PotĂŞncias da imagem
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Raúl Antelo
Potências da imagem
Chapecó, 2004
Av. Senador Attílio Fontana, 591-E Fone/Fax (49) 321-8000 Cx. Postal 747 CEP 89809-000 Chapecó - SC
REITOR: Gilberto Luiz Agnolin VICE-REITORA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO: Maria Assunta Busato VICE-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: Gerson Roberto Röwer VICE-REITOR DE ENSINO: Odilon Luiz Poli
302.222 A635p
Antelo, Raúl Potências da imagem / Raúl Antelo. - Chapecó : Argos, 2004. 149 p.
1. Comunicação visual. 2. Imagem. I. Título. CDD 302.222 ISBN: 85-7535-058-7
Catalogação: Yara Menegatti - CRB 14/488
Conselho Editorial Josiane Roza de Oliveira (Presidente) Ricardo Rezer; Alexandre Maurício Matiello Arlene Renk; Eliane Marta Fistarol Flávio Roberto Mello Garcia; Hermógenes Saviani Filho José Luiz Zambiasi; Juçara Nair Wollf Leonardo Secchi; Maria dos Anjos Lopes Viella Maria Luiza de Souza Lajus
Impresso no Brasil, 2004 Tiragem: 1000
Coordenadora Monica Hass Assistente Editorial Hilario Junior dos Santos Assistente Administrativo Neli Ferrari Projeto gráfico e capa Hilario Junior dos Santos Revisão Fabiana Cardoso Fidelis e Jakeline Mendes
Sumário
Prefácio - crítica e imagem ............................................ 7 O inconsciente ótico do modernismo ............................. 13 A imagem fotográfica ......................................................................... 17 Fascismo e imagem ............................................................................. 23
Políticas da amizade e anamorfose do moderno.............. 29 Pettoruti: nova forma e não-verdade .................................................. Rebelo ................................................................................................. A mensagem espiritual ou as verdades do simulacro ......................... Montevidéu ........................................................................................ Leituras ............................................................................................... Dobras e redobres ...............................................................................
31 37 43 48 65 71
Suplemento de imagens: de Whitman a Jorge Amado, passando por “Macunaíma”, e até mesmo García Márquez ............................................................. 75
Amado: tradição e extradição......................................... 87 Deleitação morosa: imagem, identidade e testemunho... 125 Arte e vida .......................................................................................... 126 Identidade e memória ......................................................................... 136 Paradoxos do testemunho ................................................................... 138
Referências .................................................................... 143
Prefácio crítica e imagem
Em “Inquisições” (1925), seu primeiro livro de ensaios, Jorge Luis Borges assinalava que as imagens são uma fantasmagoria – la imagen es hechicería – e admitia não ser suficiente afirmar que los espejos se asemejan a un agua, como cualquier Huidobro diria. Borges entendia não só possível, mas mesmo necessário, ir além desses jogos meramente verbais, porque Hay que manifestar ese anteojo hecho forzosa realidad de una mente: hay que mostrar un individuo que se introduce en el cristal y que persiste en su ilusorio país (donde hay figuraciones y colores, pero regidos de inmovible silencio) y que siente el bochorno de no ser más que un simulacro que obliteran las noches y que las vislumbres permiten (BORGES, 1925).
Potências da imagem
Um indivíduo se introduziu num cristal, tornou-se máquina, exigindo que las constelaciones desbarataran su incorruptible destino y renovaran su ardimiento en signos no mirados de la contemplación antigua de navegantes y pastores. Esse sujeito que, para retomar o título da inquisição borgiana, postava-se “depois das imagens”, era um Urhistórico e podia chamar-se Walter Benjamin. Ele nos ensinou a perceber que, na mente de alguém acostumado a assistir a imagens cinematográficas, o processo de associações fica logo interrompido pela mudança icônica constante. A idéia sugere que, mais do que de espaço, a imagem precisa de tempo, por requerer um processo de associações incessantes. É bem verdade que a obra de arte na era da reprodutibilidade técnica pede “o leitor desatento”, aquele mesmo procurado com afinco por Macedonio Fernandez, porém não é menos verdadeiro que esse novo leitor seja obrigado, também, a realizar certas operações abstratas, certas desleituras, mesmo quando assista a uma imagem banal, cotidiana. Junto com a perda do valor de aura por parte da obra, o leitor exausto de imagens culturais perde, também, toda ingenuidade. A idéia terá seu correlato nas formas visuais contemporâneas. No pós-cinema, por exemplo, a questão da duração dos planos já não é tão relevante como o era no cinema de autor. Como observa Beatriz Sarlo, a questão já foi decidida de antemão, os planos são curtos ou curtíssimos, uma vez que, na nova linguagem, nos defrontamos com um discurso de alto-impacto, baseado na velocidade de substituição das imagens, cujos melhores exemplos ainda são os anúncios de propaganda e os videoclipes. Giorgio Agamben, que define o homem como o animal que vai ao cinema, tem analisado as imagens-movimento como o motor -8-
Prefácio - crítica e imagem
de uma teoria recursiva da história, construída a partir das imagens dialéticas de Benjamin. Graças a elas, compreendemos que a história se faz por imagens, mas que essas imagens estão, de fato, carregadas de história. Isto é, de nonsense, de equívocos. Constatamos, assim, que a imagem nunca é um dado natural. Ela é uma construção discursiva que obedece a duas condições de possibilidade: a repetição e o corte. Enquanto ativação de um procedimento de montagem, toda imagem é um retorno, mas ela já não assinala o retorno do idêntico. Aquilo que retorna na imagem é a possibilidade do passado. Como procedimento de suspensão ou corte, a imagem aproxima-se, então, da poesia, e não da prosa, na medida em que até mesmo o poema poderia ser reduzido ao simples efeito de enjambement. Retorno e corte alimentam, portanto, uma certa indecibilidade ou indiferença, uma impossibilidade de discernimento entre julgamento verdadeiro e falso, que potencializa, entretanto, o artifício da falsidade como a única via possível de acesso à estrutura ficcional da verdade. Nesse sentido, diríamos que as imagens produzem um regime de significação que apela aos processos da memória psíquica e, elaborando-se como sintoma, elas sobrevivem e deslocam-se no tempo e no espaço, exigindo que se alarguem, conseqüentemente, os modelos da temporalidade histórica e que se acompanhe a sua sobrevivência para além do espaço cultural originário. Esta hipótese, que foi pioneiramente aventada, no campo da história da arte, por Aby Warburg, nos coloca perante uma concepção rememorativa da história, em que as imagens, na sua dimensão de memória ou de tempo histórico condensado, criam, no movimento de sobrevivência e de diferimento que lhes é característico, determinadas circulações
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Potências da imagem
e intrincações de tempos, intervalos e falhas, que vão desenhando um percurso, um regime de verdade, uma densidade constelacional própria. Borges, Warburg e, em sua esteira, Benjamin ou Agamben, nos propõem, através do trabalho das imagens, um modelo cultural da história que tem muito mais a ver com o inconsciente histórico e com a sobrevivência de certas formas expressivas. Trata-se de um modelo que toma distância com relação ao esquema narrativo pautado por começo e recomeço, progresso e declínio, nascimento e decadência, a partir do qual sempre se retirou um mecanismo linear para explicar as influências e os modos de transmissão cultural. O próprio Warburg, em sua “Introdução ao Atlas Mnemosyne”, postulou que a história de uma disciplina é um evolucionismo descritivo insuficiente se, ao mesmo tempo que se capta o contingente, não se ousa, também, descer à profundidade da tessitura (Verflochtenheit), que liga o espírito humano à matéria estratificada acronologicamente. Georges Didi-Huberman, em sua leitura de Warburg, vai mais longe ainda. Argumenta que não há história da arte que possa prescindir, para seu próprio relato e para sua construção, de modelos estéticos. Toda história cultural é um peculiar modo da ficção. Vemos, então, que o conceito de sobrevivência, central na teoria de Warburg, embora ensaiado previamente pela antropologia anglo-saxônica, mais precisamente por Edward B. Tylor, nos fornece uma saída para o impasse do presente. De fato, com a sua noção de survival, Tylor também vinha tentando uma teoria da linguagem emocional e imitativa de que, no Brasil, um de seus adeptos foi Mário de Andrade. “Memória, assombração, superstição” costumam delatar, no autor - 10 -
Prefácio - crítica e imagem
de “Macunaíma”, uma atenta leitura de Tylor e Freud. Mas a genealogia do conceito de sobrevivência nos leva também a Burckhardt que, nos seus estudos sobre a arte da Renascença, já tinha começado a construir o fundamento teórico da sobrevivência, ao mostrar que essa arte é impura, tanto nos seus estilos artísticos como na temporalidade complexa das suas idas e vindas, entre o presente vivo e a antiguidade rememorada. E nos leva, ainda, a Nietzsche, cuja polaridade dionisíaco/apolíneo ganha destaque, em Warburg, ao ser transformada em olímpico/demônico. Nietzsche, em última análise, fornece a Warburg os instrumentos para pensar uma estética das forças e considerar o pathos na sua potência formadora. Daí deriva, portanto, o conceito “fórmula de pathos” (Pathosformel), que se imporá na análise cultural contemporânea. O valor do pathos é, entretanto, dúplice. É, sem dúvida, manifestação de um eterno retorno, de uma inequívoca vontade de chance e de potência mas, ao mesmo tempo, ele é uma vontade sem semelhança, que nos fornece uma imagem da arte depurada de toda força. A fórmula do pathos amarra assim, ambivalentemente, a receptividade (ou potência passiva) e a representatividade (ou potência ativa). Nesse sentido, diríamos que, nas leituras que seguem, visamos ultrapassar o círculo da subjetividade, potencializando, ao mesmo tempo, a receptividade, que mostra de que modo as formas do passado podem ainda ser novamente equacionadas como “problema”. O último livro de Jean-Luc Nancy faz eco à primeira inquisição borgiana. Depois das imagens, é preciso ir Au fond des images. Até o fundo das imagens – diria Rimbaud – para encontrar l´inconnu, o moderno, porque, como argumenta Nancy, a imagem,
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em última análise, fornece presença ao texto, se entendemos texto como um tecido de sentidos. Mas por tirar o sentido da ausência ou da vacância de sentido, todo presens não passa, a rigor, de absens. Na leitura do inconsciente ótico do modernismo, a partir de fotografias estampadas em uma revista oficial do Estado Novo; na análise das anamorfoses do moderno que, através de uma coleção que se espetaculariza em exposição para, finalmente, se patrimonializar, novamente, em coleção, desvendando, en passant, muito intrincadas, embora precisas e, sem dúvida, duradouras “políticas da amizade”; por último, na relação entre imagem e cultura de massa, imagem e política, imagem e desaparecimento, que atravessa o debate do modernismo tardio, julgamos captar algo da energia do moderno que ainda resiste nos textos e nas imagens. O inacabamento de uns remete-nos às outras, mas a impotência delas carrega-se de renovadas forças de sentido. São essas as “Potências da imagem”. Os textos aqui reunidos foram previamente estampados em revistas especializadas – “Letterature d´America”, “Punto de vista”, “Revista de Crítica Cultural” – ou apresentados em colóquios acadêmicos. Agradeço aos colegas que me impulsionaram a escrevêlos. Sou grato a Cláudia Rio Doce e a Antonio Carlos Santos pelo auxílio em reuni-los; a Mario Cámara e Fabíola Alves da Silva, pelo suporte material; e a Valdir Prigol, pela confiança. Imagens: maneiras e matérias da presença. Raúl Antelo dezembro, 2003.
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O inconsciente ótico do modernismo
Quando as publicações de vanguarda, ‘Bifur’ ou ‘Variété’, mostram unicamente detalhes, sob títulos como ‘Westminster’, ‘Lille’, ‘Antuérpia’ ou ‘Boslau’, representando, ora um fragmento de balaustrada, ora a copa desfolhada de uma árvore cujos galhos se entrecruzam de múltiplas maneiras sobre um poste de gás, ora um muro ou um candelabro com uma bóia de salvação na qual figura o nome da cidade, elas se limitam a levar ao extremo motivos descobertos por Atget. Ele buscava as coisas perdidas e transviadas, e, por isso, tais imagens se voltam contra a ressonância exótica, majestosa, romântica, dos nomes de cidade; elas sugam a aura da realidade como uma bomba suga a água de um navio que afunda. Walter Benjamin
Toda imagem é uma representação, de caráter global e abrangente, de uma ordem, de um território, de uma identidade, enfim, que se constitui, opera e se insere em parâmetros
Potências da imagem
coletivamente aceitos. Essa peculiaridade redefine seu contorno não somente no plano cultural, mas, acima de tudo, na esfera do social. O imaginário, conjunto variado e proliferante dessas práticas discursivas fornece, assim, uma resposta ativa aos conflitos constitutivos de uma cultura. Trata-se de um sistema de valores que orienta o sujeito em relação ao grupo com o qual ele se identifica ou ainda pauta esse grupo face à sociedade como um todo, isto é, enquadra-o em relação a suas hierarquias e dominações e, em última análise, coloca a sociedade global frente a seus outros. Essa operação descansa, mais do que em vago simbolismo transitório, na articulação, precisa e orientada, de verdade e normatividade, capitalizando as energias decorrentes da construção de toda representação em direção a um alvo comum, a prática social. Essa peculiaridade das imagens leva-me, em conseqüência, a analisar um imaginário específico, os valores de hierarquia e normatividade, tal como ele se depreende a partir de certas imagens emblemáticas do Estado Novo. Digamos, para antecipar a hipótese, que em algumas imagens desse período capta-se, com pungência, o inconsciente ótico do próprio modernismo. Meu campo de pesquisa é, fundamentalmente, constituído por revistas e, a esse respeito, caberia relembrar, para início de conversa, que a própria história dos periódicos culturais brasileiros é inseparável da lei e da imagem, o que se desdobra em uma série de paradoxos. Essas imagens reificam uma sociedade paralisada ou funcionam, pelo contrário, como uma prensa de energias livres? Essas leis profanam a sacralidade imperial ou somente nos anunciam a existência de forças originárias adormecidas? Seja como for, elas problematizam a representação, tanto na lei quanto na imagem, que já não se confunde com a simples ação, mas alimenta-se da paixão. -14 -
O inconsciente ótico do modernismo
Marco fundacional dos estudos historiográficos em meados do século XIX, a “Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”, por exemplo, assinala o conceito patrimonial da modernização aristocrática dos Bragança, sua paixão pelos acervos. Com ela o Império começa coleções culturais. Observa Max Fleiuss, secretário perpétuo do Instituto e diretor de “A Semana”, revista porta-voz da formação intelectual que fundaria, em 1897, a Academia Brasileira de Letras, que [...] são inapreciáveis as doações de patrimônio intelectual que o Imperador fez ao Instituto. Bibliotecas, arquivos de manuscritos e mapotecas completas. Basta dizer que o núcleo principal de sua vastíssima coleção de livros, cartas, mapas geográficos e autógrafos raros – o que o Instituto, desde há muitos anos zelosamente acumula – pertenceu à biblioteca do Imperador. É a coleção magnífica de Martius, composta de 600 obras, em vários idiomas, referentes todas elas ao Novo Continente. São valiosos volumes em edição princeps, e maravilhas raríssimas, como por exemplo o mapa da ‘Razão de Estado do Brasil’, todos eles doados ao Instituto, em vida ou depois de seu falecimento, como a melhor de suas riquezas, pelo insigne monarca (FLEUISS, 1938, p. 22, tradução minha).
A esse acervo deveríamos agregar a fotografia, de que Dom Pedro, além do mais, foi interessado cultor. Por outro lado, convém destacar que é esse um momento de esplendor da imagem e ela, em boa parte, ajuda a construção do imaginário nacional. Periódicos como “O Ostensor Brasileiro”, em que colaboraram Alberdi e Mármol, ou “Jornal das Senhoras”, de Joana Manso, sem esquecer “Guanabara”, “Revista Popular” ou “Revista Ilustrada”, acolheram os trabalhos de Ângelo Agostini, Alfred Martinet, Augusto Off ou -15 -
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Henrique Fleuiss, pai de Max. Como exemplarmente resume Alexandre Eulalio, a trajetória da imagem é inseparável da modernidade Imperial. Em 1842 eram pela primeira vez mostradas fotos na Exposição Geral; elas continuarão presentes, recebendo distinções nesses certames, tanto na sua forma propriamente mecânica, quanto realçadas sob a espécie das fotopinturas – processo que, em 1866, Victor Meirelles compreensivelmente desaprovava por lhe parecer fonte de retrocesso ‘da verdadeira arte’. As diversas variantes da foto-pintura, praticada pelo menos desde 1850 e tantos, por um Joaquim Insley Pacheco (ele mesmo artista do pincel) e por um Augusto Stahl (associado, no Recife, ao pintor Steffen, no Rio de Janeiro a Wahnschaffe), aderem ainda artistas visuais de certo prestígio, como LouisAuguste Moreau, Miguel Cañizares e Ernst Papf; este último chegou mesmo a abrir durante algum tempo atelier especializado. O trabalho de encarnar o ‘fantasma’ fixado na placa ‘que podia ser recoberto a óleo, a guache e mesmo a pastel’ segundo sempre Victor Meirelles, ‘se algum merecimento pode ter é certamente devido ao pintor e não ao fotógrafo’. A firma Carneiro & Gaspar contava com o grafismo elegante de Courtois; já Alberto Henschel ‘avivava’ pessoalmente as suas reproduções; José Ferreira Guimarães especializara-se, por seu lado, em ‘retratos vitrificados, fixados a fogo como as pinturas de Sèvres e Limoges’. Uma referência apenas à fusão foto-litografia: um gênero que encontra alguns dos mais altos momentos da nossa iconografia oitocentista nas vistas brasileiras fixadas pelas objetiva de Victor Frond e litografiadas pelos melhores mestres do gênero da Paris de Napoleão III. Precedem-nas de um decênio o panorama da capital do que os lápis litográficos de Benoit e Cicéri deram relevo todo especial (EULALIO, 1992, p. 156).
Herdeira, portanto, dessa tradição, a República não só não interrompe a atitude colecionadora de imagens, mas reorienta-a. A “Revista Americana”, órgão oficioso do Itamaraty, organiza, com -16 -
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efeito, um tipo peculiar de coleção: as nacionalidades americanas, unidas, em nome de uma política de hegemonia regional, pelo panamericanismo do barão do Rio Branco. Não é nem um pouco surpreendente, então, que, mais tarde, na era Vargas, vários periódicos culturais ainda se pautem por programas nacionalistas e modernistas, em perspectiva de fusão, ou de amálgama, do supra-regional, mas por isso mesmo é lógico que quase todos eles permaneçam atentos à pulsão escópica. “Atlântico” e “Travel in Brazil”, publicações do Departamento de Imprensa e Propaganda, ilustram aspectos pouco estudados do modernismo brasileiro. Ambas catalisam coleções geopolíticas específicas. A primeira revista, alinhando-se com os interesses estratégicos no Atlântico de Salazar (já que era publicação binacional, sustentada também pela Secretaria Nacional de Propaganda de Portugal). A segunda, entretanto, identificando-se grosso modo com a dominante norte-americana para a região. Mas, além destas manifestações coincidentes, as duas publicações ilustram modos divergentes de entender o moderno, tramas específicas de espaço e tempo em que o próximo, por mais colado que estiver, aparece irremediavelmente distante de nós e isto graças às imagens. A imagem fotográfica Ora, em uma colaboração para o “Jornal de Letras”, Carlos Drummond de Andrade teoriza sintomaticamente sobre essa virtualidade da fotografia, recordando que,
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[...] segundo Paul Valéry, deviam os filósofos meditar no número prodigioso de estrelas, radiações e energias cósmicas que só se tornaram conhecidas através da fotografia; energias, radiações e estrelas que, por assim dizer, ficamos devendo à placa sensível do fotógrafo. Mas essa placa não nos desvenda somente os mundos longínquos e as vibrações imponderáveis da matéria. Os nossos próprios mundos individuais, o mundo interior que se defende por trás das aparências catalogadas do mundo de todos os dias – o fotógrafo consegue, muitas vezes, captá-lo em sua pureza singular, quando nem o psicólogo nem o pedagogo nem o ficcionista dele retiram mais que um esboço confuso.1
Vale a pena, portanto, observar mais em detalhe esta poética da imagem, nas duas publicações do modernismo tardio que acabamos de citar. Dirigida por um ex-vanguardista, Antonio Ferro2 , a revista “Atlântico”, furtivamente visual, opta pela exibição de um patrimônio plástico tradicional, admitindo, no máximo, a ilustração convencional, tipográfica ou em desenhos, de artistas como Santa Rosa, Tarsila ou Noêmia. “Travel in Brazil”, no entanto, escrita em inglês, com textos específicos de modernistas como Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles ou Sérgio Buarque de Hollanda, assinala, por sua vez, um aspecto mais instigante da modernidade periférica: seu inconsciente ótico. Caberia reivindicar este conceito não apenas como um ingrediente marginal ou deslocado do moderno, mas, até certo ponto, como característico de um ponto de vista menor, digamos assim, “latino1. M.P. (pseud. Carlos Drummond de Andrade). Retratos do artista quando menino. “Jornal de Letras”, Rio de Janeiro, nov. 1949. É o único texto de Drummond com essa acrografia. 2. Prefaciado por Gómez de la Serna e Eugenio d’Ors, Antonio Ferro foi biógrafo de Oliveira Salazar.
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americano”. Efetivamente, é Marcel Duchamp quem começa a se interessar pela imagem como elemento analítico da prática cultural, através de suas estereoscopias, praticadas pela primeira vez em Buenos Aires, no final da primeira guerra. Mas é, de fato, Walter Benjamin, em 1931, quem estipula teoricamente que, através da fotografia, descobrimos a existência de um inconsciente ótico, assim como nos deparamos com o inconsciente por meio da psicanálise. Primeiro em Walter Benjamin, logo em Drummond de Andrade, reaparece, pois, o conceito de Valéry de que, sempre iminente, a fotografia frustra o encontro e se revela como pura distância. Poderíamos dizer, em poucas palavras, que no predomínio concedido à imagem em detrimento do texto, “Travel in Brazil” revela o enigma do modernismo. Suas imagens, obtidas por Jean Manzon, Eric Hesse, Jorge de Castro, Vieira, Kahan e outros, são elucidativas tanto das fantasias visuais, hiperestéticas, do Estado Novo como da sutil fusão anestésica promovida pelo canto orfeônico de Villa-Lobos, calorosamente defendido por Mário de Andrade em suas páginas. Estão aí o jangadeiro de Orson Welles e o tropeiro de Glauber Rocha, para, em suma, constatarmos, na rasura que supõe uma revista, em primeiro lugar, editada pela censura, e não menos importante, em inglês, a relação especular do modernismo com seu Outro. Admitindo a hipótese de que a imagem é espectro e, como tal, não apenas fantasma, mas série ou leque, uma reportagem, aparentemente secundária, assinada com pseudônimo, chama subitamente nossa atenção. “Through the Rio streets”, tal a matéria, organiza-se a partir das poderosas imagens de Jean Manzon, ilustrando um texto evocativo das profissões ambulantes que a cidade vê desaparecer. Toda imagem vem acompanhada de uma epígrafe. Ver e
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ler. Como assinala Bourdieu, uma foto não é nada sem essa epígrafe que nos diz o que deve ser lido – legendum – ou seja, algo que, com frequência, é só uma lenda que nos faz ver qualquer coisa. Mas neste nomear, fazer ver, criar ou levar a existir, as epígrafes particularizam, precisamente, uma característica da fotografia, sua distância média entre o infinito e o sujeito, seu traço irredutível, o ça-a-été que lhe atribuía Roland Barthes (BARTHES, 1997, p. 1163; ZAPATA, 1997, p. 10-14). Todas as imagens da matéria em questão sublinham ou dobram o que a imagem impõe, um irrevogável passado colonial e migratório. “An italian fruit vendor”, “The itinerant Portuguese grinder”, “The Portuguese fresh-eggman”, “The Portuguese ambulant seller of brooms and feather-dusters”, todas apontam um mundo de interesses. Interessere, que está entre dois mundos, que afirma e nega, que atrai, enfim. São o complemento de outras imagens, as de vendedores de frutas pintadas por Tarsila do Amaral ou ainda aquelas outras, filmadas por Humberto Mauro na mesma época, as de profissões rurais condenadas, cuja distância dramatizam os cantos de trabalho. Nestas que nos ocupam, no entanto, uma identidade européia, manual e artesanal, é arquivada com o mesmo gesto com que outra nova, nacional e industrial, a substitui. Mas esta mudança não é menos problemática, já que o novo, tão novo, diga-se de passagem, como o Estado que o promove, o Estado Novo, é um regime autoritário, de repressão interna, alinhado aos Estados Unidos, sua proteção externa, para uma drástica industrialização do país. As fotos, portanto, suspensas em meio à metamorfose, mais do que o “eis aqui” mítico do novo, exibem a problemática imagem do “isto foi”, ou seja, a distância de uma modernidade esquiva que se impõe como proto-história de nossa reconstrução contemporânea. Essas
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imagens de Manzon elegem como objeto artístico o mundo do trabalho, mas expurgando dele todo vestígio de violência ou exploração. O novo desse Estado de compromisso, quando não de exceção, insinua a lenta substituição do braço pela máquina e impõe a arbitragem do Estado nos conflitos suscitados pelos interesses discordantes entre cidadania e modernização. Essas fotos dramatizam a existência de duas faces do cultural que, por sua vez, engendram formas históricas de organização social. Não apontam um movimento teleológico progressivo, “novo”, de superação do passado pelo presente, mas a reabertura indefinida e infinita de um conflito entre o princípio de utilidade e o princípio de perda. O Brasil está, então, definindo, o que fazer com seus investimentos, já que o excedente econômico, que não poderá mais ser desperdiçado periodicamente em festas e transgressões coletivas, deve daí por diante ser reapropriado e utilizado pelos setores dominantes na criação ou consolidação de empresas militares e religiosas: a guerra, a arte nova, a festa disciplinada, o turismo, enfim, de “Travel in Brazil”. Nesta linha de análise, inscrevem-se textos como “Holly week in Ouro Preto”, de Cecília Meirelles (n. 4, 1942), “Carnaval in Rio”, da mesma Cecília, publicado em um número (n. 2, 1941) cuja capa traz Carmen Miranda em fotomontagem tropicalista, provavelmente de Sansão Castello Branco, e mesmo “Ouro Preto and the old Vila Rica”, de Manuel Bandeira (n. 4, 1941). Tradicionalmente identificadas com a ordem profana, razão e moral passam a ser, em certa medida, divinizadas por estas imagens, enquanto o divino, decaído, é agora racionalizado como uma arte a serviço da guerra contemporânea, guerra entre as nações, em função da divisão política. Há aqui uma evidente opção entre dois modelos divergentes do moderno, o de Marx e o de Nietzsche. Marx, como
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sabemos, propõe a secularização radical do social para a abolição da propriedade privada e o conseqüente desaparecimento de fronteiras políticas internacionais. Nietzsche, por sua vez, acredita que o homem deve liberar-se da tutela racional e do temor ao limite temporal para afirmar a vida como aposta criativa, lúdica e elusiva, mas, ao mesmo tempo, gozosa e dolorosa, o que, em última análise, configura a emergência de uma subjetividade soberana. Nietzsche, em geral, foi lido como defensor de uma soberania meramente objetiva e esta será a divergência que a tradição de Bataille, Blanchot e Foucault recriminará ao saber consolidado: confundir soberania e poder, buscar a autopreservação ao preço de controlar o futuro e dominar os demais. É essa, precisamente, a perspectiva que Almir de Andrade, um dos diretores do Departamento de Imprensa e Propaganda, deixa claro quando afirma que [...] não reconhece Nietzsche qualquer idéia moral que pretenda definir o bem em si ou o mal em si: bem e mal são conceitos relativos, que se modelam sobre os objetivos da vontade-de-poder do homem superior. Os fins justificam todos os meios, desde que se tenha em vista desenvolver na personalidade humana a vontade-de-poder, que traz em si os bens supremos e essenciais da vida, que gera tudo o que é grande, nobre e duradouro sobre a terra. A filosofia de Nietzsche conduz, assim, a uma ‘transmutação de todos os valores’, com o fito de alcançar o sobrehumano, isto é, a personalidade que transcende, que se satura dessa potente e grandiosa vontade-de-viver ou vontade-de-poder, símbolo da dominação do homem sobre si mesmo e sobre o mundo exterior3 (ANDRADE, 1949).
3. Prefácio de Agrippino Grieco. Com aparente objetividade, Almir de Andrade observa neste prefácio posterior à guerra que “a doutrina de Nietzsche foi a grande inspiradora do Führerprinzip do pensamento nacional-socialista alemão e de toda a filosofia política do Nazismo e do Fascismo.”
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Fascismo e imagem Esta alternativa super-heróica de Nietzsche reabre, assim, em pleno estadonovismo, a discussão sobre os limites entre natureza e cultura, que o darwinismo social, com sua impugnação do mito teleológico e do dogmatismo bíblico, havia capitalizado para si como religião da ciência. Tornam a ser ouvidas, em conseqüência, as fantasias viris do empirismo, que impregnam inclusive seus próprios críticos. Walter Benjamin, talvez o mais ilustre deles, ao concluir seu célebre ensaio sobre “A obra de arte na época de sua reprodutividade técnica”, estabelece uma correlação entre a crescente proletarização do homem moderno e o alinhamento, também crescente, da sociedade que ele explica dizendo que o fascismo trata de organizar as massas sem tocar nas condições da propriedade que essas mesmas massas queriam destruir. Assim, o fascismo buscaria, de fato, com seu vitalismo, conservar as condições culturais prévias de existência. A conseqüência prática, em seu juízo, como sabemos, é o ecletismo beligerante da vida política. E acrescenta: “à violação das massas, que o fascismo impõe pela força no culto ao caudilho, corresponde a violação de todo um mecanismo posto a serviço da falsificação de valores culturais” (BENJAMIN, 1973, p. 56, tradução minha). Ora, Jesús Aguirre, o duque de Alba, em sua versão do ensaio ao espanhol, traduz corretamente o conceito de Vergewaltigung der Massen, violação ou, para enfatizar o sentido também presente em alemão, estupro. Deve-se observar, entretanto, que o conceito desdobra-se em outro, Vergewaltigung einer Apparatur, duplicando, assim, mesmo os sujeitos femininos, die Masse ou Apparatur (e -23 -
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sintomaticamente no Apparat masculino) com o que o estupro das massas e das câmaras não apenas feminiza suas vítimas, mas também antropomorfiza-as, no sentido carregadamente genérico da expressão, vinculando-as ao mesmo fascismo que, linhas adiante, manifesta-se sintomaticamente, em prosopopéia: fiat ars – pereat mundus4. O fascismo condena, assim, a physis para exaltar o físico como Kultwerten, ou seja, fisioculturismo. Essa é sua arte. As fotos de Jorge de Castro5, discípulo de Portinari, que ilustram o trabalho da Escola de Educação Física6 juntam, precisamente, estetização e mercantilização. Partem do esforço comunitário e bélico (“A well developed tug-of-war team” é a epígrafe de uma delas; “Like a bronze statue”, a de outra) e prometem um para além do humano, embora consigam apenas trazer mais para cá as promessas da indústria, até alcançar um fetiche de poder. A superposição de seis braços, em um desses exercícios, mostra-nos “a physical jerks stunt that looks like an ancient
4. Com o que Benjamin, em prespectiva nietzscheana, transvalorizaria os valores do fascismo; ou seja, criticaria a violência, mas participaria, em última instância, da retórica da virilidade. (SPACKMAN, 1996). 5. Jorge de Castro compôs também as letras de muitas marchas de Carnaval com Wilson Batista, destacando-se “Mané Garrincha” ou “Rei Pelé” e, em 1956, “Todo vedete”, sobre o baile de travestis no teatro João Caetano, que teve problemas com a censura. Cf. “As fotografias de Jorge de Castro”, Dom Casmurro, 21 out. 1939. 6. Em “The National School of Physical Education of Brazil” (“Travel in Brazil”, vol. 2, n. 4, 1942), J. Moreira de Souza estipula que “in the general plane adopted by the state to concretize, on solid bases, the aspiration of the create an institution, through which it would by possible to improve their physical health and morale, as a foundation for the working out of national organic reconstitution, from which should emerge the complete political programme of government which was pledged to give to it’s people a happy life, and to the Nation, an ample and solid sovereignty. When President Vargas, on the installation of the New State, proclaimed the inauguration of an era of economic emancipation, as an indispensable base of political independence and moral autonomy, he diligently sought for methods to bring about this ideal, and amongst other creations of this lucid and pratical mind, the National School of Physical Education and Sports was evolved”.
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hindu God”, isto é, o ídolo funciona como um simulacro de deus, assim como o homem é um simulacro do ídolo. Mário de Andrade achara, nessas fotos, o “dom de apanhar a poesia do real”. Talvez fosse o caso de interpretar o real como o Real lacaniano, o que não cessa de não poder ser representado. Mas este mesmo gesto, no qual podemos adivinhar uma violação das massas na estetização da força, admite seu complemento, a antropomorfização do fantasma, ou seja, a visualização de um desejo homoerótico – as malhas cavadas dos atletas, as nádegas para o ar, as dobras da roupa ou as poses, mais tarde banalizadas por qualquer cartão postal de São Francisco – o que nos persuade de que a única semântica da imagem fotográfica é sua pragmática, seu modo, sua prática. Este é seu valor mais concreto e contundente. O ícone estético absorve, assim, tanto as funções fundacionais do logos como a physis dos filósofos, para exibir, portanto, a conjunção (carnal) de iconofilia e inconsciente. Tais contradições têm seu correlato no plano ético e juntam-se às idéias de uma moral invertida nos quinta-coluna, defendida por Sartre no terceiro volume de “Situations”. O colaborador, nesta perspectiva, [...] em vez de julgar os fatos à luz do direto, fundou o direito sobre os fatos. Sua metafísica implícita identifica o ser com o dever ser. Tudo que é, é bom; o que é bom é o que é. Sobre tais princípios construiu apressadamente uma ética da virilidade. Tomando a máxima de Descartes – ‘o homem há de vencer a si mesmo antes que ao mundo’ – pensou que a submissão aos fatos é uma escola de valor e de dureza viril. Para ele, o que não parte de uma apreciação objetiva da situação não é mais que uma fantasia de mulher e um monte de palavras vazias. Explicou a resistência
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como uma adesão anacrônica a costumes e a uma ideologia extinta e não como afirmação de um valor. No entanto, sempre ocultou a si mesmo a contradição profunda encerrada no fato de que ele também escolheu os acontecimentos que constituem seu ponto de partida (SARTRE, 1965, p. 38, tradução minha).
E esse ponto de partida implica sonhar para além da sensibilidade, um “tempo de camisolinha”, como diria Mário de Andrade, onde fosse possível localizar uma vida autêntica, hoje ausente. Esta parte separada, destacada e até mesmo maldita da vida possível, que, na realidade, confunde-se com todo o futuro, emerge, assim, do coração mesmo de uma imagem, não apenas como sua abstração, mas como supersensação, algo já realizado de antemão. Sua duração carrega-se então com a opacidade da morte e seu outro surge com a força de uma iluminação. Toda existência fica, portanto, separada de sua essência. Toda a sensibilidade resulta amarga. Toda consciência de si, revelando ao homem sua impotência, impõe, por seu lado, seu próprio desprezo. Todo homem é, de algum modo, aleijado e não há política higienista capaz de redimi-lo ou reabilitá-lo. Como na teoria do leitor desatento de Macedonio Fernández, o inconsciente ótico remete a um infinito dessublimizado, proveniente de uma experiência cotidiana vista e vivida, embora não deliberadamente contemplada que nos conduz, como diz Italo Moriconi, ao não tematizado pelo olhar, mesmo quando integra satisfatoriamente as percepções mais convencionais do indivíduo. Como mescla de choque e apatia, de intensidades corporais e sonambulismo de massas em vigília pelo novo, o inconsciente ótico articula técnica e vivência, nos levando a uma percepção sinestésica e a uma política da imagem que procedem do visual ao tátil: -26 -
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Ao contrário de uma pedagogia conservadora, o tempo distraído, tempo entre um momento e outro de intensificada focalização pelo olhar (atenção intensa, base da reflexão) não é encarado por Benjamin como homogêneo e vazio. Nele ocorre a recepção comandada pela dominante tátil. Nele ocorre também o descentramento do sujeto individual, pois a recepção coletiva pressupõe um revezamento na posse da palavra. Para Benjamin, a recepção tátil é especialmente significativa nas conjunturas de transformação histórica. É no domínio da recepção tátil que se formam os hábitos. E é na decomposição analítica do habitualizado pelo cotidiano que se formam novos modos de vivenciar e perceber determinados pelo desenvolvimento técnico. Se a pedagogia iluminista atua de cima para baixo, disciplinando desejos (ou seja, habitualizando) a partir de idéias e de estruturas formais, Benjamin aponta para toda uma nova realidade, ainda mais vigente hoje que em seu tempo, em que os ideais a construir devem partir do reconhecimento da instabilidade emocional coletiva (MORICONI, 1996, p. 144-5).
Primeiro impulso de uma existência saudável, a pulsão, faltando em seu verdadeiro objeto, prolifera em virtualidade, mas agora em uma variante sufocada, abortada, e naquilo que poderia ser o ritmo de participação na vida, transforma-se, pelo contrário, em signo do proibido. É curioso pensar, a partir destas imagens, na biopolítica do Estado Novo, mais ainda levando em conta que a videopolítica contemporânea, de um lado, orgulha-se de sepultar a era Vargas enquanto, de outro, revoga uma lei do aborto, em casos de estupro, aprovada por esta mesma ditadura, violenta por definição. No Brasil, por paradoxal que possa parecer, as ditaduras têm sido modernizadoras tanto como a modernização, ditatorial. Tamanha indefinição de limites prova que as relações entre identidade e sexualidade, arte e técnica, exigem, para sua correta avaliação, uma poética específica, nada alheia, por sinal, às estratégias requeridas pela leitura de uma revista literária. -27 -
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Analisar um periódico cultural mimetiza sua produção mesma: obriga-nos a selecionar e a omitir, produzindo um texto, uma leitura, que é colagem espacial ou montagem temporal de fragmentos, enxertados em relações provisórias ou aleatórias que, no entanto, reafirmam o motor mesmo do moderno: a experiência do descontínuo (BENNETT, 1989, p. 480). Alfonso Reyes percebeu esse fato quando, ao traçar uma teoria da antologia, observou que “las antologías marcan hitos de las grandes controversias críticas, sea que las provoquen o que aparezcan como su consecuencia. En rigor – acrescenta – las revistas literarias de escuela y grupo se reducen a igual argumento y cobran carácter de antologías cruciales” (REYES, 1942, p. 136). É, enfim, por esse caráter antológico e descontínuo, entendido como índice efetivo de formações proto-históricas, que o sentido se rearma, sem resto, para bem ou para mal, como um enigma que nos indaga e nos exige, em todos os sentidos que a frase possa ter, que a política deve ser revista na medida em que a revista, tal como a experiência comunitária, se nos apresenta, para retomar a categoria de Jean-Luc Nancy, desoeuvrée, inoperante e improdutiva, o reverso da oeuvre benjaminiana, o anverso do texte barthesiano. Não há nela nem obra a ser produzida, nem mesmo comunicação extraviada no tempo. Há tão-somente um espaço e, em conseqüência disto, o espaçamento de uma experiência do exterior que, a contrapelo de toda nostalgia, ilumina-se com a consciência de sua própria separação.
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