Por uma esquizofrenia produtiva (da prática à teoria)

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Por uma esquizofrenia produtiva (Da prática à teoria)


Valdir Prigol (Org.)

Por uma esquizofrenia produtiva (Da prática à teoria) João Cezar de Castro Rocha

Chapecó, 2015


Reitor: Odilon Luiz Poli Vice-Reitora de Ensino, Pesquisa e Extensão: Maria Aparecida Lucca Caovilla Vice-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Claudio Alcides Jacoski Vice-Reitor de Administração: Antônio Zanin Diretora de Pesquisa e Pós-Graduação Stricto Sensu: Valéria Marcondes

Este livro ou parte dele não podem ser reproduzidos por qualquer meio sem autorização escrita do Editor.

P853p Por uma esquizofrenia produtiva : (Da prática à teoria) / João Cezar de Castro Rocha ; Valdir Prigol (Org.) – Chapecó, SC : Argos, 2015. 548 p. ; 23 cm. – (Grandes Temas ; 22)

Inclui bibliografias ISBN: 978-85-7897-145-8 1. Literatura – Crítica e interpretação. I. Rocha, João Cezar de Castro. II. Prigol, Valdir. III. Título. CDD 21 – 801.95 Catalogação elaborada por Joseana Foresti CRB 14/536 Biblioteca Central da Unochapecó

Todos os direitos reservados à Argos Editora da Unochapecó Av. Atílio Fontana, 591-E – Bairro Efapi – Chapecó (SC) – 89809-000 – Caixa Postal 1141 (49) 3321 8218 – argos@unochapeco.edu.br – www.unochapeco.edu.br/argos Coordenador: Dirceu Luiz Hermes Conselho Editorial Titulares: Murilo Cesar Costelli (presidente), Clodoaldo Antônio de Sá (vice-presidente), Celso Francisco Tondin, Dirceu Luiz Hermes, Lilian Beatriz Schwinn Rodrigues, Maria Aparecida Lucca Caovilla, Ricardo Rezer, Rodrigo Barichello, Tania Mara Zancanaro Pieczkowski, Vagner Dalbosco, Valéria Marcondes Suplentes: Arlene Renk, Fátima Ferretti, Fernando Tosini, Hilário Junior dos Santos, Irme Salete Bonamigo, Maria Assunta Busato


Agradecimentos

Em primeiro lugar, devo um agradecimento especial ao colega e amigo Valdir Prigol. O diálogo que mantemos há pelo menos uma década tem sido um dos fatores mais importantes no desenvolvimento do meu trabalho. Este livro, de fato, é o último resultado dessa interlocução constante, que já rendeu outros títulos. De igual modo, devo mencionar os editores de suplementos literários e cadernos culturais em cujas páginas tenho colaborado. Antes, um reconhecimento. Ao começar a produzir textos com alguma assiduidade para a imprensa, sempre mantive como lema a recomendação que Mário de Andrade deu a Guilherme de Figueiredo: “escrever para jornal como se fosse para livro”. Isto é, com a mesma seriedade e, sobretudo, com idêntico rigor linguístico. E isso sem desconsiderar as óbvias diferenças entre os meios. Portanto, ao menos para mim, colaborar para a imprensa envolve um permanente exercício de escrita, no qual a clareza deve aliar-se à concisão.


(Como você percebe com facilidade, desafio feito sob medida para escapar do encastelamento típico da prosa acadêmica e do solipsismo universitário.) Cristiane Costa, editora do “Ideias”, do Jornal do Brasil, me ofereceu o primeiro espaço sistemático de colaboração regular. Recordo com carinho o muito que aprendi nos primeiros artigos, pois precisava encontrar um ritmo diverso de escrita, a fim de contemplar um público mais amplo, bastante distinto dos poucos leitores do circuito acadêmico. No mesmo caderno, agora dirigido por Cláudia Nina, mantive uma coluna dedicada à releitura dos clássicos da literatura brasileira. Muitos dos textos deste livro foram produzidos para a coluna por ela ideada. Alcino Leite Neto tornou possível o início de uma colaboração com o caderno “Mais!”, da Folha de S.Paulo, que se desdobrou por anos e consolidou uma troca de ideias com Adriano Schwarz, Marcos Roberto Flamínio Peres e Maurício Santana Dias que se mantém ainda hoje. Por fim, também colaborei regularmente para O Estado de S. Paulo. Rinaldo Gama propiciou um espaço generoso no “Sabático” e muito aprendi com ele. Mantive, de igual modo, um diálogo produtivo com Antonio Gonçalves Filho, Maria Fernanda Rodrigues e Ubiratan Brasil, no “Caderno 2”. Henning Ritter, editor da página dedicada às Geisteswissenschaften, do jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung, acolheu generosamente quatro longos artigos durante uns quantos anos de convívio intelectual. Devo a ele, num jantar em Berlim, em 2005, uma advertência decisiva, que por anos me levou a um difícil exercício de contenção – essa qualidade sempre louvada, mas quase nunca praticada. Explico-me.


Comentávamos a autêntica febre de publicação no mundo acadêmico, quando ele me disse a respeito de um conhecido jornalista cultural: “Aber er veröffentlicht mehr als er schreibt”. Ao escutar a frase, cortante em sua concisão, não pude deixar de vestir a carapuça: involuntariamente olhei para o lado, constrangido. Ora, um professor universitário que escreve com frequência, talvez excessiva, para jornais, corre o risco constante de tornar-se o sujeito da incômoda sentença: “Mas ele publica mais do que escreve”. Homem culto, de exemplar agudeza, dono de uma inteligência sóbria que busco em vão emular, a interlocução com Henning Ritter foi das mais valiosas e desafiadoras nas duas décadas em que escrevo para jornais. Por alguns anos, sua frase me fez publicar consideravelmente menos, com a esperança de finalmente começar a escrever. Espero que os textos aqui coligidos demonstrem o acerto da opção. (Ou, quem sabe, talvez esteja chegando a hora de voltar a recordar a advertência de Henning Ritter.)


Sumário

Apresentação: Da arte de aproximar textos e leitores Valdir Prigol

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À guisa de introdução A origem de um livro

31

Primeira parte Por uma esquizofrenia produtiva

37

Por uma esquizofrenia produtiva

39

Reinvenção da crítica literária?

54

Literatura: hoje? Ou: o deslocamento da Bildung

62

Augusto de Campos – o cantor dos meios. A poesia como performance

99


Segunda parte Leituras 117 Leituras brasileiras 119 Ouvinte, espectador ou leitor? 121 [O filho do pescador, de Teixeira e Sousa] Poema, romance, romance em prosa? 125 [O filho do pescador, de Teixeira e Sousa] A “originalidade” brasileira 130 [Como se deve escrever a História do Brasil, de Karl Friedrich Philipp von Martius] Sonambulismo e literatura 134 [A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo] Digressão e sátira política 138 [A carteira do meu tio, de Joaquim Manuel de Macedo] O empenho do (e)leitor 142 [Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida] Os índios de José de Alencar 147 [O Guarani, Iracema, Ubirajara] A instabilidade como estrutura 152 [Ubirajara, de José de Alencar] Um título ardiloso? 156 [Iracema, de José de Alencar] Gradações infinitas 160 [O Guarani, de José de Alencar] José de Alencar, autor de Madame Butterfly 164 [Uma encenação de Calixto Bieito]


O pulo do gato 169 [“Teoria do medalhão”, de Machado de Assis] A farda e o fardão 173 [“O espelho”, de Machado de Assis] O humor machadiano 177 [“O alienista”, de Machado de Assis] O avesso da filosofia 181 [“O alienista”, de Machado de Assis] Ciúme e dúvida póstuma 185 [Dom Casmurro, de Machado de Assis] Um livro-conflito 189 [Os sertões, de Euclides da Cunha] Sertões “pornográficos” de Zé Celso em Berlim 193 [Os sertões, do Teatro Oficina] Encontro marcado com uma obra-prima 197 [A escrava que não é Isaura, de Mário de Andrade] Uma releitura 204 [“Manifesto Antropófago”, de Oswald de Andrade] Modernismo(s): por uma nova história cultural 208 O (des)leitor de Raízes do Brasil 214 Raízes em Berlim 220 [A gênese de Raízes do Brasil] Ética e utopia 227 [São Bernardo, de Graciliano Ramos] A atrofia das palavras 231 [Vidas Secas, de Graciliano Ramos] “Uma certa maneira de sentir” 236 [A obra de Rubem Braga]


Homem de letras, cético de si mesmo [A obra de Paulo Mendes Campos]

241

Capitães da areia e da periferia [Capitães da areia, de Jorge Amado]

248

Um projeto de ficção multimídia [Jorge Amado e um projeto literário]

252

No redemoinho da narrativa [Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa]

258

Quem tem medo de Dalton Trevisan?

263

Expressões do Ocidente e Oriente [Toda poesia, de Paulo Leminski]

268

Crônica como forma [Diálogos impossíveis, de Luis Fernando Veríssimo]

272

A dialética da marginalidade (caracterização da cultura brasileira contemporânea) [Cidade de Deus – o livro e o filme]

275

Uma declaração de princípios [O livro das emoções, de João Almino]

291

Memória de um frustrado futuro [A máquina de madeira, de Miguel Sanches Neto]

295

O sentido de todas as coisas [Figura na sombra, de Luiz Antonio de Assis Brasil]

299

Trama à frente do texto [Estive lá fora, de Ronaldo Correia de Brito]

302

Retrato explícito de uma expiação [A queda, de Diogo Mainardi]

306

Narrativa sem falsos dilemas [Granta]

310


Janelas para a finitude [Terra de casas vazias, de André de Leones]

314

Cultura-esperanto? [Reprodução, de Bernardo Carvalho]

320

Eu é um outro – palavra de antropófago [De la antropofagia a Brasilia: 1920-1950, de Jorge Schwartz]

323

Sobre os impasses da modernidade [Vanguardas em retrocesso, de Sergio Miceli]

330

Memórias oblíquas de um intelectual [Martinha versus Lucrécia, de Roberto Schwarz]

334

Imaginação ficcional e teórica [Esquilos de Pavlov, de Laura Erber]

340

Autoajuda ao contrário [A maçã envenenada, de Michel Laub]

344

Desarmar o quebra-cabeça [Amanhã não tem ninguém, de Flávio Izhaki]

348

Entretenimento e descaso [Geração subzero, organização de Felipe Pena]

351

Transgressão domesticada [Meu coração de pedra-pomes, de Juliana Frank]

356

Literatura com rede de proteção [Para quando formos melhores, de Celeste Antunes]

359

Dueto como forma literária [O Professor, de Cristovão Tezza]

361

Um livro excepcional [Romance com pessoas, de José Luiz Passos]

365

Um parangolé de palavras [O inventário das coisas ausentes, de Carola Saavedra]

369


Fusão de vocações [Secchin: uma vida em letras, organização de Maria Lucia Guimarães de Faria e Godofredo de Oliveira Neto]

372

Como criar uma tradição como a do Prêmio Goncourt?

375

Adaptar ou não adaptar: eis a questão

378

Chico Buarque de Holanda: promessas e impasses

382

Entre excessos e paradoxos [O Carnaval na literatura brasileira]

385

Distanciamento, crítica e humor [O Natal na literatura brasileira]

391

Leituras estrangeiras

399

Biblioteca de Babel da ficção [Dom Quixote, de Miguel de Cervantes]

401

O desconcertante silêncio de Deus [O silêncio, de Shusaku Endo]

406

Entre a glória e a vergonha [O emblema vermelho da coragem, de Stephen Crane]

410

Trocar seis por meia dúzia [A trama do casamento, de Jeffrey Eugenides]

414

A topologia da ficção [As pontes de Königsberg, de David Toscana]

418

Entre o próprio e o alheio [Estudos sobre a literatura clássica americana, de D. H. Lawrence]

423

Mimesis: Erich Auerbach em exílio – I

427

Mimesis: Erich Auerbach em exílio – II

436

Pintura como pensamento [Ensaios de estética, de José Ortega y Gasset]

445


A radicalidade de Xavier Zubiri [Trilogia Inteligência Senciente, de Xavier Zubiri]

451

México-Macunaíma? [O labirinto da solidão, de Octavio Paz]

458

Obra discute o sacrifício ritual moderno [René Girard]

461

Reflexões sobre o ato da leitura [O ato de leitura, de Wolfgang Iser]

464

Wolfgang Iser: uma obra incontornável

469

Literatura, crítica literária e a imprensa. Hoje?

472

Um exercício constrangedor [Canções mexicanas, de Gonçalo M. Tavares]

476

À guisa de conclusão

479

Os produtores de texto e a escrita expressa – I [Crônicas de Gregório Duvivier e Fábio Porchat]

481

Os produtores de texto e a escrita expressa – II [Fim, de Fernanda Torres]

490

Os produtores de texto e a escrita expressa – Final

500

Posfácio: A vida entre o gabinete e a rua José Castello

509

Origem dos textos

517

Índice analítico

525

Índice onomástico

535


Apresentação Da arte de aproximar textos e leitores Valdir Prigol

Os textos reunidos neste livro, com exceção do primeiro, foram publicados em cadernos culturais de diferentes jornais do País. É o leitor interessado em literatura, mas não necessariamente especialista, que estes textos parecem visar. Eles foram publicados ao mesmo tempo em que o autor dialogava com o “leitor especialista” em um conjunto de livros que têm se tornado referência nos estudos literários recentes como Literatura e cordialidade (1998),1 Nenhum Brasil existe – pequena enciclopédia (2003), O exílio do homem cordial (2004), À roda de Machado de Assis (2006), The Author as Plagiarist: The Case of Machado de Assis (2006), Exercícios críticos (2008), Crítica literária: em busca do tempo perdido? (2011), Machado de Assis: por uma poética da emulação (2013),2 ¿Culturas shakespearianas? Teoría Mimética

1 Este livro recebeu o Prêmio “Mário de Andrade”, da Biblioteca Nacional, em 1999. 2 Este livro recebeu o Prêmio “Ensaio e Crítica Literária”, da Academia Brasileira de Letras, em 2014. Em 2015, sairá uma versão em inglês, Machado de Assis: Towards a Poetics of Emulation, publicada pela Michigan State University Press.

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y América Latina (2014),3 além da coordenação da Biblioteca René Girard e da republicação dos livros de José Guilherme Merquior. Esse duplo posicionamento assumido por João Cezar de Castro Rocha tem nome: esquizofrenia produtiva.4 O deslocamento da psicanálise para os estudos literários deste termo aponta para uma posição e também para um sintoma em relação aos estudos literários. O sintoma: o afastamento da crítica literária em relação à formação de leitores, dirigindo-se basicamente para os pares. Esse sintoma, como vemos em Crítica literária: em busca do tempo perdido?, tem história e está na base da institucionalização dos cursos de Letras nas universidades brasileiras. A posição: é preciso “tornar-se bilíngue em seu próprio idioma”, isto é, dialogar com os pares a partir da proposição de novas teorias e com o leitor em geral, por meio da proposição de novas leituras de textos canônicos e recentes, ficcionais e ensaísticos. A esquizofrenia produtiva, enquanto metáfora do intelectual que sabe dialogar com diferentes públicos, abre a possibilidade para a crítica de atuar em duas frentes fundamentais: a que aponta para a produção do conhecimento na universidade e a que sugere novos modos de pensar os conhecimentos que a literatura propõe.

3 Livro escrito em espanhol, fruto de palestras realizadas no âmbito da “Cátedra Francisco Eusebio Kino”, na Universidad Iberoamericana/ITESO em Guadalajara e Tijuana em 2011. Este ano sairá uma tradução para o português, a ser publicada pela Editora É Realizações. Em 2016, será lançado em inglês pela Michigan State University Press. 4 Neste ano, Castro Rocha terá uma coletânea de ensaios publicada em francês, Cultures latino-américaines et poétique de I’emulation. Littérature des faubourgs du monde? (Éditions Petra), na qual o tema da esquizofrenia produtiva será tratado, assim como o conceito de “poética da emulação” e de “culturas shakespearianas”.

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A primeira parte do livro Por uma esquizofrenia produtiva reúne quatro textos que discutem o papel dos estudos literários na contemporaneidade. O primeiro retoma e aprofunda a metáfora da esquizofrenia produtiva a partir da constatação da perda da centralidade da literatura na formação de subjetividades. Essa constatação está em muitos livros do presente. Cabe destacar um em especial: O espírito da prosa, de Cristovão Tezza. O autor, ao pensar na origem da sua carreira, no que o levou a escrever, retoma a mesma cena várias vezes. Vejamos o modo como ela aparece pela primeira vez no texto de Tezza: Mas acho que estou factualmente certo ao dizer que meu primeiro gesto literário aconteceu em 1962, em torno dos 10 anos de idade, quando eu cortava folhas tamanho ofício em quatro ou mesmo oito partes iguais (lembro que eram objetos miúdos), cobria as folhinhas com uma capa e costurava com linha e agulha a breve lombada. Em seguida, escrevia histórias nos livrinhos, histórias que meramente copiavam seriados da fascinante televisão em branco e preto que havia sido recém-implantada na sala de um apartamento da rua Mateus Leme, em Curitiba, por conta do irmão mais velho, subitamente rico por haver passado num concurso do Banco do Brasil.5

Vemos o mesmo no livro de Sergio Sá, A reinvenção do escritor (2010). O passo à frente de Castro Rocha é não lamentar o estado de coisas. É levá-lo em conta e atuar sobre ele. Daí vem a proposição para que professores, críticos, historiadores exerçam a esquizofrenia produtiva como um modo de incluir em suas práticas, também e principalmente, a formação de novos leitores. O primeiro e o último texto do livro abordam diretamente o assunto: no primeiro, a proposição da esquizofrenia produtiva, no último – “Literatura, crítica

5 Tezza, Cristovão. O espírito da prosa. Rio de Janeiro: Record, 2012. p. 33.

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literária e a imprensa. Hoje?” – um comentário sobre o trabalho do crítico Marcel Reich-Ranicki. Esse exercício, lemos nos dois textos seguintes, será possível se pensarmos a leitura como um corpo a corpo com as obras. Essa metáfora de leitura é fundamental para o projeto do autor, pois, como já explicitou em outros livros, os a priori de uma certa teoria (a eterna busca da literariedade) e de uma certa história da literatura (a eterna busca da nacionalidade) têm mais afastado do que aproximado textos de leitores, ao tornarem desnecessária a consulta das obras. Corpo a corpo com o texto que nos faz lembrar de autores como Erich Auerbach, René Girard, Antonio Candido, entre outros. A partir da leitura dos textos, estes autores produziram novas teorias sobre o literário e também dialogaram com um público mais amplo. A proximidade com Antonio Candido, por exemplo, é também em relação à metáfora de leitura. Antonio Candido, em 1943, no texto de abertura de sua coluna “Notas de crítica literária – Ouverture”, propõe uma imagem que retornará em outros textos: Há, evidentemente, uma coisa básica no trabalho crítico, que não pertence à metafísica nem à moral do nosso ofício, pois que é uma qualidade pessoal. Quero referir-me à penetração. Sem ela, sem esta capacidade elementar para o crítico, de mergulhar na obra e intuir os seus valores próprios, não há explicação possível – isto é, não há crítica.6

Penetrar, mergulhar, para que o leitor também penetre nos textos, como vemos na introdução de a Formação da Literatura Brasileira, publicado 16 anos depois: “Por isso, embora fiel ao espírito

6 Candido, Antonio. Textos de intervenção. São Paulo: Duas Cidades; 34, 2002. p. 24.

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crítico, é cheio de carinho e apreço por elas, procurando despertar o desejo de penetrar nas obras como em algo vivo.”7 Se a metáfora de leitura acionada por João Cezar nos faz lembrar da metáfora que vemos acionada por Candido, parece que estamos diante de um mesmo ponto de partida: o texto. O rendimento da metáfora da leitura como corpo a corpo está por vir, isto é, está em todos os textos da segunda parte do livro. Cada texto inicia com uma descrição do livro que está sendo analisado. E durante a leitura, o leitor percebe o quanto ela é fundamental, porque é a partir da descrição que o autor articula uma imagem que o livro coloca em funcionamento. Um segundo passo, é o movimento para a exterioridade em que o autor constrói uma memória para esta imagem, historicizando-a. E o terceiro, é o momento em que a imagem proposta para ler o livro constitui-se em uma metáfora do literário. No primeiro texto deste livro, depois de citar Madame Bovary, Grande Sertão: Veredas, A hora da estrela e Otelo, o autor diz que a força da literatura é “[...] como um laboratório de experiências sobre os múltiplos sentidos do humano, descortinados através da riqueza criadora da linguagem”; no texto sobre “O espelho”, de Machado de Assis, propõe: “A capacidade criadora da ficção: a possibilidade de produzir imagens que sem o espelho seriam invisíveis”; em Rubem Braga, a literatura aparece como “formas diversas de sentir”; na leitura de O emblema vermelho da coragem vemos a literatura como “[...] a melhor arma de que dispomos para imaginar respostas possíveis para outras tantas perguntas incômodas.”

7 Candido, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. Momentos decisivos. 11. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007. p. 11.

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Esse parece ser o pulo do gato do trabalho do autor: como não há um a priori do que seja o literário, o corpo a corpo com o texto permite, a cada leitura, colocar em cena a multiplicidade do literário. Como uma lucíola, como um vaga-lume, se quisermos pensar com Didi-Huberman8. Esse gesto está em todos os textos do livro. Por isso gostaria de mostrar como ele se faz presente em um texto que aponta para uma bem-vinda proximidade entre crítica, história e teoria: “Dom Casmurro: o ciúme e a dúvida póstuma”. No início do texto, João Cezar menciona que o livro de Machado de Assis tem sido lido a partir da imagem da infidelidade; propõe lê-lo a partir do ciúme como elemento estruturante: Na literatura brasileira poucos personagens possuem a força de Capitu. Embora o romance tenha sido lançado em 1899, continuamos naufragando em seus ‘olhos de ressaca’. Mesmo os que (ainda) não leram a obra-prima de Machado de Assis, identificam modos de ‘cigana oblíqua e dissimulada’ na vizinha ou na namorada dos amigos. E talvez opinem sobre a questão em aparência inevitável: Capitu traiu Bento Santiago? Dom Casmurro parece aprisionado no espinhoso problema da infidelidade. Reconheço que essa é uma leitura válida do romance. Porém, trata-se de leitura fácil, demasiadamente fácil, que deixa escapar a malícia do texto. Ora, o tema central de Dom Casmurro não é a infidelidade, mas o ciúme.

Em seguida, apresenta o enredo do livro e as cenas em que o ciúme ganha visibilidade para mostrar que não é um ciúme qualquer que preside a fala do narrador, mas o ciúme de um escritor malo-

8 Didi-Huberman, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: UFMG, 2011.

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grado. A partir daí, desloca-se para a exterioridade – vai para o Dicionário Houaiss, para outros textos em que o ciúme é estruturante e se aproxima do leitor, ao dizer que “O ciumento é um possessivo dotado de poderosa imaginação, é um escritor malogrado, que, em lugar de livros, produz fantasias de adultério.” No final do texto aproxima literatura e ciúme: “A literatura também não dispõe de ‘provas’, não expõe ‘evidências’; como o ciúme, a literatura é um discurso que se alimenta da dúvida, da impossibilidade de conhecer a ‘verdade’ última do mundo.” Talvez este texto possa nos levar ao início: ao propor a imagem da esquizofrenia produtiva, João Cezar, a partir do corpo a corpo com cada obra, produz metáforas do literário que aproximam o texto do leitor, ou melhor, cada metáfora é uma forma de produzir uma ação no leitor – a leitura do texto – porque oferece a ele uma possibilidade de imaginar e imaginar-se. A metáfora é um elemento constante na construção das leituras propostas por João Cezar. Ela é utilizada em boa parte dos textos. Vejamos alguns usos: “O autor transforma o desconhecimento geográfico em amarga metáfora: se a terra é desconhecida, o sertanejo é ainda mais ignorado” (sobre Os sertões, de Euclides da Cunha); “Podemos ver nessas cenas uma involuntária metáfora do próprio processo de infantilização do foco narrativo presente no filme e na série televisiva?” (sobre Cidade de Deus); “A metáfora antropofágica, portanto, mais parece a metonímia do ‘brasileiro’ – assim, colocado entre parênteses, numa espécie de involuntária epoché fenomenológica da identidade nacional. Nos últimos anos, a metáfora ressurgiu com força. Em 1998, a XXIV Bienal de São Paulo utilizou a metáfora como eixo conceitual” (sobre a exposição organizada por Jorge Schwartz), ou como ele sinaliza em Machado de Assis: por uma poética da emulação, para falar da obra do autor de Papéis avulsos: “Por 25


que não identificar as séries metafóricas que estruturam sua visão do mundo? Houve mudanças no emprego desta ou daquela série?”9 O processo de deslocamento da metáfora, tal como utilizado por João Cezar, vale a pena ser comentado: a imagem que o crítico produz em contato com a obra serve depois para pensar uma metáfora do literário, como vemos no artigo sobre o ciúme em Dom Casmurro. O ciúme, aqui, transfere seu sentido para a literatura, como o corpo a corpo em relação à leitura. Deslocamento que aponta para o uso da metáfora como “uma palavra por outra”10 e como um modo de apresentar um texto para um leitor. É esse processo que possibilita ao autor, como veremos a seguir, trabalhar com diferentes domínios dos estudos literários em um mesmo texto. Nessa direção, os textos de João Cezar lembram os textos de crítica de Ricardo Piglia, como “O último conto de Borges”. Nesse texto, Piglia usa uma imagem de leitura que não está distante do modo como nosso autor a vê. Diz Piglia: “A leitura é a arte de construir uma memória pessoal a partir de experiências e lembranças alheias. As cenas dos livros lidos voltam como lembranças privadas.11 Diz João Cezar, no primeiro texto deste livro: Precisamos recuperar a experiência radical de descentramento à volta da biblioteca. Ou à roda do quarto, nas memórias póstumas do texto que terminamos de ler. Rimbaud traduziu a força desse gesto: ‘Eu é um outro’ – definição precisa da experiência renovada a cada leitura. E é preciso assinalar a força de sua intuição: o leitor é um sujeito que assimila um outro

9 Rocha, João Cezar de Castro. Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 30. 10 Pêcheux, Michel. Semântica e discurso. 3. ed. Campinas: Unicamp, 1997. 11 Piglia, Ricardo. Formas breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 46.

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modo de ser, transformando-se no processo de assimilação, ampliando assim seu horizonte existencial. Mas, repita-se, não se trata de identificação pura e simples, pois, sem deixar de ser quem é, o leitor temporariamente vivencia outras formas de compreender o mundo. Desse modo, ele é sempre um ‘eu’ enriquecido pelo verbo que, a contrapelo da norma, se descobre feliz exceção: ‘Eu é um outro’.

Assim, o corpo a corpo com o texto permite a João Cezar de Castro Rocha trabalhar, em um mesmo espaço e em outros termos, a crítica, a história da literatura porque, ao pensar uma imagem que nasce do encontro/choque com o texto, ao produzir uma memória para esta imagem e, a partir dela produzir uma metáfora do literário, oferece – como vem fazendo há quase duas décadas – um caminho carregado de potência para os estudos literários deste início de século. A organização deste livro seguiu o cronograma da publicação dos textos analisados, apontando para um modo, inclusive, de pensar a história da literatura a partir da singularidade de cada texto. Este gesto o aproxima de livros como os organizados por Maria Eugenia Boaventura com os textos de Mário Faustino, publicados na página Poesia-Experiência, do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, no período de 1956 e 1959: “De Anchieta aos concretos” e “Artesanatos de poesia”. Mário Faustino, de quem João Cezar de Castro Rocha diz em Crítica literária: em busca do tempo perdido?, depois de apresentar as seções da página Poesia-Experiência e o vasto repertório de leituras do poeta: [...] e não se esqueça do método de Faustino, inspirado diretamente na técnica poundiana do exhibit: as análises dos poetas supunham sempre a transcrição generosa de seus poemas, acompanhada de tradução – compreendida como exercício criativo e forma de adestramento técnico. Hoje, qual o curso de Letras que oferece currículo semelhante? Nas palavras de 27


Faustino: ‘A página – pretensioso que sou! – quer ser antes de tudo didática: um pequeno curso de poesia, com aulas semanais’. O jovem poeta-crítico não era nada arrogante, os cursos de Letras é que abdicaram da tarefa mais importante: mostrar que a poesia, a literatura é uma autêntica experiência, tanto linguística quanto existencial.12

O mesmo poderíamos dizer em relação a João Cezar de Castro Rocha, e a discursividade em relação à crítica que coloca em cena. Aqui está, talvez, uma das principais contribuições de João Cezar para os estudos literários: pensar uma história da literatura a partir da singularidade de cada texto. Esta questão já apareceu em outros textos, especialmente em alguns sobre Antonio Candido. Em Exercícios críticos, João Cezar ressalta que Formação da Literatura Brasileira é um livro de historiador da literatura que leu as obras. O próprio Candido reitera, na Introdução, que é um livro de história escrito a partir do ponto de vista da história. Em Crítica Literária: em busca do tempo perdido?, João Cezar vai mais longe e afirma: [...] podemos, hoje em dia, com mais autonomia do que há duas ou mesmo três décadas, efetivamente ler livros como se seus autores não pertencessem a escola alguma, e, sobretudo, como se não tivéssemos a obrigação de filiar-nos a esta ou àquela tendência.13

Não deixa de chamar a atenção que a proposição de tomar como ponto de partida o texto ou a crítica do texto, para depois pensar a his-

12 Rocha, João Cezar de Castro. Crítica literária: em busca do tempo perdido? Chapecó: Argos, 2011. p. 366-367. 13 Rocha, João Cezar de Castro. Crítica literária: em busca do tempo perdido? Chapecó: Argos, 2011. p. 359.

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tória da literatura e a teoria, venha de dois historiadores da literatura como Candido e João Cezar. Nesse sentido, poderíamos aproximar o nosso autor de um outro historiador, agora da arte, que também toma como ponto de partida a singularidade – Georges Didi-Huberman. Como ele diz em uma entrevista: [...] as tentativas de postulação do que é uma imagem no geral – as tentativas de criação de uma ‘ontologia da imagem’ – estão votadas ao falhanço, e ao falhanço do dogmatismo, e do pensamento autoritário. O que me surpreende, pelo contrário, é que cada imagem singular, por pouco fecunda que seja, obriga a que coloquemos tudo em questão. Cada imagem volta a baralhar as cartas do mundo.14

E como ele diz em Ante el tiempo: Para que serve a história da arte? Para poucas coisas, se se contenta em classificar sabiamente objetos já conhecidos, já reconhecidos. Para muitas coisas, se chega a colocar o não saber no centro de sua problemática e fazer desta problemática a antecipação, a abertura de um saber novo, de uma forma nova de saber, se não de ação.15

Assim, tomar como ponto de partida a metáfora do corpo a corpo com o texto, como faz João Cezar, é colocar-se diante do não saber, produzindo, a partir do presente, uma imagem que o torne legível, a partir das memórias que aciona e da metáfora do literário que coloca em cena. Do mesmo, a leitura de cada texto deste livro e, espe-

14 Didi-Huberman, Georges. Vermos o telejornal à mesma hora é comportarmo-nos como na Idade Média. Público, 15 mar. 2012. Cultura, p. 28. 15 Didi-Huberman, Georges. Ante el tiempo. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2008. p. 308.

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cialmente, de cada texto analisado, acionará no leitor outras imagens, outras memórias, outras metáforas. E assim iniciaremos o diálogo. Os textos deste livro mantêm o formato da publicação onde circularam pela primeira vez, remetendo as referências dos textos analisados às suas edições originais. Acreditamos que tanto na publicação nos cadernos culturais como agora, no livro, este procedimento deixa o texto mais próximo do leitor.

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Sobre o autor e o organizador

João Cezar de Castro Rocha Professor de Literatura Comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e ensaísta. Realizou seus estudos de pós-graduação no Brasil (UERJ), nos Estados Unidos (doutor em Literatura Com parada pela Stanford University) e na Alemanha (pós-doutorado pela Alexander von Humboldt-Stiftung / Freie Universität Berlin). Entre outros, autor de Literatura e cordialidade: o público e o privado na cultura brasileira (EdUERJ, 1998; “Prêmio Mário de Andrade” da Biblioteca Nacional); Machado de Assis: Por uma poética da emulação (Civilização Brasileira, 2013; Prêmio “Crítica e História Literária”, da Academia Brasileira de Letras; tradução para o inglês: Machado de Assis: Toward a Poetics of Emulation (Michigan State University Press, 2015); ¿Culturas shakespearianas? Teoría Mimética y América Latina (Universidad Iberoamericana/ ITESO, 2014; tradução para o português), Culturas shakespearianas? Teoria Mimética e América Latina (É Realizações, 2015); Cultures latinoaméricaines et poétique de l’émulation. Littérature des faubourgs du monde? (Éditions Petra, 2015). Organizador de mais de vinte títulos e colaborador regular da imprensa. Coautor de Evolution and Conversion (Continuum, 2008), com René Girard e Pierpaolo Antonello (edições em português, alemão, italiano, espanhol, polonês, japonês, coreano, tcheco e francês – “Prix Aujourd’hui”, 2004). Valdir Prigol (Org.) Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Fez seu doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).É autor de Como encontrar-se e outras experiências através da leitura de textos literários (Argos, 2010), sobre textos literários contemporâneos e Leituras do presente (Argos, 2007), sobre a crítica literária no Mais! caderno cultural da Folha de São Paulo


Argos Editora da Unochapecó Site: www.unochapeco.edu.br/argos Título

Por uma esquizofrenia produtiva (Da prática à teoria)

Autor

João Cezar de Castro Rocha

Organizador Coleção Coordenador Assistente editorial Assistente de vendas Secretaria Divulgação

Valdir Prigol Grandes Temas – n. 22 Dirceu Luiz Hermes Alexsandro Stumpf Neli Ferrari Marcos Domingos Robal dos Santos Joice Juliana Godoi de Oliveira

Distribuição e vendas

Neli Ferrari Luana Cirelo Luana Paula Biazus

Projeto gráfico e capa

Alexsandro Stumpf

Capa desta edição

Alexsandro Stumpf

Diagramação

Caroline Kirschner Kamila Kirschner

Preparação dos originais

Bárbara Cristina Milioransa Michailoff

Revisão

Bárbara Cristina Milioransa Michailoff Emanuelle Pilger Mittmann Oneida Maria Ragnini Belusso

Finalização editorial Formato Tipologia Papel

Carlos Pace Dori Emanuelle Pilger Mittmann 16 X 23 cm Minion Pro entre 10 e 14 pontos Capa: Supremo 250 g/m2 Miolo: Pólen Soft 80 g/m2

Número de páginas

548

Tiragem

600

Publicação

2015


Este livro estĂĄ Ă venda:

www.unochapeco.edu.br/argos www.travessa.com.br www.livrariacultura.com.br

www.bookpartners.com.br



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