A tradição literária brasileira, entre a periferia e o centro

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Luís Bueno Germana Sales Valéria Augusti (Orgs.)

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Reitor: Odilon Luiz Poli Vice-Reitora de Ensino, Pesquisa e Extensão: Maria Aparecida Lucca Caovilla Vice-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Claudio Alcides Jacoski Vice-Reitor de Administração: Antônio Zanin Diretora de Pesquisa e Pós-Graduação Stricto Sensu: Valéria Marcondes

Este livro ou parte dele não podem ser reproduzidos por qualquer meio sem autorização escrita do Editor. B869.09 T763t

A tradição literária brasileira: entre a periferia e o centro / Luís Bueno, Germana Sales, Valéria Augusti (Orgs.). Chapecó : Argos, 2013. 271 p. ; 23 cm. - (Perspectiva ; 2) Inclui bibliografias ISBN 978-85-7897-099-4 1. Literatura brasileira – História e crítica. I. Bueno, Luís. II. Sales, Germana. III. Augusti, Valéria. IV. Título. V. Série. CDD B869.09

Catalogação elaborada por Caroline Miotto CRB 14/1178 Biblioteca Central da Unochapecó

Todos os direitos reservados à Argos Editora da Unochapecó Av. Atílio Fontana, 591-E – Bairro Efapi – Chapecó (SC) – 89809-000 – Caixa Postal 1141 (49) 3321 8218 – argos@unochapeco.edu.br – www.unochapeco.edu.br/argos Coordenador: Dirceu Luiz Hermes Conselho Editorial: Rosana Maria Badalotti (presidente), Carla Rosane Paz Arruda Teo (vice-presidente), André Onghero, Lilian Beatriz Schwinn Rodrigues, Dirceu Luiz Hermes, Maria Aparecida Lucca Caovilla, Murilo Cesar Costelli, Tania Mara Zancanaro Pieczkowski, Valéria Marcondes


Sumário

!ntrodução: um duplo convite ...............................................................7 "ânone literário e História da Literatura:

o caso da Literatura do Rio Grande do Sul .........................................19 Regina Zilberman

# lastro do real no voo da fantasia:

representação do sobrenatural no conto regionalista brasileiro ......33 Luís Bueno

$ Amazônia em narrativas:

sob o signo da terra, dentro e fora do cânone ....................................59

Marlí Tereza Furtado

# romance-folhetim por entre as terras brasileiras .........................81 Germana Sales

%istórias literárias e circulação de narrativas ficcionais:

uma reflexão sobre os primeiros livros impressos no Brasil ............99 Simone Cristina Mendonça


$ Literatura, a mulher leitora de romances e o seu desejo ...........115 Socorro de Fátima Pacífico Barbosa

&ra um poaieiro: um folhetim extemporâneo? ................................137 Franceli Aparecida da Silva Mello

'obato de olho na modernidade brasileira .....................................157 Milena Ribeiro Martins

$ luneta mágica: nem virtude premiada; nem vício punido .......183 Juliana Maia de Queiroz

%erberto Helder e os dispositivos de diálogo cultural ..................203 Izabela Leal

'egislando sobre a propriedade literária:

o projeto de lei de José de Alencar .....................................................221 Valéria Augusti

$ Crítica Hermenêutica e “Buriti”, de Guimarães Rosa ...............245 Silvio Holanda

(obre os autores ..................................................................................267


Introdução Um duplo convite

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a virada do século, no interior da área de Literatura Comparada – disciplina que parecia a muitos estar morta ou, ao menos, agonizante – operou-se um movimento de retomada de uma ideia-chave, a de Weltliteratur, com potencial para renovar e dar novo alento àquilo que parecia mal das pernas. É curioso notar o fato paradoxal de que Erich Auerbach, já na década de 1950, publicara ensaio, que se tornaria célebre – “Filologia e Literatura Mundial” –, em que manifestava forte pessimismo acerca da possibilidade de se estudar a Weltliteratur àquela altura. No entanto, em novo contexto, depois do impacto avassalador dos Estudos Culturais sobre os estudos comparatistas, um conceito como Weltliteratur representava um bom apoio para, em primeiro lugar, se retomar a centralidade da literatura nos estudos comparatistas e, depois, para se repensar as relações entre as diferentes literaturas nacionais em tempos de transnacionalidade. No primeiro número do novo século da New Left Review, Franco Moretti publicaria um artigo, “Conjectures on World Literature”, que colocaria imediatamente a discussão sobre Weltliteratur no centro do debate da área. A repercussão enorme que alcançou, as dezenas de respostas que suscitou, o debate que ensejou tornaram esse trabalho uma das referências críticas de nosso tempo. Trata-se de texto rico de sugestões que pode, por um de seus aspectos, 7


servir de ponto de partida para a discussão que este livro procura empreender. Ao lidar com uma proposta de estudar a literatura mundial no presente, Moretti teve de cuidar de um aspecto central num momento em que se faz um esforço de relativização de certas hierarquias estanques no campo da cultura: a relação entre as literaturas ditas centrais e as literaturas ditas periféricas. O pensamento do crítico italiano, nesse sentido, começava com um movimento muito ousado. Ao considerar o caso do romance – gênero que se espalhou por todo o planeta –, afirma que na França e na Inglaterra ele representa na verdade uma exceção. Isso porque o gênero precisou se adaptar às culturas e condições locais um sem número de vezes, de maneira que essa importação da forma seria, pela recorrência, o caso “normal”. Esse raciocínio, como se vê, inverte a visão geral segundo a qual o caso normal é o romance dos países centrais, e nos demais países o que se tem é uma variação – quando não um desvio – desse caso normal. Essa inversão, é claro, abre a possibilidade concreta de repensar até mesmo a questão do valor das experiências na periferia, mas não chega a constituir um pensamento alternativo, já que depende ainda da diferenciação algo estanque entre centro e periferia. De toda forma, esse raciocínio, quando visto a partir da chamada periferia – o Brasil por exemplo – e não do centro – a universidade americana, onde atua Moretti, também por exemplo –, pode produzir desdobramentos bastante promissores porque estimula que se lance um novo olhar sobre as literaturas “centrais” e as “periféricas” a partir da periferia. É assim que esse debate tem contribuído para assinalar a necessidade de se refletir acerca da condição periférica de uma literatura como a brasileira não sob o signo da carência ou de atraso, 8


mas como uma situação que a torna específica ou, dizendo de outra maneira, que a torna um caso particular a ser avaliado com base em problemas específicos de criação no interior de uma tradição que se relaciona de forma diferenciada com as literaturas centrais. E outros desdobramentos também são possíveis, desde que certas perguntas sejam formuladas. E uma dessas perguntas pode ser a seguinte: se olhar para diferentes tradições literárias a partir de um ponto localizado na periferia da Literatura Mundial pode nos fazer ver de forma diferente não só as literaturas centrais como as periféricas, o que aconteceria se transferíssemos o procedimento para considerar, a partir de obras menos conhecidas ou valorizadas, os textos que ocupam o cânone de uma dada tradição literária nacional? Em linhas gerais, essa é a pergunta que fizeram a um conjunto de estudiosos os organizadores deste volume, cuja proposta é a de estender esse aspecto da retomada dos estudos da Literatura Mundial para a tradição interna da literatura brasileira. Aqui, o lugar das literaturas centrais seria ocupado pelos autores canônicos, e o das literaturas periféricas, pelos autores não canônicos. Assim, o desafio crítico é o de, por um lado, ler os autores canônicos a partir dos autores periféricos e, por outro, investigar se há linhas fortes que constituem nossa tradição literária e que estejam pouco visíveis exatamente pela desconsideração de experiências literárias importantes que têm permanecido fora do cânone. As respostas a esse desafio crítico, que constituem os capítulos que o leitor poderá examinar a seguir, foram, como era de se esperar, muito variadas, e se apresentam aqui em três grandes blocos. No primeiro desses blocos, a atenção dos autores se voltou para movimentos mais ou menos amplos que procuraram examinar as9


pectos gerais da tradição literária brasileira, a partir de experiências que permaneceram fora do cânone. É assim que Regina Zilberman, em “Cânone literário e História da Literatura: o caso da Literatura do Rio Grande do Sul”, faz uso de um procedimento incomum nos estudos literários, o de pensar a partir de “cenários possíveis”. E são dois os cenários por ela examinados: o primeiro, aquele em que o Rio Grande do Sul alcançou independência política; o segundo, o da manutenção da união de toda a América Portuguesa numa única nação. Esse exercício leva a crítica – e o leitor com ela – a relativizar certos valores que a crítica brasileira tendeu a naturalizar. Para ficar num exemplo, as mesmas obras que no segundo cenário – aquele que teve desenvolvimento histórico efetivo – ganharam o rótulo de “regionalistas”, num outro enquadramento, o do primeiro cenário, certamente se deslocariam para o centro de um outro cânone nacional e seriam consideradas elas próprias centrais e ganhariam um outro rótulo, este mais prestigioso, de modernistas. Luís Bueno também volta sua atenção para o que se costuma chamar de regionalismo em “O lastro do real no voo da fantasia: representação do sobrenatural no conto regionalista brasileiro”. O procedimento aqui é o de analisar a constituição de uma tradição literária de tratamento do sobrenatural no Brasil a partir da muitas vezes desprezada experiência do conto regionalista. O crítico refere-se a um movimento comum – marcado pela análise de textos de Bernardo Guimarães, Coelho Neto e Afonso Arinos – que tende a identificar a experiência do sobrenatural com o atraso das populações iletradas. Mas esse movimento tem descontinuidades, como acontece em Valdomiro Silveira ou na obra de Inglês de Sousa, que inesperadamente

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ganha a proximidade de um autor canônico como Guimarães Rosa, abordado no final do capítulo. É um pouco a partir da figura de Inglês de Sousa que Marlí Tereza Furtado organiza sua visão sobre três obras pouco frequentadas que tematizam a Amazônia dos anos de 1920 e 1930. E se, no artigo anterior, Sousa era visto como um autor periférico, aqui ele surge como autor canônico – o que termina por ser uma demonstração prática de que, em diferentes cenários, o centro é ocupado por obras muito diferentes. Mas, é bom insistir, o capítulo “A Amazônia em narrativas: sob o signo da terra, dentro e fora do cânone” apenas passa por Inglês de Sousa, já que o interesse central está na configuração de uma tradição de figuração da Amazônia na narrativa de ficção brasileira, o que a leva a três autores periféricos: Alfredo Ladislau, Adauto Fernandes e Francisco Galvão. Se, de certa maneira, localiza nessas obras um empenho mais propriamente verbal e retórico do que de invenção literária, Marlí Tereza Furtado também desenha uma tradição em movimento na qual a natureza passa a integrar a aventura humana, que ela mesma descreve na bela frase final de seu texto, referindo-se ao romance Terra de ninguém, de Francisco Galvão: “Nem terra imatura porque inexplorada, nem terra verde porque grandiosa e inexplorada, mas terra de vez espoliada, por isso de ninguém.” É também a partir de uma experiência radicada no Pará, cuja consideração tem impacto sobre a imagem que se faz da literatura e sobretudo da leitura no Brasil, que trata o quarto e último capítulo desse primeiro bloco, “O romance-folhetim por entre as terras brasileiras”. Aqui, Germana Sales sintetiza a história da publicação do romance-folhetim na imprensa de Belém no século XIX. O trabalho de pesquisa que resulta nesse texto permitirá ao leitor avaliar com 11


maior precisão, seja pelo número de jornais que publicavam esse tipo de literatura, seja pela variedade dos textos veiculados, a experiência de letramento que se viveu – e se vive – para além da capital. Esse alargamento de perspectiva o leitor também encontrará em “Histórias literárias e circulação de narrativas ficcionais: uma reflexão sobre os primeiros livros impressos no Brasil”. Aqui, Simone Cristina Mendonça nos deixa ver um movimento editorial muito mais intenso do que usualmente se supõe. Com essa abertura de visão, desafia-nos a repensar a escrita da história literária brasileira a partir do exame daquilo que se publicou entre nós (e do que se importou da Europa) nas primeiras décadas do século XIX, ou seja, daquilo que se escreveu aqui quando nosso meio literário era ainda incipiente e das obras periféricas das literaturas centrais hoje muitas vezes desconsideradas quando se pensa na formação e na produção dos escritores brasileiros do período. Os desdobramentos de uma literatura periférica são marcados, também, nas diferenças regionais brasileiras quando o campo literário é observado não no centro de desenvolvimento econômico e cultural do País, mas nas demais regiões que esboçavam e ainda tracejam o exercício da produção literária. É neste sentido que se dirige o segundo bloco desta coletânea, quando se ocupa de autores periféricos Socorro de Fátima Pacífico Barbosa e Franceli Aparecida da Silva Mello. A primeira analisa a ambiguidade da protagonista Helena e da sua recusa em acolher o discurso acerca da feminilidade, próprio à época, no romance A Renegada, publicado no ano de 1908, de autoria do paraibano Carlos Dias Fernandes. Socorro de Fátima Pacífico Barbosa avalia o dilema a que estava submetida a mulher da época, representada por Helena, diante do discurso masculino, pre12


ponderante até então. O romance, portanto, servirá de porta-voz às reivindicações da personagem feminina que também encarna o papel de narradora da obra. Franceli Aparecida da Silva Mello dirige sua atenção para uma outra novela da primeira metade do século XX, Era um poaieiro (1944), de Alfredo Marien, cuja temática se desenvolve a partir da oposição entre os amigos Brasilino e Filipe. Brasilino, homem simples, sensível, afetuoso e amante da família e da natureza, contrapõe-se a Filipe, afeiçoado do progresso e seus benefícios. Entretanto, a autora chama atenção para a mais significativa oposição ao protagonista Brasilino, o comerciante Gonçalo, que assassina Brasilino para obter êxito na conquista da virtuosa Teresa. A morte do protagonista metaforiza o fim de um ciclo econômico baseado na agricultura de subsistência em Mato Grosso, com a exploração do sertanejo inocente e sem ambição. Além do contexto social, Franceli Aparecida da Silva Mello ressalta o fato de a novela ter sido publicada também em capítulos, cinco anos após sua edição em livro, em 1949, e avalia a narrativa sob a perspectiva do romance-folhetim, modalidade que cumpriu importante papel no cenário literário, com alcances geográficos e sociais amplos. A circulação de um romance-folhetim ainda na primeira metade do século XX pode parecer incomum aos que balizam as manifestações literárias em períodos demarcados. Entretanto, este movimento de (re)publicação aponta para uma prática comum desde o século XIX e necessária à aproximação do público à circulação literária. Francelli Mello ressalta o tom melodramático da narrativa, mas a linha que se interpõe à temática é a chegada de um homem moderno,

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atravessado pelo progresso em desarmonia com o homem do campo ou sertão, envolto na pureza e ingenuidade. É nesse mesmo tom do progresso e da modernidade que tem prosseguimento o terceiro bloco desta coletânea: Milena Ribeiro Martins elabora seu texto com foco voltado para Monteiro Lobato, quando o autor concebe a oposição entre dois universos, revelados em dois espaços, o sítio e a cidade, e em duas situações, a presença do dinheiro em um e sua ausência no outro. A autora avalia a situação do sertanejo, marcado pela ignorância, pelo isolamento, como também pela resistência ao progresso e, distante da cidade, em vista das circunstâncias econômicas, avesso aos fazendeiros abastados que têm conhecimento e contato com a cidade. Tal análise se faz a partir do anseio da personagem Vidinha perante a cidade e o mundo novo por esta prometido. Vidinha personifica a ambição do homem humilde diante de um mundo que lhe parece vibrante e colorido e que se opõe à realidade opaca e sem expectativas à qual está vinculada sua existência. Desde que os processos de constituição dos Estados Nacionais tiveram início na Europa Ocidental, o discurso historiográfico veio em socorro dos projetos de unificação política e administrativa decorrentes dos processos de centralização do poder. A historiografia literária, nutrida pelas noções de identidade linguística e nacional, elaborou-se, desde então, em torno do binômio autor-obra, operando inclusões e exclusões em nome da excelência literária. A despeito da fluidez da noção de Literatura que, a partir do século XVIII, substituiu progressivamente a categoria de Belas-Letras, fazendo-se acompanhar de adjetivos indicadores de sua pertença nacional, parece não restar dúvida de que, de forma geral, as heranças desse discurso implicaram não apenas a exclusão de autores no mais das vezes situados 14


marginalmente no campo literário das mais diversas nações – conforme se demonstrou anteriormente –, mas também a exclusão de certas obras do corpus daqueles autores agraciados pelo discurso autorizado da historiografia. É nesse campo de preocupações que se situa o trabalho de Juliana Maia de Queiroz sobre a obra Luneta Mágica, do romancista Joaquim Manoel de Macedo. Percorrendo a recepção crítica do autor pela historiografia brasileira do século XX, ela demonstra que, muito embora Macedo tenha ficado conhecido como um dos precursores do romance no Brasil, outra imagem, pouco honrosa, cristalizou-se com essa primeira: a de um autor menor, preocupado tão somente em moralizar e entreter a sociedade da época à custa de uma produção literária pouco densa e elaborada. Contrariando essa representação, Juliana Maia de Queiroz demonstra a versatilidade do autor que, em A luneta mágica (1869), não apenas ironiza as próprias narrativas românticas, abandonando finalidades moralizadoras que implicavam a premiação da virtude e a punição do vício, como também dialoga com o maravilhoso, mesclando gêneros como a narrativa fantástica, a fábula e o romance de costumes. Não bastasse isso, levanta hipóteses convincentes acerca da relação entre esse romance de Macedo e as narrativas fantásticas de Hoffmann, demonstrando que a literatura nacional encontrava-se, sem dúvida alguma, em franco diálogo com a produção estrangeira em circulação no Brasil do Oitocentos. É nas proximidades dessa questão que Izabela Leal perscruta os dispositivos de diálogo cultural estabelecidos entre o poeta português Helberto Helder e a tradição. Movida por essa preocupação, investiga com perspicácia a relação que o autor mantém com as obras do passado, seja para criar sua própria, seja para elaborar uma antologia de 15


textos poéticos marcada pela pessoalidade e recusa dos cânones então vigentes. Poeta-leitor-tradutor, o português Helberto Helder cria sua própria tradição, ao mesmo tempo que, para usarmos os termos de Pascale Casanova, elabora, por meio do processo de tradução, a via de acesso de “excêntricos” e inauditos a “centros culturais” com os quais, num passado histórico não muito distante, haviam mantido relações culturais de submissão em virtude do processo colonizador da América Espanhola e Portuguesa. Desse modo, Helder traduz e põe lado a lado poemas indígenas dos caxinauá, quíchuas, maias, astecas e poemas do cânone literário ocidental, igualando simbolicamente aquilo que as instâncias de consagração da literatura primaram, no Ocidente, por hierarquizar e valorar diferentemente. Assim, Izabela Leal nos convida a adentrar nesse universo de rebeldia política e literária, em que a noção de nacional se dissolve enquanto elemento organizador do gênero antológico. As noções de autor e obra não foram tão somente princípios organizadores dos discursos historiográficos ou das antologias literárias que serviram à constituição dos Estados Nacionais. Também foram alvo de disputas envolvendo autores e editores, que, desde pelo menos o século XVIII, passaram a elaborar as bases reflexivas sobre as quais se ancorariam as leis de propriedade autoral. Duas delas foram de fundamental importância: aquela que passou a defender, apoiada na teoria do Direito Natural formulada por Locke, a propriedade autoral como resultado de um trabalho individual e a que, contrariando o princípio iluminista segundo o qual as ideias seriam um bem comum, alicerçou o direito de autor sobre o aspecto formal das obras, entendidas como expressão de uma singularidade estética, ou seja, como expressão do gênio do autor. 16


Trazendo essa discussão para o contexto brasileiro do Oitocentos, Valéria Augusti aborda um dos projetos de lei que à época foram submetidos à apreciação do legislativo em virtude da ausência de dispositivos legais que contivessem as práticas correntes de contrafação de obras nacionais e estrangeiras. Elaborado por José de Alencar, acusado por seus coetâneos de servir “à musa industrial”, o projeto contempla argumentos de sustentação complexos, que revelam profundo conhecimento do romancista acerca das discussões europeias sobre o assunto, bem como sobre o domínio da lex, adentrando no debate sobre a possibilidade de se estabelecer a propriedade sobre as produções do espírito. Explorando esse texto pouco conhecido de um escritor canônico, a autora revela um Alencar implicado na defesa da profissionalização do escritor e conhecedor das bases europeias sobre as quais se elaboraram as leis de propriedade autoral. Além de defender a dimensão estética da obra como critério necessário à individualização da produção artística e à consequente atribuição da propriedade intelectual, José de Alencar reivindica aos escritores um papel social ainda inédito: participar das decisões jurídicas referentes ao campo literário e artístico. Também canônico é o autor sobre o qual se debruça Silvio Holanda, em análise de “Buriti”, de Guimarães Rosa. Adentrando na história editorial de Corpo de baile, coletânea que, abrangendo sete narrativas, foi lançada em janeiro de 1956, Holanda estabelece verdadeiro diálogo com a recepção crítica que a teve por alvo. Três perguntas dirigem a investigação do autor: como “Buriti” se integra em Noites do Sertão, e este no conjunto de sete novelas de Corpo de baile, publicado meses antes de Grande Sertão: Veredas; como se pode interpretar a constante oscilação de gêneros entre a prosa e a poesia; e, final17


mente, seria possível estabelecer alguma aproximação entre “Buriti” e Grande Sertão: Veredas? Partindo da leitura de “Buriti”, o autor propõe a hipótese hermenêutica de um sertão internalizado, um sertão-memória, um sertão-eu, que daria ao complexo novelístico de Corpo de baile uma unidade não apenas formal, mas temática, observando-se certa tendência a resguardar Campo geral como texto de abertura, início de um ciclo que remete a “Buriti”, sem neste se esgotar. Ao fim e ao cabo, demonstra que essa unidade seria reafirmada pelos dados documentais disponíveis no Fundo Guimarães Rosa (IEB-USP), os quais apresentariam um projeto estético lúcido do escritor, pensado em todos os aspectos, inclusive em sua forma de objeto-livro (capa, epígrafe, subdivisões, negrito e itálico etc.). Holanda não deixa de observar que a obra em questão teria sofrido, na terceira edição de 1964, publicada pela José Olympio, uma tripartição, autorizada por Guimarães Rosa. Em carta de 03 de janeiro de 1964, dirigida a Bizzarri, o romancista esclarece a tripartição, salientando, contudo, o fato de que, para ele, o livro, publicado em três volumes distintos, continuava sendo “um só verdadeiro...”. Esse percurso, como se vê, começa nas bordas do cânone para tocar seu centro, e o leitor, ao percorrê-lo, recebe um duplo convite. O primeiro é o de olhar para o que está à margem na sua relação com o que está no centro, como parte da tradição que funda o próprio centro. Isso dispensa a crítica excessivamente benevolente movida por intenções compensatórias, comuns quando se aborda o que fica à margem, porque desmonta as antinomias que insistem em dividir os textos literários nos campos do “isto vale” e do “isto não vale”. O segundo é o de olhar o que está no centro sem o encantamento pelo que é tido como “genial”, que tende a naturalizar a ideia de que os textos canônicos são tidos como tais simplesmente porque nos acostumamos a vê-los nessa posição. 18


Sobre os autores

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ermana Sales (Org.) Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Ceará (1989), possui mestrado em Letras: Teoria Literária pela Universidade Federal do Pará (1997) e Doutorado em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (2003). Atua como professora associada da Faculdade de Letras do Instituto de Letras e Comunicação (ILC) da Universidade Federal do Pará, com pesquisa em temáticas referentes à literatura do século XIX e ao ensino de literatura. Coordena os projetos “Memória em periódicos: a constituição de um acervo literário” (Universal – CNPq/UFPA), o Procad “Circulação e produção literária em Belém do Pará: 1850 a 1950” (CAPES/ UFPA) e o “Correspondências literárias: a circulação de romances-folhetins em jornais diários fluminenses e paraenses no século XIX” (Produtividade – CNPq/UFPA). Ocupa os cargos de membro do Conselho Deliberativo da Abralic, membro da diretoria da Abraplip (secretária adjunta) e de vice-coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA. Dentre suas publicações, destacam-se os artigos “A Literatura está em crise?” (Guavira Letras, v. 11, 2012) e “Ainda romance: trajetória e consolidação do gênero no Brasil oitocentista” (Floema, v. 9, 2012), e contribuições com capítulos nos livros Práticas de língua e literatura no ensino médio (2012), Crítica e Literatura (2011) e Amazônia, Culturas, Linguagens (2011); ela também é uma das organizadoras do volume Linguagem e Identidade (2009).

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uís Bueno (Org.) Graduada em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (1987), com mestrado em Teoria e História Literária (1993) e doutorado em Teoria e História Literária (2001), na mesma instituição. Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Paraná e bolsista produtividade CNPq (nível 2). Entre 2002 e 2007, foi diretor da Editora da UFPR. Destacam-se entre suas publicações o livro Uma história do romance de 30 (2006) e a co-organização

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de A Confederação dos Tamoios – edição fac-similar seguida da polêmica sobre o poema (2007), além dos artigos “Nacional e específico: considerações a partir da Formação da Literatura Brasileira” (O Eixo e a Roda, v. 20, 2011), “O romance brasileiro de 30 na imprensa periódica portuguesa (1935-1945)” (Cadernos de Pesquisas em Literatura, v. 15, 2009) e de contribuições em livros como Manoel de Oliveira: uma presença – Estudos de literatura e cinema (2010) e Arquivos revisitados da América lusa: escritos sobre memória e representação literária (2010).

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aléria Augusti (Org.) Possui graduação em Ciências Sociais (1990), mestrado em Teoria Literária (1998) e doutorado em Teoria e História Literária, todos pela Universidade Estadual de Campinas (2006). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em História da Literatura, atuando principalmente nas seguintes áreas: teoria da literatura, história da literatura, história do livro e da leitura no Brasil. Atualmente é professora adjunta de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Pará. Entre suas publicações estão os artigos “O Romance moderno: entre detratores e defensores” (Moara, v. 1, 2008, p. 204-221), “Escrever e ler romance na escola” (Floema, UESB, 2011, p. 451-476), “Os fundamentos da propriedade Literária por José de Alencar” (Revista Todas as Letras, v. 14, 2012, p. 209-216). Além desses títulos, publicou o livro Trajetórias de consagração: discursos da crítica sobre o romance no Brasil Oitocentista (Campinas: Mercado de Letras, 2011) e foi uma das organizadoras dos livros Crítica e Literatura (Rio de Janeiro: De Letras/UFPA, 2011) e Narrativa e recepção: séculos XIX e XX (Rio de Janeiro: Eduff; Niterói: De Letras, 2009).

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egina Zilberman Possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1970), doutorado em Romanística pela Universidade de Heidelberg (Ruprecht-Karls) (1976) e pós-doutorado pelo University College (Inglaterra) (1980-1981) e pela Brown University (EUA) (1986-1987). Atualmente é

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professora adjunta do Instituto de Letras da UFRGS, com atuação no Programa de Pós-Graduação em Letras. Lecionou entre 2007 e 2010 na Faculdade Porto-Alegrense e em 2010 no Centro Universitário Ritter dos Reis. É Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (nível 1A). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em história da literatura, atuando principalmente nos seguintes temas: leitura, história da literatura, literatura do Rio Grande do Sul, formação do leitor e literatura infantil.

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arlí Tereza Furtado Possui graduação em licenciatura em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (1977), mestrado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina (1982) e doutorado em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (2002). No mestrado e no doutorado foi bolsita CAPES. Atualmente é professora associada I da Universidade Federal do Pará. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em literatura brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura brasileira, literatura infantil, Dalcídio Jurandir, literatura regional e ensino de literatura.

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imone Cristina Mendonça Possui graduação em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (2002) e doutorado em Teoria e História Literária pela mesma instituição (2007). Durante o doutorado, logrou ser bolsista do programa PDEE/CAPES, realizando estágio em Portugal, na Universidade Nova de Lisboa, sob supervisão do professor doutor João Luís Lisboa. Atuou como bolsista DCR (CNPq-FAPESPA) na Universidade Federal do Pará, em Belém, instituição na qual atualmente é professora adjunta, no Campus de Marabá (PA).

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ocorro de Fátima Pacífico Barbosa Possui graduação e mestrado em Letras pela Universidade Federal da Paraíba e doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professora associada III da Universidade Federal da Paraíba, bolsista

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de produtividade e pesquisa 2 do CNPq. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em história da literatura, atuando principalmente nos seguintes temas: história cultural do século XIX, jornais e periódicos brasileiros do século XIX e história da leitura. Também se interessa e atua nas áreas da literartura infanto-juvenil, do ensino da literatura e da psicanálise.

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ranceli Aparecida da Silva Mello

Possui graduação em Letras (1981) e mestrado em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (1986), doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (1998) e pós-doutorado na área de História da leitura pela Universidade Estadual de Campinas (2003). Atualmente é professora associada da Universidade Federal de Mato Grosso. Participa do Conselho Editorial da Revista de Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul e da Revista Polifonia (UFMT). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em literatura brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura infantil, história da leitura, crítica literária e práticas de leitura em Mato Grosso.

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ilena Ribeiro Martins

Possui graduação em Letras (1995), mestrado em Letras (1998) e doutorado em Teoria e História Literária (2003), todos pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é professora adjunta II da Universidade Federal do Paraná. Desde 2009, desenvolve o projeto de pesquisa “A América de Monteiro Lobato”. Dedica-se especialmente ao ensino e à pesquisa dos seguintes temas e áreas: Monteiro Lobato, Modernismo, literatura brasileira, teorias da leitura, políticas de formação de leitores.

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uliana Maia de Queiroz

Possui graduação em Letras (1999), mestrado em Teoria e História Literária (2004) e doutorado em Teoria e História Literária (2011), desenvolvidos no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Tem experiência no ensino

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de língua portuguesa e literaturas de língua portuguesa em cursos de graduação em Letras. Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado na Unesp de São José do Rio Preto (Ibilce), com o projeto “Brasileiros em Portugal e Portugueses no Brasil: romances que cruzaram o Atlântico na segunda metade do século XIX”, financiado pela Fapesp.

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zabela Leal

Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1994), mestrado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2003), doutorado em Letras (Letras Vernáculas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2008) e realizou pós-doutorado junto ao departamento de Letras Neolatinas da UFRJ com bolsa da FAPERJ. Atualmente é professora de Literatura Portuguesa na Universidade Federal do Pará (UFPA) e professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em literatura portuguesa, atuando principalmente nos seguintes temas: tradução, corpo, linguagem, Portugal e alteridade.

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ilvio Holanda

Possui graduação em Letras (Português/Francês) (1990) e mestrado em Letras/Teoria Literária pela Universidade Federal do Pará (1994), doutorado em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo (2000) e pós-doutorado em Estudos Românicos pela Universidade de Lisboa (2007). Atualmente é professor associado II da Universidade Federal do Pará, tendo sido coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras (2009-2011) da referida instituição. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: Guimarães Rosa, literatura brasileira, literatura da Amazônia e recepção crítica.

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Argos Editora da Unochapecó www.unochapeco.edu.br/argos Título

A tradição literária brasileira: entre a periferia e o centro

Organizadores

Germana Sales Luís Bueno Valéria Augusti

Colaboradores

Regina Zilberman Marlí Tereza Furtado Simone Cristina Mendonça Socorro de Fátima Pacífico Barbosa Franceli Aparecida da Silva Mello Milena Ribeiro Martins Juliana Maia de Queiroz Izabela Leal Silvio Holanda

Coleção Coordenador Assistente editorial Assistente de vendas Secretaria Vendas e distribuição Projeto gráfico Capa Diagramação

Perspectivas, n. 2 Dirceu Luiz Hermes Alexsandro Stumpf Neli Ferrari Leonardo Favero Neli Ferrari e Andressa Cazalli Alexsandro Stumpf e Caroline Kirschner Alexsandro Stumpf Alexsandro Stumpf, Caroline Kirschner e Kamila Kirschner

Preparação dos originais

Araceli Pimentel Godinho

Revisão

Araceli Pimentel Godinho

Finalização editorial Formato Tipologia Papel

Carlos Pace Dori 16 X 23 cm Minion Pro e FontleroyBrown entre 10 e 14 pontos Capa: Supremo 280 g/m2 Miolo: Pólen Soft 80 g/m2

Número de páginas

271

Tiragem

500

Publicação

2013


Este livro está à venda:

www.travessa.com.br

www.livrariacultura.com.br


Perspectivas


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