Da cidade santa à corte celeste: memórias de sertanejos e a Guerra do Contestado

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Delmir José Valentini

memórias de sertanejos e a Guerra do Contestado

4a edição


Delmir José Valentini

DA CIDADE SANTA À CORTE CELESTE: MEMÓRIAS DE SERTANEJOS E A GUERRA DO CONTESTADO 4a edição - revisada

Chapecó, 2016


Reitor: Claudio Alcides Jacoski Vice-Reitora de Ensino, Pesquisa e Extensão: Silvana Muraro Wildner Vice-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Márcio da Paixão Rodrigues Vice-Reitor de Administração: José Alexandre de Toni Diretora de Pesquisa e Pós-Graduação Stricto Sensu: Carolina Riviera Duarte Maluche Baretta Este livro ou parte dele não podem ser reproduzidos por qualquer meio sem autorização escrita do Editor.

Valentini, Delmir José V161d Da cidade santa à corte celeste : memórias de sertanejos e a Guerra do Contestado / Delmir José Valentini. -- 4. ed. rev. - Chapecó, SC : Argos, 2016. 256 p. -- (Regionais ; 11) Inclui bibliografia ISBN: 978-85-7897-187-8s

1. Brasil - História - Campanha do Contestado, 1912 1916. 2. Santa Catarina - História. I. Título. CDD 21 -- 981.64 Catalogação elaborada por Daniele Lopes CRB 14/989 Biblioteca Central da Unochapecó

Todos os direitos reservados à Argos Editora da Unochapecó Av. Atílio Fontana, 591-E – Bairro Efapi – Chapecó (SC) – 89809-000 – Caixa Postal 1141 (49) 3321 8218 – argos@unochapeco.edu.br – www.unochapeco.edu.br/argos Coordenadora: Rosane Natalina Meneghetti Silveira Conselho Editorial Titulares: Murilo Cesar Costelli (presidente), Clodoaldo Antônio de Sá (vice-presidente), Celso Francisco Tondin, Rosane Natalina Meneghetti Silveira, Cesar da Silva Camargo, Silvana Muraro Wildner, Ricardo Rezer, Rodrigo Barichello, Mauro Antonio Dall Agnol, Vagner Dalbosco, Carolina Riviera Duarte Maluche Baretta Suplentes: Arlene Renk, Fátima Ferretti, Fernando Tosini, Hilário Junior dos Santos, Irme Salete Bonamigo, Maria Assunta Busato


Sumário

Apresentação

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Prefácio à quarta edição

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Introdução

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CAPÍTULO 1 – Cenário e protagonistas Localização da região do Contestado Flora e fauna Clima, relevo e hidrografia Povoamento Frentes de ocupação A sociedade pastoril A extração da erva-mate A questão de limites A construção da estrada de ferro e a colonização na região

27 27 32 38 45 54 59 65 68 73

CAPÍTULO 2 – A Igreja e a crença A Igreja Católica O catolicismo rústico no Contestado

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Frades e monges 91 João Maria de Agostini 95 João Maria de Jesus 108 José Maria 118 CAPÍTULO 3 – Redutos da fé Região conflagrada Redutos, guardas e piquetes A vida nos redutos Principais redutos Taquaruçu Caraguatá Bom Sossego Caçador Santa Maria São Miguel São Pedro

131 131 132 138 142 143 153 160 166 170 172 174

CAPÍTULO 4 – Personagens Em Perdizes Grandes Em Taquaruçu Chica Pelega e Maria Rosa Comandantes Venuto Baiano Olegário Ramos Agostinho Saraiva Henrique Wolland Aleixo Gonçalves de Lima Antônio Tavares Júnior Bonifácio José dos Santos

179 179 181 186 193 194 196 197 199 200 202 204


Conrado Grober 208 Francisco Alonço de Souza 208 CAPÍTULO 5 – Adeodato e o crepúsculo Cantador, domador e tropeiro Entrando para os redutos O novo comandante Guerra, fome, doenças e mortes O regime do terror O último jagunço

213 213 218 219 220 226 234

Considerações finais 243 Referências 251


Apresentação

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construção do saber histórico é a busca de uma resposta à indagação, resposta que pressupõe avanço quando se trata de descobrir. Delmir José Valentini começou seu trabalho de investigação formulando com clareza e objetividade um problema singelo. Desejou saber o que dizem os sertanejos sobre o episódio em que foram considerados vencidos. E foi avançando em direção ao passado, respondendo a uma questão que é válida porque reflete necessidades. Como professor e membro de uma comunidade, abordou temática que à mesma questão diz respeito, pois o melhor tema, como lembra Marrou, é aquele que se refere a amplas inquietudes do presente, em determinado espaço geográfico. A zona do Contestado, portanto, foi revisitada. Pesquisa bibliográfica e documental permitiu a reconstrução do contexto. Depoimentos orais manifestaram inquietudes que ali se estruturam e se estratificam, particularizando os grupos humanos que compõem a sociedade regional.


Sabemos que uma das funções essenciais da História é enriquecer o universo interior pela conquista de um passado. Parte desse passado foi conquistada pelo autor, construindo um objeto de pesquisa sob ótica que privilegia gente comum. No exercício do historiar, Delmir saiu de si mesmo e encontrou o outro. Melhor dizendo, reencontrou o sertanejo, não mais como um fanático religioso, mas como sujeito e agente da história. Contextualizou o homem simples, devolveu-lhe o rosto e a voz, partindo do pressuposto de que todos participam da construção da História. Estabeleceu um contato bem imediato entre esse homem e o seu passado, evitando a narrativa massiva e anônima; afastou-se de grandes multidões ou de episódios monumentais, apontando para pessoas em espaço delimitado, cuja singularidade foi reforçada. Reconstruindo uma história particular, presta auxílio à identidade, impossível sem confrontação. De algum modo também reforça a tradição neste encontro com o presente, que é melhor compreendido através das descontinuidades da História. Em civilização que elimina diferenças, compete à História desenvolver o sentido perdido das mesmas. E a zona do Contestado, com rica historicidade, impôs-se pelo peculiar. A temática abordada possibilitou inúmeros questionamentos. Delmir procurou compreender e explicar o que aconteceu, construindo uma trama que Veyne define como mistura muito humana e pouco científica de causas materiais. Para isso, fez ampla e profunda revisão de literatura, abrindo espaço para obras de reflexão, como é o caso daquelas produzidas por Burke ou por Krantz. Praticou a interdisciplinaridade quando buscou ferramentas para análise na Antropologia, utilizando principalmente o pensamento de Brandão.

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Os procedimentos metodológicos selecionados revelaram-se os mais adequados aos propósitos. Utilizou com propriedade os depoimentos orais, partindo do pressuposto de que História Oral é metodologia, funcionando como ponto de convergência entre visão de mundo e produção histórica. Obteve, assim, respostas a questões derivadas da escassez de fontes escritas. Delmir reconstruiu uma trama trabalhando sobre o positivo, aproveitando o que existe e narrando o vivido. E evidenciou capacidade de síntese histórica quando foi capaz de inferir e de concluir diante do empírico. Assim sabe-se que houve bruscas transformações, ao alvorecer do século XX, na região do Contestado. Construiu-se a ferrovia, deu-se início à exploração comercial da madeira e implementou-se projeto de colonização, ações que se constituíram em fatores à marginalização dos sertanejos. Desencadeou-se o conflito que, em práticas religiosas, teve seu fator de coesão. A Guerra do Contestado tornou-se questão nacional e mobilizou mais de um terço do exército brasileiro, utilizando armamento pesado e aviação. Foram finalmente destruídos os redutos, digo, as “cidades santas”. Mas o tempo dessa guerra pode ser também e justamente o tempo dos redutos, com suas boas e más lembranças entre a gente simples da região. Boa recordação diz respeito à esperança alcançada pela fé; os monges continuam sendo reverenciados como intercessores de graças divinas à existência dos homens. Mas se a fé no milagre é experiência gratificante, a má lembrança da violência, na fase final do movimento e sob a liderança de Adeodato, é ainda capaz de imprimir culpa aos remanescentes e mesmo aos descendentes dos sertanejos que verbalizam os sentimentos. A História produzida por Delmir deverá sobreviver, portanto, como atividade social. Tem sentido para a sociedade do Contesta-

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do. A voz do passado reveste-se de importância para o presente, como enfatiza Thompson, e a relação da História com a comunidade constitui-se troca, é dialética entre informação e interpretação, entre classes sociais e entre gerações. Gente do Contestado, como Manoel, Miguel, João Maria, Davina, Adão ou Onorina, não perderam seu tempo quando contaram de outro tempo. Suas lembranças e percepções são História. E, nessa realização, saem da “cidade santa” para a “corte celeste”, ideia de eternidade que traduzo para a memória. Núncia Santoro de Constantino Doutora em História Social e docente da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

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Prefácio à quarta edição

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m curto espaço de tempo, entre 1998 e 2003, Da cidade santa à corte celeste: memórias de sertanejos e a Guerra do Contestado foi contemplada com três edições, acontecimento raro no mercado editorial do País. Em parte, o fenômeno encontra explicação na imediata aceitação do livro pelos professores da rede de ensino público de Santa Catarina e pelo Conselho Estadual de Educação, que recomendou a disponibilização de exemplares nas bibliotecas públicas. A última edição, impressa no ano de 2003, esgotou-se no ano seguinte. Embora esgotado, o livro foi referência de parte representativa da historiografia e da literatura do Contestado. Representa fonte de consultas e estudo, pois resulta de investigação transformada em texto acadêmico fundamentado em memórias dos protagonistas e sobreviventes dos redutos, que já não estão mais vivos. Além de transformar-se em fonte de pesquisas, que balizou investigações posteriores, o presente livro foi utilizado em sala de aula, na rede estadual de ensino e nas universidades, como a do Contestado, que instituiu um componente curricular sobre o tema,


oferecido como domínio comum em todos os seus cursos de graduação, vestibulares e concursos. Por outro lado, o autor investiu numa contextualização cuidadosa, na qual os protagonistas dos episódios do Contestado se insinuam juntamente com a fauna, a flora, o relevo, a hidrografia, suas crenças e os demais membros da comunidade cabocla. Em outas palavras, estão enraizados no meio que os acolhe e dá sentido às suas vidas. Transcorridos mais de cem anos, os episódios do Contestado parecem inesgotáveis, como as fontes sagradas de São João Maria. As fontes documentais continuam emergindo e fornecendo elementos que possibilitam aos investigadores revelar meandros ainda desconhecidos e repletos de novos significados sobre os conflitos. A relevância dos episódios do Contestado pode ser medida pelas múltiplas investidas feitas por sociólogos, historiadores, antropólogos, músicos, literatos e outros cientistas sociais. A imensidão da empreitada daqueles que se propõem a interpretação do fenômeno do Contestado tem resultado, com certa frequência, em escritos fracionados pela valorização excessiva de temas isolados como a exploração econômica, a luta pela terra, o fanatismo religioso ou os interesses geopolíticos dos estados do Paraná e Santa Catarina. Certamente, todos os aspectos apontados, entre outros, formam o cenário no qual atuaram caboclos, monges, coronéis e soldados, todas vítimas da estupidez de uma guerra fratricida, que resultou no genocídio, sublimado pelo teor do termo “contestado”. O distanciamento no tempo tem facultado a superação dos limites impostos pelas paixões, ideologias e versões que arbitraram sobre os episódios do Contestado. Os caboclos, no passado considerados fanáticos, criminosos e ignorantes, hoje recuperaram parte do significado e da relevância dos papéis que desempenharam antes, durante e após os acontecimentos do Contestado.

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Sem dúvidas, o autor das páginas Da cidade santa à corte celeste: memórias de sertanejos e a Guerra do Contestado contribui de forma significativa na superação dos preconceitos referentes aos caboclos e aos habitantes do oeste catarinense, facilmente identificáveis nos documentos oficiais, nos jornais e nas falas das autoridades governamentais das primeiras décadas do século passado. Nos caminhos trilhados anteriormente por Maria Isaura Pereira de Queiroz, Marli Auras, Nilson Thomé, entre outros, Delmir José Valentini descobriu outras veredas nas quais encontrou novos atores, os caboclos, que vivenciaram experiências fraternas nos redutos, usufruíram da convivência com os monges, mas também experimentaram os horrores da guerra e a angústia gerada pela fome, pelo medo, pela perda dos familiares e amigos e pela morte. São esses os atores que desempenham papéis relevantes na peça escrita pelo autor, que foi encenada pelos caboclos no palco, cujo cenário foi emoldurado pelos sertões de Santa Catarina. Como professor e investigador, Valentini conheceu os caboclos e descobriu que eles ainda tinham muito a falar sobre o passado nos redutos. Impulsionado pela convicção de que a história pode e deve ser reescrita, de modo quase infinito, buscou fundamentos para o seu discurso narrativo na bibliografia disponível. Porém, encontrou na história oral instrumentos relevantes para a coleta de informações inéditas, bem como para produzir fontes documentais originais. Armado da valentia e da coragem própria dos caboclos, foi buscar no seu passado oculto nas sombras das matas informações ainda ausentes nos escritos publicados. Novas vozes caboclas passaram a ser ouvidas. Outra novidade encontrada em Da cidade santa à corte celeste é a narrativa, leve e clara, na qual os caboclos são protagonistas, pois as vozes dos descendentes e remanescentes dos redutos reper-

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cutiram, nos mesmos caminhos dos sertanejos do passado, de cidade santa em cidade santa, desde a gestação do movimento até a sua etapa final. As publicações anteriores, com exceções, apresentam narrativas que acompanham os movimentos das tropas, seguem as forças oficiais, de combate em combate, até o final da campanha do exército brasileiro na região, informando sobre os combates, os gastos militares, o número de mortos, os desaparecidos ou desertores, entre outros. Ao contrário, neste escrito, o autor acompanhou os caboclos, que se deslocaram de reduto em reduto, ouviu sobre as lideranças caboclas, registrou as memórias e a história dos que foram considerados vencidos, depois esquecidos e condenados ao silêncio e à ausência do palco da história. Nas páginas do presente escrito, o leitor atento percebe que na tessitura discursiva o misticismo caboclo serviu como amálgama contextual e explicativo da origem e dos desdobramentos dos episódios do Contestado. Não foram privilegiados aspectos isolados do contexto, mas um fenômeno social emoldurado por imagens variadas, que se fundem num quadro harmônico atemporal. O passado se faz presente como energia impulsionadora capaz de superar preconceitos étnicos, econômicos e culturais. No século XXI, os habitantes da região do Contestado já não se envergonham das batalhas do passado e da origem cabocla. Ela sedimentou uma identidade, na qual ser caboclo significa mais que ostentar uma tonalidade de pele morena. Trata-se de uma cultura, rica pela heterogeneidade e resultante das vivências de mais de uma dezena de diferentes etnias. Decorridos quase vinte anos da primeira edição deste livro, a pesquisa histórica avançou, novas e interessantes respostas a indagações do presente foram apresentadas, mas continuam ressonantes as vozes dos sertanejos, que no início da década de 1990 falaram das suas experiências e lembranças dos tempos dos Monges. Uma quarta

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edição desta obra reveste-se de significado singular, exatamente no ano em que a Guerra do Contestado fecha o ciclo do seu centenário – 1912-1916 / 2012-2016 –, pois, certamente, a interlocução entre o autor e os seus entrevistados continua, mesmo diante da inexorável ausência física dos remanescentes entrevistados. Continua com os seus descendentes que, de geração em geração, sempre buscarão respostas para as questões do seu tempo no seu passado histórico. Valmir Francisco Muraro Doutor em História e professor sênior na Universidade Federal da Fronteira Sul

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Introdução

A

o ingressar como professor de História do Brasil no meio oeste catarinense, todos os anos reservava algumas aulas para estudos sobre os acontecimentos do início do século XX e o contexto histórico da eclosão da guerra na região do Contestado. Dois fatos, entretanto, chamavam a atenção. Em primeiro lugar, as poucas referências encontradas sobre o tema davam a impressão de ser um assunto fora do interesse da historiografia brasileira. Além de poucos, os registros geralmente eram elaborados de forma a mostrar a sequência cronológica dos fatos e partiam das expedições realizadas pelo exército na região, com a finalidade de combater um bando de caboclos fanatizados que perturbavam a ordem. Em segundo lugar, dificilmente encerrava-se o assunto sem que alguém comentasse que o avô, o tio ou algum parente havia sido “jagunço”. A própria forma de definir o protagonista revelava o preconceito em relação a uma das partes envolvidas no episódio. Além desses fatos desafiadores, outras indagações foram surgindo a partir de observações cotidianas em relação ao que chamamos de região do Contestado. Em Caçador, palco dos acontecimen-


tos do início do século XX, retomavam-se as discussões com o surgimento de instituições como o Museu Histórico e Antropológico do Contestado e, principalmente, com a criação da Universidade do Contestado. A opção pela denominação que relembrava um movimento revolucionário fundamentava a importância do fato histórico para a região. A constatação da existência de um grande número de pessoas que tiveram ascendentes envolvidos no movimento e, até mesmo, a existência de alguns remanescentes dos redutos foram aspectos que instigaram a curiosidade. Partindo da ideia de que todos participam da construção da história, buscou-se as versões apresentadas pelos personagens que foram considerados vencidos. Portanto, a reconstrução dos fatos históricos ocorreu a partir das palavras de algumas pessoas que vivenciaram o episódio ou o de seus descendentes. Abordando tendências metodológicas e práticas historiográficas atuais, Burke (1992) destacou a grande expansão da nova história. No paradigma tradicional, geralmente, eram contados os feitos dos grandes homens, predominando a versão oficial sobre um fato histórico. Na nova história as abordagens voltam-se também para as atividades das pessoas comuns, incluindo-as como sujeitos da história. Também Jim Sharpe descreveu sobre a história vista de baixo e alertou que nossa identidade não foi estruturada apenas por monarcas, primeiros-ministros ou generais. Em sua história vista de baixo, oferece uma abordagem alternativa, abrindo a “possibilidade de uma síntese mais rica da compreensão histórica” (Sharpe, 1992, p. 39). A opção pela história oral como forma de produzir fontes históricas foi modo de preencher lacunas deixadas pelas fontes escritas (Ferreira, 1994). Em momento algum foram dispensadas outras fontes, principalmente escritas. Um dos estudos fundamentais foi realizado

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por Maurício Vinhas de Queiroz (1966), que esteve na região em 1954 e 1961, buscando informações de pessoas que estiveram envolvidas, apresentando uma grande riqueza de dados recolhidos nos depoimentos. Considerando que Vinhas de Queiroz, ao buscar estes depoimentos, produziu importante documento histórico, vários trechos de entrevistas realizadas por este autor também foram utilizados neste livro. O estudo das fontes produzidas até aqui, em sua grande maioria, apontava para a história das expedições militares, portanto, uma História de vencedores. Procurou-se reconstruir a História acompanhando os passos dos sertanejos, destacando seus líderes e suas formas de organização. Buscou-se valorizar a história daqueles que nem sempre foram lembrados pela historiografia tradicional ou que, simplesmente, foram negados na condição de sujeitos da história. Este estudo procurou ouvir os remanescentes e descendentes de moradores das antigas cidades santas, numa tentativa de entender a representação que faziam sobre o tempo dos redutos. Entender o que diziam os descendentes e remanescentes, sobre o tempo dos redutos, ajudou-nos a entender a forma como o tema foi tratado pela imprensa diária, pela historiografia, pelo cinema, enfim, pela literatura em geral. A assimilação feita, especialmente pelos remanescentes e descendentes, revela o modo preconceituoso como o tema foi trabalhado. O ponto de partida envolveu os depoimentos de pessoas indicadas, principalmente, por alunos e ex-alunos. A partir do contato com os primeiros depoentes ampliou-se o leque, pois cada entrevistado indicava vários outros, surpreendendo-nos a quantidade de descendentes existentes nos bairros de Caçador e, especialmente, nos municípios de Lebon Régis, Curitibanos, Santa Cecília, Fraiburgo, Timbó Grande, Porto União, Matos Costa e Calmon.

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Claro Gustavo Jansson. Acervo da famĂ­lia Jansson.

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No que se refere aos remanescentes, não existem mais sobreviventes. Tivemos a oportunidade de conversar com quatro antigos moradores dos redutos, dos quais dois morreram pouco tempo depois, um deles (Miguel Correa de Souza), uma semana após ser entrevistado na Serra da Esperança, interior de Lebon Régis, Santa Catarina. Conversamos com pessoas que estiveram envolvidas de ambos os lados, tanto defendendo redutos como destruindo-os. Tomamos o cuidado de sempre chegar até o depoente, acompanhados de alguém que o mesmo conhecia, geralmente quem o havia indicado. Dessa forma, a conversa fluía sem muitas desconfianças. Depois da coleta de uma série de depoimentos, que foram transcritos e digitados, as informações foram analisadas e comparadas com outras fontes, para serem organizadas e sintetizadas. Dessa forma, o presente trabalho foi organizado em cinco capítulos. No inicial, procurou-se fazer uma descrição histórico-geográfica da região, assinalando características singulares e envolvendo aspectos relacionados aos primórdios do povoamento da região. Desenvolveu-se estudo da formação socioeconômica, desde o tropeirismo, até a criação de gado e a extração da erva-mate. Analisou-se questões políticas relacionadas ao litígio entre Santa Catarina e Paraná, assim como a chegada de empresas estrangeiras na região e a colonização por parte de descendentes de imigrantes de origem europeia. No segundo capítulo foi feito um estudo sobre a questão religiosa. A atuação da igreja católica, a vida e as práticas dos monges João Maria de Agostini e João Maria de Jesus, a formação do catolicismo rústico, os ajuntamentos em torno de José Maria e o primeiro conflito entre soldados e sertanejos foram objetos do mesmo. No terceiro capítulo, analisou-se os principais redutos organizados pelos sertanejos, desde Taquaruçu, onde se juntaram as pes-

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soas para esperar a ressurreição de José Maria, até o derradeiro reduto de São Pedro nas margens do Rio Timbó. As diferentes fases, as adesões ao movimento, os deslocamentos e as principais escaramuças com as forças do governo, são aqui apresentadas, seguindo os passos dos sertanejos. No quarto capítulo foram destacados os diferentes líderes que comandaram o movimento, com índoles diferenciadas, em etapas distintas, destacando-se, de modo geral, características biográficas dos principais comandantes e atribuições que lhes são feitas pela historiografia. O quinto e último capítulo reservou-se para a descrição do mais propalado líder sertanejo, Adeodato Joaquim Ramos. Segue-se uma descrição dos sofrimentos e misérias no crepúsculo do movimento até o desbaratamento total das “cidades santas” e o fim do “último jagunço”.

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Argos Editora da Unochapecó Título

Da cidade santa à corte celeste: memórias de sertanejos e a Guerra do Contestado

Autor

Delmir José Valentini

Coleção Coordenadora

Regionais Rosane Natalina Meneghetti Silveira

Assistente editorial

Caroline Kirschner

Auxiliar comercial

Luana Paula Biazus

Secretaria Distribuição e vendas Divulgação

Marcos Domingos Robal dos Santos Luana Paula Biazus Mikaella Padilha Quiroz Thayná Moreira Battisti

Projeto gráfico

Alexsandro Stumpf

Capa

Caroline Kirschner

Diagramação

Caroline Kirschner

Preparação

Emanuelle Pilger Mittmann

Revisão

Carlos Pace Dori Emanuelle Pilger Mittmann

Formato Tipologia Papel

16 X 23 cm Minion Pro entre 10 e 14 pontos Capa: Dura Miolo: Pólen Soft 80 g/m2

Número de páginas

256

Tiragem

300

Publicação Impressão e acabamento

2016 Gráfica e Editora Pallotti – Santa Maria (RS)


Este livro estĂĄ Ă venda:

www.unochapeco.edu.br/argos www.travessa.com.br www.livrariacultura.com.br

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ntigos moradores dos redutos relataram as experiências pelas quais passaram, vivas na memória. Os seus descendentes contaram o que ouviram e a compreensão que forjaram sobre os fatos acontecidos. Esteve impressa nos sertanejos, a partir dos seus depoimentos, a culpa pelo derramamento de sangue que envolveu a população da região do Contestado no início do século XX. As atribuições de termos como “pelados”, “jagunços”, “fanáticos”, entre outros, que lhes foram feitas, de certo modo, alcançaram assimilação. Foram adjetivos que evoluíram, pois os primeiros escritos sobre a Campanha do Contestado denominavam os sertanejos como “incautos”, “desordeiros”, “impatrióticos” e “facínoras”, entre outros. Decorridos quase vinte anos da primeira edição deste livro, a pesquisa histórica avançou, novas e interessantes respostas a indagações do presente foram apresentadas, mas continuam ressonantes as vozes dos sertanejos, que no início da década de 1990 falaram das suas experiências e lembranças dos tempos dos monges. Uma quarta edição desta obra reveste-se de significado singular, exatamente no ano em que a Guerra do Contestado fecha o ciclo do seu centenário – 1912-1916 / 2012-2016 –, pois, certamente, a interlocução entre o passado e o presente continua, mesmo diante da inexorável ausência física dos remanescentes entrevistados. Continua com os seus descendentes que, de geração em geração, sempre buscarão respostas para as questões do tempo presente e, no atual contexto, lembrar que um ascendente esteve numa cidade santa e lutou durante a Guerra do Contestado, já virou motivo de boas lembranças, de orgulho das façanhas e da epopeia deste passado histórico.


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