presente está saturado de memória. Nietzsche já falava da hipertrofia da memória em Considerações extemporâneas, essa superabundância que paralisa a ação, elimina o futuro e promove a


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melancolia. Como recuperar a faculdade de se ter e fazer experiência? Será que precisamos suspender o conhecimento, a tradição? Giorgio Agamben comenta as possibilidades da experiência na filosofia e na arte em seu livro Infância e História. Reconstrói, para propor caminhos, a história da experiência no pensamento ocidental. E ao comentar o problema da experiência nas “quêtes” medievais nos oferece uma reflexão interessante para pensar a literatura do presente. A instância que marcava a produção do conhecimento na Idade Média demonstra que o sujeito do conhecimento somente poderia conhecer o bem “per scietiam”, dessa forma, na “quête” residiria essa impossibilidade de unir conhecimento e experiência num único sujeito. A experiência humana precisamente é concebida nas “quêtes” como “aporia”, isto é, como ausência de caminho. Giorgio Agamben completa a análise dizendo que enquanto a experiência científica é efetivamente a construção de um caminho seguro, de um “méthodos”, em direção ao conhecimento, a “quête” ao contrário é o reconhecimento de que a ausência de caminho, isto é, a “aporia”, do grego “a-poria” (sem caminho), é a única experiência possível para o sujeito. Dessa forma, Agamben ressalta a posição de Dom Quixote, o velho sujeito do conhecimento, com toda sua memória da tradição, que foi enfeitiçado, e só pode fazer a experiência sem nunca possuí-la. Dom Quixote é o sujeito marcado pelo procedimento da “quête”, isto é, ele vive o cotidiano e familiar como extraordinário e exótico, porém, esse tipo de “Unheimlich” pré-freudiana às avessas é somente a cifra da “aporia” essencial de toda experiência. À “quête”, ou seja, o reconhecimento do não-saber, da não-arte, e a aceitação de um apenas “querer fazer”, Agamben opõe o procedimento que envolve a aventura. Segundo o filósofo italiano a aventura pressupõe que exista um caminho até a experiência e que esse caminho passe pelo extraordinário e pelo exótico como instâncias a serem conquistadas e dominadas ao final do processo do conhecimento. Dom Quixote faz experiência com a tradição e não a propõe como uma aventura. Não se relaciona com a tradição para nela encontrar valores e


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critérios, nunca toma posse da sua experiência e tampouco a reproduz com base num cânone, portanto, não produz o conhecimento mediante a construção de um caminho certo, de um “méthodos”, ou seja, de um ABC da literatura em direção ao valor máximo da construção lingüístico-discursiva. Ao invés disso, o procedimento de Dom Quixote se baseia em um caminho paralelo que é o caminho da “quête” medieval, o caminho dos heróis que ele recorda em sua relação de desvio da tradição. Ao contrário de todo experimentalismo possuidor de conhecimento seguro, é o reconhecimento da ausência de caminho (“a-poria”), de método, que fundamenta a única experiência possível para uma literatura do presente. Pelo mesmo motivo a “quête” é o oposto da aventura que na idade moderna se apresenta com o último refúgio da experiência. Poderíamos com isso sublinhar que Jorge Luis Borges, ao reciclar o valor de Don Quijote de la Mancha em Pierre Menard, el autor del Quijote, se mostra também um produtor da literatura do presente, pois Pierre Menard arrisca com o desconhecido retomando e ao mesmo tempo abandonando a noção do autor na modernidade. Essa relação experimental teleológica que envolve toda aventura na modernidade, isto é, a vivência e como conseqüência a autoridade exemplar dela decorrente, como procedimento franqueador do conhecimento, conduz toda experiência artística na modernidade ao cansaço. A aventura gera cansaço, gera a fatiga nas retinas do poeta, relembrando aqui o poema, “No meio de caminho” (1928)4, de Carlos Drummond e que teve seu valor reciclado pelo poema “Fractal” (1991)5, de Carlito Azevedo. Devemos estar

No meio do caminho tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do caminho/tinha uma pedra/no meio do caminho tinha uma pedra.//Nunca me esquecerei desse acontecimento/na vida de minhas retinas tão fatigadas./Nunca me esquecerei que no meio do caminho/tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do caminho/no meio do caminho tinha uma pedra. (Drummond, Revista de Antropofagia, n. 3, 1928. In: Alguma poesia, 2001). 5 No meio da faixa de terreno destinada a trânsito tinha um/[mineral da natureza das rochas duro e sólido/tinha um mineral da natureza das rochas duro e sólido no/[meio da faixa de terreno 4


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atentos que os vanguardistas brasileiros já falavam do cansaço. Mário de Andrade em A escrava que não é Isaura anota que um “menino de 15 anos neste Maio de 1922 já é um cansado intelectual. [...] O raciocínio, agora que desde a meninice nos empanturram de veracidades catalogadas, cansanos e CANSA-NOS” (Andrade, 1980, p. 251). O cansaço é algo produzido por uma exaustão do projeto da modernidade. Se o problema da arte do presente não pode ser definido pelo projeto moderno porque ele já provocou seu próprio cansaço, não é possível apenas atualizar os procedimentos da vanguarda, a saber, a paródia, o pastiche e a citação. Das análises em que se toma o cansaço e a repetição como único caminho a percorrer decorrem as visões da literatura contemporânea baseadas na ruptura ou continuidade das gerações e nas filiações entre os trabalhos daqueles que se aventuraram e se iludem com a sensação de que ao tomarem o espaço que seus antecessores lhes deixaram estão construindo o futuro. Enganam-se, pois a fatiga é estéril e a melancolia paralisa. É interessante nesse sentido pensar a literatura do presente com os procedimentos da “busca”, ou seja, da “quête”, no lugar de aventura. Na “quête” sobrevive uma noção de abandono do “projeto”. Contudo, o tomar o caminho de um outro projeto, o da “quête”, pressupõe a aceitação não da memória carregada de imagens da modernidade, mas a consciência da “aporia” constitutiva de toda experiência, de todo projeto. A literatura do presente se propõe a catar, a buscar catando, catando esmola, catando aquilo que sobra, para então querer fazer com esses restos alguma literatura. Isso se constitui em outro tipo de projeto. A aventura envolve um projeto detentor de uma finalidade, um fim. A literatura do presente é um

destinada a trânsito/tinha um mineral da natureza das rochas duro e sólido/no meio da faixa de terreno destinada a trânsito tinha um/[mineral da natureza das rochas duro e sólido.//Nunca me esquecerei deste acontecimento/na vida de minhas membranas oculares internas em que/[estão as células nervosas que recebem/[estímulos luminosos e onde se projetam/[as imagens produzidas pelo sistema/[ótico ocular, tão fatigas. [...] (Azevedo, 1991, p. 32).


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meio que abandona o seu fim, e isso deve ser entendido na sua ambigüidade, ou seja, ela é um meio sem finalidade. Penso que há textos que podem demonstrar essa opção pelo abandono do projeto como possibilidade da literatura continuar existindo em seu processo, em sua vida, e não como peça que pertence a um museu de inutilidades. Transcrevo aqui alguns versos do poema “Sigo”, da poeta portuguesa Adília Lopes, de seu último livro Le vitral de la nuit. A árvore cortada (2006). O poema constrói fortemente essa política da poesia do presente como acumulação sem dono, direção sem rumo, isto é, a experiência produzida pelo poema tomada como “aporia”. Sigo o meu caminho que é torto Um corvo me acompanha e um porco Passo pela árvore e pela forca Passo pela igreja ao abandono Não abandono a igreja ao abandono (Lopes, 2006, p. 74). Não está em jogo propriamente o abandonar a literatura, trata-se de um abandono da concepção de poesia como produtora de experiência e de


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conhecimento baseados num caminho seguro, na tradição. Os jogos intertextuais são abandonados em suas funções anteriores e usados nessa concepção anacrônica do tempo como procedimentos que permitem o tomar posse do tempo histórico. A mesma idéia do abandono do projeto, abandono da ação, ao se abandonar a própria viagem, é desenvolvida nesse poema de Carlito Azevedo “Do livro das viagens”, de Versos de circunstância. Liliana Ponce não esqueceu o seu casaco no salão de chá Liliana Ponce nem estava de casaco (No Rio de Janeiro fazia um belíssimo dia de sol e dava gosto olhar cada [ferida exposta na pedra) Liliana Ponce, conseqüentemente, não teve que voltar às pressas para a [casa de chá (a garçonete com cara de flautista da Sinfônica de São Petesburgo não veio [nos alcançar à saída [acenando um casaco [esquecido) Desse modo Liliana Ponde chegou a tempo de pegar o avião Partiu para a Argentina. (Azevedo, 2001, p. 8). As ações expressas pelo poema e que nunca se realizam de certa maneira proporcionam ao poema a potencialidade de executar uma ação sem ato, uma ação referida ao mesmo agente, uma ação em que agente e paciente entraram em uma zona de absoluta indistinção, aquela que Deleuze lê em Spinosa, a do passear-se a si, ou seja, constituir-se a si visitante, mostrarse a si visitante. São essas expressões que fazem coincidir a potência com o ato e a inoperosidade com a obra. E a própria Liliana Ponce diz em “El conocimiento siembra el cuerpo”, de Teoría de la voz y el sueño:


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[...] Hablo en lo transitorio, busco en lo transitorio y las señas pasan por el silencio de las cicatrices. Después del mar, la tierra. Después de la tierra, los ojos – placer maternal. En todas partes derramas las preguntas que se alínean en el mapa de la sed. Sin guía tus pasos me encuentran y aun sin fruta tu boca es mordida. Ahora mis brazos se alargan para llegar a tu carne desnuda. Y en el pensamiento tu semejanza me sostiene para huir del temor o del éxtasis. (Ponce, 2001, p. 45). Nesses poemas não há lugar para o cansaço, uma vez que todos esses temas tão fervorosamente trabalhados pelas imagens modernas são tomados em seu aspecto tão fresco e ao mesmo tempo tão passado de si mesmos, a bela imagem de Liliana de buscar o transitório no silêncio das cicatrizes fala por si mesma. A “quête” não gera fadiga uma vez que nela vive-se o ordinário e o familiar como extraordinário e o extraordinário como familiar e nisso reside o seu valor que não é da ordem das grandezas e nem pode, porque ela pode ser chamada ainda uma vez mais de literatura menor. É literatura do presente, é literatura ordinária, isto é, de todas as ordens, envolve todos os tempos, pois é anacrônica já que trata o extraordinário como ordinário e vice-versa. Não provoca fadiga como na aventura


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intelectual, porque no lugar de reinstituir a prática da memória, a memória do modernismo, por exemplo, propõe a prática imemorial da “quête”, isto é, a busca pela experiência como “aporia”.

O anacronismo como método para produzir o presente

Oferecendo potência à leitura da história feita por Marx, Walter Benjamin entende que uma força de destruição move a história, desse modo, concluindo que há uma impossibilidade da regeneração da vida histórica numa totalidade harmoniosa e que é impossível o futuro esquecer o sofrimento e a corrupção do passado. Quanto mais catástrofes tanto maior a história adquire seu índice negativo de transcendência, portanto, não há lugar nesta concepção de história para a idéia de progresso, pois diz Benjamin, “a idéia de um progresso da humanidade na história é inseparável da idéia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo” (Benjamin, 1994, p. 229). Sem possibilidade de transcendência e marcada pela negatividade a história se vê compreendida num tempo que nunca deixa de ser presente, isto é, retomando as teses que nortearam o trabalho sobre o drama barroco, a história estaria marcada por um traço de finitude no qual a idéia de progresso e evolução inexistem, tudo muda no processo de “vira-ser” e “declinar-se”, porém nada evoluciona ou aumenta infinitamente e tampouco progride. O passado advém em cada momento do presente em que ele é reconhecido. Na 5ª Tese sobre o conceito da História, Walter Benjamin expõe um conceito de presente como instante de reconhecimento dos tempos heterogêneos de que se compõe a história. “A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido. ‘A verdade nunca nos escapará.’ – essa frase de Gottfried Keller caracteriza o ponto exato em


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que o historicismo se separa do materialismo histórico. Pois irrecuperável é cada imagem do presente que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela.” (Benjamin, 1994, p. 224). É dessa maneira que podemos compreender que para Benjamin a história não seria o lugar6 de uma sucessão progressiva de acontecimentos num tempo homogêneo e vazio, mas sim o resultado de uma construção de um tempo “saturado de agoras”. Nesta concepção de história não possuem valor as imagens reconciliadoras entre o passado e o futuro, e mais uma vez aqui retomamos a premissa deste trabalho que, fundamentado na leitura operada por Walter Benjamin, não há que se ponderar sobre a história, bem como sobre a história literária como uma conciliação de tempos, como contemporaneidade, uma vez que o tempo presente justamente se constrói com uma atitude de recusa à harmonia na qual está baseada a totalidade simbólica. Assim, não é motivo de escândalo quando as imagens presentificam a injustiça ou a mentira, pois o continuum da história foi explodido, outros detalhes chamarão a atenção, outras combinações serão feitas, uma outra leitura se constrói. Que combinações serão possíveis para a retomada das discussões sobre a injustiça ou a mentira, que combinações serão possíveis para retomarmos as imagens de Auschwitz? Benjamin propõe que para figurar a verdade e a justiça todo ato criativo terá que se manter voluntariamente em silêncio a respeito delas.

6 Em A ideologia da estética, Terry Eagleton opera uma leitura da concepção de tempo em Walter Benjamin que contrasta com a formulação de uma das teses feitas pelo próprio Benjamin. No capítulo ironicamente intitulado “O Rabino Marxista”, Eagleton afirma categoricamente que o tempo na leitura messiânica da história de Benjamin fica reduzido a um espaço de repetição. Diz Eagleton: “O tempo, nessas condições, é reduzido ao espaço, limitado a uma repetição tão agonizantemente vazia que deve pôr a tremer na sua fronteira uma epifania salvífica.” Se retomamos a tese Sobre o conceito da História de número 14 poderemos verificar que explicitamente Walter Benjamin diz que a história não é o lugar de um tempo homogêneo e vazio, mas sim de um tempo heterogêneo. “A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’”. Portanto, para Benjamin o tempo histórico nunca se reduz a um espaço, a um território, ele sempre será tempo e, mais, um tempo que se constitui com base em acúmulos de ruínas de outros tempos, dessa forma, então, um tempo como lugar, no entanto, um lugar mais originário que o espaço.


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No entanto, este silêncio voluntário traz, nas camadas de tempo com as quais deliberadamente joga, um turbilhão de imagens que presentificam os conflitos nas figuras que constrói. Portanto, é um silêncio pleno de ambigüidades uma vez que a obra acontece no intervalo entre o silêncio e a figuração, o “evento-obra” não se materializa, ao contrário, ele abdica de se situar num espaço conhecido, seguro e delimitado dos campos de conhecimento autônomos da modernidade. Nesse sentido, os fundamentos científicos e políticos baseados em concepções autonômicas ou concepções que ratificam pertencimentos que são saldados com os exílios dos indesejáveis não podem ser mais utilizados como paradigmas de nossas práticas críticas. Sabemos já que o resultado final dessa opção é Auschwitz, isto é, a lógica do campo como paradigma da racionalidade moderna, segundo Giorgio Agamben. Considerar a literatura fora de seu estatuto de autonomia é uma opção que alcança uma refinada sintonia com a temporalidade de um agônico presente, caracterizado pelo trânsito entre fronteiras antes muito rigidamente separadas, trânsito de informações e modos de existência que modificam as antigas configurações. Apesar de ser uma modificação que implica a permanência do mesmo, como assim analisou Mario Perniola sobre a noção de trânsito que acompanha a produção do pensamento produzido no presente: “O trânsito é um movimento do mesmo para o mesmo, onde, porém ‘mesmo’, não quer dizer ‘igual’, porque implica a introdução de uma diferença, de uma mudança, que é mais profunda quanto menos chamativa.” (Perniola, 2000, p. 28-29). Os estudos literários que não querem ser tributários da teoria que produziu Auschwitz não devem buscar as marcas que justamente fazem da literatura, como de toda produção artística, um campo de frações segmentadas ou territórios autônomos. Buscar a categoria do presente nas obras que analisamos não tem apenas o sentido de reencontrar a história cultural de cada época nessas obras, mas sim de descobrir e reconhecer a sua vida interior, que longe de ser apenas documento histórico pertence a um mundo textual,


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portanto tanto ficcional quanto histórico, porém um mundo no qual os textos declaram e ratificam sua potência discursiva, sua potência de “ser não-”. Vimos anteriormente que a literatura do presente abdica de sua prática teleológica, isto é, não tem mais a pretensão de se auto-instituir bem como abdica de toda pretensão instituidora. A literatura do presente abre mão de agir e, quando age, o faz enquanto negativo, ao revés. A literatura é um ato, segundo Jacques Derrida, no entanto, esse ato está muito mais próximo daquilo que Giorgio Agamben compreende com base nas reflexões formuladas por Aristóteles, no De anima, isto é, como um ato que conserva em si a “potência de não-”. Giorgio Agamben explica que “a interpretação que propomos obriga-nos a pensar de uma forma nova e não banal a relação entre potência e ato. A passagem ao ato não anula nem reduz a potência, mas esta se conserva no ato como tal e marcadamente na sua forma eminente de potência de não (ser ou fazer)” (Agamben, 2006, p. 18). É disso que se trata: a literatura não é um ato qualquer de linguagem uma vez que o ato de linguagem se esgota na sua comunicação. Após o efetivo cumprimento da comunicação ele não existe mais como potência comunicativa. Muito se discute e já se discutiu nos últimos 30 anos sobre a exaustão desse modelo autonomista que tem seu fundamento na reflexão sobre a literatura como atividade transformadora e construtora de um outro tipo de humanismo, constatado ainda como necessário mesmo após o fracasso do humanismo europeu no início do século XX que não conseguiu evitar a implantação da lógica do campo enquanto lógica hegemônica na modernidade. Depois das duas guerras mundiais a questão já não passava mais por ensinar a literatura na sua manifestação e materialização artística das línguas nacionais como estratégia formal para a consolidação dos novos Estados Nacionais modernos e ocidentais. No entanto, isso não significou a suspensão de uma metodologia de ensino de literatura baseada teoricamente na história e no cânone dessas manifestações artísticas em língua nacional.


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Cânone esse, por sua vez, fundado mediante o critério de seleção que pressupunha um estar de acordo das obras literárias com os temas e assuntos da nacionalidade, no caso do Brasil, citemos, apenas para efeito de exemplo, o destaque dado ao tema da exuberância da natureza local, dos problemas de adaptação do ser humano a esse meio que apesar de maravilhoso era adverso, o problema do subdesenvolvimento social, bem como da cordialidade brasileira e seu avesso superficialismo ritual, entre outros. Esses parâmetros, digamos, não deixaram de estar presentes no momento em que a rediscussão do papel da literatura é proposta, isto é, após as guerras na Europa e após os fracassos na consolidação das repúblicas democráticas na América Latina. Ainda valorizávamos nas nossas metodologias os critérios autonômicos da língua nacional, dos meios de produção especificamente literários e nacionais e de um público receptor nacional. Contudo, o que estava em discussão era: qual o papel que a literatura teria na nova tentativa de construir o futuro? Qual seria sua função? Detectar a função de algo significa compreender a sua experiência com a história e com o tempo.

O método de uma política

Em Infância e História, Giorgio Agamben ressalta que cada concepção da história vem sempre acompanhada por uma determinada experiência com o tempo. Sendo assim, não se repensa uma sociedade sem antes reformular sua experiência com o tempo e não é possível desenvolver uma nova cultura sem uma modificação profunda dessa mesma experiência. Em nossos dias experimentamos uma nova configuração do tempo. Estamos diante do tempo como que em um caleidoscópio, toda a experiência histórica que parece ser-nos oferecida a cada instante é mediada por uma enorme quantidade de dispositivos que têm a função de capturar nossa subjetividade


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e convertê-la em elemento produtivo7. Entretanto, cabe-nos interrogar sobre esse tempo pleno no qual tudo parece estar ao alcance de nossas mãos e sobre os dispositivos que governam a produção advinda do nosso relacionamento com esse tempo. Ou melhor, o que valorizamos como experiência produtora de conhecimento quando definimos que tipo de temporalidade organiza nossa experiência de escrever sobre literatura hoje? A experiência que definimos como válida é aquela experiência segura, baseada no caminho já trilhado da experiência de outro, uma experiência que se fundamenta numa temporalidade homogênea cujo resultado é a adesão a um conceito de tempo evolutivo e ainda progressivo? Ainda pensamos em movimentos literários, escolas, autores e cada um com seu tempo e seu espaço únicos? Ainda pensamos a literatura como se ainda estivéssemos no tempo dos Estados Nacionais do século XIX no qual a literatura transformou-se em matéria e cuja lógica esteve submetida à lógica disciplinar da sociedade de massa? Ainda pensamos que precisamos ter uma língua comum e uma literatura comum para que constituamos uma nação? Uma concepção de literatura com esses perfis serve a uma prática de despolitização, por mais que a intenção primeira fosse exatamente a de politizar, mais ainda, as análises que criamos baseadas nessa concepção de literatura são tributárias da “biopolítica” do século XIX. A crítica do século XXI caracteriza-se por um estar entre os estatutos do pré-moderno, do moderno e o de um pós ainda por vir. No entanto, urge pensar a literatura em seus aspectos intrínsecos artísticos e políticos sob pena de perdermos a potência da multidão da qual somos parte e que produz em nós novas subjetividades mais adequadas e, ao mesmo tempo, mais críticas à noção de progresso linear e evolutivo.

Para uma melhor compreensão do procedimento de captura de nossa subjetividade operada pelos dispositivos conferir: “O que é um dispositivo?” (Agamben, 2006).

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Anacronismo: um método impolítico

Para refletir sobre o movimento entre as linguagens e a sua não delimitação em territórios autônomos e estanques gostaria de citar mais uma vez Giorgio Agamben quando responde à questão sobre o que é um movimento, compreendendo-o como algo falacioso. “Se, porventura, quisermos pensar de forma diferente o conceito de biopolítica, como o faz Toni (Negri), mesmo que em perspectiva diferente, e da qual eu me sinto muito próximo, se quisermos, pois, pensar a intrínseca politicidade do biopolítico – se o elemento biopolítico é visto como político desde sempre, e por isso não precisa ser politizado através do movimento – então precisaremos repensar, desde a raiz, o conceito de movimento. Não poderemos usar acriticamente o conceito de movimento se, por exemplo, quisermos pensar a politicidade do elemento biopolítico.” (Agamben, 2005, p. 2). Dessa forma, devemos nos interrogar sobre a categoria política do “biopolítico”, por exemplo, dos pressupostos que promoveram no século XIX a aplicação da terminologia e, conseqüentemente, a incorporação de métodos de estudos à literatura e à sua história cujo resultado foi o acréscimo ao corpo informe da literatura pré-moderna da noção de movimentos e escolas literários e a transformação da literatura em disciplina escolar a qual se configurava com base no movimento linear temporal e espacial entre esses movimentos e escolas, ou seja, a instituição da história da literatura e a sua transformação em entidade autônoma. Portanto, para podermos fazer a crítica à noção autonomista e moderna de literatura, que rejeita a concepção de temporalidade do presente e de literatura do presente, há que se recuperar e se refletir sobre o que de político havia nos textos que vieram a compor os organismos que foram posteriormente chamados de escolas literárias. Em seu estado prémoderno a literatura era um corpus pelo qual o político se constituía e transformou-se, na sua forma autonomista e moderna, em organismo, ligada a uma concepção de povo demográfico-biológica da qual passou a ser


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expressão, e, como tal, isto é, como organismo biológico a literatura tornouse “impolítica”. O que não significou que a literatura não falasse do político. É claro que o político continuou a estar presente nesse discurso, porém, esteve presente mediante a identificação de uma cesura interna ao seu organismo “biopolítico”, isto é, “impolítico”, cuja função é a de justamente permitir a sua politização. A identificação dessa cesura é tarefa dos assim chamados no século XIX movimentos literários, escolas literárias, que irão identificar o elemento estranho a esse corpo biológico, isto é, o que não é literatura, ou seja, a publicidade, as artes visuais, a moda, a cultura popular etc. Dessa forma, o político transfere-se para fora do corpo literário, identificando o que é estranho a esse discurso. O político na literatura passa a ser tarefa de algo que lhe é exterior no mesmo momento em que procura criar o efeito de interioridade, isto é, criar o efeito de fazer-nos sentir como se estivéssemos no seio de uma calorosa família quando na verdade nos encontramos num campo de refugiados. E em que se baseia o organismo biológico da literatura a partir do século XIX? Se o elemento político não é o texto literário, mas o movimento como entidade autônoma, de onde o movimento pode tirar sua politicidade? A politicidade do movimento poderá basear-se unicamente na sua capacidade de identificar no interior do organismo literário um inimigo, ou seja, um elemento biologicamente estranho: o não-literário, o não-nacional, o nãocontextualizado, o não-idêntico a si mesmo etc. Onde há movimento sempre haverá uma cesura que corta corpo, que o divide, nesse caso, identificando um inimigo. Eis por que me parece tão urgente repensar o conceito de movimentos e escolas literárias, dentro dos quais a noção de literatura do presente, isto é, a literatura e o político, é impensável. A conseqüente transformação da literatura em algo que lhe é exterior, ou seja, em forma, em cânone e em memória a ser cultuada e não vivida obstrui a passagem que franqueia a relação entre arte e pensamento.


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O corpo político da literatura e a metodologia inclusiva-não-excludente

Não precisamos tomar uma decisão política sobre o “impolítico”, ou seja, excluí-lo ou incluí-lo é tarefa que leva à lógica do “campo”, que é restritiva e punitiva desde sua concepção moderna, segundo Giorgio Agamben, ou seja, é uma zona circunscrita na qual a lei foi suspensa. A decisão política sobre o “impolítico” pode adquirir a forma de uma cesura formal, étnica ou racial, textual ou lingüística e, dessa forma, fazendo-nos exercitar o ato de excluir ou incluir e até mesmo o de diluir para fazer desaparecer. O resultado dessa operação é a exclusão do critério excludente, seja ele o da forma, isto é, dos gêneros textuais, da tipologia de textos, seja ele o das matérias, isto é, o da língua nacional ou materna, o dos campos de conhecimento. Contudo, aquilo que num primeiro momento pareceu inclusivo logo a seguir foi substituído por outra fronteira, outro critério de seleção e combinação. Não é isso o que reside na idéia de uma metodologia do anacronismo para produzir crítica/ensino de literatura. Essa metodologia tem que ser inclusiva sem ser excludente, portanto, não pode obedecer a critérios de se ter uma língua, de se ter uma identidade lingüística, de se pertencer a um gênero textual ou de se vincular a um campo artístico ou não. Tampouco ela poderá apregoar uma tipologia textual ideal ou apontar novas escolas literárias ou estilos artísticos a serem valorizados. Diante desse novo desafio produzido por uma concepção anacrônica que compreende a literatura como um problema do pensamento, temos que lidar com a questão de que o currículo na escola não pode ser definido antes do fato e, novamente com Agamben dizemos, não há experiência cujos caminhos, isto é, cujos métodos possam ser definidos a priori, e, por conseqüência, não há processo algum de aquisição de conhecimento antes do ato de colocar-se numa posição de não-saber, posição de risco total. Portanto, a experiência e a aquisição do conhecimento ocorrem após o fato, pos factum.


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Pensar uma nova metodologia para a literatura, seu ensino e sua crítica, é pensá-la como experiência de risco, experiência com o que é estrangeiro a nós mesmos e que deve ser visto sob uma perspectiva familiar, ou seja, é pensar a literatura como aquilo que não se enquadra no contexto ou do texto que é estranho a si mesmo, contudo, que passa a ser visto com base na sua mais íntima relação consigo mesmo. Pensar a literatura na sua experiência sem a garantia de um caminho seguro já trilhado é assumi-la em sua vida interior, sua vida a meio do caminho, que “ainda-não-serealizou” na sua realização, vida essa composta por formas originárias que se caracterizam por serem a soleira da potência do mundo empírico da literatura frente à sua correlação entre tantas outras formas de vida interior. Formas essas que também devem ser vistas mediante uma concepção de lugar, isto é, de “topos” de conhecimento que são igualmente entendidos como lugares, “topoi” de não-saberes, como, por exemplo, a arte, a psicologia, a biologia, a história e a própria idéia de crítica literária, o que significa pensar a literatura como limite de si mesma e como negação de si mesma, no próprio ato de ensiná-la. Giorgio Agamben pergunta em “O fim do poema” o que restará ao poema depois da sua transformação em discurso prosaico? A sua resposta tem o sentido de abrir o poema para o futuro e não encerrá-lo num discurso autonomista e tampouco dissolvente. Desse modo, Agamben, dirige o fim do poema para um lugar – e não um espaço – no qual ele reste como pensamento crítico, ou melhor, pensamento “dynamico”: o pensamento-potência. Entretanto, nesses nossos tempos de trânsito, de transição de tempos, de temporalidades incessantes, o pensamento de Walter Benjamin permanece ainda válido. Diz-nos Benjamin, no seu ensaio sobre o tradutor e no livro sobre o Barroco, que aquilo que restará das obras literárias depois do fim da literatura “perviverá” como ruína, como traço, nas obras das gerações vindouras. Portanto, a tarefa da literatura do presente, a tarefa de uma metodologia de aproximação do texto literário, hoje, depois do fim da história, do fim da literatura e do fim da crítica consistirá em


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identificar e reconstruir a vida interior ou natural, como prefere Benjamin, “das” obras em vez de se reconstruir “as” obras e “as” criaturas. É importante não perdermos a literatura na literatura, e para isso teremos que abandonar a idéia mesma de literatura. Não importa identificar no texto as diversas linguagens ali presentes, e constatar se estão, ou não, adequadas ao contexto que as produziu, importa é não deixarmos escapar, bem como preservar, a sua “potência de não-” da qual falávamos anteriormente, essa sim verdadeiramente política. Potência essa que iremos encontrar em vários personagens literários, como por exemplo, Bartleby, Gregor Samsa, Joseph K., Mendonça, G. H., entre tantos outros que poderiam constituir outras comunidades que não formam laço social. Essa comunidade não pretende formar outro cânone, já que está construída sob uma concepção de literatura que tem a chance de abdicar da autonomia e aceder a uma soberania que, mesmo não sendo universalista nem relativista, permitirá a reflexão sobre os afetos humanos e a reorganização efêmera de comunidades literárias mais efetivas.

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Título Literatura do presente: história e anacronismo dos textos Autor Susana Scramim Assistente editorial Hilario Junior dos Santos Assistente administrativo Neli Ferrari Secretaria Alexandra Fatima Lopes de Souza Divulgação Alexandra Fatima Lopes de Souza e Josué Carvalho Projeto gráfico e diagramação Ronise Biezus Capa Hilario Junior dos Santos Preparação e revisão dos originais Jakeline Mendes Ruviaro

Formato 16 X 23 cm Tipologia CaslonOldFaceBt e Latin725BT entre 7 e 15 pontos Papel Capa: Cartão Supremo 350 g/m2 Miolo: Pólen Soft 80 g/m2 Número de páginas 190 Tiragem 800 Publicação outubro de 2007 Impressão e acabamento Gráfica e Editora Pallotti - Santa Maria (RS)

Argos - Editora Universitária - UNOCHAPECÓ Av. Attilio Fontana, 591-E - Bairro Efapi - Chapecó (SC) - 89809-000 - Caixa Postal 747 Fone: (49) 3321 8218 - argos@unochapeco.edu.br - www.unochapeco.edu.br/argos



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