Preâmbulo: PRÉ CENA
A peça tem o seu início com o Toque do Silêncio https://www.youtube.com/watch?v=kcoKg2cbouU&pbjreload=10, tocada com o cuidado de apenas ser visível o instrumento. Esta ação acontece num espaço imaginário onde LOUCURA e AMOR se irão encontrar. AMOR está sentado numa mesa a tocar uma melodia na sua viola. Enquanto vai tocando, LOUCURA entra em cena e aproxima-se dele para dar início a uma conversa: A conversa é realizada com os dois, frente a frente, deambulando pela sala numa espécie de bailado ou dança rodada...
LOUCURA: Desde que o teu Amor cruel envenenou o peito meu no fogo que fulmina, Ardi-me sempre na fúria divina, Meu coração jamais te abandonou. Qualquer tormento, a que ele me obrigou, Qualquer perigo e vindoura ruína, Ou mau presságio que tudo termina, Meu coração jamais se amedrontou. Por mais que tu, Amor meu, me ataques raivoso, Mais me obrigas a ver-te venturoso, Sempre saudável ao vires-me combater: Não é por isso que me favoreces, Tu que até Deuses e homens enfraqueces, Mas por mais forte aos fracos fazes parecer.
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AMOR: -
Vê-se morrer toda coisa animada, Quando do corpo a alma leve parte. Eu sou o corpo, e tu a melhor parte. Onde estás, pois, ó minha Loucura bem-amada? Não fiques assim tão sobressaltada, Para salvar-te depois, seria tarde. Ah, não coloques teu corpo em tal arte: Junta a minha parte em tua metade estimada. Mas vem, Amiga, e sê bem cuidadosa Neste nosso reencontro onde retornas, amorosa, Acompanhando-me, nunca com dureza, Nem com rigor: mas com a graça amigável, Que docemente tem tua beleza, Antes Louca e cruel, agora favorável.
AMOR segue até à mesa para nela se sentar, e LOUCURA fica atrás dele murmurando-lhe aos ouvidos:
LOUCURA: Beija-me ainda, rebeija-me e beija; Dá-me um daqueles teus mais saborosos, Dá-me um daqueles teus mais amorosos, Quatro eu te darei em que a brasa viceja. Reclamas? Mas o teu mal se festeja Com mais dez beijos meus deliciosos. E ao misturar os beijos fervorosos Os dois gozemos o que em nós chameja. Cada um, dupla vida assim terá. Cada um noutro e em si mesmo estará. Permite, Amor meu, que eu pense com Loucura: Estou sempre mal, pois vivo em desalento, E só consigo obter contentamento Fora de mim, ao buscar esta aventura. 2
AMOR:
Não me censures, Loucura, se tanto tenho amado, Ou se senti mil tochas abrasantes, Fadigas mil, mil dores penetrantes Se por chorar vi meu tempo esgotado Ah! Que meu nome não seja acusado Se eu falhei, sofro as penas atuantes Não aguces os teus ferrões acirrantes: Pensa que eu, Amor, quando tiver chegado Sem o ardor de Vulcano recusar Sem a beleza de Adónis simular Te tornarei, talvez, mais amorosa Mesmo com menos do que eu tive então, Será estranha e forte esta nossa paixão E não sejais, portanto desditosa
LOUCURA: Eu vivi, eu morro; no fogo em que me afogo No calor sinto o frio que me perfura; A vida é muito mole, é muito dura Sinto fastios e alegrias logo Jorrando as lágrimas, o riso eu jogo, E com prazer sofro muita amargura; Meu bem se vai, mas eterno perdura; Vicejo assim que me ressaca o fogo. Assim o meu Amor volúvel faz comigo; E quando posso estar mais dolorida, Sem mais pensar me vejo sem castigo Se penso estar feliz e sem perigo, E estar bem no auge da sorte querida Ele me faz novamente Louca e sofrida
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CENA 1 A cena passa-se numa sala de um hospício onde estão uma mesa e quatro cadeiras. LOUCURA dá ordem de entrada, à boca de cena, a cinco personagens, ANA, IDALINA, MIRIAM, RUTE e VERA. ANA e IDALINA estão num momento de lazer entretidas com os seus pensamentos, enquanto VERA varre repetidamente um pequeno canto da sala:
IDALINA: - Ó Ana! Vem à cozinha. O Joãozinho viu a maionese em cima da mesa e teve um pensamento de destruição. Está louco! ANA: - Uma torre, onde um homem comia mamão, foi atingida por uma bomba bem na hora em que eu cortava melancia. IDALINA: ( espantada com a resposta de Ana, torna-se irónica e responde em tom jocoso ) – … e o tsunami entrou pelo arranha-céus adentro e destruiu a plantação de ananases e bananas… ANA: - Eu estava sentada na minha poltrona a comer morangos enquanto imaginava o próximo terramoto. IDALINA: - Claro! E depois do tornado o apocalipse da cenoura chegou à nossa estátua. ANA: - Eu estava a comer um brigadeiro quando tive a ideia de construir esta cadeira. IDALINA: - ( senta-se na cadeira ) – Por fim, a muralha de goiaba e abacaxi foi destruída e deu-se o BIG BANG! ANA: - ( levanta-se, segue até ao meio do espaço da cena e exclama ): Um ser demolidor comeu uma jabuticaba e fazia um doce de abacate enquanto um furacão se formava. ( rodopia duas vezes antes de cair no chão onde fica quieta sem se mover ) IDALINA: - ( deita as mãos à cabeça, olhando para esta cena trágica que acaba de acontecer )
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Entram RUTE e MIRIAM, vindas de fora do salão, aos berros, numa grande discussão: RUTE: - NÃO! NÃO TENS RAZÃO NENHUMA! Estou farta de te dizer que o teu marido não presta, estou fartinha de te dizer. Vou ter de te abrir a cabeça para nela te enfiar esta evidência. Só mesmo tu é que não percebes. O teu marido É UMA BESTA, UMA VERDADEIRA BESTA QUADRADA! O TEU HOMEM NÃO VALE NADA! E está louco, ele é que está louco, bem mais louco do que nós! MIRIAM: - O MEU JOÃOZINHO AMA-ME! Tu não entendes, não podes perceber. Quem nunca amou assim, como nós nos amamos, não pode criticar. ÉS UMA INVEJOSA, UMA AMIGA A SÉRIO JAMAIS TERIA A CORAGEM DE DIZER AS COISAS QUE TU ME DIZES! ANA: - ( deitada no meio do espaço da cena, começa a cantar, SEMPRE, sem nunca parar, rodopiando vagarosamente ): - Um ser demolidor comeu uma jabuticaba e fazia um doce de abacate enquanto um furacão se formava. Um ser demolidor comeu uma jabuticaba e fazia um doce de abacate enquanto um furacão se formava… IDALINA: – Ela ficou assim depois do almoço. Deve ter sido qualquer coisa que comeu, só pode! Em bem lhe disse que a salada sabia mal, e o arroz também não estava lá grande coisa, e o peixe tinha um cheiro esquisito, cheirava a velho. Resolvi fazer uma maionese para espantar o cheiro e aquele sabor… e foi então que o teu marido entrou na cozinha, completamente alucinado, e começou a destruir tudo o que encontrou pela frente. A Rute tem razão, o teu marido está cada vez mais parvo, e está a ficar muito perigoso. A minha plantação de ananases e bananas… ANA: - ( deitada no meio do espaço da cena, continua a cantar, rodopiando vagarosamente ): - Um ser demolidor comeu uma jabuticaba e fazia um doce de abacate enquanto um furacão se formava. Um ser demolidor comeu uma jabuticaba e fazia um doce de abacate enquanto um furacão se formava… MIRIAM: - O MEU JOÃOZINHO AMA-ME! Vocês não percebem nada do nosso amor. SÃO INVEJOSAS, SÃO CRUÉIS, SÃO…! 5
ANA: - ( senta-se no meio do espaço da cena. Fecha os olhos, tapa os ouvidos e começa a gritar, assustando toda a gente ): - UM SER DEMOLIDOR COMEU UMA JABUTICABA E FAZIA DOCE DE ABACATE ENQUANTO UM FURACÃO SE FORMAVA. Eu estava sentada na minha poltrona comendo morangos enquanto imaginava o próximo terramoto. Enquanto imaginava o teu marido a voltar para mim, a voltar para me espancar, para me ameaçar de morte caso eu não lhe desse tudo o que ele me pedia… O TEU JOÃOZINHO PEDIA-ME… IDALINA: - ( interrompe de imediato a fala de ANA, abraça-a e ajeita-lhe o cabelo com uma das mãos ) … e o tsunami entrou pelo arranha-céus adentro e destruiu a plantação de ananases e bananas… Por fim, a muralha de goiaba e abacaxi foi destruída e deu-se o BIG BANG! ANA: - ( levanta-se, vai ter com MIRIAM, olhos nos olhos ): - O João não é gente, não é, não é , NÃO É… É um ser demolidor que comeu jabuticaba e fazia um doce de abacate enquanto um furacão se formava, enquanto um furacão se formava, enquanto… enquanto, enquanto… ( rodopia duas vezes antes de cair no chão onde fica quieta sem se mover ) IDALINA: - ( coloca a cabeça de ANA no seu ombro e começa a cantar uma canção de embalar ) - Ó papão mau vai-te embora - lá de cima do telhado - Deixa dormir a menina - um soninho descansado - Deixa de ficar à espreita - com vontade de assombrar - as que vivem nesta terra – com esse medo de amar. As quatro mulheres, ANA, IDALINA, MIRIAM e RUTE, avançam para a mesa retangular que se encontra na sala. Sentam-se, voltadas de costas umas para as outras, cada uma num dos lados da mesa, viradas para fora. Fixam um ponto no infinito enquanto se maquiam. Simulam gestos de higiene matinal, lavam os dentes, escovam os cabelos, … ANA: -Quando eu era bem pequeninha, lembro-me que a minha mãe costumava levar-me a uma praia de areia branca, bem cedinho pela manhã, muito antes do dia acordar. Aí ficámos sentadas, olhando o horizonte, até acontecer aquele momento lindo em que o sol aparecia para nos saudar. O céu não era azul, mas era azul. O céu era rosado, mas não era rosado, o mar tinha as mesmas cores gémeas do céu, mas 6
não era céu. A minha mãe era linda, era a mulher mais linda do mundo, a mais linda e inteligente… Gosto de recordar a sua voz e o seu jeito de caminhar pela areia ainda antes do dia se iluminar. Gosto dessa memória de quando eu era bem pequenininha… mas agora não consigo mais escutar a minha mãe, NÃO CONSIGO! Agora só consigo enxergar João voltando para mim, correndo para mim, voltando para me espancar, para me ameaçar de morte, para me ameaçar… IDALINA: - Quem era a mais bela das meninas? A minha menina era a mais bela, e nunca cresceu, não cresceu. Eu não deixei que ela crescesse porque tinha de ficar para sempre pequenina. A minha Sofia era a mais bela das meninas. A doutora não me deixa ter fotografias, a doutora não deixa porque é uma tonta, uma tonta má e invejosa. Ela não quer que eu vos mostre retratos da minha Sofia, tão pequenina que ela era, cabia inteirinha na palma da minha mão. MIRIAM: - O meu Joãozinho AMA-ME! Vocês sabem lá o que é o verdadeiro amor! Estão a anos-luz dessa capacidade de compreensão. É por esse motivo que inventam mentiras a nosso respeito. Não percebem, não nos entendem, e essa é a razão da vossa maledicência. Pois deixem que vos diga que a vida normal é um tédio insuportável que só se tolera através da descoberta do verdadeiro Amor. RUTE: - Que eu saiba o amor não causa dor! Que eu saiba o amor não confunde! Que eu saiba o amor não pune! Estou bem para lá de farta de tanto te dizer que o teu marido NÃO PRESTA! Mas é que não presta MESMO! Farta, estou fartinha de to dizer. É por causa dele que estás aqui, mas tu continuas a não admitir o óbvio. Ele é um louco perigoso, Miriam, bem mais perigoso do que tu imaginas. Devias ter desconfiado logo daquela primeira vez, mas foste demasiado ingénua e bondosa. Querias acreditar no teu conto de fadas. ANA: - Era uma vez um lindo sapinho e um terrível escorpião. MIRIAM e RUTE transformam-se em sapo e em escorpião, descrevendo por mímica a fábula que Ana vai contando ANA: - Os dois se encontraram junto a um ribeiro de águas revoltas, e o escorpião fez um pedido: “Sapo, ó sapinho. Estás a escutar? Será que me podes levar até ao outro lado deste riacho tão largo e perigoso?” – E o 7
sapo respondeu, “Por acaso pensas que eu sou tolo, é? Tu vais me picar, eu fico paralisado, aí eu afundo e será o meu fim.” – E o escorpião respondeu – “O quê? Nada disso, isso é uma grande tolice. Se eu te picasse, ambos nos afundaríamos. Isso também seria o meu fim.” – O sapo, confiando na lógica do terrível animal, acedeu ao pedido. O escorpião colocou-se nas costas do sapo, que nadou na direção da outra margem. A meio da viagem, o escorpião cravou o seu ferrão no sapo. Atingido pelo veneno, e já começando a se afogar, o sapo perguntou – “Porquê, porquê? PORQUÊ?” – E o escorpião respondeu – “Porque eu sou escorpião, e esta é a minha natureza!” RUTE e MIRIAM rodopiam, abraçadas uma na outra, no meio do chão do salão, até que as duas ficam paradas, como mortas, de olhos fechados e de mãos dadas. IDALINA: - (salta da mesa, coloca as mãos na boca, demonstrando um espanto enorme, e aproxima-se do corpo de MIRIAM. Afaga-lhe o cabelo) – Quem é a mais bela das meninas? Esta menina é a mais bela, e nunca cresceu, nunca cresceu. Não deixei que ela crescesse porque tinha de ficar para sempre pequenina (aproxima-se do corpo de RUTE. Afaga-lhe o cabelo) Quem é a mais bela das meninas? Esta menina é a mais bela, e nunca cresceu, nunca cresceu. Não deixei que ela crescesse porque tinha de ficar para sempre pequenina. A minha Sofia era a mais bela das meninas. (Afaga o cabelo de RUTE, faz-lhe carinhos, beija-a no rosto e começa a apertar-lhe o pescoço, ao de leve, muito devagarinho, e depois começa a estrangulá-la ) RUTE: - ( tosse, muito aflita, começa a esbracejar e tenta salvar-se daquela situação. Depois de algumas tentativas, consegue soltar-se, com dificuldade, dos braços fortes de IDALINA ) – Outra vez, Idalina! Outra vez?! Tens de ter cuidado, tens de fazer um esforço para te controlares. Olha que estamos todas no mesmo barco, Idalina. Não te esqueças que estamos todas no mesmo barco… ANA: - ( Salta para cima da mesa ) Olhem! O escorpião matou o sapo, o escorpião acabou de vez com o nosso pobre e simpático sapinho( salta para o chão e vai tentar reanimar MIRIAM ) OLHEM! Gente, acudam, o sapo ainda respira, ajudem a reanimá-lo! DEPRESSA GENTE, antes que seja tarde demais. ( ANA começa a fazer manobras para tentar 8
reanimar MIRIAM enquanto vai repetindo ) O ser demolidor comeu jabuticaba e fazia um doce de abacate enquanto um furacão se formava… O ser demolidor comeu jabuticaba e fazia um doce de abacate… O ser demolidor comeu jabuticaba… O ser demolidor, o ser demolidor, o ser demolidor. IDALINA fica apavorada e corre a esconder-se debaixo da mesa. Encolhe-se o mais possível e fica virada de costas para a ação, a tremer muito e a colocar as mãos nos ouvidos para não escutar. RUTE tenta ajudar ANA a salvar a vida de MIRIAM RUTE: - Não sei o que te deu, não sei como é que conseguiste, mas essa tua história teve o condão de me transformar neste monstro que preferia não ter tido de representar. Chega-te para lá, olha que fui eu quem a picou. Agora tenho de lhe fazer respiração boca a boca antes que a alma dela desapareça de vez. IDALINA: - (vai repetindo as frases sem parar, em tom baixo e monocórdico) - Quem era a mais bela das meninas? A minha menina era a mais bela, e nunca cresceu, não cresceu. Eu não deixei que ela crescesse porque tinha de ficar para sempre pequenina. MIRIAM lança um longo e sonoro suspiro no exato instante em que RUTE tenta salvá-la com respiração boca a boca, MIRIAM: - (abraçando-se a RUTE) João! És tu, meu amor? És mesmo tu? Eu sabia, eu sabia que era tudo mentira. Tu amas-me, meu querido, eu sei o quanto me amas! Tudo o que fizeste foi apenas por amor, eu sei que tudo o que me fizeste, foi apenas por amor. ANA – Esse aí não é o João, Miriam. Esse aí que tu abraças é o escorpião que tentou matar-te. Será que não consegues ver a diferença? Será que tu não consegues entender que um e o outro são a mesma pessoa? Como é que podes, como é que tu podes ser assim tão cega mulher? Esse aí é o ser demolidor… RUTE – Sou só eu, Miriam, apenas eu, a tua Rute. Olha bem para mim, acalma-te. Não ligues ao que ela está a dizer, vá lá. Sabes bem como ela é, e sabes o que ela é capaz de nos fazer. Concentra-te. Olha para mim, Miriam, olha-me nos olhos. Sou eu, apenas eu, a tua Rute. 9
IDALINA: - ( sai de baixo da mesa, aproxima-se das outras mulheres e começa a cantar, andando e dançando ao redor delas ) - Ó papão mau vai-te embora - lá de cima do telhado - Deixa dormir as meninas - um soninho descansado - Deixa de ficar à espreita - com vontade de assombrar - as que vivem nesta terra – com este medo de amar. VERA, influenciada por IDALINA, começa a dançar uma valsa com a vassoura. As outras doentes acalmam-se com a balada cantada por IDALINA, levantam-se e cada uma inicia um bailado, uma coreografia, transformando momentaneamente a ala hospitalar num pequeno salão de baile. IDALINA, MIRIAM, ANA e RUTE: - Ó papão mau vai-te embora - lá de cima do telhado - Deixa dormir as meninas - um soninho descansado Deixa de ficar à espreita - com vontade de assombrar - as que vivem nesta terra – com este medo de amar. IDALINA, MIRIAM, ANA e RUTE deitam-se, à vez, de costas no chão, fixando o teto da sala, em cruz, com as cabeças muito próximas, sempre a cantar. VERA continua a dançar agarrada à vassoura até que elas param de cantar. Regressa ao seu canto predileto que recomeça a varrer. RUTE: - Não sei por que é tão difícil deixar de ter medo de amar. Vocês sabem por que é difícil deixar de ter medo de amar? Eu tenho medo de amar, tenho tanto, tanto medo. Só não tenho medo de vos amar, mas tenho medo de amar todos os outros, os outros que não vocês. Eu só não tenho medo de vos amar… Amo-vos tanto, suas tontas! Vocês sabem lá o quanto eu vos amo. ANA: - Então não tens medo de amar. Só tem medo de amar quem tem medo da dor. Eu tenho medo de amar porque tenho medo da dor que o amor provoca. Viste o que aconteceu com Julieta, viste? Coitado de Romeu, coitada de Julieta. O que foi que eles fizeram para merecer aquele fim tão triste? Juntos na morte por amor. Essa é a mais triste de todas as histórias de amor, essa é a única verdade que existe acerca do amor eterno. A única, … é só ler para entender, AMOR rima com DOR, com HORROR, com PAVOR. Shakespeare escreveu tudo o que havia para escrever acerca do Amor. Shakespeare deve ter sido mulher e não 10
um homem. Eu acredito que Shakespeare era Julieta procurando o seu Romeu, e tudo acabou de maneira errada para ela… Tudo, TUDO, TUDO! O amor terreno acabou em forma de um erro, e ela escreveu aquela obra gigantesca como um maravilhoso ato de Amor. IDALINA: - Eu amei a mais bela das meninas, a minha menina, a minha Sofia, minha querida, meu Amor. Era a mais bela, e nunca cresceu, nunca cresceu. Não deixei que ela crescesse porque tinha de ficar para sempre pequenina. Amei demais a minha Sofia, a mais bela das meninas… Tive medo de deixar de amar se ela crescesse, por isso não quis que ela crescesse, não podia acontecer. Quem iria cuidar dela, quem a poderia amar assim tanto como eu a amava? QUEM? QUEM? QUEM? MIRIAM: - Mataste a tua menina? IDALINA – Como? MIRIAM: - Perguntei-te se mataste a tua menina? IDALINA – Como te atreves? E tu? Mataste o teu João? Foste tu que mataste as amantes do teu Joãozinho? RUTE: - Não sei por que é tão difícil deixar de ter medo de amar. Vocês sabem por que é difícil deixar de ter medo de amar? Eu tenho medo de amar, tenho tanto, tanto medo. E começo a ter medo das vossas perguntas, e das vossas confissões… Talvez fosse boa ideia irmos jogar um jogo de cartas… VERA: - TRATOR! TRATOR TRATOR TRATOR TRATOR…. VRUMMMM VRUMMM VRUMMM VRUMMMMM TRATOR TRATOR TRATOR TRATOR…VRUMM VRUMMMMM (começa a avançar pela sala, com as mãos a simular um volante e a vassoura entre as pernas, como se fosse um trator de faz de conta) TRATOR! TRATOR TRATOR TRATOR TRATOR…. VRUMMMM VRUMMM VRUMMM VRUMMMMM TRATOR TRATOR TRATOR TRATOR…VRUMM VRUMMMMM (rodopia à volta das outra quatro companheiras que entretanto se sentaram a observá-la, visivelmente espantadas,)
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VERA – ( para em frente de ANA e começa a repetir a mesma palavra, vezes sem conta) –TRATOR, TRATOR, TRATOR; TRATOR, TRATOR, TRATOR… ANA - (abraça VERA com grande emoção, quase a chorar) – SIM, SIM, SIM! Minha querida! TRATOR! TRATOR, TRATOR, claro que sim, TRATOR também rima com AMOR. (beija VERA com grande emoção, quase a chorar) É um milagre! Como foi isto acontecer, minha gente, UM MILAGRE DE VERDADE! Há quanto tempo tu não dizias uma palavra, minha querida, há quanto tempo. IDALINA levanta-se e abraça VERA, visivelmente feliz. TODAS: - TRATOR, TRATOR, TRATOR, TRATOR, TRATOR… VERA: - (afast a companheira com alguma rudeza, e avança pela sala, com as mãos a simular um volante e a vassoura entre as pernas, como se fosse um trator de faz de conta) TRATOR! TRATOR TRATOR TRATOR TRATOR… (regressa ao seu canto favorito e recomeça a varrer) IDALINA – Foi sol de pouca dura. Confesso que já tinha saudades de escutar a voz da Vera. Muitas saudades, mesmo. É tão bonita, tão melodiosa, tão carregada de sentimento. O que será que lhe aconteceu para ela ter ficado assim neste estado? RUTE: - Acho que ela era professora. Pobre coitada. Pelo menos acho que foi isso que ouvi dizer àquela enfermeira que a trouxe para cá. Já não se lembram? MIRIAM: - Não, não me lembro nada disso… ANA: - Nem eu. Não me recordo. Tens a certeza, Rute? Professora? Tenho ideia que alguém mencionou que VERA é psicóloga. Ela deve ter escutado demasiados problemas aos seus doentes, a quem dedicou toda a sua vida. IDALINA: - Amou demais, só pode! Só fica assim quem ama demais. Escutem o que vos digo. Quem não ama, não endoidece, quem nunca amou evitou traumas, doenças e fobias, essa é que é essa. Olhem bem para ela, suas invejosas. A Vera é linda, é lindíssima. É a mais bonita de
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todas. Uma mulher assim, como ela, deve ter amado demais. Escutem bem aquilo que vos digo. MIRIAM: E desde quando amar demais faz mal a alguém. Tu é que és invejosa. O MEU JOÃOZINHO AMA-ME! Vocês não percebem nada do nosso amor. SÃO INVEJOSAS, SÃO CRUÉIS, SÃO…! ANA: - ( senta-se, de novo, no meio do espaço da cena. Fecha os olhos, tapa os ouvidos e começa a gritar, assustando toda a gente ): - UM SER DEMOLIDOR COMEU UMA JABUTICABA E FAZIA DOCE DE ABACATE ENQUANTO UM FURACÃO SE FORMAVA. Um ser demolidor comeu uma jabuticaba e fazia doce de abacate enquanto um furacão se formava. RUTE: - OK! Ok, ANA, tens razão, tens razão, desculpa. A IDALINA não sabe o que diz, a IDALINA, por vezes, esquece o lugar onde está e as coisas que diz. A IDALINA gosta de fazer de conta que não está onde está. A IDALINA gosta de fazer de conta que escuta vozes e que vê pessoas imaginárias, como tu, e eu, e a Miriam e a Vera. A IDALINA acha que foi mãe, ela acha, mas eu acho que não, que são apenas as vozes da IDALINA a tomar conta da vida dela, mais uma vez. Vá lá, acalma-te. Anda, vem comigo, vamos as duas jogar às cartas. MIRIAM: - Também posso jogar convosco? RUTE: - Se a ANA não se importar. ANA: - Ser ou não ser, eis a questão… RUTE: - Ser ou não ser? VERA – Ser ou não ser, eis a questão. O que é mais nobre? Sofrer na alma As flechas da fortuna ultrajante Ou pegar em armas contra um mar de dores Pondo-lhes um fim? Morrer, dormir Nada mais; e por via do sono pôr ponto final Aos males do coração e aos mil acidentes naturais De que a carne é herdeira, num desenlace Devotadamente desejado. Morrer! Dormir; dormir 13
Dormir, sonhar talvez: mas aqui está o ponto de interrogação; Porque no sono da morte, que sonhos podem assaltar-nos Uma vez fora da confusão da vida? Será mais nobre em nosso espírito sofrer pedras e flechas com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja, ou insurgir-nos contra um mar de provocações e em luta pôr-lhes fim? Morrer.. dormir… É isso que nos obriga a refletir: é esse respeito Que nos faz suportar por tanto tempo uma vida de agruras. Pois quem suportaria as chicotadas e o escárnio do tempo As injustiças do opressor, as afrontas dos orgulhosos, A tortura do amor desprezado, as demoras da lei, A insolência do oficial e os pontapés Que o paciente mérito recebe do incompetente Quando o próprio poderia gozar da quietude Dada pela ponta de um punhal? Quem tais fardos suportaria Preferindo gemer e suar sob o peso de uma vida fatigante A não pelo medo de algo depois da morte Esse país desconhecido de cujos campos Nenhum viajante retornou, e que nos baralha a vontade E nos faz suportar os males que temos Em vez de voar para o que não conhecemos? Assim a consciência nos faz a todos cobardes E assim as cores nascentes da resolução Empalidecem perante o frouxo clarão do pensamento E os planos de grande alcance e atualidade Por via desta perspectiva mudam de sentido E saem do reino da ação.
RUTE, VERA, MIRIAM e ANA preparam-se para dormir a sesta, enquanto IDALINA apaga as luzes do salão. Deitam-se no chão do salão, anichando-se e colocando as cabeças nas almofadas.
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CENA 2 - O sonho de IDALINA A cena tem passa-se no salão, agora sem luz, durante a sesta. RUTE, VERA, MIRIAM, ANA e IDALINA estão deitadas, a dormir. LOUCURA e AMOR aparecem no escuro, tocam levemente nas cabeças de cada uma delas para que todas passem a sonhar o mesmo sonho. LOUCURA vai buscar SOFIA detrás do palco e todas vão começar a partilhar e a viver o mesmo sonho. SOFIA canta YOU´LL BE BACK (do musical Hamilton). Durante a canção, RUTE, VERA, MIRIAM, ANA e IDALINA acordam devagar e começam a dançar por todo o espaço do salão. AMOR e LOUCURA aproveitam o momento para, também eles, interagirem naquele momento de lazer. SOFIA: - Everybody! (cantando) ZÉ, IDALINA, RUTE, ANA e MIRIAM: - (cantando) Da da da dat da dat da da da da ya da Da da dat dat da ya da! Da da da dat da dat da da da da ya da Da da dat dat da... AMOR e LOUCURA abandonam a sala sorrateiramente IDALINA abraça SOFIA e puxa-a bem para dentro da sala. As outras estão confusas com a situação. MIRIAM: - O que é que se está a passar aqui, IDALINA? Quem é esta? RUTE: (levanta os olhos para Miriam e encolhe os ombros) – Esta é a, esta é a,...... É, eu acho que estamos todas a panicar. MIRIAM: - E TU? Porque estás a olhar para mim em vez de lhe perguntar? RUTE: - Eu cá não me intrometia na situação. Já tivemos gritaria suficiente hoje. ANA: - O que é que se passa IDALINA? Afinal, quem é essa menina?
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RUTE: - Sim, nós queremos saber quem ela é? Tu não nos disseste nada, IDALINA, desta vez não nos avisaste. Desta vez não nos disseste que ias partilhar o teu sonho connosco. VERA: (abre os olhos e interrompe a conversa ao mandar uma risada aguda, sentando-se à chinesa e começando a baloiçar no chão. Encolhe os ombros e recomeça a cantar a parte final da canção) Da da da dat da dat da da da da ya da Da da dat dat da ya da! Da da da dat da dat da da da da ya da Da da dat dat da... SOFIA:– Que querida. Ela é mesmo querida. Canta com a mesma inocência de uma criança de três anos. RUTE: - Não… Ela estava bem antes de tu chegares. Estava bem, dentro dos possíveis... VERA: (ri-se mais uma vez, levanta-se e atira os braços ao ar) – Vamos cantar! Eu quero cantar… IDALINA: - (ri-se, visivelmente feliz) – Vá lá. Vá lá, meninas, tenham calma. Mas será possível que ainda não tenham percebido quem ela é? ANA: - Eu JÁ sei quem ela é, IDALINA. É mais uma das tuas estranhas personagens. Ela é igual a todas nós. Como é mesmo o seu nome, menina? RUTE e MIRIAM aproximam-se de IDALINA e de SOFIA, com um ar intrigado. SOFIA: (rindo alegremente) – Chamo-me SOFIA e sou cantora. Sou a filha perdida de IDALINA, sou a sua menina cantora. IDALINA: - O meu sonho trouxe a minha menina de volta. Ela canta tão bem, vocês não acham que ela canta maravilhosamente? Que bom, que grande surpresa. O meu sonho trouxe a minha menina de volta. Ela devia estar sempre perto de nós! VERA: (lança as mãos ao ar) – ELA SÓ NOS VEM VISITAR! Ela vem visitar-nos porque nos ama. Ela pode ensinar-nos a cantar. Pode 16
ensinar-nos a cantar, mas não deve ficar aqui. Não queiras que ela fique aqui connosco IDALINA, isso não seria correto, isso não pode acontecer. ANA: (eleva a voz ligeiramente e senta-se no chão com os joelhos ao peito) – Um ser demolidor comeu uma jabuticaba e fazia um doce de abacate enquanto um furacão se formava. Um ser demolidor comeu uma jabuticaba e fazia um doce de abacate enquanto um furacão se formava… RUTE: (falando para si própria) - E lá está ela outra vez com a conversa do ser demolidor. É que já não dá para perceber, não dá. O meu Joãozinho isto, o meu Joãozinho aquilo... Calada eras poeta, mulher. SOFIA e IDALINA apercebem-se do estado de ANA e vão ter com ela IDALINA: - Não digas isso RUTE (abraça ANA e interrompe a sua fala) …e o tsunami entrou pelo arranha-céus adentro e destruiu a plantação de ananases e bananas… Por fim, a muralha de goiaba e abacaxi foi destruída e deu-se o BIG BANG! MIRIAM: (dançando pelo salão) – O meu Joãozinho foi tão querido e gentil. Trouxe-me uma flor… (Pega numa flor que tem presa no cabelo e cheira-a) RUTE: É que és mesmo cegueta… (vai ter com MIRIAM e tira-lhe a flor da mão) Mas tu não vês que isto é uma das flores do jardim? Deves ter sido tu que a colheste no pátio antes de entrares só para fazeres boa figura. ANA: (levanta-se e arranca a flor das mãos de Rute, atirando-a para o chão) –SÓ TU É QUE AINDA NÃO PERCEBESTE O QUE ELE TE FEZ, o que ele nos fez! RUTE: Exato! UMA BESTA, eu já te disse, ELE É UMA BESTA, UMA BESTA QUADRADA! MIRIAM corre para fora do salão a chorar. RUTE sai e vai atrás dela. Ana ajoelha-se ao pé da flor e pega nela.
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IDALINA: (vira-se para falar com a plateia) – Eu não disse? Eu não vos disse que o peixe estava estragado? Só pode ter sido disso… Deu-lhes a volta ao estômago e agora estão todas doidas. VERA levanta-se, em silêncio. Começa a procurar a esfregona que não consegue encontrar. Avança por entre as cadeiras da plateia, espreita por debaixo delas e depois pára no meio do espaço da cena a olhar de frente para os espetadores. Tenta encontrar quem lhe roubou a esfregona... SOFIA: (levanta-se e aproxima-se de VERA) – Quem és tu? O que fazes aqui? Porque foste convocada para o sonho de minha mãe? VERA: - N-não… (afasta-se de SOFIA). Eu tenho de encontrar a minha esfregona. IDALINA: (aproxima-se de SOFIA) – Tu não sabes quem ela é, rapariga? Será possível que não saibas quem ela é? SOFIA: – Não, não sei quem ela é, mãe. Mas afinal de contas, quem és tu e o que fazes aqui? Porque foste convocada para o sonho de minha mãe? VERA: (faz de conta que varre o chão com uma vassoura imaginária)-O meu nome é VERA. Chamo-me VERA... ANA: (levanta-se, olha para VERA, caminha na sua direção e pergunta) – Sim, é verdade! Porque razão foste convocada para o sonho de IDALINA? VERA: (repara em ANA) – E tu? A quem devemos a tua presença aqui, ANA? ANA: A NINGUÉM! Deixa para lá, não aconteceu nada, ... não foi nada de importante…nada me aconteceu. VERA, inquietada com a situação, aproxima-se de ANA e pousa a sua mão no ombro dela. ANA: (grita assustada e salta) – NÃO ME TOQUES! Eu não sou a sua esfregona!
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VERA: Mas eu não vou fazer nada de mal. (Tenta aproximar-se mais uma vez) ANA: - ( coloca as mãos nos ouvidos ) Um ser demolidor comeu uma jabuticaba e fazia um doce de abacate enquanto um furacão se formava. Um ser demolidor comeu uma jabuticaba e fazia um doce de abacate enquanto um furacão se formava… SOFIA: Isto não faz sentido nenhum… (Olha para VERA e IDALINA enquanto tenta abraçar ANA) O que é que ela tem? Porque é que ninguém a ajuda? IDALINA: (ironiza) – Ela pensa que não tem salvação… A ANA acha que nenhuma de nós se conseguirá curar, e chegou mesmo a dizer-nos que no mundo inteiro já ninguém “pensa direito”. É assim que ela gosta de nos dizer. “No mundo inteiro já ninguém pensa direito!” ANA: PÁRA! LARGA-ME! NENHUMA DE VOCÊS ME ENTENDE, NENHUMA DE VOCÊS ENTENDE PORRA NENHUMA! (empurra SOFIA e corre para junto de VERA)
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CENA 3:
MIRIAM, VERA, RUTE, ANA, IDALINA e SOFIA deambulam pelo grande salão, apenas preocupadas com os seus pensamentos delirantes. Tomam posições aleatórias no espaço, avançam concentradas somente nos seus movimentos e ideias, sem interagirem entre si, de acordo com as suas características psicológicas, traumas e tiques, que vão repetindo ao longo do de toda a cena. À vez, e SEMPRE EM IMPROVISO, dão a conhecer o que lhes vai na alma, contando parte da sua história, contando uma história, pensamento ou emoção particular. Cada personagem pratica cerca de minuto a minuto e meio de solilóquio, por esta ordem: IDALINA, VERA, ANA, MIRIAM, SOFIA, e RUTE. No final, MIRIAM tem um fortíssimo ataque de ansiedade, acabando a cena com um grito lancinante. Todas as personagens acabam deitadas no chão regressando à sesta inicial.
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CENA 4:
AMOR e LOUCURA estão sentados a meio da sala de costas um para o outro, apoiando-se. As outras personagens permanecem deitadas no chão da sala a dormirem a sesta. LOUCURA: Quem serias tu sem mim? AMOR: Quem seria eu sem ti? Quem serias TU sem mim, queres tu dizer. As pessoas só te conhecem porque eu te levo a elas. LOUCURA: Mas, no final, eu tenho mais impacto. AMOR: Não, LOUCURA, tu tens impacto no início. Sou eu que permaneço no final. LOUCURA: Mas sou eu que te guio, ou esqueces-te que és cego, AMOR? AMOR: Sou cego por tua culpa! Porque não te conseguiste controlar, tinhas inveja de me preferirem a ti. Querias toda a minha atenção, mas não a tiveste. Então cegaste-me para que eu ficasse dependente de ti. LOUCURA: Ao menos eu dou-te a oportunidade de estudares a pessoa que tens à tua frente, sou eu que ta dou a conhecer. AMOR: - Isso não é verdade, tu sabes. Para de ser tão manipuladora! És tu que me fazes pensar demais! A culpa não é só minha. Quantas vezes é que me guiaste para uma relação que não deu em nada para além de sofrimento, dor, injustiça? Tu, LOUCURA, levas as pessoas para sítios escuros onde não se consegue ouvir a própria voz com tantos pensamentos insensatos. Já viste o que aconteceu à ANA que tanto foi enganada pelo JOÃOZINHO assim como a MIRAIM? À RUTE, que apenas queria amar-se a si própria? À IDALINA que tanto amava a sua bela filha SOFIA? Tanto que ela não a deixou crescer, queria que ficasse pequenina para sempre. E a VERA... pobre VERA que apenas queria algum descanso. LOUCURA: - Não me culpes por coisas que também fizeste. Como disseste, as pessoas só me conhecem porque tu me levas a elas. Foste tu que me levaste à ANA, à MIRIAM e até mesmo ao JOÃOZINHO. Eles 21
são loucos, e porquê? Por amarem demasiado. No entanto, a RUTE não amava coisa nenhuma, e por isso ela acabou assim. A IDALINA... a IDALINA também está louca, também amou demais a sua pequena SOFIA que apenas queria ter uma infância. E a VERA já eu a tinha nas mãos muito antes de tu chegares. Bom saber que tu, meu AMOR, tens noção que estás dependente de mim. Eu, por outro lado, não preciso de ti para entrar no sistema das pessoas, MAS QUERO-TE! A peça termina com AMOR agarrado à sua viola, a tocar a melodia da canção A PELE QUE HÁ EM MIM (quando o dia entardeceu) MIRIAM acorda lentamente e canta a canção. (com letra adaptada) Quando o dia entardeceu E o teu corpo tocou Num recanto do meu Uma dança acordou E o sol apareceu De gigante ficou Num instante apagou O sereno do céu E a calma a aguardar lugar em mim O desejo a contar segundo o fim Foi num ar que te deu E o teu canto mudou E o teu corpo do meu Uma trança arrancou E o sangue arrefeceu E o meu pé aterrou Minha voz sussurrou O meu sonho morreu Dá-me mar, o meu rio A minha estrada Dá-me o quarto vazio Da minha casa Vou deixar-te no frio Na vertigem da voz Quando enfim se cala
FIM 22