depoimentos
arquitetura
Grandes eventos de Arquitetura Perspetivas Críticas
Luís Santiago Baptista Paula Melâneo
arqa
Foto: Atelier Bow Wow, Cortesia Fondazione La Biennale di Venezia
Qual é hoje o propósito das bienais e trienais e de outros grandes eventos de arquitetura? Que papel deverão ter no futuro?
Aaron Betsky
Curador, Crítico, Diretor Cincinnati Art Museum, Diretor Bienal de Arquitetura de Veneza 2008
Atelier Bow Wow, Furnivehicle, Bienal de Arquitetura Veneza 2008
Foto: Giorgio Zucchiatti, Cortesia Greg Lynn e Fondazione La Biennale di Venezia
Elogio às bienais – As bienais de arte e arquitetura interessam e funcionam. Consequência muitas vezes de gestos extravagantes que só promovem os egos dos envolvidos, na realidade têm utilidade para juntar o trabalho mais experimental em diferentes meios. Dão àquelas imagens, objetos e espaços uma audiência mais vasta e promovem discussão sobre o seu significado. Numa altura em que o mercado retira o significado a tudo, as bienais criam um terreno comum para coisas significantes surgirem. Precisamente porque nada está à venda, pode-se realmente observar os materiais. Como falta o enquadramento institucional de um museu, há muito mais liberdade para criarmos o nosso próprio contexto.
Greg Lynn FORM, Recycled Toy Furniture, Bienal de Arquitetura de Veneza 2008
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arqa novembro|dezembro 2013
As bienais permitem que a obra de arte, no seu sentido mais lato, se torne uma parte ativa das nossas vidas culturais. Há, com certeza, inconvenientes. O primeiro é que, pela sua própria natureza, as bienais têm uma limitação de tempo e de espaço. É preciso uma peregrinação a Veneza, Shenzhen ou onde quer que a próxima bienal tenha lugar. Tudo isso tem um custo, que pode por vezes ser significativo, implicando uma escolha da audiência, bem como a sua pegada de carbono. No entanto é entusiasmante perceber que os aficionados e os estudantes arranjam forma de visitar estes eventos. Veneza pode estar a ser invadida por uma enxurrada de turistas, mas os visitantes das bienais de arte e arquitetura são apenas uma pequena fração do dilúvio anual daquelas multidões na Praça de S. Marco. Acresce ainda o facto de as bienais trazerem pessoas a locais que de outra forma não visitariam (eu nunca tinha estado em Shenzhen antes, fui apenas para a bienal). Nesses lugares, o público acaba por descobrir locais que de outro modo ignoraria: seguindo o exemplo da Bienal de Veneza, que reutilizou a fábrica medieval da Cordoaria do Arsenale, como o seu principal local, muitas bienais agora têm lugar em fábricas ou instalações industriais abandonadas. É deste modo que as bienais também podem impulsionar a reconstrução. Nem todas as bienais nascem da mesma maneira. Não tenho dúvidas de que a mais antiga, a de Veneza, é de longe a mais importante. É lá que se encontram os melhores trabalhos, mesmo que o curador não os reúna, pois muitos países e organizações fazem um esforço para participar naquele que se tornou um importante festival e que acontece por toda a cidade. Outras bienais, trienais e outros eventos, mais ou menos regulares, não podem competir com esta capacidade, mas competem em termos de localização (Istambul), de temática ou de perspicácia dos curadores. Isto significa que o panorama dos festivais (ao contrário de outros festivais de
Numa altura em que o mercado retira o significado a tudo, as bienais criam um terreno comum para coisas significantes surgirem. Precisamente porque nada está à venda, pode-se realmente observar os materiais. Como falta o enquadramento institucional de um museu, há muito mais liberdade para criarmos o nosso próprio contexto. Aaron Betsky
música ou exposições em museus) está sempre em mudança deixando aos visitantes muitas opções de escolha. As bienais tornaram-se um negócio competitivo em termos de atrair notoriedade, fundos e visitantes. Dado o sucesso de tantos eventos deste tipo, pelo menos em termos de atrair atenção, com um investimento relativamente baixo, (o orçamento que geri para a Bienal de Veneza foi de vários milhões de Euros, apesar da enorme infraestrura já existente), penso que o modelo tem futuro. Não me incomoda a situação mais ou menos caótica de eventos a aparecer e a desaparecer e não acho necessária a existência de um órgão regulador internacional na matéria. Acho que os museus deviam adaptar-se e aprender com os sucessos desses eventos. Particularmente nos Estados Unidos, locais como Whitney, em Nova Iorque e Carnegie, em Pitsburgo, já acolhem eventos próprios e pode perceber-se que esta proliferação é uma forma de manter as instituições renovadas e inovadoras. Ao mesmo tempo, estruturas como a Bienal de Veneza, institucionalizaram-se, mantendo uma equipa permanente e muitas regulamentações. No final, bienais, museus, espaços de performance e de outros géneros que nem imaginamos, podem fundir-se. Entretanto, vou continuar a visitar o mais possível de bienais que puder. n Seminário ETH Zürich Poland: After Nature (Out 2013), visita Fábrica“Ursus”, Varsóvia
Philip Ursprung
Estes eventos criam um território neutro, exterritorial para uma competição divertida, espionagem entre colegas e bebidas entre amigos. Tomaram o lugar das Feiras Mundiais. Como são eventos cíclicos, que acontecem de dois em dois, três em três ou quatro ou cinco anos, parecem ser uma ocorrência “natural”, e parecem esperar-nos em cada estação, intemporalmente. Estes eventos nunca são monográficos, mas sempre heterogéneos. Estão destinados a falhar do ponto de vista formal devido à sua heterogeneidade, mas nas suas falhas residem as oportunidades para o futuro sucesso. Há sempre uma nova tentativa, há sempre oportunidade para fazer as coisas de maneira diferente. São experimentais. Estes eventos são atrativos para quem vem do estrangeiro, porque lhes oferecem um ambiente diferente, fora da rotina diária. Os participantes, longe dos escritórios e das famílias, têm mais tempo que o costume para circular e falar. São entusiasmantes para os que vivem no local e que as organizem, porque têm de arrumar a casa e porque têm o seu próprio ambiente circundante espelhado por quem vem de fora. Estes eventos irão aumentar no futuro próximo. Com a explosão da construção a esvanecer em muitas zonas do mundo industrializado, as exposições, os textos, os painéis e utopias ganharão terreno. Os media não podem substituir estes encontros físicos em sítios reais, mas estimulam-nos e propagam-nos. Quanto mais usarmos o skype, mais pessoas e locais queremos conhecer no mundo real. Estes eventos não podem ser totalmente controlados. São o habitat para utopias. n
Fotos: Philip Ursprung
Professor História da Arte e Arquitetura ETH Zürich
Exposição de K. Krakowiak, Pavilhão Polónia, Bienal de Arquitetura de Veneza 2012
Estes eventos nunca são monográficos, mas sempre heterogéneos. Estão destinados a falhar do ponto de vista formal devido à sua heterogeneidade, mas nas suas falhas residem as oportunidades para o futuro sucesso. (...) São experimentais Philip Ursprung novembro|dezembro 2013
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Estamos definitivamente num período de transição, onde a confusão entre os regimes tradicionais e os mais vanguardistas é evidente. Vamos esperar a deriva da cultura arquitetónica para decidir como se deve comunicar ou exibir, ou mesmo refletir sobre as novas ferramentas e suas possibilidades, assumindo, de qualquer modo, a possibilidade de erro. Ariadna Cantis
arqa
Qual é hoje o propósito das bienais e trienais e de outros grandes eventos de arquitetura? Que papel deverão ter no futuro?
Ariadna Cantis
Arquiteta, Curadora Fresh Madrid, Performance Architecture, Fresh Latino
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arqa novembro|dezembro 2013
Fotos: Cortesia Ariadna Cantis
Podemos afirmar que as bienais/trienais de arquitetura têm sido uma “radiografia” da melhor arquitetura de cada país, segundo a visão do seu comissário, à exceção da Bienal de Arquitetura de Veneza onde a visão curatorial marcou o sentido de umas e outras edições, sendo uma referência mundial no campo da arquitetura. Em Espanha é importante destacar que os comissários das Bienais de Arquitetura, tanto Espanhola como Iberoamericana, ou do Pavilhão de Veneza não são nomeados por concurso, interpretando de uma forma muito tendenciosa a seleção, o fio condutor ou o argumento curatorial, não reconhecendo a figura do comissário sem cair uma e outra vez em arquitetos profissionais. A atual Trienal de Arquitetura de Lisboa, na qual fui finalista no concurso internacional de curadores realizado há 3 anos, apresenta uma nova forma de interpretar o panorama tanto nacional como internacional, permitindo trabalhar com liberdade novos formatos e novas temáticas, ampliando e expandindo a arquitetura contemporânea a terrenos antes insuspeitos. Da proposta Close, Closer de Beatrice Galilee destaco, como especialmente interessante, a inclusão de 100 projetos associados, uma ideia baseada na participação e na inclusão mais que na seleção elitista de conceitos e obras que já fazem parte do passado. Se vivemos num período turbulento de grandes mudanças sociais, políticas, económicas e tecnológicas, devemos refletir que a nova arquitetura e as novas cidades não podem mais ser compartilhadas da mesma maneira de há séculos, mas devemos pensar sobre como deve ser feito. Estamos definitivamente num período de transição, onde a confusão entre os regimes tradicionais e os mais vanguardistas é evidente. Vamos esperar a deriva da cultura arquitetónica para decidir como se deve comunicar ou exibir, ou mesmo refletir sobre as novas ferramentas e suas possibilidades, assumindo, de qualquer modo, a possibilidade de erro. n
Performance & Arquitectura, Tabacalera Madrid 2011
Jantar performance conversa no Matadero Madrid, AAIS + Ariadna Cantis
Andrés Jaque
Arquiteto, Office for Political Innovation As sociedades encontram-se numa altura de grande transformação. O papel que a arquitetura como disciplina, os dispositivos materiais e o urbanismo podem ter neste processo é controverso e incerto. Todas estas disputas precisam de emergir. A utilidade das bienais e trienais é dar espaço a essas emergências de modo a que aconteçam nas melhores
Fotos: Miguel de Guzmán
Escaravox, Andrés Jaque Arch. / Office for Political Innovation, Matadero Madrid
As sociedades encontram-se numa altura de grande transformação. O papel que a arquitetura como disciplina, os dispositivos materiais e o urbanismo podem ter neste processo é controverso e incerto. Todas estas disputas precisam de emergir. A utilidade das bienais e trienais é dar espaço a essas emergências de modo a que aconteçam nas melhores condições possíveis. Andrés Jaque Casa Never Never Land, Andrés Jaque Arch. / Office for Political Innovation
condições possíveis. Só para dar uma resposta arriscada mas relevante, sugeriria que a arquitetura necessita de enfrentar nos próximos anos pelo menos 10 desafios importantes. Não estou a dizer de que forma os arquitetos precisam de se relacionar ou posicionar nestes desafios, mas o que a disciplina tem feito nas últimas décadas, tal como o resto da sociedade, é confrontar de forma ativa ou passiva estas realidades: • Assumir a sua constituição política e desenvolver uma forma de lidar com a vertente política na sua responsabilidade disciplinar. • Reconstruir-se no contexto das sensibilidades pós coloniais e subalternas. • Deixar de ter visões modernas e antropocêntricas do seu agenciamento, para passar a ter formas ecossistémicas de considerar a vida quotidiana. • Abandonar as noções heróicas e de autor sobre a ética e passar a noções socialmente distribuídas e orientadas para uma trajetória.
• Abandonar as super estruturas para os princípios precautórios. • Considerar a materialidade com que lida como uma rede de interação, em vez de a considerar objetos. • Reconstruir a forma como relaciona a cultura e a natureza, incorporando debates desenvolvidos no âmbito das ciências experimentais, artes visuais e estudos e ativismo transexual, homossexual e de género. • Reconstruir a sua instalação na cultura do usual assumindo a reflexividade dos dispositivos materiais e das situações. • Desenvolver ferramentas para se deslocar nos complexos e insondáveis ecossistemas contemporâneos sócio culturais como a moda, os fenómenos de fãs ou a pornografia. • Reconstruir materialmente a sua presença indireta nos mundos dos sonhos e desejos. Ao acolher estes desafios de forma a serem encarados de forma inclusiva, as bienais, trienais ou outros eventos podem ter um papel efetivo e produtivo. n
novembro|dezembro 2013
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A questão é que esse discurso se está a tornar, hipocritamente, num novo “sistema” mainstream, guiado por uma “fórmula” organizativa que arrasta consigo uma outra “fauna” de curadores e de criadores, cujo modo de organização e de ação se revela tão “tribal” quanto o das velhas “tribos” culturais, por eles mesmos criticadas. Nuno Grande
arqa
Qual é hoje o propósito das bienais e trienais e de outros grandes eventos de arquitetura? Que papel deverão ter no futuro?
Bart Lootsma
Professor Faculdade de Arquitetura de Innsbruck Não lhe sei mesmo dizer. Para mim, só existem as Bienais de Veneza. As outras só vejo por acaso. A maioria das bienais são importantes, em primeiro lugar, para uma audiência local e para os participantes. Em segundo, podem ser importantes como eventos que testam o apoio político local para instituições duradouras ou para lhes conferir uma influência política. Em geral, têm um papel na rede internacional de indivíduos, na medida em que contam com estes eventos particulares onde se podem encontrar com a sua geração, desde que estes eventos existam. Mas para que se tornem realmente em algo significativo, estes eventos precisam de oferecer uma identidade especial que se prolongue durante um longo período de tempo (um mínimo de 6 a 10 anos). Não é suficiente que se trate de uma bienal. Isso só afirma que o espaço em questão não tem interesse ou dinheiro para fazer algo duradouro e sustentável, mas que só consegue reunir dinheiro e interesse uma vez em cada dois anos. n
Mapa do Programa ARQ.OUT da OASRN
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arqa novembro|dezembro 2013
Nuno Grande
Arquiteto, Professor, Curador, Programador de Arquitetura Porto 2001, Coordenador ARQ.OUT da OASRN Os desígnios políticos e culturais que estão na origem dos grandes eventos de arte e arquitetura – Festivais, Bienais, Trienais – remontam ao século XIX, e são herdeiros das mesmas motivações que nortearam as Grandes Exposições Internacionais de “Artes e Industrias” – noções interligadas pela ideia una de “civilização” –, com as quais, as metrópoles industriais europeias, e, depois, as americanas, passaram a competir entre si. De algum modo, a Bienal de Arte de Veneza nasceu, em 1895, imbuída desse espírito competitivo, o que justificou a construção de diferentes pavilhões nacionais nos Giardini da cidade, representando a “arte oficial” de cada país participante. Já no século XX, e com o advento do Modernismo, de cariz internacionalista, essa competição foi pontualmente substituída pelo desejo de partilha coletiva do “novo”, alimentado pelas vanguardas artísticas. A Bienal de Arte de São Paulo, criada em 1951, simbolizou esse novo espírito, valorizando o artista em detrimento da sua origem “civilizacional”. O mesmo norteou a quinquenal Documenta de Kassel, lançada em 1955, a qual se tornou num desses lugares, cada vez mais raros, onde se procura problematizar, mais do que exaltar, a criação artística contemporânea. Poucas vezes foi possível dizer o mesmo das recentes Bienais de Veneza, quer das edições dedicadas à arte, quer das edições celebrativas da arquitetura. De facto, este evento tornou-se num fenómeno mainstream, onde ficamos sempre com a sensação de que as narrativas, os criadores, as obras, e sobretudo a “fauna” de curadores e visitantes, se repetem, incessantemente, de dois em dois anos, de pavilhão em pavilhão nacional. Este modelo competitivo oitocentista está definitivamente “esgotado”. Como reação a esse cansaço, assiste-se hoje à emergência de novas bienais de arte e arquitetura, em cidades que lutam por um destaque na geopolítica global e cultural – da China ao Médio Oriente; da Europa
Foto:Sérgio Rolando
Laboratório de Curadoria de EXYZT/ConstructLab, Guimarães 2012, curadoria de Gabriela Vaz Pinheiro
do Sul à América Latina –, reivindicado, para si, um novo estatuto discursivo, assente em noções de “irreverência”, de “informalidade”, até de “antissistema”. A questão é que esse discurso se está a tornar, hipocritamente, num novo “sistema” mainstream, guiado por uma “fórmula” organizativa que arrasta consigo uma outra “fauna” de curadores e de criadores, cujo modo de organização e de ação se revela tão “tribal” quanto o das velhas “tribos” culturais, por eles mesmos criticadas. Na minha opinião, esse foi um dos erros fatais da equipa de curadores que conduziu a mais recente Trienal de Arquitectura de Lisboa, e que, em certa medida, ditou o seu insucesso crítico e mediático. Não possuo fórmulas mágicas para resolver o esgotamento deste tipo de eventos, mas, nas minhas responsabilidades culturais na Ordem dos Arquitectos, SRNorte, venho ensaiando uma possível solução: a realização de um evento anual, denominado ARQ.OUT, o qual vem sendo traçado, não pela habitual lógica “top-down” – como os eventos já descritos –, mas por um processo “bottom-up”, isto é, a partir da seleção de propostas apresentadas por diferentes indivíduos e coletivos que, durante o mês de Outubro – Mês da Arquitectura –, organizam “situações” em torno da Cidade e da Arquitectura, nos mais diversos lugares daquela região. O ARQ.OUT, como o próprio nome indica, decorre, eminentemente, “fora” do universo corporativo, sem a imposição de curadores convidados ou de retóricas dirigistas. Creio, sinceramente, que este tipo de eventos, disseminados e participativos, podem apontar saídas interessantes para a atual crise narrativa das grandes bienais. n
Gabriela Vaz-Pinheiro
Artista, Curadora, Programadora de Arte e Arquitetura Guimarães 2012 Presumivelmente, o sistema de bienais e trienais, e não só de arquitetura, serve múltiplas funções desde gerar visibilidade, passando pela oportunidade para discussão crítica, ao exercício de juízo curatorial, até ao networking negocial. É suposto abordarem e debaterem o que de mais atual ocorre na disciplina em que se inscrevem ou no local do mundo onde acontecem, tendo também a missão, em que tocarei mais à frente, de atravessarem a sua condição geográfica. Sabemos que são, por isso, uma das expressões do fenómeno a que se chama globalização, mas temos que reconhecer que na condição de circulação das imagens culturais que faz os modos de produção disciplinares de hoje, elas constituem uma importante plataforma de cruzamento, observação e mesmo de produção para essas disciplinas. No caso específico da arquitetura, sobre que apenas falo por diletância, atualmente, esta função pode mesmo mascarar um embotamento de produção real da disciplina de que inúmeros arquitetos se lamentam. Especificando: podemos afirmar que uma bienal de arte (ao contrário de uma feira que em regra apresenta trabalho já feito para ser transacionado) possa em muitas instâncias gerar oportunidades para os artistas criarem novas obras, instalações ou intervenções sob a alçada do propósito curatorial do evento. Tradicionalmente, estes eventos em arquitetura não mostram obra feita que não seja nas formas de representação
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Tradicionalmente, estes eventos em arquitetura não mostram obra feita que não seja nas formas de representação que a imagem, o desenho, a maquete, o filme, a conversa, permitem. Mas sabemos que estas formas se têm vindo a deixar substituir por ocorrências muito mais próximas do que acontece nas bienais de arte. Gabriela Vaz Pinheiro
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Qual é hoje o propósito das bienais e trienais e de outros grandes eventos de arquitetura? Que papel deverão ter no futuro?
Cartografias, Deniz Depres, Guimarães 2012
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arqa novembro|dezembro 2013
que a imagem, o desenho, a maquete, o filme, a conversa, permitem. Mas sabemos que estas formas se têm vindo a deixar substituir por ocorrências muito mais próximas do que acontece nas bienais de arte: objetos conceptuais gerados para o efeito, ações e intervenções de carácter temporário, performances e manifestações, exposições em que a teatralidade ficciona possibilidades que a arquitetura não consegue materializar no mundo real, (por razões mais ou menos óbvias agudizadas pelos cenários ditos de crise). E isto é, em si mesmo, extraordinário. A representação de um jovem coletivo ou um arquiteto famoso numa trienal permite, no sentido mais óbvio, fazer circular o seu trabalho, torná-lo acessível, produzir manifestações editoriais que lhe darão uma reverberação futura, difundindo-o enquanto conhecimento. A orientação particular do evento, o seu ângulo curatorial expressa (sempre) um dado ponto de vista que permite, com maior ou menor margem de erro, – margem que a eficácia da máquina de comunicação ou simplesmente o poder do curador determinam – tomar o pulso ao que foi, nos anos 80 e 90, correntemente chamado de zeitgeist, isto é, o espírito do tempo. Mas as questões de representação também podem, como muito bem sabemos, possuir propósitos que hoje é costumeiro apelidar “de agenda” porque servem frequentemente para dar visibilidade a um status político vigente. Na verdade, a geografia das bienais diz-nos do clima cultural mundial tanto quanto nos fala a partir de um modelo de posicionamento ocidental. Ou seja, qualquer curador europeu, norte-americano ou australiano, que se preze deverá fazer pelo menos uma bienal num lugar exótico, numa latitude ou longitude que não seja nem setentrional nem ocidental, ou que deva ao mundo ocidental a devida distância que o póscolonialismo estabeleceu. E isto é também extraordinário. É como se a mapeação das bienais e trienais (de arte como de arquitetura) fornecesse evidência de pertença para o anfitrião (o país ou a cidade em questão) e de validação para o convidado (o curador). Pertença a um mundo que desenhou o seu mapa a partir da Europa, mas que na luta por desmontar e redesenhar tal mapa não consegue senão fazer-se constantemente presente. Da mesma forma, isto demonstra a dificuldade na produção espacial em fornecer pontes entre a consciência de geografias (sociais) críticas e o cumprimento da função de perenidade que ainda esperamos da arquitetura. Diria por isso, que o propósito das bienais e trienais do futuro poderá ser de insistir nesta consciência. Permitindo que o tal espírito do tempo inclua refazer o mapa dos modos de produção a partir de outros locais, o que equivale precisamente a dizer a partir de práticas e de olhares multifocais, deixando a possibilidade de, enquanto espectadores, percebermos como qualquer processo de representação deve ser enquadrado na sua limitação intrínseca que é, a saber, aquilo que deixa de fora! Como qualquer bienal ou como qualquer trienal. n
Rosalind Krauss, Sculpture in the Expanded Field
Meet the Curators parte do Fórum Novos Públicos de Close, Closer, 2013
Interessam-me dois modelos que podem andar entre a “Biennale” como espaço para cartografar determinada “extensão do campo” disciplinar, ou como espaço para criar oportunidades de experimentação, digamos ‘atmosférica’, das tendências do momento. Luís Tavares Pereira
Luís Tavares Pereira
Arquiteto, Crítico, Curador Influx/Metaflux, Curador Arquitetura Allgarve Pessoalmente prefiro eventos pequenos onde são possíveis opções mais controladas, onde é possível arriscar mais porque o risco é, de facto, menor, e portanto a liberdade maior. Olho com alguma desconfiança para os grandes eventos porque mais sujeitos a compromissos, nomeadamente com patrocinadores, e por toda a energia que consome ‘à margem’ - não da disciplina, mas em questões burocráticas. Interessam-me dois modelos que podem andar entre a ‘Biennale’ como espaço para cartografar determinada ‘extensão do campo’ disciplinar, ou como espaço para criar oportunidades de experimentação, digamos ‘atmosférica’, das tendências do momento. Espaço para refletir, mapear, identificar, ou espaço para dar liberdade à produção alternativa? A partir do que foi a edição da Trienal de Arquitectura de Lisboa comissariada por Beatrice Galilee, ocorrem-me, por um lado a ideia de ‘campo expandido’ conforme o importante ensaio “Sculpture in the expanded field” de Rosalind Krauss, publicado em 1979, e por outro, a perceção ‘atmosférica’ que resulta da Trienal em si. Enquanto o primeiro procura mapear as práticas experimentais da escultura no final dos anos 60 e início de 70, compondo um geometria de relações e combinações, a última aponta uma direção genérica e monta uma estrutura suporte que permite que as práticas que nele se enquadram, encontrem condições para desenvolverem projetos. Não há, propriamente, uma intenção de mapear, mas de envolver na criação de uma atmosfera de tendência. Mas enquanto uma se enuncia a partir do interior, a outra manifesta-se a partir do exterior.
Em todo o caso o grande evento proporciona um afluxo extraordinário de autores, nacionais ou estrangeiros, que convergem no local do evento mais ou menos em simultâneo, o que por si só, será sempre estimulante quer para quem participa como para quem assiste. Nesse aspeto, assistimos já ao que poderá ser o futuro, com uma participação interativa do público que coloca em questão a hierarquia entre ator e espectador, e, enquanto o próprio sistema se atomiza pela multiplicação do número de atores e redes, restringindo o domínio das figura-estrela. Os eventos competem entre si pelo protagonismo a nível mundial, em que a sua multiplicação e sucessão praticamente desvia a atenção do mundo disciplinar para outras paragens logo na semana a seguir, mas procuram também, porque hoje mais pressionados a garantir a interatividade com o visitante, lidar com o problema da inauguração onde tudo e todos convergem para se esvaziar logo de seguida, prolongando-a no tempo – hoje a semana inaugural – ou, como no caso da Trienal, programando boa parte dos seus projetos expositivos com interações e novidades regulares durante todo o período da sua duração. Há contudo um risco desta atomização se transformar em algo que, sendo potencialmente interessante – um grande evento que é já, não um momento contido no tempo e de grande intensidade, mas a soma de muitos momentos pequenos, ao longo de um tempo dilatado – pode perder a sua identidade e parecer-se de facto, com outros eventos aleatórios e isolados, da mesma escala. De igual modo, as possibilidades de mediação, através dos ‘media’, mas sobretudo de uma conjugação entre uma imprensa cada vez mais online e as redes sociais, colocam, novos desafios à experiência do grande evento, e o que essa grandeza significa de facto, uma vez que a oferta e a procura estão interligadas e a sua contabilidade é razoavelmente indiferente a se é física ou digital. n
novembro|dezembro 2013
arqa 029