Platão e a linguagem poética: o prenúncio de uma distinção

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P L AT Ã O E A L I N G UA G E M POÉTICA


É vedada a reprodução total ou parcial desta obra.

Associação Brasileira de Editoras Universitárias


F AU S T O D O S S A N T O S

P L AT Ã O E A L I NG U A G E M POÉTICA: o prenúncio de uma distinção

C h a p e c ó , 2008


REITOR: Odilon Luiz Poli VICE-REITOR DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GR ADU AÇÃO: Claudio Alcides Jacoski PÓS-GRADU ADUAÇÃO: VICE-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: Sady Mazzioni VICE-REIT OR A DE GR ADU AÇÃO: Maria Luiza de Souza Lajus VICE-REITOR ORA GRADU ADUAÇÃO:

A485p

Amaral Filho, Fausto dos Santos Platão e a linguagem poética: o prenúncio de uma distinção / Fausto dos Santos Amaral Filho. – Chapecó: Argos, 2008. 283 p. 1. Platão, 427 – 347 a.C. 2. Filosofia grega. I. Título. CDD: 184

ISBN: 978-85-98981-96-3

Catalogação: Yara Menegatti CRB 14/448 Biblioteca Central Unochapecó

Conselho Editorial: Elison Antonio Paim (Presidente); Alexandre Mauricio Matiello; Antonio Zanin; Arlei Luiz Fachinello; Arlene Renk; Claudio Alcides Jacoski; Edilane Bertelli; Jacir Dal Magro; Jaime Humberto Palacio Revello; José Luiz Zambiasi; Juçara Nair Wollf; Luis Flávio Souza de Oliveira; Maria dos Anjos Lopes Viella; Valdir Prigol; Neusa Fernandes de Moura; Ricardo Brisolla Ravanello C o o r d e na d o r : Valdir Prigol nad


Como se fora um filho obediente, para meu pai, Fausto dos Santos Amaral.


“Eh, Rapsodo!” E quando ele, tenteando as urzes do caminho, se acercou – o douto historiador perguntou-lhe se das doces ilhas do mar trazia algum canto novo. O velho ergueu a face entristecida; e muito nobremente murmurou que uma mocidade imperecível sorri nos mais antigos cantos da Helênia (A Relíquia, Eça de Queiroz).


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................

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PREPARANDO A LEITURA ..........................................................

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Duas questões: autenticidade e cronologia ...................................... 16 Postais de uma cidade ....................................................................

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A questão socrática ........................................................................ 36 Pequenas questões .......................................................................... 42 LENDO OS DIÁLOGOS ................................................................ 43 Íon ................................................................................................ 43 Eutífron ........................................................................................

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Hípias Menor ................................................................................ 79 Protágoras ....................................................................................

93

Mênon .......................................................................................... 144 Crátilo .......................................................................................... 182 OS DIÁLOGOS LIDOS .................................................................. 231 Íon ................................................................................................ 234 Eutífron ........................................................................................ 235


Hípias Menor ................................................................................ 238 Protágoras ................................................................................... 239 Mênon .......................................................................................... 245 Crátilo .......................................................................................... 250 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................... 257 REFERÊNCIAS .............................................................................. 271


INTRODUÇÃO

É bem provável que uma boa parte de nós, que agora nos iniciamos nesta leitura de uns poucos diálogos de Platão – escolhidos dentre aqueles que o filósofo teria escrito ainda em sua juventude, a caminho do conhecimento, em meio aos degraus, no esforço daquele que ascende –, em algum dia da infância, tenhamos escutado, diante de algo que fizemos, mas que, ao que tudo indica, por certo não deveríamos ter feito, em um tom assustadoramente ameaçador, provavelmente com o dedo em riste, mas com o zelo de quem ama, a mãe dizendo: “tu não me faças mais arte!” Mas, para quem já cresceu acostumando-se com tudo aquilo que se diz, as palavras quase já não espantam. E é bem provável que nós mesmos, imersos no cotidiano que passa, no cuidado para com quem se ama, também já tenhamos, em situação semelhante, dito o mesmo, ecoando a mesma voz. Afinal, assim como a mãe zelosa, todos, na normalidade, desejam o melhor para os seus. Por isso mesmo, pode até parecer coisa boba que alguém, a fim de submeter suas preocupações ao julgamento dos outros, ainda mais em matéria tão séria, em filosofia, comece ocupando-os assim, com uma frase tão pueril, que parece até esvanecer-se quase que imperceptivelmente na habitualidade daquilo que nos é comum. No entanto, se os ocupo, devo


confessar: foi no intuito de tentar compreender a origem da possibilidade de tamanho zelo, expresso pela dita frase, que me pus a ler os diálogos de Platão. Mas, pelo menos por enquanto, apenas estes, cuja leitura resulta no amontoado de palavras que se têm pela frente. Porém, evidentemente, pelo caráter próprio daquilo mesmo que se deveria escrever, não as amontoamos a esmo. Mas antes, cuidadosamente, evitando desviar-nos de uma certa gramática, procurando, assim, na constituição do todo, imprimindo-as em uma certa ordem, conferir-lhes um determinado sentido. Porém, se aquilo que assim se escreveu faz de fato sentido ou não é justamente aquilo que ainda não se pode saber e, provavelmente, pelo que o esforço deste trabalho será julgado. Assim, como de resto acontece em uma boa parte das nossas vidas, ter-se-á que prová-lo, para depois saber se deitamo-lo fora ou não. Os diálogos que leremos serão provados um a um. Pois, dos seis que foram escolhidos, os leremos um de cada vez. O que talvez possa parecer um tanto quanto óbvio, mas que, não poucas vezes, não é aquilo que se observa em alguns estudos que se fazem de Platão. Ou seja, inicialmente, ao ler um diálogo, além dos pressupostos que determinaram a sua própria escolha, que, preparando a leitura, serão explicitados no primeiro capítulo, procuramos ater-nos, tanto quanto possível, às letras próprias de cada um dos diálogos lidos a cada passo do nosso caminho, e, como não poderia deixar de ser, ao juízo daqueles que já passaram com sucesso pelos mesmos caminhos antes de nós. Assim, lendo os diálogos, pretendemos perfazer o segundo capítulo, a parte mais longa da nossa viagem. Só então, depois, com os diálogos lidos, ainda que de maneira ligeira, talvez até mesmo como convenha, é que vamos, como que os embaralhando, pôr as cartas na mesa, na esperança de que elas, assim configuradas, expondo o sentido de um determinado caminho, nos revelem algo a respeito do nosso próprio destino, neste que será nosso derradeiro capítulo, o terceiro. Com o que pretendemos concluir nossa jornada.

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Ao final, como se disse no começo, talvez possamos compreender melhor o apelo zeloso da mãe amorosa que, se repreende seu filho, obviamente é para educá-lo, para que ele, assim, não faça mais nada de errado, preocupada com o bem da criança. Mas, se isso não for possível, talvez possamos, pelo menos, concluir pelo erro dessa mania de ficar se preocupando com tudo aquilo que se ouve dizer por aí, na cotidianidade do nosso dia-a-dia. Pelo que também ficaria satisfeito. Pois só aquele que percebe onde erra pode corrigir-se. No caso, deixando essas vozes de lado e passando a se ocupar com coisas mais sérias. Mas, se nem isso puder ser feito, ainda acho que todo o tempo de que se dispuser para tanto não será todo ele em vão. Afinal, leremos Platão. Algo que, certamente, não se faz incólume. Porém, antes, restam algumas palavras. Diferentemente dos meus outros livros, também publicados pela Editora Argos (Filosofia Aristotélica da linguagem; A Estética Máxima), neste, todos os termos gregos foram transliterados, e as notas de rodapé estão todas em português. Ouvindo não só os editores, mas, também, muitos dos meus leitores, busquei, dessa maneira, ampliar a acessibilidade da obra. Para a transliteração, tentei seguir, no mais das vezes, as indicações da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos. Algumas breves conversas com o professor Dr. José Carlos Baracat Júnior foram de extrema importância para a tomada de algumas decisões. Pelo que agradeço ao amigo. Já para a tradução das notas de rodapé, originalmente em línguas diversas (espanhol, inglês, italiano, francês), contei com a boa vontade do professor Me. Eduardo Silva Ribeiro. Foram sete dias de trabalho intenso e comunhão filosófica. O que frutifica com o trabalho é alimento para uma vida. Assim, agradeço mais um amigo. E é claro que também quero agradecer ao professor Dr. Fernando Augusto da Rocha Rodrigues, que orientou este meu caminho, por quem guardo profundo respeito e carinho. Agora sim, estamos prontos. Quem é que arrisca o primeiro passo?

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P R E PA R A N D O A L E I T U R A

Temos pela frente a leitura de seis diálogos de Platão: Íon, Eutífron,

Hípias Menor, Protágoras, Mênon e Crátilo. Diante disso, a primeira pergunta que parece apresentar-se é: por que justamente estes e não outros? Afinal, se seguíssemos as tradicionais tetralogias de Trásilo, dentre as obras do filósofo, teríamos mais trinta diálogos para escolher. Sem dúvidas, diferentemente de seus antecessores, como Sócrates, que nada escreveu, ou mesmo dos pré-socráticos, de quem, daqueles que escreveram, possuímos apenas fragmentos, pois que, de suas obras, “nenhuma sobreviveu intacta para que pudéssemos lê-la”1, de Platão tem-se um vasto material para pesquisa. Como diz Gomperz, “Platão é o único pensador grego antigo de quem nos chegou tudo quanto escreveu. Tudo e, todavia, algo mais”2. Mas como assim algo mais?

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BARNES, Jonathan. Filósofos Pré-Socráticos. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 27. GOMPERZ, Theodor. Pensadores Griegos. Historia de la Filosofía de la Antigüedad. Tomo II. Asunción del Paraguay: Editorial Guarania, 1951, p. 292. 2


Duas questões: autenticidade e cronologia Todo aquele que pretende ler nosso filósofo e resolve, primeiramente, consultar aqueles que já o fizeram, a tradição, logo percebe que, antes de começar a fazê-lo, deve tomar algumas mínimas precauções. Se o diálogo platônico, que se pretende ler, é mesmo de Platão, parece ser a primeira. A questão da autenticidade dos escritos de Platão, ao que tudo indica, já preocupava os leitores, mesmo na Antigüidade. Nas tetralogias de Trásilo ou mesmo nas trilogias de Aristófanes (o gramático), já não estão presentes diálogos como Midón, Eurexias, Axioco, dentre outros tidos por espúrios3. No século XIX, mesmo já passado um bom tempo, desde as primeiras edições do Corpus Platonicum, Schleiermacher ainda nos advertia para que não aceitássemos assim, sem mais, as edições existentes em sua época, que ainda se apoiavam na autoridade de Trásilo. No seu intuito de resgatar a organicidade dos escritos de Platão, o hermeneuta deixa claro: Ora, se se quiser restaurar a seqüência natural das obras platônicas a partir da desordem em que se encontram hoje, então, parece, é necessário que decidamos antecipadamente quais obras realmente são de Platão e quais não são4.

Com o que, a partir de então, aquele que pretende ler Platão se depara não só com a questão da autenticidade, mas também com a questão

da cronologia: a tentativa de ordenar os diálogos segundo a suposta data da composição de cada um, vendo-se aí um momento importante, ou até

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Cf. DIÓGENES LAÉRCIO, III, 34. SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Introdução aos diálogos de Platão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 55. 4

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mesmo necessário, para a compreensão dos próprios diálogos e, assim, da filosofia de Platão como um todo5. Interdependentes, Schleiermacher pensou ter resolvido, como não poderia deixar de ser, as duas questões de uma só vez. Porém, ainda que possa ser considerado o pai da questão

cronológica, hoje sabemos que estava errado, não exatamente em propor a tal da questão – que, antes pelo contrário, adquiriu relevante importância para os estudos platônicos –, mas fundamentalmente em relação a como pretendeu resolvê-la. Aliás, principalmente no quesito autenticidade, o século XIX, valendo-se dos chamados critérios externos e internos6, foi profícuo em negar a paternidade de muitos daqueles diálogos – sem contar as Cartas –, tidos até então como sendo de Platão. No entanto, devido ao forte caráter subjetivo de tais critérios, as diversas listas dos diversos especialistas sempre foram muito discordantes entre si, no que diz respeito não só à questão da

autenticidade, mas também em relação à questão da cronologia. Assim um estudioso como G. Grote, ainda no século XIX, foi levado a voltar ao tradicional

canon de Trásilo, declarando “que o problema era incapaz de solução”7. Porém, ainda no mesmo século, a situação parece mudar muito desde que Lewis Campbell trouxe à baila novos critérios para a resolução das questões com o chamado método estilométrico8. Foi assim que, no aprimoramento de tal

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“Para uma correta compreensão de Platão, deve-se levar em conta o fato de que a sua atividade filosófica estendeu-se por uns cinqüenta anos, período no qual algumas de suas doutrinas sofreram mudanças consideráveis. Traçar este desenvolvimento e ser capaz de identificar a expressão final do seu pensamento é essencial para saber em que ordem os diálogos foram escritos”. BRANDWOOD, Leonard. Stylometry and chronology. In: KRAUT, Richard (Ed.). The Cambridge Companion to Plato. Cambridge University Press, 1997, p. 90. 6 Para uma explanação de tais critérios, ver: LLEDÓ, Emilio. La Memoria del Logos. Estudios sobre el diálogo platónico. Madrid: Taurus, 1996, p. 229-232. 7 BRANDWOOD, Leonard, op. cit., p. 91. 8 “O método mais frutífero e que, aplicado por diferentes especialistas, tem proporcionado maior harmonia de resultados é o método estilométrico. Partindo da tradição reportada por Diógenes Laércio, de que Platão não chegou a publicar as Leis, e a opinião universalmente aceita de que essa é a última obra de Platão (a menos que a Epínomis seja aceita como sua e datada como posterior), tomando o estilo e o vocabulário das Leis como padrão e testando a

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método, na virada para o século XX, Lutoslawski, a julgar pelas palavras de Lledó, “estabeleceu a estilometria, como critério científico, para solucionar os problemas lançados pela cronologia”9. Levando tudo isso em conta, nós, que já passamos por todo o século XX e nos iniciamos no século XXI, bem que poderíamos repetir as palavras de Gomperz, talvez ainda com mais propriedade do que ele próprio: “Certamente não existe obra de autor algum, tanto nos tempos modernos, quanto na Antigüidade, que tenha sofrido uma análise lingüística tão profunda como as obras de Platão”10. Sendo assim, podemos pensar que aquele que, como nós, começa hoje a leitura de Platão não tem mais que se preocupar com tais questões? Estão elas totalmente resolvidas? Ao que tudo indica, parece que não é bem assim. Vejamos. Evidentemente que não se pode negar os avanços alcançados após todos esses anos de leitura e aperfeiçoamento metodológico, não só para a elucidação da questão da autenticidade, mas também para a questão da

cronologia. Em relação a tais questões, é claro que nos encontramos em uma situação muito mais confortável do que aquela de Schleiermacher, quando resolveu enfrentar os escritos de Platão. No entanto, sinal dos tempos, diferentemente do próprio hermeneuta, ainda que aparentemente mais instrumentalizados, parecemos hoje mais ressabiados quanto à validade dos nossos resultados. Ainda mais em matéria controversa, que inclui, portanto, a possibilidade de uma contra-argumentação11. No

afinidade dos outros diálogos com a referida obra em relação a um grande número de pontos independentes (o uso de partículas particulares ou combinação de partículas, a escolha deste ou daquele dentre dois sinônimos, a recusa de hiatos etc.), diferentes estudiosos tem chegado a resultados parcialmente concordes e parcialmente discordantes sobre a ordem dos diálogos”. ROSS, Sir David. Plato’s Theory of Ideas. Westport, Connecticut: Greenwood Press, 1976, p. 1. 9 LLEDÓ, Emilio, op. cit., p. 231. 10 GOMPERZ, Theodor, op. cit., p. 300. 11 “É claro que o método estilométrico tem os seus detratores, não apenas por suas propostas concretas, mas sim pelo fato de tomar as Leis como ponto de referência imprescindível, ao 18


entanto, como já foi dito, não podemos esquecer as conquistas da tradição. Sendo assim, fiquemos hoje com Jan Szaif, sabendo que, com as investigações estilométricas, “estamos na situação muito positiva de ao menos possuir grosso modo uma imagem da seqüência cronológica das obras de Platão”12. Ora, com isso, evidentemente, ainda não se justificou a opção pela leitura dos seis diálogos que temos pela frente, que era a direção para onde apontava nossa primeira pergunta: por que justamente os seis que leremos e não qualquer outro dos outros tantos diálogos de Platão? O que predetermina nossa leitura? Afinal de contas, não há leitura que não o seja. Para não alongar a conversa: minimamente pela gramática que guiou a escrita e que deve conduzir a leitura. Evidentemente, a intenção precípua da leitura que ora se prepara não é enfrentar nenhuma das questões relatadas. Reconhecendo a autoridade dos doutos, apenas as contorna. O que não significa dizer que as perdemos de vista. Dos diálogos que leremos, no que diz respeito à

autenticidade, pelo menos por enquanto, não há mais dúvidas de que não sejam de fato de Platão13. Mas como é que nos posicionaremos em relação à questão da cronologia? Nossa leitura deixar-se-á determinar por uma suposta datação dos diálogos? Até que ponto? Para que tais questões se esclareçam, visualizemos, antes, a situação dos nossos diálogos nas diversas

considerar-se esta obra como a última de Platão. Gilbert Ryle, no último capítulo do seu livro Plato’s Progress, Cambridge, 1966, sustenta que as Leis foram escritas um ou dois anos antes da última viagem de Platão a Sicília em 361, aproximadamente aos sessenta e cinco anos de idade. O que ficou inacabado foi o último retoque que ele quis dar em alguns diálogos, dentre eles as Leis. Por conseguinte, qualquer estilometria que parta da hipótese de que Leis é o último diálogo dentre os escritos está condenada a uma total tergiversação”. LLEDÓ, Emilio, op. cit., p. 232. 12 SZAIF, Jan. Platão. Espectro da Filosofia. In: Filósofos da Antigüidade – I. Dos primórdios ao período clássico. Uma introdução. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003, p. 175. 13 O tema voltará mais especificado no começo de cada uma das leituras.

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listas que se podem consultar14. Evidentemente, até onde e a partir de onde se quer olhar: Wilamowitz: Íon, Hípias Menor, Protágoras, Eutífron, Mênon, Crátilo, República. Praechter: Íon, Protágoras, Eutífron, Mênon, Crátilo, Hípias Menor, República. Raeder: Íon, Hípias Menor, Protágoras, Eutífron, Mênon, Crátilo, República. Taylor: Hípias Menor, Íon, Crátilo, Mênon, Eutífron, Protágoras, República. Leisegang: Íon, Hípias Menor, Protágoras, Eutífron, Mênon, Crátilo, República. Ed. Flammarion: Hípias Menor, Íon, Protágoras, Eutífron, Mênon, Crátilo, República. Miguez: Íon, Eutífron, Hípias Menor, Crátilo, Protágoras, Mênon, República. Arnim: Íon, Protágoras, Eutífron, Mênon, Hípias Menor, Crátilo, República. Lledó: Íon, Protágoras, Eutífron, Mênon, Hípias Menor, Crátilo, República. Ritter: Hípias Menor, Protágoras, Eutífron, Crátilo, Mênon, República. Crombie: Crátilo, Eutífron, Hípias Menor, Mênon, Protágoras, República. Lutoslawski: Eutífron, Protágoras, Mênon, Crátilo, República. Cornford: Eutífron, Hípias Menor, Protágoras, Íon, Mênon, República, Crátilo. Shorey: Eutífron, Hípias Menor, Íon, Protágoras, Mênon, República, Crátilo.

Vendo-as assim expostas, algumas coisas podemos observar: das quatorze listas apresentadas, na íntegra, nossos diálogos estão em onze delas. Na de Crombie e na de Ritter, o Íon não está. Na de Lutoslawski, além do Íon, também não se encontra o Hípias Menor. Ao que tudo indica, hoje, uma

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As diversas listas consultadas foram extraídas fundamentalmente de: ROSS, Sir David. Plato’s Theory of Ideas. Connecticut: Greenwood Press, 1976, p. 2. LLEDÓ, Emilio, op. cit., p. 233-236. MIGUEZ, José Antonio, op. cit., p. 70-71. A lista da Editora Flammarion, talvez aqui uma das mais atuais, foi recolhida em: PUENTE, Fernado Rey. Apresentação. In: SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Introdução aos diálogos de Platão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. Ainda para a questão da cronologia, além dos autores já citados no decorrer do texto, pode-se ver também: THESLEFF, Holger. Platonic Chronology. Phronesis. A Journal for Ancient Philosophy, v. XXXIV/1, 1989, p. 1-26.

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ausência injustificada15. Agora, o que se quer aqui ressaltar, pois que, pela amostragem, nos parece um ponto firme o suficiente para com ele nos comprometer, é o seguinte: não levando totalmente em conta duas listas – a de Cornford e a de Shorey, que, desde nossa perspectiva destoariam, mas, mesmo assim, apenas em um único e mesmo ponto, o posicionamento do Crátilo16 –, todos os nossos diálogos teriam sido compostos antes da República. E, cronologicamente falando, é exatamente por isso que eles nos interessam, e é apenas com isso que precisamos nos comprometer. Para que se cumpra o intento da nossa leitura, não é preciso saber exatamente qual escrito veio primeiro e qual a seqüência exata daqueles que o sucederam: se o Íon, o Eutífron, o Hípias Menor, o Mênon, o Protágoras ou o Crátilo. Ainda que, como foi dito, hoje possamos, grosso modo, ter uma certa segurança em relação à

cronologia, para nós bastará ter a República como um parâmetro. Uma estaca cronológica. Sabendo que, desde que o jovem Platão se pôs a compor diálogos, algum percurso ele teve que fazer para chegar até a República – uma outra maneira de ver o mundo e nele se instalar. E os diálogos escolhidos, de alguma maneira, podem nos dar uma amostra, ainda que muito parcial, do itinerário percorrido. Para nós, bastará chegarmos às portas da cidade. Não nos interessa transpor seus muros. É por isso que não vamos ler a República. Dela, ficaremos só com os postais. O que não significa dizer que não a levamos em conta. Antes pelo contrário, ao não lê-la, determinamos, para o nosso estudo, o seu exato valor. Mas, como assim? Pode alguém agora perguntar. Pois, ao que tudo indica, no mais das vezes, sempre que se alude a essa relação entre Platão e

15 Como já foi dito, a questão da autenticidade de cada diálogo será vista com mais precisão quando da leitura de cada um deles. 16 “A inserção temporal do Crátilo é questionada, talvez seja do fim da obra intermediária”. SZAIF, Jan, op. cit., p. 175. Ou seja, de alguma forma, perto da República. Como veremos, quando de sua leitura, dos nossos diálogos, o Crátilo parece ser o mais controverso no que diz respeito à sua datação. Mas, por enquanto, fiquemos com a maioria dos doutos autores das listas.

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a poesia, para a qual o título de nossas leituras parece remeter, se começa pela República, quando não pelo livro X, quando não, apenas. Não seria esse, portanto, o texto básico para se estudar tal questão? Afinal, como todo mundo sabe, não é aí que Platão, partindo de uma determinada concepção da realidade, fundamentada em sua teoria das idéias, compreendendo a produção artística (poíesis) como mímesis, acaba por expulsar o poeta do seu Estado filosófico? Parece que sim. Portanto, se não vamos ler a

República, tomando-a, antes, como o lugar a partir do qual se fez a escolha dos diálogos que leremos, não sendo ela então de somenos, é preciso, de alguma maneira, ainda que através de postais, mostrar a imagem que eles nos trazem da cidade de Platão. Vejamo-los, então.

Postais de uma cidade

I) Platão, ainda que não tenha sido o primeiro a censurar o poeta, lembremos de Xenófanes, é aquele que o combateu com maior veemência. Negando-lhe o acesso à verdade17, tornou-se o seu pior inimigo18; fundador

17 “Na República, um trabalho que desenvolve uma ordem ideal para o Estado e para o seu programa de educação, Platão condena Homero e os grandes dramaturgos áticos ao exílio permanente do Estado. Provavelmente em nenhum outro lugar um filósofo negou o valor da arte tão completamente e contestou tão incisivamente a sua pretensão – que parece tão autoevidente para nós – de revelar as mais profundas e inacessíveis verdades”. GADAMER, HansGeorg. Plato and the Poets. In: Dialogue and Dialectic: Eight Hermeneutical Studies on Plato. New Haven and London: Yale University Press, 1980, p. 39. 18 “Platão, esse grande inimigo da arte, o maior que a Europa até hoje produziu. Platão contra Homero: eis o inteiro, o genuíno antagonismo”. NIETZSCHE, Friedrich. Para a Genealogia da Moral, § 25. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Editor Victor Civita, 1983, p. 321.

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de uma tradição filosófica sempre recorrente de censura e perseguição à criação artística19. De uma forma geral, essas afirmações parecem sintetizar uma determinada imagem que ficou gravada na história a respeito do pensamento de Platão, em relação à produção artística. Lá está escrito – não correndo ao vento – que o filósofo, aquele que almeja na República o posto de regente20, gostaria de ver banido de sua cidade o poeta. Afinal, mesmo confessando indulgentemente “um certo amor e respeito” (595b) pela arte de Homero, diz ter “a impressão de que todas as obras dessa índole são a perdição do espírito dos que as escutam” (595b). Portanto, “não se deve admitir em nenhum caso a poesia mimética” (595a). Como se vê, é assim, explicitamente, que Platão formula a sua condenação da produção artística no livro X. Poder-se-ia dizer, a conclusão de sua República. No entanto, apesar do que está escrito no diálogo, ou mesmo por isso, sabemos que as afirmações do filósofo são um “escândalo para muitos”21 dos seus leitores. Por conta disso, sabemos também que houve, no desenrolar da história platônica, até mesmo tentativas de minimizar o alcance dessas palavras22. Gadamer identifica esse tipo de tendência entre

19 “Se a filosofia da arte começa com Platão, ela principia, paradoxalmente, por uma condenação das ‘belas-artes’ e da poesia”. LACOSTE, Jean. A Filosofia da Arte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986, p. 9. 20 “Enquanto não forem, ou os filósofos reis nas cidades, ou os que agora se chamam reis e soberanos filósofos genuínos e capazes, e se dê esta coalescência do poder político com a filosofia, enquanto as naturezas que atualmente seguem um destes caminhos com exclusão do outro não forem impedidas forçosamente de o fazer, não haverá tréguas dos males, meu caro Gláucon, para as cidades, nem sequer julgo eu para o gênero humano, nem antes disso será jamais possível e verá a luz do sol a cidade que há pouco descrevemos”. Rep., V, 473d. 21 LAN, Conrado Eggers. Introducción. In: PLATÃO. República. Introducción, traducción y notas por Conrado Eggers Lan. Madrid: Editorial Gredos, 1992, p. 54. 22 “Há uma relutância natural em tomar de maneira literal o que ele diz. Os admiradores de Platão, normalmente atentos aos mínimos detalhes de seu discurso, quando chegam a um contexto como o mencionado, começam a olhar ao redor à procura de uma porta de emergência

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os seus, dizendo ser uma postura típica de uma determinada mentalidade germânica23. Havelock identifica, no mínimo, três procedimentos básicos daqueles leitores que parecem querer “salvar o filósofo das conseqüências do que ele pode estar dizendo, a fim de ajustar sua filosofia a um mundo tolerável ao gosto moderno”24. Às vezes, o desgosto com a postura do divino Platão chega a tanto, que alguns, em vez do poeta, gostariam de ver banido da cidade filosófica ideal o próprio livro X25. Apesar disso, para nós, não há como minimizar aquilo que nos chega pelos textos de Platão. Mesmo porque, ainda que não houvesse um livro X, em nossa cidade, dificilmente a voz do poeta deixaria de ser, no mínimo, subjulgada pelo lógos filosófico, não nos afastando, desse modo, do nível da questão por nossas leituras investigada. Sendo assim, ao invés de uma espécie de apêndice mal-ajambrado, podemos ver no referido livro o corolário epistemológico daquilo que, perfazendo sua unidade, veio sendo desenvolvido desde o início da obra e, quiçá, de todo um percurso filosófico, começado bem antes, desde os primeiros diálogos. Por fim, como nos alerta Werner Jaeger, antes do que seria de fato o último livro da

e encontram uma que julgam ter sido fornecida pelo seu autor”. HAVELOCK, Eric A. Prefácio a Platão. Campinas: Papirus Editora, 1996, p. 21. 23 “Talvez a tarefa mais difícil a confrontar a mentalidade germânica em seus esforços de assimilar a mentalidade do mundo antigo (e talvez também a mais intragável dada a sua autoimagem), tem sido a de justificar a crítica de Platão aos poetas e de apreender o seu significado. Pois é precisamente a arte e a poesia dos antigos que o humanismo estético dos períodos germânicos, Clássico e Romântico, tomou como epítome da antigüidade clássica, tornando-os um paradigma obrigatório para eles mesmos. O próprio Platão, o crítico hostil da arte da antigüidade clássica, era tomado pelos românticos como sendo uma das encarnações mais esplêndidas do gênio poético dos gregos e era amado e adorado, já no seu tempo, tanto quanto Homero, os poetas trágicos, Píndaro e Aristófanes”. GADAMER, Hans-Georg, op. cit., p. 39-40. 24 HAVELOCK, Eric A., op. cit., p. 23. Na mesma página e na seguinte, podem encontrar-se, identificados pelo autor, os três procedimentos básicos aos quais nos referimos. 25 Para um exemplo contemporâneo dessa postura, ver: ANNAS, Julia. An introduction to Plato’s Republic. Oxford University Press, 1991.

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República – onde Platão diz “sua última palavra acerca da missão educativa da poesia, do ponto de vista da Filosofia, isto é, do puro conhecimento da verdade”26 –, as objeções feitas à poesia partem e se mantêm no nível das

opiniões corretas, carecendo ainda de um valor epistêmico. Sendo assim, bem que podemos tomar o livro X como a fundamentação final da cidade que se quer construir. Um passo necessário e primeiro para todo aquele que se coloca no papel do seu arquiteto: a questão dos fundamentos. Portanto, ainda que não nos interessemos exclusivamente pelo livro X, apenas, ou mesmo por isso, não devemos retirá-lo do nosso álbum de retratos da cidade, tentando, antes, visualizá-la na sua possível unidade. Sabendo que, pelo menos em filosofia27, a unidade do todo não se dá meramente na soma das partes, mas, antes, no princípio que as perpassa, é pelo princípio que devemos começar. Qual o alvo que nosso filósofo pretende atingir com sua República? O cimento com o qual pretende edificála, até já sabemos de onde provém. Agora é Lima Vaz quem nos diz: “Esse novo cimento com que Platão tentará firmar as bases da cultura grega, ele irá buscá-lo no lógos demonstrativo ou na ciência (epistéme)”28. Com o que se afirma, antes de tudo, que a República pretende propor uma novidade. Uma novidade, como foi dito, capaz de firmar as bases da cultura

grega. Ora, mas como assim?

26 JAEGER, Werner. Paidéia. A formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 979. 27 Aquilo que denota aqui a palavra filosofia está circunscrito ao âmbito helênico das nossas leituras. 28 VAZ, H. C. de Lima. Platão revisitado. Ética e Metafísica nas origens Platônicas. Kriterion, Belo Horizonte, v. XXXIV, n. 87, 1993, p. 17.

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II)

Firmar pode significar, geralmente, dar ou adquirir firmeza , estabilidade. Quem firma estabelece, institui, fundamenta. Aquilo que solicita ser firmado deve estar, necessariamente, em situação oposta;

abalado, estremecido, oscilante; pouco firme, pouco seguro, como um prédio que dizemos estar prestes a cair justamente por ter suas estruturas abaladas. Mas então é isso que pode nos causar estranheza: à época de Platão, a cultura grega já não estava plenamente firmada? É bem verdade, sabemos que a cidade em que nasceu Platão já começara a perder o brilho que dimanava da hegemonia política da Atenas de Péricles, que acabara de morrer. No entanto, é evidente que nosso filósofo, diferentemente de nós, não conheceu o Parthenon em ruínas. Antes pelo contrário, o conheceu, poderíamos dizer, quando os próprios deuses ainda andavam por lá, no viço da comunidade. Afinal de contas, a maior parte daquilo que ainda hoje tanto nos fascina, no mundo helênico, não mais vigorava no tempo de Platão? A democracia ateniense, apesar dos percalços que vinha enfrentando, ou mesmo por eles, já não havia lançado profundamente suas raízes no solo de então, a ponto de hoje ter se tornado um valor quase que absoluto? A própria filosofia, ainda que originariamente nas colônias, já não dava seus primeiros, mas grandiosos passos? As estátuas de Fídias não resplandeciam a luminosidade de suas cores originais? Aquelas ânforas, que hoje guardamos como verdadeiros tesouros na redoma dos museus, não estavam mais à mão, com toda sua crônica pictórica, na proximidade do gole? Isso para não falar nas tragédias, ou nas comédias, com seus autores ainda hoje venerados; Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Aristófanes. Não havia mais encenações de tragédias, se, pelo que nos consta por uma tradição, em suas representações competitivas, até mesmo o jovem Platão chegou a participar como autor? Autor que

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também o foi de poesias29. Poesia que, como a de Homero e Hesíodo, pari

passu com a religião, ainda não era recitada na constância rítmica do seu valor? Não aprendemos a reconhecer em tudo isso, desde os primeiros bancos escolares, justamente a efetivação do esplendor da dita cultura

grega?30 Parece que sim. No entanto, ao que tudo indica, para o filósofo, de alguma forma, era justamente este o problema: que tudo isso ainda estivesse vigorando com todo o seu vigor ativo. Mas como assim? Vejamos se conseguimos entender o que acontece.

III) Principalmente depois de plenamente reconhecida a autenticidade da Carta VII, o que só ocorreu no século XX, pôde reforçar-se uma imagem do filósofo diferente daquela puramente contemplativa, do homem que vive nas nuvens, que, com os olhos voltados apenas para o alto, indiferente ao fazer da vida prática, acaba por cair num buraco31. Nela vemos, de próprio punho, a descrição de uma paixão juvenil pela atividade política – como de resto comum a “tantos outros jovens” (Carta VII, 324b) –, que o arrasta durante sua vida para as mais romanescas situações. Com algum

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Cf. DIÓGENES LAÉRCIO, III, 3-4. “Assim, entre os gregos, por exemplo, a arte fia a forma mais elevada pela qual o povo representou os deuses e se deu uma consciência de verdade. Por isso, para os gregos, os poetas e os artistas foram os criadores dos deuses, isto é, os artistas deram à nação a representação determinada do agir, do viver e do operar do divino e, portanto, o conteúdo determinado da religião”. HEGEL, G. W. F. Lecciones sobre la estética. Madrid: Ediciones Akal, 1989, p. 78. 31 Imagem essa que, de alguma forma, por paradoxal que possa parecer, o próprio Platão ajudou a plantar, na medida em que nos legou a piada. “Diz-se que uma ladina e graciosa escrava trácia troçou de Tales por este ter caído a um poço, enquanto observava os astros e olhava para o céu. Dizia ela que Tales, ansioso a conhecer as coisas do céu, não se dava conta do que estava atrás dele e mesmo aos seus pés” (Teeteto, 174a). 30

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esforço imaginativo, pode-se até ver o mestre Platão rodeado por alguns discípulos, aboletando-se em uma trirreme, com sua República debaixo do braço, rumo à Sicília, na esperança de “levar a cabo as idéias pensadas acerca das leis e da política” (Carta VII, 328c), julgando, assim, desempenhar irrepreensivelmente o seu “papel de filósofo” (329b). É tendo isso em vista, mas não apenas, que Werner Jaeger nos diz: “O problema para o qual desde o primeiro instante se orienta o pensamento de Platão é o problema do Estado”32. O que não envolve, apenas, a sua pura idealização, como se essa já não envolvesse as condições e as possibilidades de sua efetivação prática. Na dita Carta, vemos o pudor e o receio do filósofo diante da possibilidade de, não indo ao socorro de Dion, ser tido “como um charlatão de feira que não gosta de se ater à realidade das coisas” (328c). Mas, para tanto, nada, ou quase nada mais lhe valia, tendo o sangue dos deuses lhe correndo nas veias33, ser, da cidade, um alto membro de sua aristocracia34, quando esta mesma cidade já não se regia pela aristocracia. Ou o que é pior, quando o fazia, seus membros já não agiam mais como se fossem de fato os melhores (cf. 324d-325a). Mas pior ainda com a cidade democrática, capaz de condenar injustamente à morte “o homem mais justo de sua época” (324e), Sócrates. Talvez o único ateniense capaz de mostrar uma saída para a perigosa degenerescência. A pólis, enferma, precisava de um remédio capaz de atuar, tanto na esfera pública quanto na esfera privada (cf. 326a). E esse remédio,

32

JAEGER, Werner, op. cit., p. 749. Cf. DIÓGENES LAÉRCIO, III, 1. 34 “O pai orgulhava-se de contar entre os seus ancestrais o rei Crodo, a mãe, de um parentesco com Sólon. Era, portanto, óbvio que Platão, desde a juventude, visse na política o seu ideal: a família, a inteligência e as atitudes pessoais, tudo o movia naquela direção. Este é um dado biográfico, melhor, existencial, absolutamente essencial, que incidirá, de maneira profunda, na própria substância do seu pensamento”. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Vol. II. São Paulo: Edições Loyola, 1994, p. 7. 33

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sem dúvidas, aos olhos do ainda jovem Platão, era proveniente do laboratório socrático, a filosofia, ou melhor, com suas palavras, “a reta filosofia” (326a). É, portanto, o filósofo quem deve assumir o papel de patér da cidade e recitar suas leis. A filosofia, aquele tipo de reflexão socrática, aos olhos do ambicioso jovem de Atenas, seria o caminho a ser percorrido na recuperação da antiga capacidade (areté) para governar que fora perdida pelos seus. A única capaz de restituir o poder do governo e da educação. Por isso é dito, na referida missiva, que “os males do gênero humano não cessarão até que ocupem o poder os filósofos puros e autênticos, ou que os que exercem o poder nas cidades cheguem a ser filósofos verdadeiros” (326a-b). É justamente aqui que surge e se delineia aquilo que buscamos: o prenúncio de uma distinção.

IV) Todo aquele que entra em contato com a Grécia Antiga, seja nos bancos escolares, por prazeroso diletantismo, ou por profissão, percebe desde cedo a posição central que a poesia ocupa na formação do povo grego. Sobretudo a épica de Homero. Muito antes do surgimento da filosofia, em uma época em que Platão ainda nem sonhava em nascer, era o poeta o condutor espiritual dos helenos. Heródoto, o pai da História, chega a nos dizer que Hesíodo e Homero foram aqueles que “criaram para os gregos uma teogonia, deram aos deuses seus nomes, distribuíram entre eles honras e atribuições, além de descrever suas imagens”35. Outro historiador, só que agora nosso contemporâneo, diz terem sido os poemas homéricos como que “a Bíblia

35

HERÓDOTO. Hist., II, 53.

29


dos gregos”36. Para o helenista alemão, “a concepção do poeta como educador do seu povo – no sentido mais amplo e profundo da palavra – foi familiar aos Gregos desde sua origem e manteve sempre sua importância”37. No fundo, pode-se dizer que a poesia grega, de uma forma geral, e não apenas a épica de Homero, com seu “caráter essencialmente pragmático, em estreita correlação com a realidade social e política e com o agir concreto do singular na coletividade”38, plasmou a identidade cósmica do homem helênico, sendo essa, pois, a linguagem poética, sua forma primordial de situar-se no mundo. Para ilustrar o dito, não faltam imagens. Vejamos algumas. Antes de ganhar as ruas da cidade, ou mesmo antes da própria cidade, a linguagem poética está originariamente em casa, onde, desde cedo, as crianças aprendiam a respeitar aquilo que era cantado em versos pelo patér e repetido por todos ao redor do fogo sagrado. Os cânticos (nómoi) em glória dos antepassados, os deuses domésticos, indissociáveis, diziam também as leis (nómoi), determinando os usos e costumes (éthos) que deveriam orientar todos aqueles que viviam junto ao mesmo fogo sagrado (epístion), a família39. Já na cidade, a própria política pôde efetivar-se poeticamente. Como exemplo, Sólon. Um dos nomes mais presentes nas diversas listas dos Sete Sábios que, como se diz, “converteu a poesia em porta-voz de suas idéias políticas e ético-religiosas e a utilizou para justificar sua obra de reforma político-social”40. Assim sendo, poeta, compôs elegias e iambos, que “são em suas mãos geralmente arma política de ataque, defesa ou advertência”41.

36

REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Vol. I. São Paulo: Edições Loyola, 1993, p. 19. JAEGER, Werner, op. cit., p. 61. 38 GENTILI, Bruno. Poesia e Pubblico Nella Grecia Antica. Roma: Editori Laterza, 1989, p. 3. 39 Cf. FUSTEL DE COULANGES, Numas Denis. A Cidade Antiga. Estudos sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma. São Paulo: Hemus, 1975. 40 NESTLE, Wilhelm. Historia del Espíritu Griego. Barcelona: Editorial Ariel, 1987, p. 47. 41 ADRADOS, Francisco R. Sólon. In: Líricos Griegos. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1990, p. 169. 37

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É também em “conformação poética”42, na maior parte dos casos, hexâmetros dactílicos, que freqüentemente a pitonisa, em transe entusiasmada 43 , pronunciava seus oráculos . Pode-se dizer, “como comunicações diretas do deus”44, que os gregos não deixavam de consultar na busca da sabedoria divina, fazendo parte, assim, pelo menos a religiosidade oracular délfica, da “mais profunda moral popular grega”45. Ligada de alguma forma aos versos do mítico poeta Orfeu46 temos a celebração dos mistérios de Elêusis, para a qual chegavam a acorrer milhares de pessoas a cada ano na busca de “uma experiência de força incomparável, inspiradora de respeito e gratidão”47. Ao que tudo indica, em seus cultos misteriosos, os iniciados experienciavam aquilo que lhes determinaria a vida a partir de então, através do que se poderia chamar de

representação poética. Alguns estudiosos encontram aí, na celebração dos mistérios, “um outro caminho para se explorar a origem da tragédia”48. Chegamos assim às tragédias, cuja raiz principal se diz penetrar “na substância originária de toda poesia e da mais alta vida do povo grego, quer dizer, no mito”49. É por isso que Nietzsche pôde dizer que, “pela tragédia o mito chega a seu conteúdo mais profundo, a sua forma mais expressiva”50.

42

DELGADO, José A. Fernández. Los Oráculos y Hesíodo . Cáceres: Universidad de Extremadura, 1986, p. 15. 43 Para mais informações sobre o transe entusiástico da pitonisa ver: ESCOHOTADO, Antonio. Historia General de las Drogas. 1. Madrid: Alianza Editorial, 1996, p. 161-164. 44 DELGADO, José A. Fernández, op. cit., p. 15 45 DELGADO, José A. Fernández, op. cit., p. 144. 46 Cf. COLLI, Giorgio. O Nascimento da Filosofia. Campinas: Editora da Unicamp, 1992, p. 26-30. 47 ESCOHOTADO, Antonio, op. cit., p. 166. 48 COLLI, Giorgio, op. cit., p. 27. 49 JAEGER, Werner, op. cit., p. 291. 50 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música. Os Pensadores. São Paulo: Victor Civita, 1983, p. 11.

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Alinhando-se à tradição poética precedente51, seus autores, como nos diz Wilhelm Nestle, “se sentem educadores do povo, levando realmente a sério a responsabilidade acarretada por essa tarefa”52. Na Grécia de então, suas “representações chegaram a ser o ponto culminante da vida do Estado”53. Os concursos mobilizavam praticamente todo cidadão que, no mínimo, reconhecendo-se na trama desenrolada aos seus olhos, se emocionava, chorava, refletia... Saía do teatro mais leve, aliviado, como se tivesse purificado sua visão de mundo, coisa que Aristóteles soube reconhecer em sua Poética54. As comédias representadas, “uma das mais originais e grandiosas manifestações do gênio poético da Grécia”55, também faziam sucesso com o público. Como se vê pelos exemplos citados, de fato a linguagem poética permeia a efetivação da Hélade. Assim, mesmo a filosofia, fruto maduro da cidade, antes do conflito platônico, pôde conviver, pelo menos formalmente, com a poesia. Alguns dos primeiros filósofos, mesmo implantando uma ruptura com as tradicionais cosmogonias herdadas dos poetas, não puderam deixar de fazê-lo poeticamente56. Exemplo clássico,

51

“A tragédia ocupa na história literária da Grécia uma posição de encruzilhada, que organiza o porvir da sua literatura, no sentido de que, por um lado, o drama incorpora em sua estrutura as formas mais representativas desta tradição: a épica na mítica dos seus temas, a lírica nas partes líricas da tragédia; a retórica dos trímetros trágicos é devedora por sua vez dos elegíacos e iambos da tradição jônica”. BOTAS, Vicente Bécares. La Tragedia Griega en Relación con la Crítica Literaria de la Antigüedad. In: Estudios de Drama y Retórica en Grecia y Roma. Salamanca: Universidad de León, 1987, p. 43. 52 NESTLE, Wilhelm, op. cit., 1987, p. 92. 53 JAEGER, Werner, op. cit., p. 294. 54 Cf. ARISTÓTELES, Poética, 1449b 20-30. 55 JAEGER, Werner, op. cit., p. 414. 56 Kant chega a propor uma explicação para tanto: “Os primeiros filósofos vestiam tudo em imagens. Pois a poesia, que nada mais é senão uma vestimenta dos pensamentos em imagens, é mais antiga do que a prosa. Eis por que era preciso, no início, valer-se da linguagem das imagens e do estilo poético até mesmo em coisas que são apenas objetos da razão pura”. KANT, Imamnuel. Lógica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992, p. 45, A 31.

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os hexâmetros de Parmênides57. Empédocles foi outro que usou a linguagem poética para fazer filosofia. Dele conhecemos, sobretudo, os fragmentos provenientes dos poemas intitulados Da Natureza e Purificações 58. Xenófanes é mais um. Talvez o mais emblemático. Embora tendo sido muito provavelmente um dos primeiros a criticar, tanto a poesia de Hesíodo quanto a poesia de Homero, “escreveu em verso épico, bem como elegias e iambos”59. Ao que tudo indica, não censurava os poetas pela métrica dos seus versos, querendo, poder-se-ia dizer, até mesmo deles se apropriar. Mas antes, como nos diz Diógenes Laércio, censurava-os pelo que “haviam dito a respeito dos deuses”60 em seus poemas. Pois bem, esse é o mundo herdado pelo filósofo. Um mundo em que os homens viviam de acordo com aquilo que cantavam os poetas. Contudo, um mundo que, aos olhos do jovem, está a desmoronar. Todas as transformações sociais e tecnológicas pelas quais havia passado a Hélade, desde que os primeiros invasores indo-europeus por lá se instalaram, desembocando nas exigências lançadas por uma nova maneira de compreender a própria phýsis, inaugurada pelos naturalistas, prenunciavam o nascimento de um novo mundo que, como tal, já não poderia ser guiado

57 “Um único ‘tratado’ é atribuído a Parménides (Dióg. L. I, 16, DK 28-13). Fragmentos substanciais desta obra, um poema em hexâmetros, chegaram até nós, graças, em grande medida, a Sexto Empírico (que conservou o proémio) e a Simplício (que transcreveu outros extractos nos seus comentários ao De caelo e à Física de Aristóteles ‘devido à raridade do tratado’)”. KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os Filósofos Pré-Socráticos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, p. 251. 58 “Os fragmentos subsistentes provêm dos poemas intitulados Da Natureza e Purificações, se bem que não seja provável que tenha sido o próprio Empédocles a dar-lhes esses títulos. Os versos que possuímos, mesmo do Da Natureza, representam menos de um quinto do original completo, ao passo que os das Purificações são ainda mais escassos. Contudo, os fragmentos de Empédocles são mais extensos do que qualquer outro Pré-Socrático, e, conseqüentemente, fornecem-nos uma sólida base de interpretação”. KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M., op. cit., p. 296. 59 DIÓGENES LAÉRCIO, IX, 18. 60 DIÓGENES LAÉRCIO, X, 1.

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pelos antigos preceitos, cujos arautos eram os poetas61. A maior prova disso seria a degenerescência da pólis , capaz de matar injustamente, justamente aquele que poderia ser o seu salvador, Sócrates. Ao que tudo indica, para o nosso filósofo, os poetas, desajustados àquele admirável mundo novo, já não eram mais “sábios arquitetos”62, como dizia um deles, Píndaro. As fundações sobre as quais se ergueu o mundo até então já não lhe pareciam tão sólidas. Seria preciso reestruturar o cosmos humano, a cidade, dando-lhe fundamentos sólidos o bastante para agüentar o peso de todas as transformações. O novo arquiteto – Platão!

V) Se de alguma forma estamos certos em dizer que Platão se propõe de fato como o novo arquiteto capaz de dar conta da necessidade de reestruturação do seu mundo, segue sendo certo, em todos os seus significados possíveis, que “a mais arquitetada das suas obras tem por título

República”63. Pois parece ter sido nela, primeiramente, que o filósofo pôde vislumbrar a possibilidade daquela “reforma extraordinária” (Carta VII, 326a) da qual nos falava naquele seu relato autobiográfico. Poder-se-ia dizer, a reforma filosófica, aos olhos de Platão, a única capaz de sobrepujar o já capenga Estado poético de então (cf. 325d-326b).

61

Muitos dos passos dessa dita transformação podem ser seguidos em VERNANT, Jean-Pierre. As origens do Pensamento Grego. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. Pode-se vê-los ainda em: GOMPERZ, Theodor. Pensadores Griegos. Historia de la Filosofía de la Antigüedad. Tomo II. Capítulo I. Transformaciones de las Creencias y Costumbres. Asunción del Paraguay: Editorial Guarania, 1951, p. 15-41. Ou ainda, de maneira mais suscinta, em SCHÜLER, Donaldo. Reflexões Sobre o Humanismo Antigo. Clássica, suplemento 2, 1993, p. 1-6. 62 PÍNDARO, Pyth 3, 115. 63 JAEGER, Werner, op. cit., p. 750.

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É pelo que foi dito que podemos ver na República – em toda ela e não apenas no Livro X ou mesmo no Livro III – o filósofo rompendo com a sabedoria oriunda da linguagem poética. Muito se diz ou se disse sobre qual seria o objeto próprio da República: a justiça, o Estado, a alma individual, a liberdade humana ou até mesmo a sua supressão. Dito por doutos, assim como o flecheiro hábil de Aristóteles, é difícil que tenham errado o alvo. É bem possível que alguns, ou quem sabe muitos, tenham acertado até mesmo na mosca. Nosso caso com o referido diálogo não quer chegar a tanto, mesmo porque, hoje, a mosca parece ser outra e está, quase que inacessível, trancada dentro da garrafa. Como se sabe, com nossas leituras, buscamos apenas o prenúncio de uma distinção, que, a esta altura do exposto, já deve estar suficientemente clara. Buscamos o prenúncio da distinção entre linguagem poética e

linguagem filosófica. Poder-se-ia dizer, entre mythos e lógos. Maneiras distintas de, na constituição do mundo, acessar humanamente as coisas. Distinção essa logo teorizada por Aristóteles em seu De Interpretatione64 e que, à época de Plutarco, a julgar pelo que está dito em Sobre por que a

Pítia não profetiza agora em verso, já está plenamente solidificada. Na dita obra, a linguagem poética já é descrita como algo supérfluo, coisa de “vagabundos” que, assim como “tiaras de ouro” ou “delicadas túnicas”, deve ser evitada, dando lugar a uma linguagem clara e concisa, “inteligível e convincente”, mais condizente com as exigências dos novos tempos65. Por isso não lemos a República, nos contentando com os seus postais. Pois

64

Convém lembrar rapidamente a distinção feita pelo filósofo no referido tratado entre lógos semantikós – o dizer significativo, próprio da poética e da retórica –, e lógos apophantikós – o dizer capaz de agregar à siginificação a verdade, próprio da filosofia, isto é, epistêmico (cf. ARISTÓTELES. De Interpretatione, 4). Para um estudo, ainda que sumário, da referida distinção ver: AMARAL Fº., Fausto dos Santos. Filosofia Aristotélica da Linguagem. Chapecó: Argos, 2002. 65 Cf. PLUTARCO. Sobre por que a Pítia não profetiza agora em verso, 406b-407c.

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julgamos que, justamente nela, tal distinção, ou pelo menos a sua possibilidade, já se encontra plena e primeiramente anunciada. Afinal, como nos diz Fernando Santoro, “na República trava-se uma luta de titãs entre princípios de linguagem: o discurso mítico encarnado por Homero e o novo discurso apofântico da filosofia encarnado por Sócrates”66. Portanto, ao lermos Platão, mais especificamente os nossos diálogos,

Íon, Eutífron, Hípias Menor, Mênon, Protágoras e Crátilo, de alguma forma também aceitamos “a classificação da República como sua obra central, para a qual convergem todas as linhas dos escritos anteriores”67. Por isso leremos nossos diálogos. Contudo, antes da República, podem ser lidos tantos outros, dirá alguém. Nós o sabemos. Mas, como se vê, não o serão. No entanto, temos aqui uma amostra. É o que se pensa. Uma amostra, ainda que não necessária, porém suficiente para se chegar aonde se quer; às portas da cidade. Depois de tudo isso explicitado, a questão da autenticidade, da

cronologia e da República, bem que poderíamos iniciar nossas leituras. No entanto, não sejamos afoitos. Vejamos, antes, se, pendente, não ficou, por assim dizer, mais alguma questão.

A questão socrática Uma das características dos nossos diálogos é que, em todos eles, Sócrates está presente. Mais do que isso, poderíamos dizer, até mesmo, que o referido filósofo neles exerce um papel central. Nada mais óbvio! Afinal de contas, todos nós sabemos que Platão, ao se dedicar à filosofia, escreveu

66 SANTORO, Fernando. Poesia e verdade. Interpretação do problema do Realismo a partir de Aristóteles. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1994, p. 47. 67 JAEGER, Werner, op. cit., p. 749.

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diálogos – quer tenha sido o primeiro a fazê-lo, quer não, o que não vem ao caso68. Mais precisamente, lato sensu, diálogos socráticos69. De resto, gênero literário logo classificado por Aristóteles dentre outros tantos em sua Poética70. É bem verdade que houve diálogos de Platão onde, ainda que Sócrates presente, quase não se escutou a sua voz. Na verdade, uns poucos, como exemplo, aqui, lembremos pelo menos dois: o Sofista e o Político. Houve até mesmo diálogo em que Sócrates esteve ausente: as Leis. Como sabemos, exemplares dos últimos trabalhos do mestre da Academia. Nossos diálogos, bem anteriores, estão mais próximos da juventude do nosso filósofo. Algum deles, quem sabe, poderia até mesmo ser o primeiro diálogo composto por Platão71. Mais precisamente, stricto sensu, costuma-se chamar os diálogos mais próximos da juventude do filósofo de diálogos socráticos. Sendo assim, pode muito bem aparecer alguém para classificar aqueles que leremos como tal. Portanto, devemos determinar, antes, de que maneira a dita questão socrática pode interferir em nossas leituras. Se a questão é socrática, comecemos pela definição. No caso, ao que tudo indica, serão definições. Não importa. Desde que, ao final, a questão se defina para nossa leitura. Sigamos então:

68

“Costuma-se dizer que o primeiro a escrever diálogos foi Zenão de Eléia. Aristóteles, no livro I dos Poetas, diz que foi Alexámeno Stireo ou Teyo; o que também afirma Favorino em seus Comentários. Mas, creio que Platão poliu a sua forma e estilo, de uma tal maneira, que não se pode negar-lhe, com justiça, a glória da invenção”. DIÓGENES LAÉRCIO, III, 25. 69 “Lógoi Sokratikoí, gênero literário misto onde se misturam realismo e ficção, tanto na forma como no conteúdo, e no qual mimeîsthai e poieîn não se excluem, antes se completam”. MAGALHÃES-VILHENA, Vasco de. Platão e a Lenda Socrática. A idealização de Sócrates e o utopismo político de Platão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, p. 318. 70 Cf. ARISTÓTELES. Poética, 1447b. 71 A informação está baseada nos mesmos autores consultados e citados anteriormente, quando se estudou a questão da cronologia.

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Chamam-se socráticos os diálogos da juventude e da maturidade de Platão. Nesses diálogos, Sócrates desempenha o papel central, o problema discutido é habitualmente um problema moral e, geralmente, esses diálogos não se resolvem numa conclusão positiva72.

Que nossos diálogos sejam socráticos por uma questão de cronologia, como aponta a primeira parte da definição de Alexandre Koyré, tudo bem, no entanto, que seus conteúdos estejam determinados, ainda que se diga, habitualmente, por questões morais ao final não-resolvidas, como ainda não os lemos, decidir por isso também não podemos. O que a princípio, para nós, não chega a constituir um problema, sendo, antes, aquilo que poderemos constatar, ou não, com nossas leituras. No entanto, sabemos que a questão socrática põe outras coisas em questão. Pois, como nos diz Emilio Lledó: Quando se adentra alguma vez na bibliografia platônica, lemos que muitos intérpretes introduzem, como uma grande dificuldade hermenêutica, a trivialidade de que não sabemos se por detrás de Sócrates está Platão, se o que Platão põe na boca de Sócrates são idéias socráticas ou platônicas, etc.73

Tais questões, sim, talvez reclamem justamente, antes, a nossa atenção, sejam trivialidades ou não. Pois, a partir daí, da idéia de que os chamados diálogos socráticos, de alguma maneira, reproduzem, “mais ou menos fielmente, o próprio ensino de Sócrates, as suas conversas livres e não-escolares nas ruas e nas palestras de Atenas”74, conforme o acento que

72

KOYRÉ, Alexandre. Introdução à leitura de Platão. Lisboa: Editorial Presença, 1988, p. 9. LLEDÓ, Emilio. Introducción General. In: PLATÓN. Diálogos. Madrid: Editorial Gredos, 1997, p. 22. 74 KOYRÉ, Alexandre, op. cit., p. 10. 73

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se dê a tal reprodução, na história da interpretação dos textos escritos por Platão, pôde manter-se, como nos diz Crombie: [...] a opinião (professores Taylor e Burnet) de que, nos diálogos nos quais Sócrates é o principal interlocutor, as doutrinas que se propõem são, mais ou menos, as doutrinas do Sócrates histórico; e que somente nos diálogos em que se perde Sócrates de vista, é onde estão os próprios pensamentos de Platão75.

Assim sendo, através dos diálogos de Platão, poder-se-ia traçar uma nítida distinção entre o pensamento do próprio Sócrates e aquele, subseqüente, o pensamento de Platão. Ainda mais para aqueles que levam a sério o que está escrito na Carta II, quer autêntica ou não76, onde se lê: “Essa é a razão pela qual nunca escrevi sobre esses temas, e não há obra alguma de Platão nem haverá. As que agora se diz serem suas, são de Sócrates, escritos no tempo de sua bela juventude” (Carta II, 314c). Ora, mas se de fato é assim, teremos que reformular todo o nosso estudo, a começar pelo título que, então, em vez do atual, deveria chamarse, antes: Sócrates e a Linguagem poética? No entanto, talvez não precisemos chegar a tanto. Afinal, ainda que socráticos, os diálogos que leremos, apesar do próprio filósofo, são todos mesmo de Platão. Vejamos. Sabemos que Sócrates não chegou a deixar nenhuma obra escrita. Como filósofo, sua obra mais autêntica foi sua própria vida. Contudo, quando morreu, sendo o homem que foi, deixando o convívio dos seus, ainda que oculto na escuridão da terra, não pôde deixar que sua imagem não se mantivesse viva e resplandecente, gravada no imaginário de todos. Prova disso, os próprios Diálogos Socráticos de Platão. No entanto, ainda

75

CROMBIE, I. M, op. cit., p. 39. “Resumindo o problema, é uma das Cartas que conta com menos votos a favor da sua autenticidade”. ZARAGOZA, Juan, op. cit., p. 439. 76

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que uma boa parte do mundo possa considerar que os tenha feito maravilhosos, Platão não foi o único a compô-los. Assim como também não foi o único socrático. Autores de Diálogos Socráticos também foram, por exemplo, Xenofonte, Antístenes e Ésquines de Esfeto. Socráticos , fundadores de Escolas filosóficas, também são, por exemplo, além do já citado Antístenes, Aristipo, Euclides e Fédon. E, ainda que cada qual tenha tirado conseqüências diferentes dos ensinamentos do mestre, é bem provável que Giovanni Reale esteja certo ao nos dizer que cada um desses discípulos “deve ter-se sentido um autêntico (senão o único autêntico) herdeiro de Sócrates”77. Mas não é apenas através desses socráticos que podemos ficar sabendo a respeito do filósofo. Aristófanes também o retratou em sua comédia As Nuvens. Aristóteles é outro freqüentemente citado pelos historiadores à procura de Sócrates78. Como se vê, Platão não é a única fonte através da qual se poderia reconstituir o pensamento historicamente determinado de Sócrates. Tarefa, se não impossível, ingrata. Não nos tendo deixado nada escrito, para tanto, tem-se que confiar nos testemunhos legados pela dita tradição socrática. Mas, ao procurá-los, logo se percebe que tais testemunhos “são profundamente discordantes e, nalguns casos, até mesmo radicalmente opostos, a ponto de se anularem mutuamente”79. Portanto, talvez não se justifique plenamente a tentativa de, nos diálogos de Platão, fazer a distinção

77

REALE, Giovanni, op. cit., Vol. I, p. 330. Para maiores informações a respeito do testemunho de Aristóteles sobre Sócrates, pode-se ver: MAGALHÃES-VILHENA, Vasco de. O Problema de Sócrates. O Sócrates Histórico e o Sócrates de Platão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p. 225-329. 79 REALE, Giovanni, op. cit., v. I, p. 248. “Tudo isto é suficiente para compreender a enorme dificuldade com a qual se defronta qualquer tentativa de reconstrução do pensamento de Sócrates e também o caráter aleatório e hipotético que fatalmente marca todas as reconstruções, dado que as fontes nas quais se inspiram são, cada uma, não objetiva descrição, mas interpretação”. REALE, Giovanni, op. cit., v. I, p. 251. 78

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entre um Sócrates socrático, por assim dizer, e um Sócrates platônico. Com o que, primeiro de tudo, não precisamos mais pensar em trocar o título das nossas leituras. Fiquemos ainda com o atual: Platão e a linguagem

poética, mesmo porque, como já foi dito, ainda que socráticos, foram escritos por Platão os diálogos que em breve leremos. De fato, como nos diz Crombie, seria mesmo de estranhar “que uma mente tão ativa filosoficamente como a de Platão pudesse ter dedicado tantos anos escrevendo nada mais que uma biografia”80. Ou ainda, como Magalhães-Vilhena, nos dizendo que seria até mesmo um “absurdo emitir a hipótese de um Platão repórter ou até biógrafo, durante metade da sua vida, antes de se tornar o prodigioso gênio filosófico que a humanidade admira”81. Jean Brum acha mesmo “impossível descobrir o pensamento de Sócrates sob o pensamento do Sócrates de Platão”82. Afinal de contas, nas palavras de Alberto Nunes, “o Sócrates dos Diálogos não é uma figura histórica, cujas palavras houvessem sido conservadas por algum estenógrafo”83. Portanto, é assim, tendo em vista que “não é somente por amor da história que Platão, nos Diálogos, se obstina a olhar o passado”84, mas antes, poder-se-ia dizer, projetando o futuro, que devemos encarar o que de socrático possa haver – e certamente, como não poderia deixar de ser, o há –, no Íon, no Eutífron, no Hípias Menor, no Protágoras, no Mênon ou no Crátilo. Diante disso, da explicitação do modo pelo qual a dita questão

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CROMBIE, I. M., op. cit., p. 40. MAGALHÃES-VILHENA, Vasco de. Platão e a Lenda Socrática. A idealização de Sócrates e o utopismo político de Platão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, p. 340. 82 BRUN, Jean. Platón y la Academia. Barcelona: Ediciones Paidós, 1992, p. 26. 83 NUNES, Carlos Alberto. Marginalia Platonica. Belém: Universidade Federal do Pará, 1973, p. 38. 84 MAGALHÃES-VILHENA, Vasco de., op. cit., p. 314. 81

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socrática pode interferir em nossas leituras, bem que poderíamos, de uma vez por todas, partir para os diálogos. No entanto, ainda que saibamos que nem tudo se responde, talvez seja mais prudente verificar se ainda não ficou alguma questão pendente, por pequena que possa parecer.

Pequenas questões Os limites do nosso estudo são os limites dos escritos de Platão. Isso já deve ou deveria ter ficado claro. Agora está. Guiando-nos pelo paradigma

contemplativo da visão filosófica, pautamo-nos por aquilo que podemos ver. No nosso caso, evidentemente que não a radiante luz solar dos princípios supremos da realidade, mas, antes, aquilo que, com os olhos, pode-se ler nos textos de Platão. Evidente é também que nos apoiaremos nas leituras da tradição. Mas, por enquanto, nos poupamos de todas as referências, quer aos textos de Platão, que serão usados em nosso estudo, quer aos seus comentadores que, é claro, aparecerão na justa medida do uso. Cabendo, antes, lembrar aonde queremos chegar com os textos que leremos, ou seja, às portas da República tal qual a cidade se mostrou para nós nos postais. Estão lembrados? Portanto, mesmo que não entremos no Estado filosófico de Platão, ou mesmo por isso, da distinção buscando o prenúncio, ainda que com o pé na estrada, não vamos ficar por aí, vagando a esmo, pois pensamos já ter traçado o caminho que nos levará até lá. Evidentemente, não nós. Mas o próprio filósofo o fez. Sigamos seus passos. Por onde começar? Ora, talvez pelo único caminho possível. Aos diálogos, então.

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Título Platão e a linguagem poética: o prenúncio de uma distinção Autor Fausto dos Santos Amaral Filho Assistente editorial Alexsandro Stumpf Assistente administrativo Neli Ferrari Secretaria Alexandra Fatima Lopes de Souza Distribuição, divulgação e vendas Neli Ferrari, Jocimar Vazocha Wescinski e Ederson Felipe Henn Projeto gráfico Alexsandro Stumpf e Ronise Biezus Diagramação Ronise Biezus Capa Alexsandro Stumpf Preparação dos originais Jakeline Mendes Ruviaro Revisão Jakeline Mendes Ruviaro Formato 16 X 23 cm Tipologia Minion entre 7 e 15 pontos Papel Capa: Cartão Supremo 350 g/m2 Miolo: Pólen Soft 80 g/m2 Número de páginas 283 Tiragem 1000 Publicação julho de 2008 Impressão e acabamento Gráfica e Editora Pallotti - Santa Maria (RS)

Argos - Editora Universitária - UNOCHAPECÓ Av. Attilio Fontana, 591-E - Bairro Efapi - Chapecó (SC) - 89809-000 - Caixa Postal 1141 Fone: (49) 3321 8218 - argos@unochapeco.edu.br - www.unochapeco.edu.br/argos



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