Aquilo que eu vou ser é uma mãe extraordinária de ruim

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AQUILO QUE EU VOU SER É UMA MÃE EXTRAORDINÁRIA DE RUIM oFICINA dE eXPRESSÃO dRAMÁTICA 2021 Coimbra

ACTO I CENA 1 – Monólogo de Sara SARA entra em palco muito vagarosamente. Aí se encontra um pequeno baú de verga, duas almofadas abandonadas no chão e uma cadeira. Dirige-se para a cadeira que se encontra no centro de um tapete rectangular. Coloca a cadeira alguns centímetros mais à frente antes de se sentar. Inicia-se um longo período de silêncio. Olha fixamente para o chão, depois mexe no telemóvel para ver se tem mensagens. De quando em vez lança um suspiro. Depois de passar algum tempo a olhar para o ecrá, desliga o telemóvel e lança-o para o chão demonstrando descontentamento. Subitamente escuta-se o choro de uma criança. SARA – Sou uma péssima mãe! É verdade! Sou MESMO uma péssima mãe... Podes chorar para aí à vontade, quero lá saber. Dás-me cabo da paciência. Ser mãe mudou toda a minha vida! Não posso ler pois só logo interrompida pelo teu choro e todos me julgam por eu não querer estar sempre sempre do teu lado. E quando eu digo julgar, é JULGAR mesmo! Ai Sara, não estás a amamentar o menino como deve de ser, ai Sara, tens de ter mais cuidado quando lhe dás o banho, ai Sara, não vais ver o menino que já está a chorar há tanto tempo, ai Sara, ai Sara, ai Sara... AIIIIIIIIIIIIIIIII DIGO EU! Quero lá saber se é melhor fazer assim ou assado, frito ou cozido. O que eu quero

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mesmo é que tu te cales, ... CALA-TE, PARA de chorar de uma vez por todas! CALA-TE... CALA-TE... CALA-teeeeee.... O choro de menino deixa de se escutar e instala-se um silêncio perturbador. Sara deita-se no tapete e vai rodando pelo chão de um lado para o outro como se estivesse a bailar. Enroscase colocando-se em posição fetal e assim permanece por um longo período de tempo. O choro regressa. Sara coloca as almofadas por cima da cabeça para tentar abafar o barulho. SARA – Porque é TÃO DIFÍCIL sair deste lugar de vigia, porquê? Eu nunca fiz questão de ser mãe, nunca fiz... Só quero a minha vida de volta. Isto é tão, tão irritante. É assim como, assim como... é uma rejeição cerebral! Gostava que os meus neurónios conseguissem transformar o miúdo num bebé imaginário, capaz de obedecer a todas as minhas ordens. Passarás a olhar-me medrosamente e sem sorrir, e vais seguir à risca todas as minhas instruções, ouviste. Agora CALA-TE, PARA de chorar de uma vez por todas! CALATE... CALA-TE... CALA-teeeeee....CALA-TE. (Pausa.) Não é possível eu ter um transplante cerebral? Qualquer cérebro daria para curar o meu coração despedaçado. Infelizmente esta espécie de doença mortal já se espalhou para o resto do meu corpo. (Pausa.) mais uma vez o choro de menino deixa de se escutar e instala-se novamente um silêncio perturbador. Sara tira as almofadas da cabeça para ter a certeza que o filho deixou mesmo de chorar. Roda pelo chão na direção da cadeira onde volta a sentar-se. SARA – Cresce em mim este misterioso receio de que nunca mais irás acordar. Porque será que estou sentindo este misterioso receio de que não irás acordar? A doutora disse-me que são medos absolutamente normais, sabes como é. Medos de uma mãe que julga ainda estar vivendo no mesmo sonho mau que se repete igual todas as noites, e do qual ainda não fui capaz de acordar. Receios de já não saber nada de nada. Um medo atroz por julgar ser cada vez mais impossível acordar. Não. NÃO! Ainda não, talvez ainda seja cedo, demasiado cedo para isso acontecer. É muito, muito cedo para isso 3


acontecer, é cedo demais para te falar deste meu sonho. Afinal foi por isso que fui falar com a doutora. Por vezes pergunto-me se esta é uma história verdadeira, se está mesmo a acontecer? ( Sara ri-se, solta uma gargalhada tristonha, e olha fixamente para o teto da sala durante um longo período de tempo. Depois fica cansada de tanto procurar. O choro do menino regressa e Sara começa a soluçar ). SARA – Não, não pode estar a acontecer! Mas será possível que tu não fiques cansado de tanto chorar? EU GRITO, GRiiiiito... mas a minha voz mal se escuta. Devia ser isto que a doutora queria dizer quando afirmou que a maternidade surpreende todas as mulheres. É verdade, não passa um único dia em que eu não me sinta verdadeiramente surpreendida... Não te quero mais ver à minha frente, ENTENDES? Odeio ser MÃE, ENTENDES? Não sei quando foi a última vez que fui capaz de dormir uma noite inteira seguida, não consigo manter o mesmo nível de atenção e de esforço no trabalho e acabei por perder a promoção que tanto desejava. Os meus colegas passaram a olharme como se eu fosse uma extra-terrestre, e SEI LÁ o que é isso de namorar. Mais de metade do meu ordenado some-se em gastos contigo, deixei de ir ao cinema, deixei de ir ao teatro, a um concerto que seja, e estou fartinha de colocar SEMPRE as TUAS necessidades primeiro... estou FARTA, FARTA, ... FARTINHA!!!!! Como é possível eu te amar se ODEIO SER MÃE? Ainda bem que amanhã a Rute chega mais cedo para tomar conta de ti! O teu pai queria tanto ser pai! E agora? Sabes onde é que está o teu pai que queria ser pai? Sabes? Está a gozar a sua boa vida no RAIO QUE O PARTA! E eu para aqui tão cansada de tanto te ouvir chorar. O choro de menino deixa de se escutar. (Pausa). SARA – Quando disse ao teu pai que não queria ser mãe, ele devia ter acreditado em mim...

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ACTO I CENA 2 – Monólogo de Eva

EVA – Olá. O meu nome é Eva e acho que sou uma má pessoa! Acho mesmo que sou a pior, a mais horrorosa de todas as pessoas. Isso nunca vos acontece? Desta vez tive uma sorte tremenda. Do nada surgiu um homem que me ofereceu dinheiro para eu vir aqui falar acerca da minha vida. Há muita gente doida neste mundo, mas eu resolvi aceitar. O velho me disse que era uma “experiência” teatral para um “estudo” que seus alunos estão fazendo. Ele já me pagou, e eu aqui estou. Foi assim quase como uma espécie de salvação. (Pausa - Eva olha para a plateia) É que eu tenho umas contas em atraso e este dinheirinho extra veio mesmo em boa altura. Sou mãe solteira, e as ajudas nunca são demais. Sou má pessoa. Sou má pessoa porque eu sei que sou uma mãe extraordinária de ruim! Eu não queria ser mãe, nunca quis. Jamais me imaginei fazendo esse papel tremendo, o mais difícil de todos. Depois de ser mãe, não dá mais para despir essa farda. É barra PESADA MESMO! E no exato momento em que nasceu Leonor, logo eu achei que não seria capaz de ser uma mãe de verdade. Sim, eu entendi que a única coisa que eu ia conseguir dar para a menina era uma mãe extraordinária de ruim. Nessa altura... Nesse momento... Então... foi tudo de repente... foi tudo muito de repente, tudo muito rápido. Quando a menina nasceu já o meu “cavaleiro” tinha desaparecido. Os seus olhos negros chisparam fogo, e raios luminosos saíram em minha direção quando soube que eu tinha engravidado. E uma voz dentro de mim me disse logo ali para avançar em direção ao mar oceano...( longa pausa ) ... eu ainda avancei em sua direção, com essa ideia nublosa me inundando a alma. Caminhei junto à costa longas horas, longos dias..., longas semanas. A minha nova barriga foi ganhando cada vez mais destaque por 5


debaixo das blusas que eu tanto adorava trajar. (pausa) Todos esses dias andei como se estivesse nadando num vazio, e as marés me encharcavam e puxavam cada vez mais para debaixo de suas ondas. Felizmente a doença-da-morte que se tinha espalhado do meu coração para o resto do corpo abrandou assim que o corpo quente e húmido de Leonor tocou de mansinho em minha pele morena. Jamais alguém antes me tinha assim tocado em toda a minha vida. E com aquele pequeno grande empurrãozinho acordei dessa longa letargia. Ela não se mexeu logo que nasceu, e continuou sem se mexer e sem chorar por um longo período. Será que a mesma doença-da-morte que me afetou durante todos esses meses também se teria espalhado do meu coração para a pequena Leonor? A menina aguardou só mais um momento até lançar um choro bem forte de criança saudável, como me dizendo - Oi mãe... tudo bem? E eu respondi de seguida - Oi menina! – Mas eu bem que sabia que a doença-da-morte, essa arquiteta demoníaca, iria passar a estar sempre presente bem por cima de nossas cabeças. Afinal, por mais que tentemos escapar, nem sempre será possível ficar tudo bem. Sim, aquele instante nunca foi nosso país sonhado, jamais imaginei aquele lugar onde as duas nos encontrámos, finalmente. Para falar a verdade, não tenho bem a certeza se este aqui é o nosso verdadeiro lugar. Essa é a razão primordial para eu me considerar uma mãe extraordinária de ruim! O que terei que fazer, e se ela não acordar nos próximos minutos, e se ela não mais reagir, qual é mesmo o comprimento de sua linha da vida? (Pausa) Eu não acredito, é um milagre. Foi um milagre em que ainda hoje eu mal acredito. Eu me menti para me sentir melhor Afinal de contas, acho que conseguirei mentir assim todos os dias. É isso aí, gente! Essa é a prova inegável, a razão capaz de confirmar porque sou MESMO uma má pessoa! Acho que sou a pior, a mais horrorosa de todas as pessoas. Isso nunca vos acontece? (pausa) Claro que sim! Podem dizer-me que sim? (pausa) Isto também faz parte de vossos sonhos. Talvez essa tal doença-da-morte se tenha espalhado hoje, aqui, neste lugar, para o resto dos nossos corpos através da 6


minha voz que não consigo apagar. Calma, calma minha gente! Muita calma! Eu saio já. Eu saio já para que possam continuar com as vossas vidas. Me desculpem, desculpa meu filho, me desculpe doutora, desculpem ter-vos interrompido por TANTO tempo as vossas belas vidinhas. Mas tenham cuidado, muito CUIDADO! ( longa pausa ) Olha que um destes dias o escorpião vai chegar para vos pegar!

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ACTO I

CENA 3 – Monólogo de MARIA

MARIA – Uma pessoa chega a casa e tem de fazer TUDO! Até parece que sou a empregada dele… Aquele pirralho… não devia existir sequer. Eu, que tinha a vida toda planeada, … ter de ficar agora encarregue de um adolescente. O pai dele nunca está em casa, e eu é que o tenho de o aturar. Porquê? O Artur é que ficou com a guarda do miúdo, mas devido ao seu trabalho, agora tem de estar quase sempre e viajar, e a mim é que saiu a “fava”: Ter de andar a fazer o papel de “mãe”. EU, que já tinha decidido não ser mãe, EU, que nunca gostei de crianças, ter agora de fazer este papel… Sim, é verdade, já estou cansada de repetir constantemente a mesma pergunta ao Artur; “mas porque é que o rapaz não ficou com a mãe?” Sim, é verdade, já estou cansada de repetir constantemente a mesma pergunta ao Artur; “mas porque é que o rapaz não ficou com a mãe?” Sim, é verdade, já estou cansada de escutar constantemente a mesma resposta do Artur; “sabes muito bem que a mãe dele não tem dinheiro nem para conseguir mandar cantar um cego, não tem dinheiro para se conseguir sustentar, quanto mais para criar o Martim…” Odeio isto. Eu que tinha a minha vida toda planeada, …uma lista imensa de países para visitar, mal parava em casa. E que ironia ter sido numa dessas minhas inúmeras viagens que conheci o Artur, este homem que julguei ser o Amor da minha vida. Planeámos mudar-nos para aqui, planeámos casar, e foi isso mesmo que decidimos. Já com tudo praticamente mobilado, já com tudo idealizado e quase em vésperas do casamento, ele chegou a casa e decidiu

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largar aquela BOMBA durante o jantar: - “Sabes uma coisa! O tribunal decidiu a meu favor. O meu filho vai ficar comigo e vem morar connosco”. O meu mundo desabou. Assim, sem que nada o fizesse supor, de um dia para o outro, o meu mundo desabou. O Artur nunca me tinha falado acerca dessa possibilidade, e foi daquela maneira seca e implacável que me deu a novidade. Sim, o meu mundo desabou naquele instante. Uma criança de treze anos, filho de outra mulher, ia passar a viver comigo na mesma casa. Foi um autêntico pesadelo. A minha vida sonhada, transformou-se neste autêntico pesadelo, e agora já me começaram a aparecer rugas mais vincadas, e estes horríveis cabelos brancos! Nunca imaginei isto para a minha vida… por isso tive de ser capaz de lidar com esta situação.

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ACTO I

CENA 4 – Ana e Alex

ALEX – Mãe! Você está ocupada? ANA – Não, porquê? ALEX – Será que nós podemos conversar agora? ANA – Claro! O que é que tens para me dizer? ALEX – O que tenho para de dizer não é nada fácil. Eu nem sei bem como te dizer isto, … como te comunicar esta coisa que eu realmente preciso de te dizer. ANA – Você me está deixando muito preocupada. Fala logo, Alex! Você sabe que eu sou sua mãe e que sempre quero o melhor para você… ALEX – Eu já te queria dar esta novidade há muito tempo, mas não sabia como o fazer, como dizer, não sei como você vai reagir… Mas tenho de ir direto ao assunto…! (pausa) Mãe…eu…eu… ANA – Você o quê? ALEX – Mãe, …você não me criou assim. Eu…NASCI ASSIM! ANA – Como?! O quê? NÃO, NÃO, NÃO… isso é só UMA FASE! ALEX – NÃO! ANA – Eu não posso aceitar ISSO na minha vida!! ALEX – Porque você não me pode aceitar? Eu sempre dei o melhor de mim só para lhe agradar!

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ANA – Você foi criado na igreja, você SABE que isso é errado… Eu te criei sozinha, dando sempre o meu melhor para que nada lhe pudesse faltar. Sempre te dei tudo o que era possível, e até mesmo o que era impossível. Eu sempre lutei para que nada te faltasse, … ALEX – Mas… MÃE! ANA – Eu já lhe disse, se fosse desejar continuar com essa palhaçada… ALEX – …Não, Não é uma “palhaçada”, é o que eu SINTO, e você tem de me respeitar… ANA – JÁ CHEGA!! Eu tenho A CERTEZA que isso é tudo influência dos teus “amigos”. ALEX – Pára de procurar desculpas, mãe! Eu sou assim, eu NASCI assim… entende?! ANA – Eu não posso aceitar ISSO na minha casa… ALEX – Como assim, mãe? ANA – Eu não posso aceitar ISSO na minha casa…Pode começar a arrumar as suas coisas. Vá já arrumar as suas coisas! ALEX – Mas,…MÃ… ANA – AGORA!!!

( LONGA PAUSA )

ANA – Agora todos me dizem que sou uma péssima mãe! Eu não acho, mas é isso que agora todos me dizem. Começaram a fazê-lo desde que expulsei o meu filho de casa. Quer dizer, … eu não podia mais aceitar “aquilo” dentro de minha casa!

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ACTO I

CENA 5 – Monólogo de JENNIFER JENNIFER – A história que vos venho contar é muito dura, é crua e dolorosa. Infelizmente é idêntica a tantas outras histórias verdadeira passadas com milhares de mulheres por esse mundo fora, e que também aqui vos poderia vir contar. Jenny era uma jovem adolescente de dezassete anos residente numa aldeia no interior da província de Moxico, a maior de todas as províncias de Angola. A sua mãe morreu quando Jenny nasceu, por isso ela nunca teve nem sentiu o afeto do amor materno. Ela cresceu viajando pelas aldeias mais recônditas de Moxico acompanhada pelo seu pai Domingos, e por Antónia, a sua anciã, que acabou por ter de cuidar dela desde que nasceu. Domingos trabalhava com mercadorias, que entregava de aldeia em aldeia. Lidava com marfim, cobre, ouro, e outros materiais, mas não trabalhava sozinho. Tinha cinco empregados, cinco colaboradores, cinco homens horríveis: o Ndombaxi, o Dipanda, o Emanuel, o Romualdo e o pior de todos era um monstro mal-encarado a quem costumavam chamar de “Sapo”. Para além destes trabalhadores, Domingos também empregava, de quando em vez, um rapaz jovem, bom, lindo e gentil, muito carinhoso e humilde chamado Kyami, que acabou por se tornar o primeiro grande amor de Jenny. A paixão entre os dois cresceu rapidamente, ao ponto de ser muito difícil escondê-la das pessoas. Os outros cinco homens trabalhadores não apreciavam nada aquela história de amor, e começaram a sentir-se cada vez mais incomodados. Neles aumentava a inveja, o ciúme e a raiva, e os seus olhos já não o conseguiam esconder. Jenny era muito bonita, e possuía um corpo esbelto e elegante para uma rapariga daquela idade. 12


Foi então que numa certa noite Kyami se encheu de coragem e resolveu ter uma conversa mais séria acerca da sua relação com Jenny, acabando por propô-la em casamento. Mas aquela que podia ter sido a noite mais feliz da sua vida, acabou por se transformar no mais terrível dos pesadelos. Os cinco capangas malfeitores apareceram como sombras do meio do mato. Tinham acabado de matar o seu pai a as mãos estavam sujas de sangue. Olharam para Jennifer e para Kyami com as mesmas intenções. O rapaz rapidamente decidiu enfrentá-los, e colocou-se à frente dos cinco homens, dizendo a Jennifer para fugir. Ela assim o fez. Enquanto corria deu conta do barulho da luta em que Kyami acabou por se envolver. Foram breves os instantes que a batalha durou Os assassinos mataram o seu futuro marido e resolveram começar a correr atrás de Jenny que tinha fugido pelo mato. Eles estavam cada vez mais perto, e ela, já em desespero, tentou atirar-se ao rio mas acabou por cair e foi apanhada. Os cinco homens violaram-na, à vez, e deixaram-na ali ficar abandonada à sua triste sorte. Foi só no final da manhã do outro dia que Antónia miraculosamente a conseguiu descobrir e socorrer. Jenny estava como morta, apesar de a terem deixado viver. O corpo estava marcado com vários hematomas, a sua juventude foi roubada, a sua vida estava irremediavelmente transformada, tinha-se perdido de vez. Os meses foram passando com a anciã Antónia a tentar sarar as muitas cicatrizes de Jenny. Ela, contudo, permanecia calada e ausente, sentia-se mais morta do que viva, apesar de continuar esbelta e muito bela. A cada noite que passava o mesmo pesadelo de sempre chegava para a atormentar e enchia o seu coração de dor e de tristeza. Jenny tinha engravidado, fruto das violações. O dia chegou em que deu à luz uma linda menina chamada Carla, mas essa princesa nasceu marcada por esta história trágica, nasceu do ventre de uma

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jovem mulher a quem roubaram para sempre a capacidade de amar. Ela simplesmente era uma mãe que já não sabia amar. Os anos passaram. Jenny e Antónia imigraram até Luena, a capital de Moxico. Foi aí que Jenny encontrou um homem rico com quem se casou e que mais tarde acabou por falecer, deixando-lhe toda a sua fortuna. Ela nunca sentiu Carla como uma filha, olhava para ela e só conseguia recordar aquela noite trágica. Esse sentimento acabou por se tornar de tal maneira insuportável que Jenny abandonou a filha, com apenas cinco anos de idade, numa instituição para deficientes, pensou que se Carla ficasse consigo seria constantemente maltratada, cresceria analfabeta e incapaz de manifestar sentimentos de amor e compaixão. Se ficasse consigo, a sua vida estaria irremediavelmente perdida…

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ACTO I

CENA 6 – Monólogo de Maya

Maya – Minha mãe diz que se cansou do meu pai. Ele ontem fez um barulho tremendo a acelerar a mota na estrada antes de chegar a casa. Depois derrapou e lançou no ar um pó muito escuro e feio que se levantou e tapou a luz do sol. Depois seguiu para um descampado que há lá, depois das árvores, e esta manhã ainda não tinha regressado. Esta já não é a primeira vez que isto acontece. Ontem a minha mãe seguiu-o pelo meio das plantas. Quando regressou trazia os sapatos sujos de lama e os olhos carregados de lágrimas. (pausa) Agora o sol brilha menos lá em casa, percebe? Eu limpei os sapatos da mãe, mas não consegui limpar-lhe as lágrimas. Depois assobiei a nossa canção para a distrair e ao meu irmão, que ainda é muito criança e não desconfia de nada. A mãe depois diz que sofre dores horríveis por dentro, na barriga e na cabeça, e depois diz que no cérebro do pai só existe um gigantesco vazio. Porque que é que aparecem sempre as mesmas fotografias com as mesmas EXATAS histórias das mesmíssimas EXATAS pessoas repetidas até à exaustão? Coisinhas mais fúteis! RENATA ( mãe de Maya ) - Chove como o diabo lá fora, menina. Chove como o diabo... Já devias ter pensado em fazer algo de mais concreto com a tua vida. Devias deixar de pensar tanto nas coisas e começar a fazer algo de mais verdadeiro, algo de mais concreto... MAYA - Eu não acredito! ( agarra a mão direita e mostra à mãe as linhas que tem na palma da sua mão). – Mãe, vê a minha mão? Estás a ver estas Linhas aqui? Estás a ver bem as Linhas da minha mão? Ver, como deve ser, com olhos de ver? A minha Linha da Vida é simplesmente gigantesca, e está muito bem 15


desenhada, com tudo no sítio. Desenhada na minha mão, neste lugar onde disseste ter começado o teu mundo. A Linha da Vida foi desenhada assim por ti, bem longa, exatamente como disseste, para que eu possa ter tempo para concretizar todos os meus sonhos. Canta SONHOS de Tainá Eu não tinha esses olhos Esse desejo de descobrir Parece que não me encaixo Às vezes me acho uma anomalia Para de interromper intensidade Com medo de se arriscar Para de se intristecer pela cidade Com medo de não agradar Ah, parece que o universo é curto de mais Você parece nunca se satisfazer Você existe pra cruzar longas distâncias A vida foi feita pra você Você corre, continua e não se cansa Pois seus sonhos são maiores que você Eu não tinha esses olhos Esse desejo de descobrir Parece que não me encaixo Às vezes me acho uma anomalia Para de te esconder dessa verdade Seja quem ama ser Para de tentar manter felicidade Jogue-o sobre teus erros

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Ah, parece que o universo é curto de mais Você parece nunca se satisfazer Você existe pra cruzar longas distâncias A vida foi feita pra você Você corre, continua e não se cansa Pois seus sonhos são maiores que você (Pois seus sonhos são maiores que você) Pois seus sonhos são maiores que você (Pois seus sonhos são maiores que você)

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