Descolonizar o Direito na América Latina: o modelo do pluralismo e a cultura do bem-viver

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Maria Aparecida Lucca Caovilla

DESCOLONIZAR O DIREITO NA AMร RICA LATINA o modelo do pluralismo e a cultura do bem-viver

Chapecรณ, 2016


Reitor: Claudio Alcides Jacoski Vice-Reitora de Ensino, Pesquisa e Extensão: Silvana Muraro Wildner Vice-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Márcio da Paixão Rodrigues Vice-Reitor de Administração: José Alexandre de Toni Diretora de Pesquisa e Pós-Graduação Stricto Sensu: Carolina Riviera Duarte Maluche Baretta Este livro ou parte dele não podem ser reproduzidos por qualquer meio sem autorização escrita do Editor. Caovilla, Maria Aparecida Lucca C574d Descolonizar o Direito na América Latina : o modelo do pluralismo e a cultura do bem-viver / Maria Aparecida Lucca Caovilla. -- Chapecó, SC : Argos, 2016. 371 p. ; 23 cm. -- (Debates ; 21). Inclui bibliografias ISBN 978-85-7897-169-4 1. Direito - História. 2. Direito - América Latina. I. Título CDD 21 -- 340.09 Catalogação elaborada por Daniele Lopes CRB 14/989 Biblioteca Central da Unochapecó

Todos os direitos reservados à Argos Editora da Unochapecó Av. Atílio Fontana, 591-E – Bairro Efapi – Chapecó (SC) – 89809-000 – Caixa Postal 1141 (49) 3321 8218 – argos@unochapeco.edu.br – www.unochapeco.edu.br/argos Coordenadora: Rosane Natalina Meneghetti Silveira

Conselho Editorial: (2013-2015) Titulares: Murilo Cesar Costelli (presidente), Clodoaldo Antônio de Sá (vice-presidente), Celso Francisco Tondin, Dirceu Luiz Hermes, Lilian Beatriz Schwinn Rodrigues, Maria Aparecida Lucca Caovilla, Ricardo Rezer, Rodrigo Barichello, Tania Mara Zancanaro Pieczkowski, Vagner Dalbosco, Valéria Marcondes Suplentes: Arlene Renk, Fátima Ferretti, Fernando Tosini, Hilário Junior dos Santos, Irme Salete Bonamigo, Maria Assunta Busato Conselho Editorial: (2016-2018) Titulares: Murilo Cesar Costelli (presidente), Clodoaldo Antônio de Sá (vice-presidente), Celso Francisco Tondin, Rosane Natalina Meneghetti Silveira, Cesar da Silva Camargo, Silvana Muraro Wildner, Ricardo Rezer, Rodrigo Barichello, Mauro Antonio Dall Agnol, Vagner Dalbosco, Carolina Riviera Duarte Maluche Baretta Suplentes: Arlene Renk, Fátima Ferretti, Fernando Tosini, Hilário Junior dos Santos, Irme Salete Bonamigo, Maria Assunta Busato


“O sonho viável exige de mim pensar diariamente a minha prática; exige de mim a descoberta, a descoberta constante dos limites da minha própria prática, que significa perceber e demarcar a existência do que eu chamo de espaços livres a serem preenchidos. Os sonhos possíveis têm a ver com os limites desses espaços e esses limites são históricos [...] a questão do sonho possível tem a ver exatamente com a educação libertadora, não com a educação domesticadora [...].”

Paulo Freire (1982, p. 100).


Ao Ivar... amor da minha vida! Aos nossos filhos amados Isadora e Gabriel


A realização desta obra contou com diversos apoios e incentivos. Motivos de registro e reconhecimento, entre outros, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e seu Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD), seus professores e funcionários, estendendo-se à Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), por meio de sua equipe da Vice-Reitoria de Ensino, Pesquisa e Extensão (fev. 2012 a fev. 2016), aos professores(as) e técnicos(as), que tornaram possível a realização do projeto maior de minha vida acadêmica. O destaque de profunda gratidão à contribuição do professor e prefaciador, Antonio Carlos Wolkmer, em especial, pela sua condução segura na direção de novos caminhos de conhecimento. À dedicação atenta e imprescindível das professoras Silvana Winckler e Odete Maria de Oliveira. Aos familiares e amigos, companheiros e parceiros de todas as horas.

Ao povo latino-americano, que manifesta sede de oportunidades, dignidade, respeito... e principalmente de justiça.


Sumário

15 Prefácio

Antonio Carlos Wolkmer

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Introdução

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CAPÍTULO 1 A DOMINAÇÃO COLONIAL NA AMÉRICA LATINA

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A historicidade da América Latina

41

A dominação colonial hispânica

52

A dominação colonial portuguesa

58

O projeto da Modernidade: o encobrimento do “Outro”

73

A formação da colonização do Direito no Brasil

98

Um modelo dominante: a colonialidade epistêmica e o Direito como forma de colonialidade


109 CAPÍTULO 2 CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO: POR UMA CULTURA DO BEM-VIVER 110 Os novos padrões de dependência: o neoliberalismo na América Latina

136

Filosofia da libertação: contribuições para a descolonização do Direito

162

As experiências sociopolíticas da Bolívia e do Equador na construção do bem-viver

187

CAPÍTULO 3 ABERTURAS PARA UM PROJETO PROMISSOR DE DESCOLONIZAÇÃO DO SABER EM PAULO FREIRE, ENRIQUE DUSSEL E ANTONIO CARLOS WOLKMER

187

Paulo Freire e as contribuições para uma educação libertadora

210

Dussel e a filosofia da libertação

223

O pluralismo jurídico comunitário-participativo de Antonio Carlos Wolkmer – um novo horizonte à educação jurídica

259

Panorama do ensino jurídico no Brasil do século XXI


273

CAPÍTULO 4 POR UMA EDUCAÇÃO JURÍDICA À AMÉRICA LATINA BASEADA NO BEM-VIVER: UMA PRÁTICA INTERCULTURAL E PLURAL

277

A colonialidade do ensino jurídico

292

Bem-viver: mudar a educação para mudar o mundo

312

América Latina – universidade ou pluriversidade?

321

Por uma educação jurídica libertadora

329

Considerações finais

339 Referências


Prefácio

Foi com grande satisfação que recebi o amável convite da professora Maria Aparecida Lucca Caovilla para fazer a apresentação de seu livro Descolonizar o Direito na América Latina: o modelo do pluralismo e a cultura do bem-viver, originalmente defendido como tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), cuja banca examinadora tive a honra de participar. A autora é reconhecida docente e pesquisadora do curso de Direito da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), com uma abalizada experiência na esfera do Ensino, Extensão e Administração Universitária, bem como na coordenação do Núcleo de Iniciação Científica: Cidadania e Justiça na América Latina. Sua trajetória inclui lutas e liderança em todo o oeste do Estado, pela implementação e consolidação da Defensoria Pública em Santa Catarina. A tudo isso, alia-se uma personalidade fortemente dedicada ao mundo acadêmico, marcada por um conhecimento humanista e prática jurídica antiformalista e por uma preocupação corajosa na instrumen-

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talização da educação como condição básica para as transformações da realidade social.

Imbuída deste espírito de maior comprometimento com a nossa sociedade e com o repensar por um novo modelo de ensino e de educação jurídicos é que vem a público a versão de sua tese de doutorado. Trata-se de pesquisa inédita e criativa, bem estruturada na distribuição dos capítulos, nos aportes teóricos do pensamento contemporâneo utilizados e nas análises desenvolvidas.

Nesse sentido, a autora, em sua obra Descolonizar o Direito na América Latina: o modelo do pluralismo e a cultura do bem-viver, nos apresenta uma entusiástica proposta não só para um estudo inovador no âmbito da educação jurídica, mas, sobretudo, para uma nova cultura no Direito, buscando suas bases de sustentação no pluralismo jurídico, na interculturalidade e nos processos pedagógicos libertadores. Cabe realçar, portanto, as teorias centrais que Maria Aparecida Lucca Caovilla agrega nos quatro capítulos de seu livro. Primeiramente, introduz um estudo sobre as formas de dominação colonial na América Latina representada pela exploração portuguesa e espanhola, e os reflexos do projeto universalista e monocultural da modernidade na formação do Direito nacional.

Na sequência, deixa expresso que, frente às formas de colonialidade e dependência das instituições político-jurídicas, emerge novos processos de descolonização com o constitucionalismo andino, através das experiências contemporâneas do Equador (2008) e da Bolívia (2009).

No terceiro capítulo, discorre com desenvoltura e domínio teórico seus principais marcos analíticos relacionados ao Direito (pluralismo comunitário-participativo), à Filosofia (pensamento liberador latino-

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-americano, na direção de Enrique Dussel) e à Educação (pedagogia conscientizadora, sob o viés de Paulo Freire).

Por fim, o último capítulo traz o coroamento da obra, ou seja, de um lado, o questionamento da cultura jurídica tradicional, dogmática e excludente que não atende aos anseios de uma sociedade que se transforma aceleradamente; de outro, a busca comprometida e intensa por um ensino jurídico que seja a expressão das necessidades da sociedade, bem como de uma educação crítica, interdisciplinar e conscientizadora como instrumento potencial de mudanças. Por tudo isso é que parabenizo a professora Maria Aparecida Lucca Caovilla, pela qualidade da pesquisa, pela importância provocativa do livro e pela perspectiva paradigmática que abre na busca de novos conhecimentos na esfera do Direito, certamente valioso como contribuição para o meio acadêmico-universitário em geral e para a cultura jurídica do País. Antonio Carlos Wolkmer

Professor Doutor dos cursos de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e do Centro Universitário La Salle (Unilasalle-RS) Florianópolis (SC), julho de 2016.

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Introdução

As desigualdades sociais no âmbito da América Latina têm profundas raízes no processo colonizador, que não enxerga além dos paradigmas já reconhecidos, essencialmente individuais, normativos e burocratas, positivistas e excludentes, fundados no modelo de dominação colonial e capitalista. O contexto de um pensamento político-jurídico convencional, de governos centralizados, separados da sociedade e das diferentes culturas latino-americanas – Estados esgotados – já não atende mais às expectativas da sociedade do século XXI, sofrendo o aumento das desigualdades, violências, consumismos e da falta de união, objetivando uma necessária construção social e coletiva. Há, consequentemente, a necessidade de encontrar outros meios de organização social e política, para ser atingido um sistema de justiça mais horizontal e informal.

Identifica-se ainda um modelo de ensino jurídico, que não reflete as necessidades de preparação profissional e humana condizentes com a realidade social e uma cultura jurídica tradicional, antidemocrática e excludente que não atende aos anseios da sociedade contemporânea, que se transforma velozmente. 19


A partir dos novos movimentos sociais, que estabelecem um marco importante no processo de organização dos povos andinos, diante da diversidade dos grupos e dos povos e da tentativa de integração estabelecida por uma identidade étnica politizada, ressurge a cultura indígena, na luta por recursos naturais estratégicos, rompendo a ideia do Estado-nação, criando um novo ente plurinacional, estabelecendo outra diretriz jurídica para uma outra unidade estatal: o constitucionalismo intercultural, com o objetivo de superar o modelo liberal e o domínio colonial e reestruturar as relações políticas e sociais na América Latina.

Surgem, nesse cenário, importantes e novos processos reivindicatórios de direitos, propostas de reformulação das instituições públicas e de legitimação do Estado descolonizado. Para a Bolívia e o Equador, o século XXI chegou com outra projeção e expectativa. Com a emergência das lutas dos movimentos sociais, ascenderam-se diferentes matrizes teóricas para outras perspectivas, especialmente no âmbito da efetivação dos valores e dos direitos humanos, cujo debate se instaurou a partir da realidade pluriétnica, com a satisfação das necessidades concretas da população e sempre com a permanente participação ativa do povo.

Essas experiências retratam as possibilidades de avanços para a construção de outros horizontes e que fazem pensar a possibilidade de aliar a justiça e o pluralismo, na perspectiva da interculturalidade, como um caminho a ser trilhado na construção de um novo Direito, para uma nova sociedade – a sociedade contemporânea em que se vive.

Percorrendo os princípios e valores da “mãe terra” – Pachamama – descobrem-se os caminhos do bem-viver – sumak kawsay, que perpassam pelas discussões da dicotomia entre ser humano e natureza, os filhos da “mãe terra”, retornando o significado da própria vida na construção de uma identidade humanizada, reafirmando a importância 20


do equilíbrio com todas as formas de existência, no resgate da sabedoria ancestral, em contraponto à lógica do capitalismo consumista.

O universo deste estudo, por conseguinte, insere-se no contexto do pluralismo jurídico comunitário-participativo e do constitucionalismo latino-americano. O marco teórico ancora-se no pensamento de Antonio Carlos Wolkmer, Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito (2001), na arquitetura da edificação de uma outra instância de normatividade social e que transcenda as formas de dominação da modernidade burguesa-capitalista.

O novo pluralismo jurídico, de “base democrático-participativa”, emerge da reorganização da racionalidade e do refluxo político dos novos sujeitos coletivos, desligado da concepção individualista do mundo, na desumanização das relações sociopolíticas, que resulta de uma síntese social de todos os anseios individuais e coletivos. Constitui-se, nesse sentido, na criação de um pluralismo de sujeitos coletivos, com base no desafio de construir nova hegemonia, que contemple o equilíbrio da vontade coletiva, sem negar o pluralismo dos interesses particulares. Os fundamentos da proposta do pluralismo jurídico comunitário-participativo, alicerçam-se na constatação do esgotamento da cultura projetada pela modernidade industrial-capitalista, diante das crises de legitimidade normativa.

Se, de um lado, o processo de racionalização que penetrou todos os níveis da sociedade moderna desencadeou o progresso material, técnico e científico dos sistemas de organização da vida produtiva, de outro, não conseguiu evitar que as próprias conquistas materiais atingissem, profundamente, a liberdade, a qualidade de vida e a evolução das condições culturais e espirituais humanas, sendo necessário avançar na formulação de uma “ética da alteridade”, de cunho libertário. 21


Nesse viés, aborda-se no presente estudo, como proposta inaugural, se o mencionado pluralismo, frente aos sinais de emergência e de consolidação de um novo paradigma, fundado nas experiências do constitucionalismo latino-americano, poderá ser o fundamento para uma nova epistemologia educacional e pedagógica no âmbito do ensino do Direito, na perspectiva de uma educação jurídica intercultural e do já mencionado pluralismo jurídico (latino-americano).

As indagações de pesquisa, nesse sentido, questionam: Na área jurídica, pedagogicamente, o sistema de ensino e de preparação profissional está apto a responder às demandas da nova sociedade emergente? Nos cursos jurídicos será possível construir um novo currículo de formação e que tenha como proposta a repolitização do Direito, dada sua função na organização social? No âmbito do ensino jurídico, é possível provocar uma “revolução democrática da justiça”? Torna-se utópico pensar em mudança no modo de ensinar o Direito, com base em uma educação com visão jurídica pluralista, democrática e antidogmática, buscando a autonomia, emancipação e a libertação do ser humano? Desdobrando-se, na sequência, também outras não menos importantes indagações: Qual o conceito de Direito que a sociedade do século XXI propõe? É possível pensar um conceito ampliado do Direito a partir de uma refundação democrática de seu papel e do papel da justiça na América Latina? É possível construir um novo currículo de formação no Direito que tenha como premissa a (re)politização do Direito, dada sua função na organização da justiça e da democracia? É possível criar outra cultura jurídica? Haverá vontade política para um novo paradigma no processo de organização social, política e jurídica na América Latina? Uma ruptura do modelo que está posto é possível com base numa proposta de autonomia e emancipação do sujeito na sociedade? 22


Para alcançar os objetivos aqui apresentados, o desenvolvimento deste trabalho contará com as contribuições de vários autores, que pensam a partir da margem, da periferia, do lugar do outro e da alteridade, o que implica, necessariamente, em pensamentos amplos e flexíveis – conceitos abertos – como os utilizados ao longo dessa obra.

Considerando as experiências e práticas do povo latino-americano como um todo e principalmente o fenômeno do seu tradicional modelo jurídico que se busca apreender, compreender e analisar, utiliza-se o método dedutivo, que possibilita a aplicação de princípios gerais a casos específicos – como exemplo o reconhecimento oficial do pluralismo jurídico na Constituição da Bolívia, de 2009, juntamente com a criação de um Tribunal Pluricultural –, que permitem reavaliar as premissas do Direito no cotidiano, considerado como um campo fértil de tensões sociais e que somente poderá satisfazer as necessidades concretas da população quando tiver reconhecido esse caráter político próprio. Neste ensaio, buscou-se abordar – com maior destaque – o pluralismo jurídico, a interculturalidade e o movimento do constitucionalismo latino-americano do século XX, elementos conceituais que inauguraram o surgimento dos novos tempos, de diferentes experiências do campo de conhecimento das ciências humanas, averiguando suas bases epistemológicas e seus pressupostos. Nesse sentido, são analisadas as teorias sobre o Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito, de Antonio Carlos Wolkmer; a Ética da Libertação, de Enrique Dussel; a Pedagogia da Autonomia, a Pedagogia da Esperança e a Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire. A perspectiva do bem-viver encontra apoio na sabedoria ancestral andina, nas propostas do movimento do constitucionalismo latino-americano, nas Cartas do Equador e da Bolívia, alicerçadas no processo constituinte.

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A presente obra utiliza os seguintes conceitos: o pluralismo jurídico, segundo Antonio Carlos Wolkmer (2001, p. XVI), [...] é um referencial cultural de ordenação compartilhada, que considera a multiplicidade de manifestações ou práticas normativas num mesmo espaço sociopolítico, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais ou culturais.

Na América Latina, o pluralismo jurídico surge da necessidade de o Direito resolver demandas jurídicas, com o objetivo de defesa das necessidades dos excluídos, considerando que a realidade latino-americana sofre a desigualdade social ante a pluralidade étnica inferiorizada socialmente, resultado do processo de colonização. Dessa forma, [...] a importância deste uso da juridicidade pelos pobres constitui o fato de poder apresentar alternativas à lógica do Direito dominante, pois assim o desmistifica e configura um novo tipo de relações sociais. (Wolkmer, 2001, p. 203-204).

A interculturalidade, de acordo com Fleuri (2003, [s.p.]), “[...] é o conjunto de propostas de convivência democrática entre diferentes culturas, buscando a integração entre elas sem anular sua diversidade [...]”, ao contrário, “[...] fomentando o potencial criativo e vital resultante das relações entre diferentes agentes e seus respectivos contextos.” Quanto ao constitucionalismo latino-americano, as referências utilizadas são decorrentes dos estudos das constituições da Bolívia e do Equador, principalmente de uma corrente conhecida como o “novo constitucionalismo latino-americano”. Trata-se dos avanços do constitucionalismo da Europa depois da Segunda Guerra Mundial, buscando evoluir no que o constitucionalismo europeu não avançou: a democracia participativa, a efetivação dos direitos sociais e de outros 24


direitos, a busca de um novo papel da sociedade, do Estado e a inclusão das minorias marginalizadas. Essas Constituições têm denominadores comuns óbvios, especialmente no campo da participação, da economia e de uma vigência efetiva dos direitos para todos (Dalmau, 2009). Nesse contexto, o bem-viver surge como uma alternativa entre as sociedades historicamente mazeladas, para debater os mecanismos possíveis e as respostas aos problemas que o desenvolvimentismo sustentável do século XXI enfrenta. Trata-se tanto de uma crítica ao desenvolvimentismo quanto de um ensaio de alternativas. Um questionamento que abandona a ideia convencional de desenvolvimento e não procura reformá-la. Pelo contrário, quer transcendê-la.

O bem-viver, enquanto conceito plural e em construção, discorre no campo dos debates teóricos, mas também avança nas práticas, quer sejam naquelas dos povos indígenas e nos movimentos sociais, quer seja na construção política, dando seus primeiros passos nas recentes Constituições da Bolívia e do Equador.

Para além da diversidade de posturas no interior do bem-viver, aparecem elementos unificadores-chave, tais como: o questionamento ao desenvolvimento entendido como progresso, ou a reivindicação de outra relação com a natureza. O bem-viver não é, portanto, um desenvolvimento alternativo, mas, dentro de uma longa lista de opções, se apresenta como uma alternativa a todas essas posturas (Gudynas; Acosta, 2011).

O ensino jurídico, nessa direção, precisa ser ressignificado, no propósito da renovação dos saberes, fundamentado nas necessidades da sociedade. Uma proposta de ensino jurídico deve levar em conta as experiências sociais vivenciadas em países da América Latina, a partir da ampliação das demandas populares e do ativismo social, protagonistas de novos Direitos, que exigem outras formas de organização social. 25


No contexto da desconstrução do Direito excludente, urge promover uma educação descolonizadora como modelo adequado para uma educação jurídica crítica e conscientizadora, que reconheça o protagonismo e o potencial transformador de cada indivíduo, considerando os educandos sujeitos de sua própria libertação. É o que se vislumbra como uma potencial ferramenta de mudanças.

A proposta de uma ética da alteridade emerge das próprias lutas, conflitos, interesses e das necessidades de sujeitos individuais e coletivos insurgentes, em permanente afirmação, propondo-se libertária, por estar diretamente inserida nas práticas sociais, materializando-se como instrumento pedagógico e que melhor se adapta aos propósitos de conscientização e transformação dos povos dependentes, do capitalismo periférico, bem como das lutas e guerrilhas de libertação nacional e, enfim, das resoluções dos povos oprimidos. Cronologicamente, a presente obra encontra-se assim estruturada: No primeiro capítulo, busca-se compreender o processo de dominação colonial ocorrido na América Latina e o regime de inferioridade e exclusão aos quais os povos foram submetidos, bem como a perspectiva de mudança desse paradigma, a partir da proposta deste estudo. A fim de transformar essa realidade, assume-se o desafio de compreender a verdadeira e silenciada história da América Latina, uma vez que o tempo presente está vinculado diretamente a esse remoto passado. Olhar para trás significa olhar para a própria realidade.

O enfrentamento desse tema exige muita determinação, tendo em vista os aspectos formais e interdisciplinares que o permeiam – políticos, econômicos, históricos, institucionais e, inclusive, o capitalismo desenvolvimentista travestido de modernismo –, por se constituírem fatores que afetam diretamente o objeto de conhecimento de sua pesquisa e refletirem sobre uma cultura de organização jurídica e

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educacional, impregnada de um modelo oficial de Estado arcaico, ultrapassado e esgotado, que precisa de ressignificação para criar uma nova cultura, outra proposta de sistema de justiça, embasada na pluralidade, interdisciplinaridade, interculturalidade e na alteridade. No segundo capítulo, investiga-se o momento de mudança paradigmática na América Latina, para compreender quem são os verdadeiros atores criadores, transformadores de uma nova cultura democrática, olhando para as organizações comunitárias do passado, afetadas pela modernidade-colonialidade e, agora na contemporaneidade, pelas leis dominantes do mercado. Nesse caminhar entre fronteiras, será necessário derrubar as várias muralhas, porque envolvidos na academia jurídica, perpassando pelas alternativas germinadas a partir das epistemologias do Sul, da cultura do bem-viver, da democracia intercultural, inauguradas pelo constitucionalismo latino-americano.

O constitucionalismo clássico e suas rupturas também são tratados com a importância devida, em face da colonialidade constitucional, que precisa ser repensada a partir do pluralismo jurídico democrático-participativo. As experiências sociopolíticas das constituições do Equador e da Bolívia, na construção de uma democracia intercultural, servem de base para a estruturação de toda esta obra, que se funda na reformulação da própria democracia, sustentada pela interculturalidade. O bem-viver torna-se o centro de todo o resgate cultural, ancestral e espiritual, movido pelos povos andinos, surgindo daí as novas institucionalidades, os Estados plurinacionais e a esperada justiça comunitária. No terceiro capítulo, analisa-se o sistema de educação a partir dos pensamentos de Enrique Dussel e Paulo Freire, na perspectiva da libertação do homem, a fim de entender a viabilidade de um novo

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projeto de educação jurídica, fugindo da lógica do tradicional ensino jurídico, abordando o velho paradigma da educação no Brasil, com enfoque na área do Direito, avançando para a compreensão do processo de descolonização da cultura e do ensino do Direito – que tem levado à burocratização, formalismo e individualismo das práticas jurídicas no País e na América Latina.

A intenção é pensar uma proposta de educação plural, intercultural e interdisciplinar à compreensão dos problemas sociais, objetivando a emancipação e a autonomia dos indivíduos, visando a uma mudança de orientação epistemológica, de forma a renovar a teoria crítica do Direito com a criação de escolas de Direito, que tenham entre as suas finalidades o enfrentamento dos problemas da sociedade, o reconhecimento às diferenças, à pobreza, à marginalidade. Quer-se encontrar um novo caminho para a educação jurídica na América Latina, com o propósito de renovar o processo de construção dos saberes, com fundamento nas necessidades de sociedade e da libertação do homem.

No quarto capítulo, com base no pluralismo jurídico comunitário-participativo, propõe-se outra concepção de ensino jurídico, lançando mão de uma educação jurídica para o bem-viver, como estratégia de empoderamento dos indivíduos, especialmente em contextos de exclusão extrema, como vivenciado no Brasil e em toda a América Latina. O intento é superar os muros de uma cultura jurídica individualista, no contexto da formação e atuação dos profissionais da área jurídica, avançando no reconhecimento das práticas plurais, comprometidas com propostas libertadoras, capazes de romper com as desigualdades, a opressão e a subalternidade na sociedade. A partir das utopias dos povos do Equador e da Bolívia e das reformas constitucionais havidas, evidenciam-se possibilidades de uma mudança civilizatória e, nesse contexto, a educação ocupa um lugar 28


privilegiado quanto aos processos de transformação, abandonando sua função reprodutora, para contribuir com a gestação de um mundo mais justo e democrático, no qual cada ser humano seja mais humano, construindo-se uma educação transformadora, uma educação para o bem-viver, ante a possibilidade de que todo processo educativo se faça das sabedorias múltiplas, das capacidades criativas, expressivas e reflexivas, que compõem o mosaico brasileiro. Essas sabedorias foram e ainda são sistematicamente censuradas, desprezadas, subalternizadas pelo sistema educativo tradicional, conformado no cientificismo. Para tanto, aposta-se na pesquisa, no ensino e na extensão comunitária como possibilidade de resgatar, ressignificar e reintegrar as práticas daqueles considerados “outros”, valorizando a sua existência no mundo.

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Sobre a autora Maria Aparecida Lucca Caovilla: Graduada em Direito pela Universidade Regional de Blumenau (F URB) e doutora em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), na área de concentração: Direito, Política e Sociedade. É docente do curso de graduação em Direito e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó). Dedica-se ao estudo de temas como: Acesso à Justiça, Pluralismo Jurídico e, em especial, vem investigando o contexto do pluralismo jurídico comunitário-participativo e o constitucionalismo latino-americano nas propostas de construção de uma nova cultura constitucional de integração latino-americana.


Argos Editora da Unochapecó www.unochapeco.edu.br/argos Título

Descolonizar o Direito na América Latina: o modelo do pluralismo e a cultura do bem-viver

Autora

Maria Aparecida Lucca Caovilla

Coleção Coordenadora Assistente editorial Assistente comercial Editor de textos Secretaria Divulgação

Debates, n. 21 Rosane Natalina Meneghetti Silveira Caroline Kirschner Neli Ferrari Carlos Pace Dori Marcos Domingos Robal dos Santos Thayná Moreira Battisti

Distribuição e vendas

Neli Ferrari Luana Paula Biazus

Projeto gráfico

Alexsandro Stumpf

Capa

Caroline Kirschner Ricardo Steffens

Diagramação

Caroline Kirschner Luana Cervinski Ricardo Steffens

Preparação dos originais

Emanuelle Pilger Mittmann Kauana Pagliocchi Gomes

Revisão

Carlos Pace Dori Emanuelle Pilger Mittmann Kauana Pagliocchi Gomes

Formato Tipologia Papel

16 X 23 cm Adobe Caslon Pro entre 10 e 14 pontos Capa: Supremo 280 g/m2 Miolo: Pólen Soft 80 g/m2

Número de páginas

371

Tiragem

300

Publicação Impressão e acabamento

Agosto de 2016 Gráfica e Editora Pallotti – Santa Maria (RS)


Este livro estĂĄ Ă venda:

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