Ruy Botelho
Só na Bahia...
Salvador CONTEXTO & ARTE EDITORIAL 1ª Edição — 2000
© Ruy Botelho (2000) Copyright desta edição: Contexto & Arte Editorial — Salvador (2000) Todos os direitos reservados u Editores: J. J. Randam e Sérgio Sinotti
Capa: Carlos Vilmar, com ilustração de quadro óleo sobre papel de Fred Schaeppi u Editoração Eletrônica: Daniella Sinotti u Ilustrações — Gentil u Revisão: Sérgio Sinotti u Impressão e Acabamento: PRESS COLOR u
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP): FUNDAÇÃO CULTURAL DO ESTADO DA BAHIA — Diretoria de Bibliotecas Públicas/GETEC 869.98 B764s Botelho, Ruy Só na Bahia... / Ruy Botelho. – 1. ed. – Salvador: Contexto e Arte Editorial, 2000. 150p. Ilustrado ISBN: 85-87607-18-9 1. Literatura brasileira-crônicas. I. Título. Proibida a reprodução total ou parcial. Os infratores serão processados na forma da lei.
Av. Tancredo Neves, 969, Edf. Metropolitan Center, Caminho das Árvores – SALVADOR (BA) – CEP 41821-020 Tels: (71)341-8860 e 272-0576 – Fax (71)245-0870 e-mail: ctextoyarte@uol.com.br
Sumário
O Veraneio 15 O Santos 21 Meu Tio Deraldo 27 Urubu Malandro, ou Só na Bahia 31 No Escurinho do Cinema 37 O Penetra 43 Dr. Pittex 49 Doce Tortura 53 Nas Ondas do Rádio 57 O Tenente Moreira 63 O Sorriso Sumiu 69 Só o Cantinho 75 Dança em Grego 81 Dr. Renato Xavier 87 Monga 93 “A da Cobra” ou na Tenda do “Seo” Kinu 99 O Bom Vaqueiro 105 O Conserto do Mamão 111 Medo de Avião 117 Godô e o Morcego 123 Exu Fujão 129 Dodô, o Zagueiro 135 Os “Micos Leões” e as “Ararinhas Azuis” 141
Agradeço A
♦ Secretaria de Cultura e Turismo do Estado da Bahia ♦ Fundação Cultural Gregório de Mattos ♦ Construtora Segura ♦ Construtora Plena ♦ Dismel ♦ Sertenge ♦ Everest / Construmar ♦ Sarti / Mendonça ♦ Ristorante Alfredo di Roma Nas pessoas dos Senhores:
♦ Paulo Gaudenzi / Marinaldo Moradillo Melo ♦ Francisco Senna ♦ Manoel Segura ♦ Mário Piva Filho / Jorge Azzi ♦ Milton Aloi / Luciano Araújo ♦ Luis Fernando Pessoa ♦ Paulo Vasconcelos ♦ Mário Mendonça ♦ Durval Mesquita Pela copreensão e honra da participação, com decisivo apoio cultural. Aos amigos Lu Lélis e Manoel Monteiro Filho, Lia Ferreira e Marcelo Grimaldi que, com paciência, divulgaram e ajudaram a viabilizar este trabalho. A todos os meus amigos, razão maior da existência de um homem, que compõem o elenco da novela de minha vida.
Dedico este Livro
♦ A meu pai, Júlio Botelho, e à memória de minha mãe, Diva Botelho, que me incentivaram a vida inteira. E que um dia tiveram a idéia de me trazer para esse mundo. ♦ À minha mulher, Constância, companheira de todos os momentos, que me empurra pra frente em todas as minhas iniciativas. ♦ Ao Dr. Ruy Guimarães Botelho, que, além de filho, é um companheiro, presente em todas as horas nos meus pensamentos e na minha vida. ♦ À minha filha, Tance Oliveira Botelho, que, apesar
da pouca idade, participou decisivamente desse livro, sugerindo, opinando, e que, pela sua pureza infantil, foi de enorme valia.
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Apresentação
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onheci Rui Botelho nos meus começos e, creio, nos dele também, no velho sobrado da rua Carlos Gomes, onde funcionavam duas empresas dos Associados, o Diário de Notícias e a Rádio Sociedade da Bahia, quando Ubaldo Câncio de Carvalho e Jaime Fahel se alternavam na apresentação do programa Saudade, Palavra Doce. O ano era o de 1962 ou 1963, não lembro ao certo, tempo em que as emissoras locais tinham sua programação, o rádio-teatro com José Jorge, Costa Júnior e Maria Orquídea, o texto sempre ágil e criativo de Nasciso Neri, as tardes de sábado animadas por Mílton Barbosa com seu Clube dos Brotos, e o Grande Jornal era marcado pela voz de Manoel Canário. Mais ou menos nesse clima, de tão gratas recordações, Botelho iniciava-se na crônica esportiva, em que já circulavam com desenvoltura Virgílio Elísio, Carlos Libório, Luiz Sampaio, Paulo Souto, Ivan Pedro, Antônio Sampaio. Souza Durão — não me ocorre se na Excelsior ou na Cultura — fazia escola de imitações. Havia outras opções para o torcedor. O Galícia era o demolidor de campeões e o Botafogo tinha Zague, ou tivera, que era meio time, a certeza de gol — a cerveja Caracu e o aguardente Jacaré eram presenças garantidas nas transmissões esportivas. O livro de Rui Botelho, porém, não se refere a essa atividade a que vem prestando o melhor de sua contribuição, mas
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a de cronista eventual de jornal, reunindo suas colaborações para A TARDE, algumas de um sabor nostálgico delicioso, como a viagem de trem no Maria Fumaça, que cortava o Brasil de ponta a ponta, ou o pânico de viagem de avião, sobretudo em noite de tempestade e pane: seu desespero aumenta quando descobre que seu vizinho de poltrona, apesar do pouso forçado, dorme serenamente o sono dos justos, se é que era tudo isso. O humor parece-me mais acentuado na crônica melhor realizada do livro: Godô e o Morcego. Naturalmente que envolve uma personagem indispensável ao riso e ao sarcasmo: a sogra, no caso D. Sinhá. Capta lances do cotidiano, fixa personagens que circularam pela velha Bahia, recorda o Boulevard Suíço do tempo de Walter da Silveira, Presciliano Silva e Charles Pitex. Há instantes de tocante ternura também, de que é exemplo a cirurgia a que se submeteu sua filha Tance: não lhe escapa a consciência profissional e a generosidade do médico Renato Pereira Xavier. Mas, do universo cientifico, outros personagens saltam para suas páginas: um deles, o legendário legista Charles Pitex que, durante as autópsias, colocava seu charuto — dizia-se que era um Havana; legítimo — entre os artelhos do defunto. Enfim, o livro de Botelho possibilita-nos revisitar uma Bahia que não existe mais. Guido Guerra
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Introdução
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screver um livro: missão difícil. Eu tinha uma vontade muito grande de escre- ver um contando as minhas experiências, tentando assim passar a “baianidade” que sinto em mim. Em Salvador, onde nasci, ou na Bahia como um todo, as estórias são interessantíssimas. O nosso cotidiano é riquíssimo. O poeta já disse que a Bahia é feita de “encantos” e “axé”. E é verdade. Para se conseguir material suficiente e escrever sobre esta terra, basta ser baiano, ou morar aqui. Algumas das minhas crônicas ora englobadas neste livro foram publicadas no jornal A TARDE, em sua coluna Ultraleve. Isso fez com que minhas idéias chegassem mais rapidamente às pessoas, fazendo-as saber o quanto eu gosto do nosso povo e de ser baiano. Livro de autor homem é produto de gravidez masculina. Inseminação do cérebro por uma idéia. Em mim, germinava uma. Levar às pessoas uma coletânea de fatos verídicos que vivenciei nas ruas, nos bares, cabarés, casas, clubes, ou quaisquer dos lugares onde se respira Bahia. Tenho certeza de que todos (principalmente quem é baiano) gostariam de fazer o mesmo. Baiano já gosta de jogar conversa fora. Só na Bahia
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Não existe tempo de gestação, nem prazo para o nascimento de um livro destes. Pensei deixar escrito algumas coisas das tantas que observei ou delas tomei conhecimento. Analisando o cotidiano, tentei escrever um livro, o mais divertido possível. Não sei se consegui. Ao longo dele, vão aparecer vários personagens conhecidos ou muito parecidos com alguém que vocês conhecem ou conheceram um dia. A todos eles, os meus agradecimentos por terem permitido o uso dos seus nomes e a publicação dos seus casos. Ruy Botelho
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O Veraneio
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eraneio, a palavra já diz, é um período no verão onde se aproveita de tudo o que a estação proporciona. O sol, a luz, as cores do céu, o mar (se o local for litorâneo) ou o campo (se for interior). As festas acontecem diariamente, os eventos sociais idem; enfim, o clima alegre invade o ar. As pessoas ficam sorridentes, coradas e permissivamente irresponsáveis. Todo veraneio é dividido em etapas. Isto determina comportamentos distintos, a depender do veranista. Alguns chegam cedo (começo do verão) e são considerados veteranos pelos que chegam depois, assumindo, assim, um status de morador local. Existem, entretanto, aqueles que apenas dormem no éden, mas nem sequer tiram férias. Indo e vindo todos os dias para o trabalho. E, ainda, aqueles que são unicamente visitantes, e que vão
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ao veraneio somente nos finais de semana, filando a bóia e a hospitalidade dos amigos. Já pertenci a todas essas classes e confesso que a melhor é a última. Nesta, evita-se a contratação de empregados extras, pagamento de aluguel, luz, telefone, supermercado de supérfluo e a borda da piscina, que é, justamente, o mais caro e o mais cobrado por todos. Quem veraneia a sério gosta de casa cheia, portanto convida todo mundo que encontra, pra uma cervejinha no domingo. Foi assim que o nosso herói, Dr. Walmor Hulwel (alemão por parte de pai), encontrando um amigo, Ruinaldo, que não via há muitos anos, e, emocionado com o reencontro, convidou-o para a tal cervejinha na sua bela casa de veraneio da ilha, o que foi de pronto aceito. Não avisou nada à mulher, por puro esquecimento. Os dias se passaram, o veraneio já ia do meio pro fim e D. Hélen, esposa operosa e dona-de-casa exemplar, que era só alegria no começo da estação, já não tinha o mesmo fair play e torcia pelo final do bendito veraneio quando, exatamente, no último domingo daquele verão, lá pelas 10 horas da manhã, em meio a um buzinaço de fazer inveja a protesto de taxeiro, surge no portão da casa o nosso Ruinaldo, pilotando garbosamente uma Kombi (que, depois, soube-se que era alugada), que mais parecia um veículo de circo pequeno, quando chega em pequena cidade do interior. Pelas duas janelas saíam bóias com cabeças de cavalos-marinhos, empunhadas por crianças munidas de óculos de mergulhar e pés-de-pato. Pelo vidro traseiro podiam-se ver duas grandes panelas cobertas com panos estampados, posicionadas ao lado de um pastor-alemão
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(cão, não padre), que as lambia vez por outra. Nas janelas laterais (seis ao todo), como nas telas de TV, apareciam pessoas que, pelas características físicas, poderiam vir a ser: a de cabelo lilás, sogra; o sem dentes, cunhado; o de óculos fundo de garrafa, sogro; o de boné do Bahia, o filho mais velho; o de boné do Vitória, o filho caçula e, é claro, a senhora usando bobs no cabelo e maiô laranja/verde, a santa esposa. Esta, inclusive, comandava o toca-fitas que, a todo volume, impunha a belíssima canção “Garçom”. Ao ver tal aparato, Dona Hélen comentou na varanda com o marido: — É, meu filho, o veraneio não é mais o mesmo, veja que vizinhança está chegando aí. Dr. Walmor, trêmulo e incrédulo, respondeu quase sem voz: — Não, meu amor, é o Ruinaldo, um colega que convidei apenas pra uma cervejinha e me esqueci de lhe avisar. Neste momento, o feliz domingo teve que ser interrompido, devido ao desmaio de D. Hélen que, duas horas depois, após correrias, providências e a travessia do ferry boat, dava entrada em um dos hospitais de Salvador com o histórico de ameaça de infarto do miocárdio, mas que foi muito bem resolvido e contornado pelos médicos de plantão. Graças a Deus! O veraneio do outro ano estava salvo.
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O Santos
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ivíamos os anos 60. O cenário era um paraíso no centro da cidade. Chamava-se Boulevard Suíço. Era a rua em que nós morávamos. Arborizada no início (daí o seu nome), depois cortaram as árvores (um crime!). Lá moravam pessoas ilustres, com as quais aprendemos muito. Dr. Manços Chastinet (comodoro do Yacht Clube da Bahia, à época), Dr. Heli Sampaio (sete filhos homens), Dr. Hélio Brito (secretário do Cerimonial de vários governadores), Dr. Otto Schaeppi, Dr. Charles Pitex (médico legista que botava o charuto entre os dedos dos pés dos defuntos necropsiados), Dr. Renato Reis, Dr. Hermógenes Príncipe (deputado federal), Preciliano Silva (um dos maiores pintores do país), Dr. Walter da Silveira (advogado e cineasta que faz parte da história da Bahia), Dr. Peroba (pediatra de todos nós e dos que moram lá
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até hoje), Dr. Válter Reuter, Dr. Cristoval (pai de sete filhas), Drs. Francisco e Geraldo Bensabath, Carlito, Levi e Válter Pereira, Geraldo Holtz, Mário Calazans, Dr. Emanoel Motta, Leônidas Campos, Dr. Abal Magalhães, Dr. Edístio Pondé, Dr. Hamílton Nolasco, Dr. José Moura, Abraão Kosminsky (artista plástico e professor da UFBA), Licurgo Lima (mais Chico, Paulo, Pedro e Rosa), Dr. Cézar de Araújo, Senador Ruy Santos; enfim, um elenco de respeito. Ali nasceu o Santos Futebol Clube, fundado por mim, Alfredo Sampaio, Antônio José Araújo Moura, Nílton Kosminsk, Oswaldinho e Sérgio Porto. Inspirado no Santos FC, de São Paulo, teve, de cara, uma exigência: as camisas teriam que ser de mangas compridas e alvas, como eles usaram no Maracanã, contra o Milan da Itália, quando Almir Brazinha, jogando no lugar de Pelé, fez horrores em campo e, mesmo com a cabeça quebrada, ganhou o título (bicampeão do mundo). Escolher quem vestiria a camisa 10 foi uma guerra, e, não sei por quais critérios, Alfredo Sampaio conseguiu. A bola era de borracha, porque as de couro eram caríssimas. As camisas compradas individualmente pelos “paitrocinadores”, é claro. Minha mãe pintou os escudos (lindos!). Agora era entrar em campo e fazer bonito, como faziam Pelé & cia. Os “estádios” foram vários: edifício Manoel Vitorino, campo do Padre Torrend, Clube Espanhol. Mas, onde eu quero chegar mesmo é no que significou para todos nós esta “organização”. Uma verdadeira universidade de vida, com princípios de caráter, sentido puro de amizade e a democracia sendo exercitada todos os dias (fazíamos mais reuniões do que jogávamos). 22
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Aliás, cadernos organizacionais e estatísticos e avaliações de desempenho eram rotina obrigatória na cabeça daqueles “dirigentes”. Fechadíssimo como os grupos mafiosos (no bom sentido), não se permitia a entrada de mais ninguém (alguns tentaram, sem êxito) naquela organização. Fui goleiro desse timaço, e Sérgio Porto (depois brilhante nos gols de Bahia e Vitória) meu reserva, imaginem! Só cabível e até aceitável pela consideração da turma, já que uma velha seqüela de poliomielite deixava que eu fosse “excelente” (segundo os outros) apenas do lado esquerdo. Nunca mais vi ninguém. Alfredo, às vezes, falo pelo telefone. Quanta saudade! Acho que se o Santos, o verdadeiro, soubesse da nossa existência, teria, seguramente, nos contratado. Pelo menos pra gente organizar, porque nisso nós éramos craques, mesmo. Mais do que eles.
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Meu Tio Deraldo
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ara mim era alto, tez morena, sorriso largo e honesto, cabelo curto já quase grisalho, unhas polidas, sempre de banho tomado, sapatos limpíssimos, talvez um palheta, não tenho certeza, mas o terno engomado, quase sempre de linho puro, esse sim era imprescindível, e está bem guardado em minha cabeça. A cor, lembro, bege, gravata listrada em diagonal. Não era do esporte, mas bem popular, coletor fiscal, autoridade, portanto, mas meu cúmplice em pequenas travessuras que mantínhamos escondidas dos outros adultos, como segredos de Estado. Este era o meu tio Deraldo. Não o vejo nunca como morador de Salvador, mas sempre de São Gonçalo dos Campos, que me traz tantas lembranças maravilhosas. Íamos todo ano, alternando micareta e São João. Da micareta não gostava muito, porque tinha medo de careta (um ano me vestiram de pierrô), meu pai de bi-
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gode fininho na fotografia e minha mãe mais alegre do que eu. Mas, o São João eu adorava! Era tudo mágico! A calçada enxuta com areia por minha tia Santa, sua mulher, que protegia assim a nós, menores (primos, primas e afins), de uma possível gripe, o que nos tiraria da folia e conseqüentemente perderíamos a viagem, esta feita de trem, saído da Estação da Leste Brasileiro, na Calçada, na capital, puxado pela “Maria Fumaça”, máquina antiga, lenta, mas eficiente para esse mister. Na chegada à sua cidade, lá estava ele a nos esperar, sempre preocupado em saber o porquê do atraso, quase sempre de horas, em razão do equipamento em que viajávamos, que, volta e meia, descarrilhava. Aí começava uma grande mudança em todos nós, pois o interior, a cidade pequena, nos proporcionava milhões de novidades. O cavalo para montar, a charrete para guiar (verdadeira limousine aos nossos pequenos olhos de meninos da cidade grande), as árvores bem cortadas e pintadas, tudo perto e ao alcance das mãos. Tirar água da cisterna, que tinha um mistério profundo, de como um dia se conseguiu tirar um leitão que por lá caiu. A casa de bonecas de Ilma, minha prima, sua filha, era “de verdade”, construída no quintal pelo meu tio. A outra, de guardar carvão, era proibida, pois sujava a roupa. O pote de água, com um prato na boca e um caneco comum a todos. A cozinha, enorme, com fogão a lenha e comida farta! Corredores compridos, teto alto, um verdadeiro castelo com quintal e tudo. Quantas saudades deixávamos e levávamos quando terminavam as férias e tínhamos que voltar. Que bom se meu tio Deraldo ainda estivesse por aqui! Que bom se eu voltasse a ter quatro anos.
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Urubu Malandro (Ou “Só Na Bahia”)
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lguém no passado já disse: — “...pensem um absurdo qualquer, e ele já aconteceu na Bahia...” Acreditando nessa máxima, lembro-me de um episódio que aconteceu no Terreiro de Jesus. Local onde, no passado, vendedores, mágicos e artistas mambembes faziam os seus números, na tentativa de amealhar algum dinheiro, nem sempre ganho honestamente. Numa bela tarde, a atração principal na praça era um show inusitado. Explica-se. Num pequeno estrado, uma família inteira trabalhava. O “pai” de óculos escuros, sugerindo uma cegueira antiga, tocava sanfona. Ao seu lado, uma senhora, talvez “esposa”, bem maior que ele, não só na altura, mas principalmente na largura, tocava um triângulo com habilidade profissional. Junto a ela, um garoto (12 anos), marcava o ritmo com uma
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zabumba que tinha o dobro do seu tamanho, e que representava o “filho” do casal. Nada disso, no entanto, teria atraído tanta gente, nem despertado tanto interesse na multidão que se acotovelava, se não fosse pela figura do quarto componente desse grupo simpático e harmonioso. É que este era simplesmente um elegante urubu, que em cima de uma mesa dançava habilidosamente ao ritmo de baiões, xaxados e maracatus. Ia tudo muito bem, a féria já bem gorda, pois o povo só gosta do que é bom. Já estavam com o último número em andamento, quando, de repente, aparece um carro da polícia. Da viatura saíram alguns policiais. O mais graduado aborda a troupe e diz com autoridade: — Recebemos uma denúncia e viemos verificar que tipo de maus tratos estão sendo praticados contra esse animal. E apontou o urubu, que não parava de balançar. Revolta geral do povão. — Como maus tratos? Essa ave dança alegremente! A música é bem executada! — Pelo contrário, ele está trabalhando prazerosamente. Os mais calmos apelaram para o reticente guarda: — Seu guarda, deixe o urubu em paz! — Seu guarda, o urubu é um artista!! Nós pagamos com prazer! Dentre outros pedidos patéticos. Ouvindo com calma, o bom policial, que também era uma pessoa do povo, explicou com toda paciência. Disse ele à turba indignada: — Gente, esse pobre bicho só está dançando porque a mesa é feita de metal. Abaixo dela existe um fogãozinho pibigás aceso, esquentando a chapa. Por isso, para não queimar os pés, ele faz esse movimento, que acompanha o som da música. A partir daí, a polícia teve o maior trabalho para poder conter o povo que, revoltado, exigia seu dinheiro de volta. Acabou, é claro, na Delegacia de Jogos e Costumes 32
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(nem sei se existe mais), onde o pseudo cego teve que pagar fian莽a e se explicar com o delegado de plant茫o. S贸 na Bahia!..
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No Escurinho do Cinema
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uem nunca teve uma paquera concluída no escurinho do cinema? Principalmente nas sessões de duas às quatro, onde o “ar refrigerado” (era assim que se chamava naquela época o ar condicionado) era reconfortante nas salas de exibição. Nelas assistimos aos filmes mais fantásticos que o mundo mágico de Hollywood podia produzir. Ali os casais (14, 15 anos) tentavam definir paqueras iniciadas na escola ou na rua onde moravam. Naquela época, os sonhos das nossas jovens cabeças eram materializados nas enormes telas (hoje as telas de televisão são pequenas e sem emoção) daqueles “palácios”. Os nossos “rivais” (Clark Gable, Tony Curtis, Elvis Presley e tantos outros) faziam com que nos transformássemos em galãs também. Nesse clima, o “encontro” era
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tentado, sempre com a ajuda de uma “cocada”. Explicase: “cocada” era uma amiga ou amigo comum aos dois que, por pura amizade, tentava fazer essa aproximação, levando um recado, trazendo outro, para, finalmente, conseguir o intento. Com data, hora e local predeterminados, algumas providências tinham que ser tomadas, como, por exemplo: o “confronto” estrategicamente deveria ser marcado para a sala de espera, o que permitia fugir-se de dois problemas: a fila da bilheteria e, conseqüentemente, a obrigação de se pagar o ingresso da convidada, o que emagreceria o orçamento para o lanche depois. Essa etapa era dificílima de ser cumprida. Uma vez tudo OK, era só esperar o dia sonhado. Com todo mundo foi assim. Chegado o dia, já dentro do cinema (a definição de lugares demorava um pouco), todos acomodados, a projeção finalmente começava. Aí, com a sala totalmente escura, ficava propício para o rapaz (iniciativa totalmente masculina à época) dar o bote, que era muito menos malicioso que os de hoje, porém, arquitetado com muito cuidado e astúcia. A mão escorregava pela cadeira (só pela cadeira) mas voltava ao local de origem, porque ”ela” não permitia em momento algum uma intimidade maior. O galã (o da tela) já tinha beijado a mocinha pelo menos umas dez vezes, enquanto que o “galã” da platéia nem sequer a mão “dela” tinha alcançado. Era muito difícil de se atingir esse intento com a mesma rapidez que a da vontade de fazê-lo. Na cabeça do “Romeu” já voava a indagação, “será que eu vou sair daqui sem uma definição? O que meus amigos (sempre os ‘amigos’) vão dizer?” Como num
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passe de mágica, a coragem chegava, a mão dele segurava a dela e, apesar do frio siberiano que percorria a espinha, saía a pergunta fatal: — Estamos namorando? — E a resposta dela, mais que positiva: — É claro que sim! — Fantástico! A partir daí, entram outros personagens com nomes que vão de Júnior a Neto, mas isso é outra estória. O bom mesmo era essa conquista, que para namorados que se prezam, continua sendo mais importante que a conquista da Lua... ...aliás, uma bobagem.
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O Penetra
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s anos 60 foram realmente anos dourados. Principalmente pra quem está hoje na faixa etária entre 45 e 50 anos. Tudo de bom aconteceu. A música, os filmes hollywoodianos, os carrões, a lambreta, a brilhantina Glostora, o perfume “Pinho Silvestre”, o escurinho do cinema, o gumex, o laquê, o salto alto bico fino (próprio para matar barata em canto da sala), o chicletes, os primeiros cigarros “com filtro”, a camisa banlom, a botinha sem meia, a calça “Saint Tropez”; enfim, tudo mágico, emocionante, místico. De tudo isso, porém, uma instituição bateu todos o recordes de força, prestígio, coragem, destreza e, acima de tudo, astúcia. Foi a do “penetra”. Os seus membros eram sempre rápidos nas respostas, bem vestidos, conheciam todo mundo. Só que nunca eram convidados oficialmente para nada. Isso, porém, não era
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empecilho para freqüentarem todas as festas, encontros sociais, coquetéis ou quaisquer que fossem os saraus, principalmente onde a comida e a bebida fossem fartas. Ouvi-los no day after era maravilhoso. Criticavam tudo. Se a música foi bem escolhida ou não, a postura dos convidados, a comida se pouca ou generosa. A bebida tinha capítulo à parte. Se porventura a dor de cabeça aparecesse, aí o dono da festa era espinafrado até a última geração. Aos penetras eram creditados todos os méritos. Não só pelos atributos já declinados, mas, principalmente, porque existia uma máxima àquela época, que dizia: “festa sem penetra, não é festa”. Era ele quem animava a efeméride (opa!) mesmo que fosse posto para fora — coisa comum, tão comum, como a sua reentrada triunfal. Pois é justamente sobre um penetra, talvez o maior de todos os nascidos na nossa cidade, que eu tenho um caso inacreditável para contar. Pois bem. Nos idos de 1966 fui convidado para dançar uma valsa numa festa de 15 anos, momento em que a todos os quinze casais (escolhidos a dedo pela mãe da aniversariante), foi pedido sigilo absoluto em relação ao dia e local, justamente para evitar-se com isso a ação dos penetras. Já no primeiro ensaio pude constatar que a casa era uma fortaleza. Pensei: quero ver fulano conseguir penetrar nesta festa. Com aquele muro medieval, pelo menos 10 cachorros, igual número de seguranças, é impossível. Pensando assim, quebrei o sigilo e conteilhe tudo. Ele apenas me perguntou: Qual é o endereço? E a data? No dia “D” cheguei cedo, pois essa era a recomen-
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dação dos organizadores. Era preciso checar se tudo estava em ordem com os que iam dançar a famosa valsa dos 15 anos. Até à porta principal, tive que atravessar várias barreiras, identificando-me em todas elas (convite nas mãos). Primeiro aos seguranças, porteiros, policiais, mestre-de-cerimônia, só não precisando identificação com os cachorros, pois, como já me conheciam, abanavam o rabo à minha passagem. Ao chegar na suntuosa entrada, encontrei a porta fechada. “Deve ser cedo demais”— pensei, e toquei a campainha. Aguardei um pouco e a porta se abriu e, aberta, nada mais, nada menos, por quem, senão o nosso fantástico penetra, que me recepcionou dizendo: — Chegou cedo, hein, Ruy! Vá entrando e fique à vontade. Você tinha razão, a casa é uma beleza e difícil, mas estamos aqui. Vou mandar servir-lhe alguma coisa pra você descontrair. Não posso citar-lhe o nome, pois tenho medo de ser processado pela confraria dos penetras, mas ele sabe quem ele é. Só sinto não ter sido tão ousado quanto ele. Por isso perdi grandes festas.
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Dr. Pittex
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orava na rua Boulevard Suíço, bairro de Nazaré, numa casa que, aos nossos olhos de criança, parecia um castelo de aspecto mal assombrado. Na verdade, um casarão normal. A garagem, de igual aspecto, situava-se ao lado e abrigava um “Hudson” tão grande e gordo quanto o dono. Ele era o Dr. Charles Pittex. Médico de altíssimo conceito na Bahia em sua especialidade (legista). Era seguramente o nome mais famoso (e ainda o é) da Medicina Legal. Habitavam essa fortaleza residencial apenas ele e sua esposa, D. Ninita. De aparência sisuda, muito calado, sempre com um charuto na boca, que mais parecia uma prótese, dada a constância (nunca o vi sem), Dr. Pittex mal saía de casa. Quando muito, se permitia chegar à varanda para olhar, vigilante do alto, as nossas peripécias.
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O baba era a atividade principal na pracinha ao lado da sua casa. Mas parava imediatamente no momento dessa olhada. Todos nós respeitávamos (ou temíamos) o velho mestre. Comentava-se (e a Bahia toda sabe disso) que colocava o seu charuto entre os dedos dos pés dos defuntos necropsiados. Isso, com certeza, já era suficiente para que garotos, como nós eramos, tivéssemos receio de olhá-lo de frente, mas apenas nos permitíamos uma olhada de soslaio (opa!), quando o víamos passar a pé ou no seu gêmeo automóvel. Nunca nos dirigiu a palavra. Nem para reclamar, nem para elogiar. Essa era a minha impressão sobre o Dr. Pittex. Um dia, entretanto, descobri que estava totalmente enganado. Cheguei a esta conclusão, analisando uma única frase que o ouvi pronunciar. Conto. Chegando um dia em casa, depois de estacionar o cinzento “Hudson” na rua, andando em direção à porta da sua “fortaleza” e passando entre nós, inesperadamente, curvou-se junto a mim e, sussurrando ao meu ouvido, disse: — Você é um excelente goleiro! Fiquei petrificado. Um elogio como esse, partindo daquele de quem se imaginava mil outras coisas, deixou-me a certeza de que existia dentro daquela couraça um homem dócil, sensível, que nem eu nem ninguém sabia existir. Soube, tempos depois, que o Dr. Pittex e sua esposa resolveram deixar a casa e foram morar numa pousada para idosos. Lá, com certeza, findaram as suas missões felizes como sempre foram. Ao seu modo, é claro. Bom mesmo seria se todos nós pudéssemos um dia descobrir em nós mesmos um ser terno como tinha o Dr. Pittex dentro dele. Mesmo que ninguém venha a saber.
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Doce Tortura
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ducar, que missão difícil. Principalmente hoje em dia, quando tudo pode prejudicar o desenvolvimento da criança. Castigo, carão, puxão de orelha são coisas do passado, medievais. Se acontecerem, fatalmente a criança vai parar num psiquiatra infantil (caro pra burro), com resultados discutíveis. O pessoal de hoje não sabe, mas no nosso tempo (mais de 40 anos) é que a tortura era braba. Quem não se lembra, por exemplo, do Colubiasol, remédio para inflamação de garganta, aplicado com um chumaço de algodão embebido e colocado sempre na ponta de uma caneta, cujo método devia machucar mais que a própria virose. Criança com saúde era criança gorda, portanto, goela abaixo, de vez em quando, uma gema de ovo cru
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descia obrigado e, se partisse na boca, a palmatória cantava. Aliás, pra quem é moderno e não sabe o que é, explica-se: palmatória é um instrumento de madeira para exemplar capetas. Ela tinha vários nomes, a depender da casa: “Maria Chiquinha”, “Vá Ver”, “Chiquita Bacana” etc. A receita variava. Meia ou uma dúzia de bolos bem dados, a depender do tamanho do “malfeito”. Doença, era de morte. Do pescoço pra baixo, óleo de rícino, emulsão de Scott, Saúde dos Meninos ou uma indefectível lavagem intestinal trafegavam livres pela barriga do pobre. Para aliviar, segurava-se uma chave (até hoje não sei pra quê), sem contar a carreira para pegar o “doente”. O galo na testa era, literalmente, amassado com uma faca (bárbaro)! A rezadeira tirava o “olhado”, malhando o cidadão com galhos de arruda que murchavam (também, pudera, com tanta pancada) e ela dizia: “O menino estava carregado! Lá em casa era D. Badeguinha, que rezava em iorubá. Muito mais existia, e parece horrível, mas tenho absoluta certeza de que nada disso foi motivo bastante para que nós deixássemos de gostar dos nossos pais (os inquisitores) e, por isso, nos drogássemos como solução de revolta. Essas torturas não deixaram cicatrizes. Nem sequer doeram.
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Nas Ondas do Rádio
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ma das paixões que tenho é o rádio, e o rádio AM. Não só pelo seu imediatismo na informação mas, principalmente, pela sua maneira artesanal de ser. Mesmo hoje, quase no século XXI. Fazendo rádio AM desportivo (minha praia) por esse Brasil afora, presenciei vários fatos pitorescos que vêm à lembrança. Alguns engraçados, outros trágicos. Lembro-me de um, que aconteceu no ano de 1993. Cobríamos o Campeonato Brasileiro de Futebol, quando o Esporte Clube Bahia (ainda não era S/A) enfrentava o C. R. Vasco da Gama lá no Rio de Janeiro, no Estádio de São Januário. O Bahia jogava pelo empate, enquanto ao Vasco só a vitória interessava. Ambos visando uma classificação para a próxima fase. Jogando dentro dos seus domínios, ao time local a missão parecia fácil.
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Chegamos cedo, porque, como rádio AM exige, era preciso ligar fios, verificar o retorno, checar a linha telefônica, enfim, existe uma parafernália a ser observada para que a rádio entre no ar. Tarefa executada com maestria por Miguel Messias, companheiro legal, narrador da Rádio Cultura da Bahia. Depois de apresentarmos inúmeras credenciais, chegamos perto das cabines de rádio e eu, inadvertidamente, fiz uma pergunta a um dos funcionários do Clube. Onde fica a nossa cabine? Ele me deu a resposta acompanhada de uma sonora gargalhada. Vocês querem cabine? Aqui só fornecemos para o pessoal da terra. Quem vem de fora se ajeita ali. E, com o indicador, apontou para o meio da torcida vascaína. Comentei com Miguel: “Nós vamos apanhar aqui hoje. Se o Bahia obtiver um resultado positivo, não sei não.” Ajeitamo-nos da melhor maneira e começamos a transmissão. A torcida cresceu, o fanatismo também. Aí, comecei a temer pela nossa integridade física. Zero a zero persistente, a torcida revoltada, e nós, estranhos no ninho cruzmaltino, irritávamos a todos, transmitindo tudo o que acontecia. Apressei-me em comprar um boné do Vasco que, orgulhosamente, passei a ostentar, com duas funções. Uma, a de proteger a nossa careca daquele sol inclemente, e a outra, de protegermo-nos fisicamente, eu e Miguel, de uma possível agressão. Final de jogo, o Bahia classificado pelo empate. Revolta geral. Um torcedor do Vasco, de bandeira em punho, mastro ameaçador, nos fez a pergunta fatídica: — “Que rádio é essa?” — e eu, com todo orgulho e
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firmeza, respondi-lhe: — é a Rádio Cultura. — E ele fez mais uma decisiva: — “De onde?” — Aí, mais preocupado com a minha pele do que em manter o orgulho, respondi incontinenti: — De Goiás!
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O Tenente Moreira
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uem sabia contar este caso com maestria era o meu amigo Ricardo Heleno de Paternostro. Como tenho certeza de que, de onde ele está, deve estar gozando a todos nós, como sempre fez a vida inteira, vou pedir-lhe licença e contar esta estória, até por obrigação e homenagem a você, Pater. O tenente Moreira servia ao Exército brasileiro em 1964 (epa, ano da gloriosa) e era um cidadão comum, apesar do poder que tinha, como tinham todos os outros militares naquela época. Casado, pai de um filho (8 anos) morava na Ribeira, em casa simples que abrigava também mulher e sogra. Apesar desse perfil sério, era louco por carnaval. Numa quinta-feira, véspera da festa, trabalhando no quartel, sua cabeça só pensava em Momo (Ferreirinha
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ainda era vivo). Como driblar a família e cair na farra sozinho? Pensando muito, ocorreu-lhe de repente uma idéia genial. Mandou pra o seu próprio endereço um telegrama convocando-o para servir no período momesco em Recife. Colocou na mala do Fusca 1962, cor mostarda, que possuía, todos os apetrechos necessários para enfrentar um grande carná. Pierrô vermelho e preto (com coração na bunda), bermudas e camisetas, tênis e, principalmente, a “máscara negra” de pano, nariz de cera e chifres azul e rosa. Final de expediente, dirigiu-se para casa. Chegando no portão do bangalô, gritou alto: — Minha filha, vamos pra ilha. Quem se respeita não fica em folia. Carnaval é com a família, e bem longe dessa orgia absurda. Adentrando a sala, beijou a sogra na testa (o que não acontecia há, pelo menos, cinco anos), causando surpresa geral. A mulher, desprogramada, falou: — Moreira, você não avisou nada. Eu não sei não, aliás, tem um telegrama aí que eu acho que é do Exército. Aí o homem “enlouqueceu”. — Não abra isso, por favor. Isso deve ser bronca, e eu não perco minha ilha por nada. O menino já estava de óculos de mergulho e péde-pato, quando a sogra implorou: — Moreira, pelo amor de Deus, leia esse telegrama. Nós vivemos do seu soldo. Ainda reticente e se fazendo de rogado, abriu o bendito telegrama e gritou incontinenti; — Não disse? É merda. Eu não vou pra Recife de jeito nenhum. Preocupação geral. Todos então, de joelhos, em coro, imploraram para que ele atendesse a convocação. Afinal, Exército é Exército, ainda mais em 1964. Ainda relutou um pouco mas, afinal, “capitulou”. — Vou, mas 64
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é por vocês. Por mim, não iria. A mulher colocou duas fardas e algumas cuecas na mala e, pela manhã de sexta-feira, levou o “santo” até o portão e, chorosa, despediu-se dizendo: — Passa rápido, amor. O fusca dobrou a esquina e o destino era o Hotel Palace, na Rua Chile, é claro. Os quatro dias seguintes foram de folia total. Tudo o que o nosso herói tinha direito. Namoradas, bailes, trios elétricos, blocos e, naturalmente, muita cana. Na terça-feira, último dia, o bicho estava exausto. Já nos últimos estertores, subindo a Av. 7, parou numa barraca para tomar (o que seria a última) uma cervejinha, que ninguém é de ferro. Levantou a máscara e aliviou a sede. Já pensando no “como é que eu vou voltar”, vislumbrou (miragem, pensou) toda a sua família (sogra, mulher e filho) assistindo ao desfile em cima das cadeiras (só quem brincou naqueles tempos sabe o que são as cadeiras de avenida). Pensou rápido: — Tô mascarado, vou dar uma regulagem neles (militar não perde essa mania de regular os outros). Parou defronte ao grupo e começou o discurso (mudando a voz, porque careta muda a voz); — Olhe a mulherzinha de Moreira, feia paca. — Olhe a sogrinha de Moreira, ele disse que a senhora é chata pra cacete. E olhe o filho de Moreira, perdeu o ano, hein, danado. Desfilou assim todas as mágoas e ressentimentos guardados. Quando terminou, já cansado de falar, ouviu da mulher que, chorando copiosamente, disse com a voz
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embargada: — Moreira, pelo menos abaixe a måscara!
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O Sorriso Sumiu
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inguém mais do que eu gosta, ou gostou, de Carnaval. Portanto, fico à vontade para escrever sobre o que se transformou, na Bahia, a maior festa do mundo. Não por ser apenas uma festa, mas porque o Carnaval verdadeiro é um estado de espírito. Quem é carnavalesco, mesmo, não precisa de lugar demarcado oficialmente para colocar para fora a sua alegria, nessa época mágica. Sou do tempo em que se contavam nos dedos os dias que faltavam para que Ferreirinha (ele era o nosso Rei Momo, “primeiro e único”) recebesse do prefeito as chaves da cidade e decretasse a folia em toda a sua plenitude. Aí já era Carnaval e o sorriso era o carro-chefe da personalidade carnavalesca de todos. “Brincar” o Carnaval era como se denominava
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aquela atividade momesca. Quem “brincava”, tinha como objetivo principal desopilar, esquecer o dia-a-dia duro de encarar e, principalmente, sorrir. Sorria-se muito com tudo o que compunha o Carnaval daquela época de ouro. O mascarado (pierrô), o amigo vestido de mulher, a máscara improvisada, o bloco-do-cocô — a banana cozida imitando “aquilo” dentro do pinico — o “fotógrafo” cuja máquina nos molhava e a gente ainda dava um dinheirinho pra cerveja, o bloco “chupa-catarro”, o cordão, a batucada, tudo isso nas ruas era motivo de muitas gargalhadas. À noite, o baile, sonhado e esperado com ansiedade, realizado em todos os clubes sociais da cidade, onde, fatalmente, encontrava-se a namorada, muitas vezes conquistada de dia, no asfalto da avenida. Mas, o mais importante de tudo era que se sorria muito de tudo, porque tudo era sadio, puro (ou quase) e, principalmente, sem medo. Até o mascarado era obrigado a tirar a máscara, às 18 horas, e, com certeza, não era o assaltante de hoje. Infelizmente, tudo isso acabou e, sem querer ser saudosista, antiprogressista e, muito menos, careta, acho-me no dever, em nome de todos os carnavalescos verdadeiros, de alertar, temendo pelo futuro de nossa festa. Paulinho da Viola já estava certo quando disse (...) “tá legal, eu aceito o argumento, mas não me altere o samba tanto assim”(...). É que o Carnaval moderno, que tem uma participação fantástica do povo, que tem vários palcos ambulantes (foi nisso em que se transformaram nossos trios elétricos), ficou caro, desumano, engarrafado e, o que é pior, extremamente perigoso.
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A cada metro de chão, um segurança, a cada dois, um policial, a cada três, a droga, a arma, o medo. É, acho que foi por isso que o sorriso desapareceu do Carnaval, dando lugar a fisionomias tensas, contraídas, preocupadas, pálidas, com aspecto doentio, não saudável e alegre como deve ser na folia. O medo na face do folião é patente. Não sei não, mas tenho a impressão de que se os atuais empresários (bem-sucedidos) do Carnaval não se preocuparem com isso e devolverem o sorriso às ruas, nós vamos, dentro de pouco tempo, transformar o nosso querido Carnaval num espetáculo bonito, sim, mas, como fizeram no Rio de Janeiro, apenas uma Marquês de Sapucaí, com júri e tudo o mais. Quem está mais do que certo é você, meu amigo Brandão, que me telefonou e disse: — “Ruy, o sorriso sumiu.” O que me motivou a escrever este alerta.
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Só o Cantinho
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e todos os presentes que ganhei no meu aniversário, quando completei 50 anos (já?), o mais querido, inusitado, criativo e, acima de tudo, de um valor inestimável foi, com certeza, uma belíssima obra de arte confeccionada na hora do evento e durante o tempo em que o mesmo durou. O autor, ninguém menos que um dos grandes artistas plásticos deste país. Um amigo, quase irmão, com quem convivi (convivo até hoje) desde a infância, pois fomos praticamente criados (e bem criados) juntos desde a mais “tenra idade” (que expressão mais antiga?!): Fred Schaeppi. Tirando, não sei de onde, o material necessário, ele trabalhou duro desde o início da festa até o seu final (e que final!), criando na toalha da mesa um painel que, através da sua genialidade, retratava com absoluta
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precisão o perfil das personalidades presentes, dandolhes premonições, opiniões sobre suas vidas; enfim, um retrato perfeito de cada uma delas. Já quase na manhã do dia seguinte, chamou-me e deu-me a preciosidade, que recebi emocionado, como se estivesse recebendo o próprio “manto sagrado”, dada a sua importância histórica. Tratei de levar para casa com muito cuidado, e, na minha cabeça, já voavam idéias, como cores para a moldura, quem faria o trabalho dos chassis, mas, principalmente, em que lugar da minha casa ficaria entronizada mais uma obra do meu amigo, já que dele tenho inúmeras outras, todas ganhas de presente, apesar de não merecer tanto. Até aí, tudo bem. Acontece que, como todo bom brasileiro que se preza — e eu ainda sou, com muito orgulho, um deles — deixei para depois, o que era de minha inteira responsabilidade, porque na parte artística Fred já tinha dado o seu show costumeiro. Num vacilo mortal foi que aconteceu o maior “crime de lesa-pátria” de que, pelo menos eu, tenho notícia na história do Brasil. Explico: três dias depois do evento, D. Enézia, nossa fiel funcionária doméstica, cumpridora competente dos seus afazeres, adentrou o meu quarto com a referida toalha nas mãos e me disse orgulhosa: — “Dr. Ruy, D. Constância (a “santinha lá de casa” como diz, e eu copio sem cerimônia, o meu ídolo literário, o mestre Guido Guerra) me pediu pra ter cuidado com este pano, porque o senhor tem muito ciúme por ele. Pois eu fiz o que pude na lavagem, só não consegui tirar a tinta deste cantinho aqui. O resto saiu tudo”. Será que é preciso falar mais alguma coisa? Ou apenas me preparar pra carreira que Fred vai me dar
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assim que ler esta estória? Graças a Deus, a ele eu posso dizer com a certeza da desculpa aceita: — Meu irmão, se você me conhece bem, sabe que o tal cantinho será devidamente emoldurado junto com esta explicação. Sentimento se guarda no canto do peito, apesar de dizerem que coração não tem canto.
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Dança em Grego
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xistem nomes próprios que fazem a vida de muita gente tomar rumos variados, prejudicando aqueles que, a rigor, não têm culpa de terem sido assim nomeados por pais ou responsáveis que os registraram. Até mesmo porque, aos recém-nascidos, o direito de defesa ou escolha inexiste, obviamente. Quantas vezes já ouvimos falar de nomes estranhos, engraçados, jocosos, mas perigosamente humilhantes, como das irmãs Eurídice, Eucidire e Eudirice; ou Erriene e Enierre, ou de senhores respeitáveis como Clauzuir Merenda, Aucuério Nilfasto, Felizanô; e de exemplos como as filhas da querida Baby do Brasil (com todo o respeito): Riroca e Zabelê (este, próprio para cangaço) etc. São nomes que identificam, mas que podem causar transtornos futuros. Apesar disso, eu também dei uma inventada dessas
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e, quando minha filha nasceu, pensando em homenagear a mãe, criei um nome que é uma derivação do apelido da própria, que se chama Constância, apelidada Tança. Desta forma, nasceu Tance. Imediatamente após o nascimento, fui registrá-la no cartório competente. Lá chegando, vislumbrei, através do indefectível balcão, um sonolento funcionário que, ao ver-me, perguntou-me num belíssimo português: — Diga aí, meu? Respondi-lhe incontinenti: — Vim registrar o nascimento de minha filha. Ele, mais que rápido, perguntou-me: qual o nome? — Tance, disse-lhe orgulhoso. Aí, como manda a regra número um de todos os burocratas (brasileiro é craque nisso), disse com satisfação: — Não pode! — Como? Por que não? Então, explicou-me, que esse nome não tem significado algum e todo nome tem que significar alguma coisa. Tentei argumentar, citando os nomes que enumerei acima, mas o cidadão estava irredutível e inabalável. Pensei comigo: “Não vou perder a minha criação” e, levianamente, reconheço, falei com autoridade: — Meu amigo, o senhor está enganado ou desinformado, e eu só o desculpo porque ninguém tem a obrigação de ser poliglota, mas Tance significa dança, em grego. Nesse momento o nosso bom funcionário, acredito que para não passar recibo de “falta de conhecimento”, disse: — Claro!, como pude me esquecer? — E registrou a princesa num dos livros mais grossos da repartição. Já se passaram dez anos e, até hoje, eu tenho a curiosidade de saber como é que se fala ou escreve dança em grego, porque, seguramente, não é Tance. Com a palavra meu amigo Stephanos Ollandezzos, 82
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o cônsul da Grécia aqui na Bahia, que não é funcionário público e muito menos burocrata.
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Dr. Renato Pereira Xavier
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enato é uma daquelas pessoas que a gente pode dizer literalmente que não existe. Não só pela sua calma, gentileza, educação, família (Braulinho, seu irmão, é tudo isso também) mas, principalmente, porque ele tem algo de santo. Acho que pelo firmíssimo bisturi que usa, consertando anjos que apresentam defeitos e devolvendo-os sãos e salvos. Fui obrigado a vir correndo da Ilha, uma ocasião, por que Tance, minha filha, na época com quatro anos, acusava uma forte dor abdominal. Diagnósticos prévios, prefiro não comentar. (Existem maus profissionais em todas as áreas Claro que Braulinho não estava em Salvador. Assim que consegui contato com ele, relatei o ocorrido e recebi a ordem: — Leve-a imediatamente para o hospital, que eu já estou indo (irmão de santo é fogo).
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Não precisou nem apurar o exame, e a sua capacidade já tinha visto o problema. Disse-me preciso: — Mamão, Deus queira que eu esteja errado, mas acho que a solução do caso da nossa princesa é cirúrgico. Vou ligar imediatamente pra Renato. Só consegui ficar de pé, movido pela fé inabalável que tenho e terei sempre em Braulinho. Com poucos minutos Renatinho chegou ao hospital e, depois de minutos de conversa científica entre os dois, chamou-me e disse-me firme: — Meu irmão, vamos operar nossa Tance imediatamente. Tenho segurança que o seu mal é o apêndice. Fique tranqüilo, eu e o Dr. José Bahia Sapucaia (outro Santo) vamos livrá-la dessa dor. Eu e Constância tivemos uma crise de choro e ficamos numa sala aguardando impotentes o tempo passar, rezando para que Deus guiasse as mãos dos dois que, junto com outro amigo, Dr. Tontá (anestesista) iniciavam a cirurgia. Dr. Ruizinho (irmão) ainda não era o médico que é hoje, era estudante ainda, mas funcionou paca nos acalmando. Minutos depois, que pareceram horas intermináveis, fui chamado por uma enfermeira, que me disse: — O Dr. Renato quer falar com o senhor. Levantei-me da cadeira, nem sei como, e encontrei Renato no corredor, ainda vestido com as roupas cirúrgicas. Com algo nas mãos me falou com toda a pureza, simplicidade, carinho e genialidade que o caracterizam: — Tome, isso era o que afligia a nossa menina. Acabamos de livrá-la deste mal. E entregou-me, enrolado numa gaze, o seu apêndice que, minutos atrás, poderia ter levado-a à morte. Aí o choro foi de alegria, alívio e felicidade. Naquele momento, não o via como homem, como médico,
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mas sim como um santo. Aquilo me deu a certeza da existência de Deus e do milagre. Milagre vivo, na pessoa de Renato Pereira Xavier. Tudo que eu disser será ainda muito pouco para expressar a vontade que tenho de homenagear o meu querido amigo. Por isso, vou usar uma homenagem feita por outro amigo. Na letra e música lindíssimas de Péricles Lima (Pequinho), talvez a mensagem mais bonita já escrita a um profissional de saúde. Vamos fazer uma incisão, Estão amolados nossos bisturis. Quem sabe não abre o coração Dessa gente que anda por aí. Tragam compressas, Cadê os afastadores. Nossos amores Sempre foram uma loucura. Unindo vasos, acabando com essas dores, Porque são flores as linhas da sutura. Essa é uma homenagem. Por ser de graça, só faz quem quiser. Mas, fora de qualquer sacanagem, Dr. Renato Pereira Xavier. A composição é de Péricles, mas como eu gostaria que fosse minha.
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Monga
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empre adorei parque de diversão. O carrossel com seus cavalos coloridos, a roda gigante, o chapéu mexicano, as barracas de jogos. Tudo isso sempre representou para mim a Disney de hoje. Existiam também aqueles brinquedos que propositadamente eram apavorantes para os que tinham menos idade, porém divertidíssimos para os adolescentes ou quase adultos. Era o caso, por exemplo, do trem fantasma, da casa dos horrores e, principalmente, uma atração que aparecia com vários nomes. Às vezes “Monga, a mulher que vira macaco”, “Diana, a fera selvagem” ou outros nomes menos votados. Na verdade, tratava-se de um truque bem feito. Era um jogo de espelhos e luzes que fazia uma jovem (às vezes, nem tanto) transformar-se numa fera terrível.
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Estávamos em pleno veraneio na ilha de Itaparica, quando chegou um parque desses. Claro que, imediatamente, transformou-se na maior atração da estação. A novidade daquele ano, portanto, ficou por conta do próprio. Podia-se arriscar a sorte nas barracas de jogos, praticar tiro ao alvo em busca de prêmios etc. Mas, como em todos os outros, o maior apelo de público era “Monga”. Até aí nada de novo. Acontece que, numa daquelas noites, nossa turma (uns 10 a 12) tinha preferido o bar ao parque e, lá pelas tantas (mais de meia-noite), resolvemos ir para casa dormir. No caminho, todo mundo com o nível etílico bem alto e tendo que atravessar o parque obrigatoriamente, nos deparamos com a casa de “Monga”, completamente às escuras, em silêncio sepulcral. Com o arroubo próprio da juventude, auxiliados pelo empurrão do copo, batemos à porta do barracão. Atendeu-nos um cidadão, com cara de apresentador de circo, bigodinho fino, estilo “fiscal de gafieira” e que deveria ser o dono do “negócio”. Pedimos ao mesmo que realizasse o número naquela hora. Pagaríamos os ingressos até em dobro. Ponderou que, em virtude do adiantado da hora, não havia a menor possibilidade. Insistimos. Explicou que a moça já estava recolhida, e como argumento final, sentenciou: — Só poderia atender-nos se, pelo menos, fôssemos umas vinte e cinco pessoas. Mesmo contando com o efeito do álcool, que, geralmente, dobra as coisas, não encontramos mais que oito. Faltavam, portanto, umas 15 ou mais almas para completar a platéia exigida. Ainda assim, pedimos um
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tempo. Vasculhamos as praias, bares, chamamos alguns pescadores amigos e conseguimos o número suficiente. Voltamos ao local do show, e o proprietário, sem mais argumentos, quedou-se às cifras, que recolheu rapidamente. Entramos finalmente no salão. O “espetáculo” começou mecanicamente, como se fôssemos qualquer platéia normal. A mesma entonação na narrativa, a mesma tentativa de assustar o público, as mesmas expressões como: “cuidado, ela é perigosa, não se aproximem da jaula” ou coisas que tais. A entrada de “Monga” foi triunfal. Trajando biquíni de lamê com uma cor indefinida, bastante sonolenta (não era pra menos), esforçando-se ao máximo para parecer o mais natural possível. Como o truque é perfeito, em dado momento começa a impressionar. O jogo de luzes e espelho vai dando à moça (ou jovem velha?) pêlos no rosto, nos braços, enfim, vai transformando-a num ser horripilante. E, quando o apresentador disse: “não se aproximem, a porta pode se abrir”, foi que todos nós corremos, não para pra longe, como fazem as crianças e os medrosos, mas para dentro da jaula. Ao ultrapassarmos as luzes e espelhos, nos transformamos em um bando de macacos iguais a ela. Claro que fomos expulsos pelo dono, que ameaçou chamar a polícia (que polícia?). No outro dia, o parque continuava no mesmo lugar, menos o barracão de “Monga”, que deve ter ido procurar platéia mais educada em outra freguesia.
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A da Cobra
(Ou na Tenda de ‘Seo’ Kinu)
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propriedade chamava-se Fazenda Puly. Se a grafia era essa não sei, mas, pronunciava-se assim. Freqüentei algumas vezes aquele éden rural. Pertencia ao Dr. Otto Schaeppi, pai do meu grande amigo Fred. Acostumado às coisas do campo, como montar a cavalo, caçar, Fred deixava-me admirado com a sua competência campestre. Tudo que ele fazia, eu tentava imitar. Mas andava sempre atrás. Não só pela falta de competência, como também pelo pouco conhecimento sertanejo. Numa dessas idas à Puly, aconteceu um episódio tragicômico. Dentre os posseiros, um se estabeleceu comercialmente. Numa quitanda, comercializava produtos próprios para o lugar, tais como fumo-de-corda, farinha, folhas para chá e, principalmente, as infusões de cachaça com cambuí, pau-de-resposta, erva-doce etc.
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Seu nome era “seo” Kinu, proprietário da birosca. Dentre todas aquelas garrafas, uma chamava a atenção. É que, dentro dela, além da cachaça, tinha uma cobra mergulhada no líquido. Já tinha visto Fred aprontar várias, mas não esperava que ele fosse pregar uma peça como a que pregou. Seguinte: Vínhamos “cavalgando” e biritando quando, ao chegarmos à porta de “seo” Kinu, apeamos dos animais com os “tanques” no nível alto e resolvemos tomar mais uma. Armados até os dentes, porque a idéia original era sair para uma pequena caçada, entramos, e Fred disse: — “Seo” Kinu, bote uma da cobra pra mim, uma pra meu amigo e uma pro senhor. — Respeitoso, “seo” Kinu respondeu: — “seo” Fred, eu não bebo não. — Bebe, sim. O senhor vai tomar uma com a gente. — Aí eu disse: — Fred, eu também não vou beber essa “da cobra” não. — E ele: — Vai sim, todo mundo vai, senão quem vai falar alto é esse revólver aqui. Diante desse “argumento” não tivemos outra alternativa senão capitular. O que seria “uma” transformouse em várias, expondo a cobra totalmente. E o pior ainda estava por vir. — “Seo” Kinu, tire essa cobra da garrafa e vá pegar uma faca amolada e palitos, ordenou Fred. O homem, assustadíssimo, ponderou. — Pra quê? — O senhor já vai ver — disse o “Lampião”moderno. Já imaginando o que poderia acontecer, comecei a ficar com o estômago embrulhado. Veio a faca e a cobra foi cortada em pedaços milimétricos. Em cada um deles foi colocado um palito. Olhando sério pra gente, disse o nosso anfitrião: — Nós vamos comer essa cobra! “Seo” Kinu suplicou: — “seo” Fred, eu nunca comi cobra. E ele, — Vai comer hoje. Pegou um pedaço com o palito 100
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e deu-o a “seo” Kinu (graças a Deus, me esqueceu), pegou outro e vaticinou. — Quando eu contar até três, nós vamos comer de uma só vez — iniciando imediatamente a contagem. Ao pronunciar o número três, o pobre do “seo” Kinu, tremendo de medo, jogou goela abaixo o seu pedaço e Fred, num movimento rápido, jogou o dele sobre os ombros. “Seo” Kinu percebeu e reclamou: — “seo” Fred, o senhor não comeu! Ao que Fred respondeu: — O senhor acha que eu como cobra? — Só deu tempo de “seo” Kinu chegar correndo ao quintal, de onde se ouvia aquele som característico: “Huugo! Huugo! Huugo”! Saudades da Puly, tenho muitas. Daquela cobra, não.
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O Bom Vaqueiro
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ra magro, de estatura mediana, tez muito queimada e com a pele ressecada pela ação do astro-rei. Apesar dos olhos verdes, era nordestino autêntico. Esta combinação de cores era oriunda, com certeza, da mistura brasileira, composta de estrangeiros, negros e índios, que formam o nosso povo catalisado pelo clima tropical. Este era Deusdete, vaqueiro da fazenda Amparo, situada a 260 quilômetros da capital. Apesar da proximidade, ele nunca tinha vindo a Salvador, preferindo a roça e resistindo ao avanço da “predadora” tecnologia. Acostumado apenas às coisas da natureza, sabia ver as horas pela posição do sol ou da lua e identificava, com apenas um olhar, o cio do animal. Experiente nos mistérios da vida, pai-de-família, era dotado de uma velocidade de raciocínio muito grande e de uma inte-
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ligência inegável. Exagerado, como todo bom capataz, aumentava — para agradar ao patrão, claro — a sua participação na produção da fazenda, valorizando, assim, o seu trabalho. Lembro-me de uma vez em que perguntei-lhe: — Deusdete, quantas vacas enxertadas nós temos aqui? — ao que ele respondeu, incontinenti, com seu belo sotaque roceiro: — Ah, Dotô, tem pra mais de quarenta! — E eu, tentando podar a mentira, segura e agradável, porém, mentira grossa, repliquei: — E sem a mentira? — Umas vinte! — disse-me ele sorrindo E eu, ainda incrédulo: — E de mesmo? — porque “de mesmo”, na roça, é decisivo, eles sabem que a partir daí não adianta mais mentir. Falou-me: — Umas dez! E pra parir? — continuei. Aí, Dotô, só tem duas — conseguindo, assim, hábil e agradavelmente, numa matemática ágil, transformar 40 em dois, rapidamente, sem pestanejar um só instante. Com a chegada da tecnologia, que faz ordenha mecânica, compras pela Internet, tratores que eliminam o trabalho de mais dez homens, o nosso herói é uma espécie em extinção. Uma pena, porque as máquinas não falam, não contam mentiras gostosas, não erram e, principalmente, não têm coração. Este, sim, uma máquina necessária para minimizar as agruras da vida e até os insucessos rurais tão comuns num país que se diz em desenvolvimento, como o nosso. Deusdete já nos deixou. Já passou para o andar de cima. Saudades! Mas, onde ele está, deve comandar uma 106
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boiada ou uma tropa de carneiros (mais própria para o céu), que não deve ter tantos exemplares assim como ele gostaria, mas, com certeza, cada cabeça deve ter dois corações.
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O Conserto do Mamão
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eu apelido sempre foi “Mamão”. E apelido é uma coisa que não se programa pra ter. O meu foi devolvido, porque era pra ser de outra pessoa. Jorge do Porto é quem deveria ter esse codinome. Era conhecidíssimo na Bahia inteira. Foi o atleta mais eficiente da Olimpíada da Primavera. Campeão de vários esportes ao mesmo tempo, brigão por excelência, era respeitado em rodas de capoeira e brigas de rua. Era meu amigo e eu me sentia protegido, porque naquele tempo se andava em turma e o pau comia solto. Jorge era da turma do Porto da Barra, daí o seu nome. Era admirado e querido por todos. Tinha a cabeça de menino e o coração de gigante. Também tinha um fusca e é por aí que a estória do meu apelido começa.
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O carro mais parecia um mamão. Verde escuro, amassado, maltratado, um horror. Numa bela tarde andávamos neste “bólido”, eu na carona e Jorge dirigindo, quando, numa curva do Campo da Pólvora, no bairro de Nazaré, ele perdeu o controle da direção e o bicho capotou uma vez e ficou de pé novamente, sem causar nenhuma contusão séria na gente (machuquei apenas o dedo mínimo da mão direita). Passado o susto, meu amigo falou: — Vamos consertar o carro! Pensei que ele ia dirigir-se a uma oficina pra fazer orçamento, discutir o serviço, enfim, coisas que se faz nessas situações. Ledo engano. Dirigindo como se nada tivesse acontecido, até mesmo porque o carro continuava funcionando, e longe de passar em qualquer oficina, chegou ao Farol da Barra. Trafegávamos pela Avenida Oceânica, quando, numa absurda contramão, vinha em nossa direção um brilhante Aero Willis, que era o top de linha da época. Jorge olhou para mim e disse: — Agora nós vamos consertar meu carro. — Não entendi nada. Aproveitando-se da posição na pista do incauto e barbeiro motorista do Aero, deixou que seu “automóvel” colidisse com o outro, fazendo isso com muita habilidade. Não fosse assim, e o novo acidente teria conseqüências bem mais graves que o primeiro. O senhor do Willis saiu do carro nervosíssimo e já dizendo: — Eu pago tudo, meu filho. A culpa foi minha, toda minha. — Jorge piscou o olho pra mim, em sinal de vitória. Mas, como nem tudo são flores, o conserto ficou péssimo. O carro, que já era um mamão, ficou mais “mamão” ainda, e, para que eu não o chamasse assim
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em público, toda vez que eu chegava na turma ele antecipava-se a mim e, antes que eu falasse qualquer coisa, ia logo me abordando: — Como vai o mamão? E o mamão? Ou coisas assim, dando a impressão a todos que eu é que parecia a fruta. Como todo mundo o respeitava, até por medo, para agradá-lo chamavam-me também por este apelido, que ficou até hoje. Gosto de ser identificado assim pelos amigos. Sei que eles o fazem com muito carinho. Pra você Jorge, que conseguiu me devolver um apelido que seria seu, de onde estiver, aceite os agradecimentos. Tomara que lá haja muito mamoeiro e que eles façam boa sombra pra que você possa descansar em paz da vida ativa que viveu.
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Medo de Avião
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edo de avião todo mundo tem. Mesmo aqueles que dizem que não. Mas, um friozinho na barriga, uma atenção maior com aquele barulhinho que você acha que tá diferente no motor, uma turbulência a mais, deixa qualquer um preocupado. Já tive algumas experiências com avião. Numa delas, voando do Rio de Janeiro para a Bahia, em companhia de dois amigos — o Dr. Paulo Vianna, próspero publicitário à época, hoje bem-sucedido como tal, e o Dr. Benedito Batista, gerente do Banco Brascan, também àquela época e hoje brilhante empresário — atravessamos uma situação de pânico a bordo. Ocupando poltrona de três lugares, decolamos do Rio. Bené dormia a sono solto desde a decolagem, enquanto eu e Paulo conversávamos. Assim foi durante as
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duas primeiras horas de viagem até Salvador, quando aconteceu o que ninguém esperava! Uma tempestade momentânea na cabeceira da pista fez com que o piloto arremetesse o avião, abortando a aterrissagem. Com essa manobra, um barulho muito grande tomou conta da cabine de passageiros. Caíram as máscaras de oxigênio, as pessoas gritavam, principalmente, as mulheres (mulher grita paca nessas horas), as aeromoças corriam no corredor, preparando os equipamentos de emergência e, ao mesmo tempo, tentavam acalmar os mais apavorados. Enfim, o caos instalado. Quando as coisas se acalmaram, o avião já alto outra vez, o comandante falou com tranqüilidade. Explicou que nada tinha acontecido de grave e que apenas a tempestade inoportuna tinha determinado tal manobra. Iria tentar mais uma vez o pouso, e caso não conseguisse sucesso, iríamos pousar em Aracaju, o que alongaria o vôo em mais 25 minutos. Alguns executivos reclamaram por causa dos compromissos, outros mais medrosos, como eu, temeram pela nova tentativa. Esta realizada, o piloto, com maestria, conseguiu colocar a aeronave no chão com a maior segurança e suavidade. Quando já estávamos praticamente estacionados, comecei a observar os rostos das pessoas e suas atitudes. Começando por mim, que tremia como vara verde. Paulo Vianna agarrado a dois bichos de pelúcia que trazia para as filhas, dizia repetidas vezes: — Só pensei nas meninas. — Já o amigo Bené continuava dormindo, permanecendo assim até o desligamento total dos reatores. Só aí acordou, perguntando: — Já chegamos? Bom piloto! Que vôo tranqüilo!
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Senti um misto de raiva e inveja, pois se algo de mais grave tivesse acontecido, o único passageiro que não teria sofrido nada seria o nosso querido amigo. É, talvez exista mesmo quem não tenha medo de avião.
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Godô e o Morcego
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fazenda “Meu Brasil” era o que se pode chamar de “Paraíso Tropical”. De uma calma absoluta, abrigava, além dos trabalhadores rurais e famílias agregadas de posseiros, visitantes esporádicos nas épocas festivas, fins de semana, feriados, ou nas férias dos proprietários. Nessas ocasiões, ficava lotada de parentes e amigos que a curtiam em toda a sua plenitude. Crianças montavam cavalos e nadavam no rio, adultos jogavam cartas, se divertiam com as coisas da roça e, principalmente, bebiam e comiam muito. Foi justamente num desses finais de semana que aconteceu um trágico episódio. Entre muitos convidados, estava o Godô (Godofredo, de nascimento) que era candidato a genro dos donos, pois já noivava com a filha do casal de fazendeiros há algum
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tempo. Godô gozava de total intimidade, pois, com o tempo de convivência, era praticamente um familiar. O casamento era uma questão de tempo, e pouco tempo. Domingo farto de tudo. Cedinho, cozinha cheia de gente, preparando uma enorme feijoada, que não seria servida antes das 16 h. Pela manhã e início da tarde, inúmeros aperitivos e petiscos servidos à larga. Finalmente o almoço, e o produto da cozinha chegou à mesa convidativo. O nosso Godô (louco por feijão) deitou e rolou em tudo que tinha direito. Da feijoada às sobremesas, goela abaixo desceu tudo o que se pode imaginar. Claro que, depois de tal ragu, o sono chega sem avisar nem pedir licença. Fazenda de sede grande e bastante avarandada, o que abundavam eram as redes. Godô, arrastando-se pelo peso estomacal, escolheu a mais escondida. Em local silencioso, acomodou-se para tirar o sono dos justos. Apagou em segundos. A tal rede, porém, feita de entrelaçado largo, tão largo quanto o descosturado da bermuda do nosso herói, permitiu que o seu “documento” (onde Papai Noel bota brinquedo) ficasse pendurado abaixo da mesma. O tempo já ia alto e a hora era justamente aquela que se chama de “lusco-fusco” (boca da noitinha ou boquinha da noite?) deixando uma penumbra que dificulta a visão, principalmente de longe. Neste momento, D. Zazá (futura sogra) e sua irmã D. Sinhá, chegaram à varanda conversando, ou melhor, sussurrando, para não pertubar o sono do futuro genro. Vigilante, D. Sinhá olhou para a rede e viu um volume escuro abaixo do dorminhoco, assustou-se e falou: — Zazá, olhe um morcego chupando o sangue de Godô! E D.Zazá imediatamente sentenciou — vou matá-lo. Calçando como luvas um par de tamancos, rastejou 124
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silenciosamente até o local e, com uma só tamancada (em palmas), acertou em cheio no que ela pensava ser o morcego. Claro que o salto do nosso amigo foi digno de recorde olímpico, seguido de um pique fenomenal em direção ao rio, onde mergulhou, tentando aliviar aquela que deve ter sido a maior dor que o próprio jamais tinha sentido. Depois de anos contando esse caso ao meu amigo Lafayette Pondé, ele me perguntou — E o Godô casou, afinal? — Claro — afirmei — e ele — Teve filhos? — Dois!— respondi. Aí ele arrematou: — Os meninos não têm a cabeça chata, não? — E eu, sem muita certeza, respondi: — Acho que não!
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Exu Fujão
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arceneiro de profissão, ofício que aprendeu com o pai, Seu Raimundo era um negro alto, de pele aveludada, bonito, lembrava um príncipe da realeza africana. Fazia os trabalhos de marcenaria lá em nossa casa e era compadre de meu pai. Amigo de fé. Casado com Dona Senhora, mestra em culinária e mãe dedicada, formava com ela um casal afinado e feliz. Tiveram dois filhos. O primogênito, Florindo, nasceu do lado direito do criador. Filho obediente, bom aluno, discípulo atento à arte do pai, era sem dúvida seu herdeiro de talento e educação. Companheiro da mãe nas idas à igreja, era um exemplo de virtude. O mesmo, porém, não se podia dizer do caçula. Raimundinho era o outro lado da moeda. O que tinha o primeiro de bom, tinha o outro de ruim, e em dobro. Malcriado, fujão,
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desobediente, um capeta criado. Seu Raimundo dizia sempre: — Sinhá (apelido de D. Senhora), esse menino não vai dar pra nada. Ela respondia como toda mãe: — Calma, meu filho, paciência com o menino! O cinturão do mestre já se confundia com o lombo do moleque, de tanto que foi usado. Não teve jeito. A última tentativa de conserto foi a Marinha do Brasil (Escola Naval de Aprendizes de Marinheiros), que na época tinha o poder de resolver esses problemas. Ledo engano. Fugiu, com a mesma facilidade de sempre. Sem poder voltar pra casa, optou por uma fuga definitiva. Sumiu. Preocupação geral em casa. O pai, usando seu conhecimento e popularidade, buscou todos os meios possíveis para encontrar o filho. Nada, nenhuma notícia. A mãe chorava e rezava, diariamente. Anos se passaram, e a esperança de encontrar o bicho cada vez era menor. O velho sempre triste, porém firme, um dia vaticinou: — Sinhá, seja o que Deus quiser, ele é de maior e vai saber se virar, morrer não morreu não, porque coisa ruim não morre fácil. Claro que isto dito da boca pra fora, pois as preocupações, incertezas e a enorme saudade, continuavam muito vivas no coração paterno. Mas, como diz o ditado, “...quem é vivo sempre aparece”. Numa bela tarde de domingo, quando a família, acrescida de mais parentes, se reunia em torno da mesa para a feijoada costumeira, eis que surge na porta da casa o nosso querido personagem. Impecável, trajando um belíssimo terno de linho branco, tão bem engomado quanto as roupas que D. Senhora passava para o marido. Com mais ouro pendurado no corpo que delegação americana em olimpíada, gritou
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num belo sotaque carioca. — E aí moçada!? — Espanto geral. Muito choro, misturado a sorrisos, abraços, e a pergunta quase em uníssono: — “Onde você andou, menino?” —“Olhe para sua mãe. Os cabelos brancos dela são de sua responsabilidade. Procurando por você, gastei muito sapato” — disse o velho. Todos então desfilaram suas queixas. Todas recheadas de mágoas, alegrias e surpresas. Nosso Raimundinho, então, com toda calma, pediu um tempo e exclamou: — Calma pessoal, vou explicar. — Dirigindo-se ao Mestre, falou: — Pai, a Marinha era muito dura, mais dura que a fivela do seu cinto. Aí eu escapei. Voltar pra casa não dava, né? Peguei uma carona de caminhão cujo destino era o Rio de Janeiro. Cheguei três dias depois, com muita fome, cansado, sem dinheiro, mas livre. Numa casa da Baixada Fluminense, onde se lia na fachada “Terreiro de Mãe Nadinha” (na verdade, Ednalda de Jesus Santos), fui bem recebido e bem tratado pela dona, que, justamente naqueles dias, estava precisando de ajudante para os afazeres do lugar. Segurei o emprego. De tudo o que fazia, o que eu mais gostava era a colocação dos ebós nas encruzilhadas. Principalmente os encomendados por dondocas ricas e bobas. Evoluí. Virar ogam, foi um pulo. As coisas começaram a melhorar. É reconfortante “ajudar” as pessoas. Cobrar consulta, a casa não cobra, muito menos eu, mas um presentinho aqui, outro ali, não é pecado. Aí seu Raimundo interrompeu e, quase com a mão no cinto, disse: — Você não mudou nada. Não fosse pela sua idade, seu tamanho e a roupa tão limpa, este cinto já estaria cantando de novo nesse seu lombo safado, que tanto mereceu lambada e que continua merecendo. Só na Bahia
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O Exu Fujão, então, sem nenhuma cerimônia, falou: — Pega leve, velho; seu filho é divindade, e divindade não apanha. O velho mestre Raimundo deu uma risadinha, e terminou o papo: — Sinhá, sirva o feijão e vê se não muda o seu credo.
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Dodô, o Zagueiro
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omos vizinhos muitos anos, e eu o tinha como ídolo. Aliás, pelas características deste meu amigo, qualquer garoto daquela época, como eu, tinha que ser seu fã de carteirinha. Boa pinta, bom de briga e de bola, alinhado, influente, trafegava bem com as meninas, enfim, uma figura independente e cercado de atenções e “respeito” (o respeito vai entre aspas, por que respeito nesta idade é discutível). Éramos adolescentes, ele um pouco mais velho do que eu (três ou quatro anos). Época em que esse pouco fazia muita diferença, principalmente no físico daqueles que tinham entre 13 e 18 anos. Morávamos num verdadeiro condado. Universidade de vida. Localizado geograficamente no bairro de Nazaré, compreendia o Largo do Campo da Pólvora, o Boulevard
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Suíço, o Boulevard América, o Jardim Baiano, o Tororó, a Avenida Joana Angélica; enfim uma grande região à qual já me referi em outras crônicas. Aí, dentre outras figuras carismáticas, reinava também o nosso querido personagem. Seu nome, Raílton Argolo. Raça negra, alma pura, caráter total. Não bastassem tantos atributos, que já faziam brilhar nossos olhos, pra completar, ainda era vigoroso (pra não dizer violento) zagueiro central do time juvenil do glorioso Esporte Clube Bahia. Fechava assim um “curriculum adolescente” de fazer inveja a qualquer um. Dodô, como era mais conhecido, era um “beque” de respeito. Para impor sua autoridade dentro de campo, espalhava brasa. Lá atrás na defesa, era ele quem mandava, e o pau comia solto. Diferente do advogado sério, calmo e bem-sucedido de hoje. Num belo dia, o titular desta posição do time principal do Bahia, campeão brasileiro de 1959 e um dos maiores ídolos da galera tricolor, o lendário Henricão, conhecido como, “Gigante de Ébano”, resolveu parar de jogar (a idade chegou). Consultado sobre quem poderia substituí-lo, indicou o nosso amigo, a quem chamou de “Cabo Dodô” e declarou em entrevista que poderia voltar para o Rio de Janeiro, sua terra de origem, com a consciência tranqüila, pois no seu lugar estaria um jogador de sua inteira confiança para continuar o trabalho. Promoção merecida e comemorada com euforia pela galerinha tiete. Estréia aguardada com ansiedade por todos, principalmente por Dona Zorilda, sua mãe, austera diretora do Instituto Baiano de Ensino, que tinha no comando o Dr. 136
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Hugo Baltazar da Silveira, um dos maiores educadores que a Bahia já teve. A dois dias do jogo, Dona Zorilda pediu-me para acompanhá-la à Fonte Nova, que por sinal fica próximo de onde morávamos, o que me permitiu aprender muito do esporte bretão. Acabando por me transformar em cronista esportivo. Atendi imediatamente: — Claro, Dona Zorilda, passo para pegá-la no domingo. Por algum motivo, atrasei-me um pouco e chegamos ao estádio com o jogo em andamento. Até comprar os ingressos, atravessar as borboletas de entrada e chegar às arquibancadas, demoramos ainda mais. Já eram jogados mais ou menos uns dez minutos dos 90 regularmentares. Já sentados, preparei-me para olhar o gramado e começar a torcer, quando Dona Zorilda me inquiriu: — Não estou vendo Dodô! Olhei com mais atenção e também não o vi. Contei os jogadores do Bahia e só havia dez em campo. Vireime para o lado e perguntei a um torcedor o que havia acontecido com o Dodô. Ele, de rádio colado no ouvido, absolutamente revoltado, respondeu: — Foi expulso com um minuto de jogo. — Frustração para mim, claro, mas, seguramente, muito maior para sua mãe. Acho que Doma Zorilda nunca mais foi ao futebol. Pelo menos comigo.
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Micos Leões e Ararinhas Azuis
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empre tive uma satisfação enorme em poder dizer: tenho muitos amigos! Deles sou dependente. Não consigo mesmo viver sem o convívio deles. Outro dia, acompanhando o noticiário da televisão, uma matéria me chamou a atenção. Era sobre a preservação do “mico-leão-dourado” e da “ararinha azul”. Essas espécies raras estão correndo o risco de extinção. Preocupação geral e global. Pois, eu tenho uma preocupação muito maior, com uma instituição que também está em extinção, e mais rápido que as duas em questão. Esta espécie sim, preocupa-me muito. Ela é a espécie “amigo”. Já não se faz amigos como antigamente. O mundo atual, a vida difícil, a sobrevivência, o egoísmo desenvolvido, a competição no mercado de trabalho, tudo isso fez com
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que o amigo leal, sincero, puro, entrasse perigosamente na ameaça de desaparecer. Mas, comigo não! Pensando nisso, há muito tempo venho procurando preservar os meus espécimes “amigos”. Eles sabem disso. Por isso, neste livro, não poderia deixar de agradecer-lhes por serem meus “micos-leões” e minhas “ararinhas azuis”. Aqui estão alguns: Aliomar Lima mico árabe Antônio Carlos Gregore mico charuto Antônio Carlos Magalhães Jr. mico capacidade Antõnio Carlos Magalhães Neto mico futuro Adriana Barreto ararinha doutora Adriana Tourinho a r a r i n h a videokê Adriano Bezerra mico excelência Aílton Sepúlveda mico secretário Agenor Gordilho mico goleiro Alberto Fonsêca mico fumaça Alberto Paraíso mico ternura Alexandre da Rof mico estudante Alfredo Sampaio mico Santos F.C. Almir/Rita mico e ararinha disk Almiro Alves mico guindaste Álvaro Moacir mico apito Álvaro Paes/Élcio micos pai e filho André Maron mico barão Ângela Lomanto ararinha viva Anphilophio Gondim mico colega Anselmo Fernandes mico amigo 142
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Antônio Carlos C. Mendes mico chinês Antônio Tilemon mico professor Antônio Moura mico Santos F.C. Antônio Moreira mico língua afiada Aroldo Brito mico viola Arlindo Gomes mico teclado Armandinho Biela mico automóvel Armando Oliveira mico mestre Arthur Rios mico amigão Avilmar Galvão mico ABO Augusta Marques ararinha eficiente Bebeto Vieira mico Aplicação Bené Batista mico grande Berivaldo Gomes mico Petrobrás Beto Magalhães mico botão Beto Maron micofantasia Bobô Nonato mico sutil Borginho e Marina mico e ararinha amigos Bráulio Xavier mico anjo Brandão mico sorriso Brian Cook mico americano Britinho mico pintassilgo C. G. mico capaz Carlinhos Najar mico basquete Carlinhos Rodeiro mico jóia Carlos Elias mico cirurgião Carlos Maracajá mico caráter Cel. Camerino mico coronel Cel. Jackson mico Detran Célia Gomes a r a r i n h a matemática Célia Maria a r a r i n h a
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solidária César Magalhães micosequilho César Santos mico gulu/gulu Chico Gordilho mico diabo Chico Santos Pereira mico projeto Chico Senna mico história Chico Hupsel mico cabide Chico Minibu Lima mico Nazaré Chico Moreira mico atento Chico Queiroz mico resenha Claudelino Miranda micoAmanda Cleudson Passos mico violão D. Zinha ararinha sogra Dênia Botelho ararinha rápida Duda Lebram mico sobrinho Dra. Cremilda Figueiredo ararinha santa Dr. João mico barriga Dinho Passarinho m i c o d o mesmo dia Dito Lopes micorepórter Duda Mesquita mico fetuccine Dudu Mendes mico legal Duran micohumano Edil Pacheco mico poeta Edmundo Arigó mico Aplicação Édson Almeida mico comunicação Édson Marinho mico galera Eduardo Cobas mico delegado Eduardo Ribeiro Lima mico casamento Elias Ferreira mico vaqueiro Elias Filho mico rock Elizeu Godoy mico paciente Elizeu Filho mico editor Ernane Santos mico N.B.A. Emanoel Silva mico mano Expedito Magrine mico quali-
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dade Família Serrano Micos e ararinhas unidos Fernando Barros mico Propeg Fernando Jorge Carneiro mico Bahia Fernando e Maura mico e ararinha casal Fernando Medrado mico flexa Fernando Moura Fernandes mico primo Fernando Sampaio mico Hully Bully Flávio Dias mico quintal Franklim Gomes mico baianucano Fred Cox mico conselho Fred Schaeppi mico artista Genny Pereira ararinha alinhada George Waxman mico valente Geraldo Oliveira micoparceiro Gil Santos ararinha mãe Guido Guerra mico escritor Guido Grimaldi mico alegria Gustavo Frank mico sobrinho Guilherme Gomes micopernambaiano Graciliano Hernandez mico espanhol Gracinha Cook ararinha irmã Haroldo Barbosa mico justo Heraldo Guerra mico tricolor Herval Vieira mico Aplicação Hélio Fedor mico ponta direita Hélio Menezes mico pai Hélio Menezes Filho mico filho Hélio Tapioca mico treinador Higino e Cláudio micos câmeras Humberto Paiva mico mão-de-gancho Só na Bahia
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Humberto Sales mico professor Ilma Silva ararinha paz Irene Brito ararinha tico Ireninha Fernandes a r a r i n h a estilista Isa Gomes a r a r i n h a danada Isnaldo Silva mico festa Ivan Smarcevski mico arquiteto Ivan Carlos mico plantão Ivana Frank ararinha bonita Ivo Rangel mico mestre Jafé Fernandes Filho mico puro Jaqueline C. Lino ararinha turismo Jean / Andréia mico goleiro/ararinha marcação Jéferson Malta mico presidente João Alfredo (Janjão) mico pandeiro Joélio Ribeiro mico navegador Joyce ararinha gerente Jorge Azi mico risada Jorge Maia mico sem dor Jorge Teixeira Mico Abat Jorgeval mico Diadema José Atayde Costa mico microfone José Bahia Sapucaia mico voz José Carlos Mesquita mico jornal José Jorge Randam mico jovem Josenel Barreto mico microfone Josemar Lourenço mico rádio Josué Moura mico carequinha
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Juarez Costa e Silva mico irmão Juju Aciolly ararinha madrinha Kleber Pacheco mico respeito Lafayette Pondé mico eterno Laureano Garcia mico desempenador Lia Ferreira a r a r i n h a trabalho Licia Fábio a r a r i n h a promoter Lívio Tourinho mico tapioca Lev Smarcevski mico gênio Lourenço Motta mico Espanhol Lucinha Peroba ararinha líder Luiz Alberto mico lateral Luiz Catharino Gordilho Filho mico linha Luiz Fernando Pessoa mico Sertenge Luizinho Bacelar mico secreta Lu Brito ararinha madrinha Lu Lélis ararinha colunista Lorena Rosa a r a r i n h a sobrinha Lurdes Loly a r a r i n h a sublime Lulu Monteiro / Ilka mico chegada/saída Marcelo Dória mico erê Marcelo Gomes mico chefe Marcelo Reis mico Nutapa Maneca Tanajura mico beleza Manoel Monteiro mico competente Manoel Segura mico Aplicação Manuel Messias mico pastor “51” Maraivan Rocha mico alvi-rubro Maria Ely a r a r i n h a alegria Marcelo Grimaldi mico simpatia
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Marcelo Nonato mico franco Márcio Gomes mico doutor Márcio Martins mico jovem como você Marcos Pinheiro mico colunista Marinaldo Moradillo mico Esquadrão de Aço Mário Gordilho mico caçador Mário Mendonça mico romano Mário Piva mico chablit Mário Pontes mico contacto Martinho Lélis mico experiente Maurício Bacelar mico forte Maurício Gomes mico total Maurício Nunes mico coração Maurício Pitangueiras mico vela Miguel Carneiro mico jipe Miguel Messias mico goal Milton Aloi mico carná Moacir Jack Lemmon mico shopping Murilo e Cláudio micos disk piscina Murilo Leite mico você Nélson Fiuza mico pescador Ney Bandeira mico Aratu Nilda Spencer ararinha atriz Nílton Leite mico timbau Nílton Kosminsky mico Santos F.C. Nílton Motta mico base Nílton Sales Guimarães mico bouquet Nílton Serrano mico cabeção Nilvano mico otorrino Nizan Gurgel mico atropelado
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Nogueirão mico pescador Norbert Kukafka mico alemão Olindo Ferreira mico tio Osvaldinho mico Santos F.C. Otto Argôllo mico militar Otto Schaeppi mico craque Paulinho Almeida micosaudade Paulinho Boca mico cantor Paulinho Catharino mico simples Paulinho Tatu mico batera Paulo Gaudenzi mico turista Paulo Jackson mico de preto Paulo Lima mico barriga Paulo Magalhães mico deputado Paulo Minha Santa mico galante Paulo Rescala mico imóvel Paulo Roberto Santos mico raio x Paulo Sérgio Sá mico meritíssimo Paulo Vasconcelos micocachaça boa Paulo Vianna mico publicidade Pedra Filho mico academia Pedro Godinho mico cidadão Pedro Lima micobezouro Petronilo Jr. mico capoeira Péricles Lima mico atacante Pingo Rego mico pinguete Quintino e Vitória mico e ararinha do ar Raílton Argôllo (Dodô) mico dr.zagueiro Ramon Almeida mico S.Paulo
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Raul Gordo mico novo Renato Aciolly mico rato branco Renato Xavier mico santo Roberto Alban mico marchand Roberto Brito mico prefeito Roberto Farias mico arrumado Roberto Kock mico vôlei Roberto Pitangueiras mico Consplan Roger, Cassio, Ricardo, Sérgio, Fábio micos sobrinhos Ronaldo mico gargalhada Rosa Ceci a r a r i n h a cunhada Rosângela Costa Almeida ararinha amiga Rubens Pessoa mico Santo Antônio Rubinho mico dos carnavais Safi a r a r i n h a rubro-negra Samoel Prado mico capitão Sandoval Guimarães mico azulino Sérgio, Beto, Marcelo e Pablo Spínola micos primos Sérgio e Joélia mico e ararinha dos pampas Sérgio Gaudenzi mico 100% Sérgio Goleiro mico ultra-sonografia Sérgio Porto mico Santos F.C. Sílvio Mendes mico galerinha Sinval Vieira mico esporte Sócrates/Jocélia mico tripulante/ ararinha remédio Stephanos Olandezzos mico grego Suzy Spencer ararinha feliz Talvane Nolasco mico Aplicação Tenente Valtinho mico gestapo Terezinha Ribeiro a r a r i n h a
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comadre Tetê Gomes ararinha calada Tia Lu Nogueira ararinha doutora Tia Sônia a r a r i n h a simpatia Thildo Gama micomaestro Toinho, Jr, Carlinho Invasor micos os bonitinhos Tontá Anestesista mico sono Tote Gomes mico cabeça Tchê e Orlandinho Gomes micos sobrinhos Valcir Barreto mico advogado Valdir do Bahiano mico memória Valdomiro e D.Juju Borges mico e ararinha felizes Valmar Hupsel mico de hotel Valmirando e Lena mico e ararinha da Luz Válter Galvão Mico Hollywood Válter Seijo mico rubro-negro Valtinho Queiroz mico jacu Valtinho Teles mico gute gute Vandinha ararinha mãe Virgílio Elísio mico futebol Virgínia Lomanto ararinha Boulevard Amé- rica Vitor Ventim mico café Zé Carlos Kibe mico cabeludo Zé Carlos Mura mico Botafogo Zé Maria Avalone mico anarquista Zé Peroba mico mágico Zé Porrete mico sapato
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Zezéu Ribeiro mico Aplicação Gaguinho, Caçador, Pinto, Zé, Ceará, Benigno, Pescoço, Sócrates, Frankenit, Barravento, Florisvaldo, Hamilton, Hélio, Vovô, Renato, Tabaréu, Álvaro, Bento micos garçons ... e tantos outros.
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