Inouwa N’niketxe
Ficha Técnica: Título: Inouwa N’niketxe Autores: Rosário Lemia e João Vilanculos. Direcção: Fernando Dava. Coordenação: Hermínia Manuense, Arrissis Mudender, Célio Tiane Designer: Cândido Nhaquila Edição: ARPAC - Instituto de Investigação Sócio-Cultural Tiragem: 1000 Exemplares Número de Registo: Colecção Embondeiro: Edição Especial
Maputo, 2013
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Inouwa N’niketxe
Introdução................................................................................ 4 Capítulo I................................................................................. 6 1.1. Notas Históricas sobre a Dança..................................... 6 Capítulo II................................................................................ 7 2.1. Caracterização da região em estudo.............................. 7 2.2.Toponímia..................................................................... 12 2.3.Estrutura sociocultural.................................................. 14 Capítulo III............................................................................ 15 De Niketxe à Inouwa n’niketxe............................................ 15 3.1. Niketxe......................................................................... 15 3.2. O contexto da origem da dança Inouwa n´niketxe...... 18 3.3. Nakamuwa................................................................... 23 3.4. Processo de Caça e Captura das Cobras...................... 27 3.5. Tipos de cobras utilizadas na dança Inouwa n’niketx.. 29 3.6. Conservação das cobras............................................... 30 Capítulo IV............................................................................ 32 O Culto da serpente............................................................... 32 4.2. Preparação Tradicional das Vacinas Contra o Veneno das Cobras e as interdições para os vacinados........ 35 4.3. O Secretismo na Transmissão dos Saberes e Valores Culturais................................................................. 39 Capítulo V.............................................................................. 44 O Processo de Divulgação da Dança Inouwa N’niketxe..... 44
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Capítulo VI............................................................................ 48 5.1. Os Instrumentos Musicais........................................... 48 5.2 Coreografia................................................................... 52 5.3. Conteúdo das Canções................................................. 55 5.4. A Problemática da sustentabilidade da dança Inouwa N’Niketxe.............................................................. 55 Capítulo VI............................................................................ 58 Considerações Finais............................................................ 58 6. Referências Bibliográfia...................................................... 64 7. ANEXO............................................................................... 66 8. Lista das Entrevistas............................................................ 71
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Inouwa N’niketxe
Niketxe é uma manifestação cultural praticada por uma grande
maioria da população da Alta Zambézia e que ganhou maior expressão no trabalho duro e forçado das plantações do chá das grandes companhias do Gurué. O distrito do Gilé, a noroeste da Zambézia é considerado o local de origem e deste se expandiu para outros distritos, no período colonial, seguindo o movimento dos trabalhadores.
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1- INTRODUÇÃO
Inouwa N’niketxe
O
presente trabalho pretende dar uma contribuição sobre o estudo da dança Inouwa N’niketxe, uma das manifestações culturais mais emblemáticas praticadas na Zambézia, distrito de Namarrói. O carácter peculiar, a natureza espiritual e os conhecimentos terapêuticos desenvolvidos em matéria de vacinas contra as picadas mortíferas das cobras constituem factores relevantes para a realização deste estudo como forma de melhor conhecer, valorizar, preservar e divulgar esta manifestação cultural. A pesquisa visa analisar as origens desta dança, as contrariedades enfrentadas no período colonial como, a repressão caracterizada por proibições e agressões movidas contra todas as manifestações culturais, facto que levou a que algumas práticas se tornassem clandestinas, regionalizadas, reforçando algumas características obscurantistas que possuíam, e noutros casos, levando ao seu desaparecimento1. E dentro deste contexto, tentar compreender como a dança Inouwa n’niketxe conseguiu manter-se e desenvolver-se até aos nossos dias. Além da parte introdutória, o trabalho está estruturado em cinco capítulos: 1
I Festival Nacional de Dança Popular, Junho, 1978, p.16
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No primeiro capítulo são apresentadas algumas notas históricas sobre a dança; No segundo capítulo faz-se a caracterização geral da região em estudo, passando pela toponímia e finalmente ocupa-se da estrutura sociocultural da região; O terceiro capítulo está reservado à Niketxe Vs Inouwa n’niketxe, onde se faz breves considerações sobre a dança niketxe que foi a base para o surgimento da dança Inouwa n’niketxe. Em seguida, faz-se referência à origem da dança Inouwa n’niketxe e o significado etimológico do termo, a evolução e a ritualização. Faz -se também referência à Nakamuwa, ritual de invocação dos espíritos e a importância das prescrições que os dançarinos devem cumprir. Aborda-se ainda a transmissão de saberes e de valores culturais. Como último aspecto deste capítulo, temos a preparação das vacinas contra o veneno das cobras. O quarto capítulo está reservado ao processo de caça e à captura de diferentes tipos de cobras utilizadas na dança Inouwa n’niketxe e como elas são conservadas até serem devolvidas ao seu habitat. No quinto capítulo aborda-se o processo da divulgação da dança Inouwa N’niketxe, os instrumentos musicais utilizados na dança, a sua coreografia, os ornamentos ou
adereços, assim como o conteúdo das canções. Mais adiante, analisa-se a problemática da sustentabilidade da dança, seguido de considerações finais
E finalmente apresenta-se a referência bibliográfica e como anexo, a lista das entrevistas.
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Capítulo I
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1.1. Notas Históricas sobre a Dança Com o decorrer do tempo a dança acompanhou o desenvolvimento histórico das sociedades, reflectindo a vida e as preocupações dos homens. Inicialmente, de forma simples e espontânea, ela torna-se mais complexa. Para transmitir os êxitos de uma caçada, o homem teve que desenvolver gestos específicos que comunicassem as situações e dificuldades encontradas. Assim, a dança foi-se transformando num instrumento de educação das gerações mais novas, contribuindo para o desenvolvimento cultural da comunidade. Historicamente, a dança popular encontra as suas origens nas sociedades existentes em Moçambique antes do colonialismo, quando era praticada sob o controlo das autoridades tradicionais, contribuindo para reforçar o seu poder dentro dos princípios característicos da concepção idealista do mundo e da vida. Nessas sociedades, a dança era executada nas cerimónias de iniciação dos jovens na vida adulta, nos casamentos, nos cultos dos antepassados ou nas cerimónias fúnebres, nas “preces da chuva” ou nos cultos de fertilidade (em que se festejam os sucessos alcançados na produção). Nas guerras, as danças eram
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executadas com vista à preparação militar ou à representação teatral da vitória alcançada. De forma geral, a dança é considerada arte de mexer o corpo através de uma cadência de movimentos e ritmos, criando uma harmonia própria2. Igualmente, ela é tida como um estado de espírito interior, independentemente do lugar ocupado no espaço. A dança é a manifestação do interior do próprio homem e algo que emana de dentro para fora3. E é considerada uma forma de expressão artística coordenada, que exterioriza todos os sentimentos, emoções, alegrias e outros, através dos movimentos. É ainda vista, neste contexto como a arte mais antiga e completa, porque cria os movimentos e expressa-os através do corpo4. Tanto a dança, como a música têm um papel social bastante relevante nas comunidades, pois ela exprime a realidade psicossocial do momento, como parte integrante da vida social. Por isso, ocupa um lugar de destaque nas celebrações religiosas, nascimentos, casamentos, ritos de iniciação, actividades produtivas, luto, entre outros, como forma de transmitir valores culturais e educacionais, sentimentos de alegria e de dor. Ela caracteriza-se pela execução corporal, através da mímica, e pela oralidade, através do canto, dos contos e dos provérbios. Estas constituem veículos de transmissão e de conservação de valores e saberes, sobretudo nas comunidades rurais. De uma forma geral, pode-se considerar a dança como uma expressão ou manifestação artística praticada por todas as sociedades humanas. Todos os povos encontram na dança uma forma de exteriorizar os seus sentimentos. Deste modo a sua BARROS, Jussara de. disponível em: http://www.alunonline.com.br/educaçãoartística/dança/. Acessado a 08/2010 2
3
Idem
4
COSTA, Keilla. A Arte da Dança, disponível em: http://www.alunosonline.com. br/educacao-artistica/danca.html.2008, acessado a 08/2010
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classificação toma em conta a origem que pode ser: religiosa ou profana. É religiosa quando usada para evocar os deuses ou as forças da natureza, tornando-se acto principal em alguns cultos; e é profana, a dança popular e folclórica. Entre estas destacam-se, Mapiko, Conzat, Erapala, Waniha, Chiwoda, Ilala, Nhambalo, N´tchaila e Chambatula5. É, neste contexto, que: “ (…) Na História da Humanidade, encontramos manifestações
das mais diversas civilizações através da dança, para contar seus feitos históricos, para educar, para fins religiosos e para controlo social6”.
Do ponto de vista histórico, a dança surgiu no período da pré-história, quando os homens, ao baterem os pés no chão e conjugando os passos com as mãos, através das palmas, aos poucos, descobriram que podiam fazer ritmos. As danças em grupo teriam surgido através de rituais religiosos, onde as pessoas faziam agradecimentos ou pedidos aos deuses de sol e de chuva, como no Egipto, onde estas surgiram primeiro, há dois mil anos antes de Cristo7. Na Grécia, a dança estava inserida nas comemorações dos jogos olímpicos e em Roma era praticada nas cerimónias em homenagem ao Deus Baco8. No Japão, o carácter religioso da dança mantêm-se até à actualidade. No período renascentista, a dança assumiu um carácter teatral, e foi nesta época que ela surge como espectáculo teatral, onde passos, música, vestuário, iluminação e cenário compõem a sua estrutura9. 5
TAMELE e VILANCULO. Maputo, 2000. pp.29-35 e 37-38
6
BARROS, Jussara de. Disponível em: http://www.alunonline.com.br/ educação-artística/dança/. Acessado a 08/2010 7
Idem
8
Baco era deus grego; o deus do vinho, da ebriedade, dos excessos, especialmente sexuais, e da natureza. As festas em sua homenagem eram chamadas de bacanais. 9
Disponível: http: pt.wikipedia.org/wiki/Baco. Acessado a 08/2010
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No século XVI surgiram as primeiras danças que apresentavam características próprias, consoante a localidade. No século XIX surgiram as danças feitas em pares. Estas, a princípio não foram admitidas pelos mais conservadores, até que no século XX, com a revolução do estilo musical e, consequentemente, os ritmos das danças e a mistura dos povos acentuaram a difusão dos aspectos culturais10. Como se fez referência, na apresentação da dança, deve tomarse em conta, além do contexto sociocultural e histórico, a cosmovisão dos diferentes grupos sociais, factores que dão forma às suas danças11. Segundo Hanna, a dança não é uma actividade motora qualquer, mas sim movimentos específicos, com valores estéticos e potenciais simbólicos inerentes, que traduzidos na dança a convertem numa forma através da qual as pessoas representam para si mesmas e para os outros. Por essa razão, a dança tem um papel muito importante nas identificações étnicas12. A título de exemplo temos algumas danças que caracterizam as diversas etnias em Moçambique, como as seguintes: Mapiko e Tufo dos grupos étnicos makonde e makuwa; Xiwoda e Masseve, dos Nyanja e Yao; Nyau e Nyanga dos Chewa e Nyungwe; Nyambalo e Niketxe dos Chuwabo e Lomè; Mutxogoyo, Maphandza e Ketekete dos Ndau e Sena; Timbila e Zore dos Chope e Bitonga; Makway e Xingomana dos Changana; Xigubo e Marrabenta dos Ronga. Ao longo da história o homem dançou a sua revolta, a sua glória, assim como as suas crenças e ideias impostas, questionando as imposições, ridicularizando ou criticando de forma velada 10
Idem
11
HANNA, Judith Lynne,: http://www.cosmicadesign.com.br/etno/ dança/dança.htm acessado a 08/2010 12
Idem
11
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certas atitudes. Apesar da dinâmica política, económica e sóciocultural, as danças não se dispersam na totalidade, mas se repetem indefinidamente conforme o contexto. É neste contexto, que Keilla Costa, afirma o seguinte: “A dança na vida do homem teve uma grande
importância, porque sempre a acompanhou desde os rituais dos povos primitivos até à actualidade. A dança faz-se presente, e sempre estará em nossas vidas”.13
13
COSTA, Keilla. A Arte da Dança, 2008. Acessado a 08/2010
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Capítulo II
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Província da Zambézia
2.1.Caracterização da região em estudo Este estudo foi realizado no distrito de Namarrói, província da Zambézia. É um dos 17 distritos da província, com cerca de 3.019 Km². É limitado a Norte pelo distrito de Guruè, a Sul Lugela, a Este Ile e a Oeste por Milange. O distrito é caracterizado por um relevo bastante acidentado e fica a uma altitude de cerca de 700 metros, e a temperatura média anual é de 24ºC. Está “encurralado” entre cadeias montanhosas e é dividido por rios caudalosos. Estes acidentes naturais tornam Namarrói num distrito quase isolado e de difícil comunicação com os distritos circunvizinhos. O distrito divide-se em dois Postos Administrativos, nomeadamente, Uetxe e Regone. O posto administrativo de Uetxe, é a sede do distrito, e tem as seguintes localidades: Lipilali, Marrea, Mudie e Muemue; o Posto Administrativo de Regone compõe-se das localidades de Mutatala e Regone. Os seus habitantes pertencem, na sua maioria, ao grupo étnico Lómuwè. A população, segundo o censo populacional de 2007, é estimada em cerca de 127.651 habitantes14. 14
Instituto Nacional de Estatística. III Recenseamento Geral da População e Habitação, 2007, Resultados Preliminares, Maputo, 2007, in Agenda do Professor, 2010, p. 11
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2.2.Toponímia O topónimo de Namarrói remonta do período pré-colonial, e deriva do nome do chefe do sub-grupo Nharine15. Este, na sua infância, tinha o corpo coberto de borbulhas purulentas, que em língua local se designa (marohi), facto que o conferiu a alcunha de nhama ya marohi, que significa em elomwè; carne com pus. Deste modo, quando este ascendeu ao poder, a região passou a ser conhecida por Nhama ya marohi tendo se mantido após o seu assassinato pelas forças coloniais, em 1925. Com a ocupação efectiva da região pelo regime colonial português, em 1930, e no âmbito da ocupação militar, administrativa e económica de Moçambique, a região foi sendo conhecida pelas corruptelas de Nhamarroe16, Nhamarrói17 e, actualmente, Namarrói. Segundo as fontes orais, durante a ocupação militar portuguesa, a população desta região, chefiada por Namarrói resistiu por todos os meios ao seu alcance, chegando, por vezes, a uma confrontação directa com o exército colonial. A resistência de Namarrói e os seus guerreiros foi permanente até a sua morte, em 1925. 15
Nharine- é nome de uma montanha situada junto a Vila sede de Namarrói e é, igualmente, nome dum sub-grupo que vivia nas proximidades da encosta sul desta montanha. 16
Serviço Distrital da Educação, Juventude e Tecnologia (SDEJT) de Namarrói, Historial do Distrito de Namarrói, Namarrói, 2003. 17
Dias, Saul, Glossário Toponímico, Histórico, Administrativo, Geográfico de Moçambique, 1981; 261 (A.H.M.). O nome Namarrói nos é revelado pelas Portarias e Diplomas Legislativos deste período, segundo a Portaria nº 736, no B.O. 26/1924, de 1924, a povoação de Nhamarrói era a sede do 3º Circunscrição Fiscal abrangendo os “prazos” Marral, Lómwè e Milange. Em 1927, de acordo com o (B.O. 12/1927), esta povoação passou a sede da “Agência de Autoridade” que `compreendia Nhamarrói, Regone e Mundine. Em 1928, segundo o Diploma Legislativo nº118 no B.O. 51/1928, foi criada a Circunscrição Civil de Nhamarroe (Nhamarrói0, abrangendo as regiões de Nhamarroe e Mundine áreas que pertenciam ao “prazo” Lómwè e em 1945, pela Portaria nº 6202, no B.O. 46/1945, esta passou a chamar-se Namarrói.
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Inouwa N’niketxe
Local Histórico onde são imortalizados os feitos do Régulo Nhama ya marohi
Local Histórico onde são imortalizados os feitos do Régulo Nhama ya marohi
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2.3.Estrutura sociocultural Em Namarrói, dada a localização geográfica próximo da região dos Montes Namúli, considerada “berço” dos povos lómwèmakuwa, predominam elementos do grupo lómwè-makuwa. Assim, a estrutura sócio-familiar é tradicionalmente matrilinear. Contudo, o poder preponderante é o masculino, sendo o homem o responsável pela coordenação e condução da dinâmica da vida da família e da comunidade. As principais línguas faladas são o elómwè e o emakuwa, esta última, nas regiões limítrofes de Guruè. A maioria da população é camponesa, praticando a agricultura de subsistência18. Os principais produtos são a mandioca, o milho e o amendoim. Produz-se, igualmente, arroz de sequeiro, mapira e feijão. O distrito é rico em recursos florestais de alto valor comercial tais como umbila, pau-rosa, pau-ferro e outros19. 18
(A.H.M.) – ISANI – Relatório da Inspecção Ordinária à Circunscrição de Namarrói, 17/11/69; p.1, 2. 19
Serviço Distrital da Educação, Juventude e Tecnologia (SDEJT) de Namarrói, Historial do Distrito de Namarrói, Namarrói, 2003
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Capítulo III
Inouwa N’niketxe
De Niketxe à Inouwa n’niketxe 3.1. Niketxe Para uma abordagem sobre a dança Inouwa n’niketxe torna-se necessário tecer algumas considerações sobre a dança niketxe, que foi a base para o surgimento de Inouwa n’niketxe, que é o objecto do presente trabalho. Niketxe é uma manifestação cultural praticada por uma grande maioria da população da Alta Zambézia e que ganhou maior expressão no trabalho duro e forçado das plantações do chá das grandes companhias do Gurué. O distrito do Gilé, a noroeste da Zambézia é considerado o local de origem e deste se expandiu para outros distritos, no período colonial, seguindo o movimento dos trabalhadores20. 20
República Popular de Moçambique, I Festival Nacional de Dança.1978, p.49
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Como reconheceu Tamele e Vilanculo21, na fase inicial, esta dança era praticada por homens e estava ligada aos rituais fúnebres, sobretudo decorridos seis meses após a morte, e é designado, em Gilé, mukutho wa makhwelo22. Actualmente, e segundo a dinâmica cultural, ela é executada por homens, mulheres ou crianças, em todas as ocasiões do ano e em qualquer acontecimento, seja de celebração de colheitas, festas das comunidades locais, celebração de datas históricas do país e recepção de altos dignitários do Estado. Constituem características desta dança, a mímica e o teatro, como também alguns dançarinos se apresentam mascarados23 e de saias de palha ou de pêlo de animal. Como igualmente, estes atam nas pernas chocalhos de latas, que produzem um som característico, “ketxe”, “ketxe”, “ketxe”, enquanto dançam e fazem piruetas no meio da roda formada pelos outros dançarinos esta dança recebe o nome de niketxe. A dança é, igualmente, acompanhada de tambores de várias formas e tamanhos, destacando-se o som produzido pelos etomopi, instrumentos feitos de chifres de animais, que servem de apito, para chamar as populações vizinhas para participarem na dança24. Entretanto, a origem de niketxe, não é consensual, pois segundo um artigo publicado por ocasião do I Festival Nacional da Dança Popular, a dança niketxe é originária do Gilé, na Zambézia. 21
TAMELE, Viriato e João A. Vilanculo, Algumas danças Tradicionais da Zona Norte de Moçambique, Maputo, 2003:108 22
mukutho wa makhwelo – expressão em elomwè que significa uma cerimónia para os defuntos. 23
Dançarinos apresentam-se com máscaras de cascas de árvores enfeitadas na cabeça
24
República Popular de Moçambique, I Festival Nacional de Dança.1978, p.49
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Para Tamele e Vilanculo25 niketxe começou a ser praticada em Namina, um dos distritos de Nampula. Suluvai Mwanakwaly,26 tem um ponto de vista diferente das duas primeiras fontes e apresenta o seguinte: “O niketxe praticado em Namarrói foi trazido pelos trabalhadores das plantações de chá, sisal e algodão do Gurué, vindos do Alto Molócuè, e que se haviam estabelecido na região de Makiringa, zona limítrofe entre Gurué e Namarrói, onde se estabeleceram e através do processo de aculturação, e intercâmbio cultural a dança niketxe foi apropriada pelas comunidades de Namarrói” 27.
As fontes em referência são unânimes em afirmar que niketxe é uma manifestação cultural que teria chegado à Namarrói através dos trabalhadores das plantações de chá, sisal e algodão do Gurué e que a dança passou a ser executada pelas comunidades de Namarrói. Referindo-se a este facto, Sareara Nasserua28 afirma o seguinte: “Em Namarrói a dança niketxe estava sempre associada aos momentos de alegria e de lazer, em particular, nos locais onde se bebia “otheka”29.
25
TAMELE, Viriato e João A. Vilanculo, Algumas danças Tradicionais da Zona Norte de Moçambique, Maputo, 2003:104) 26
Entrevista com Suluvai Mwánakwaly (Sanmwetxone) Namarrói, 17/01/08
27
Programa do 1º Festival Nacional da Dança Popular, 1978, p. 49
28
Carinhosamente chamada por “Mãe Yavia”que significa mãe carinhosa para as crianças. 29
“Otheka”- bebida tradicional feita à base de mapira ou farelo de milho fermentado.
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3.2. O contexto da origem da dança Inouwa n´niketxe Inouwa n´niketxe é uma manifestação cultural que teve a sua origem, no povoado de Walasse, arredores da sede distrital de Namarrói, província da Zambézia. O termo Inouwa n’niketxe é, etimologicamente, uma expressão em elómwè composta por duas palavras; inouwa, que em elómwè significa cobra, e niketxe, como já se fez referência, é uma manifestação cultural, originária de Gilé, e praticada em quase toda alta Zambézia. O surgimento da dança Inouwa n’niketxe, segundo os aldeões de Walasse, teve como antecedente, o facto de um seu antepassado de nome Nacopo ter sido picado por uma cobra venenosa e correndo perigo de vida, foi socorrido por Nampolio30, um homem muito respeitado e admirado pelo domínio de conhecimentos das práticas curativas contra as mordeduras das cobras. Perante esta situação, os pais de Nacopo pediram ao Nampolio para tratar seu filho. Nampolio, bastante comovido com esta situação, aceitou o pedido dos pais de Nacopo, e tratou-o da enfermidade. Volvidos alguns dias, Nacopo estava com a saúde restabelecida. E como forma de manifestar a sua gratidão para com o mestre Nampolio, que o tinha salvado da morte certa, Nacopo resolveu ir ter com o mestre para manifestar a sua gratidão, assim como, para saber quanto devia pagar pela sua cura. Entretanto, Nampolio conhecendo as dificuldades financeiras do seu doente, e para evitar que a sua recusa de pagamento o afectasse psicologicamente, o mestre Nampolio, teria recomendado a Nacopo preparar otheka e depois o convidasse 30
Entrevista com Sarera, Namarrói, 17/01/08
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Inouwa N’niketxe
para, em companhia de familiares, amigos e vizinhos pudessem comemorar a sua cura. Nacopo, apesar de ter satisfeito a vontade do mestre Nampolio, ele não se sentia satisfeito, pois tinha uma grande ambição que era a de dominar as técnicas terapêuticas de cura das mordeduras das cobras, como o mestre Nampolio. Foi assim que, mais uma vez, Nacopo se aproximou do mestre para lhe fazer este grande pedido. O pedido viria a ser aceite com toda a naturalidade pelo mestre, depois dos pais de Nacopo terem-no feito formalmente junto de Nampolio. É de salientar que este pedido foi aceite apesar de não existirem laços de familiaridade entre o mestre e os pais de Nacopo31. A este respeito, Bautene Mirione, afirma o seguinte: “Depois de Nacopo estar curado, os seus pais pediram a Nampolio para que este ensinasse ao seu filho as técnicas de cura das mordeduras de cobras. Perante esta solicitação, o mestre Nampolio pediu que lhe trouxessem algumas galinhas, na falta de dinheiro. Depois de criadas todas as condições exigidas pelo mestre, Nacopo iniciou-se no processo de aprendizagem no domínio das plantas curativas contra o veneno das cobras” 32.
Ainda sobre o mesmo assunto, Sarera afirma o seguinte: “ Quando se fez a entrega das galinhas ao mestre Nampolio, o meu marido iniciou o processo de aprendizagem de tratamento das mordeduras das cobras” 33.
Com a formação já completa, Nacopo estava habilitado para preparar antídotos contra as mordeduras das cobras, como o mestre Nampolio. Para confirmar as suas novas habilidades, 31
Entrevista com Bautene Mirione (Nakey), Namarrói, 15/10/08
32
Idem
33
Entrevista com Sarera Nasserua, Namarrói, 17/01/08
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Nacopo começou a caçar cobras e a mante-las vivas numa palhota, especificamente preparada para elas. Numa primeira fase, quando este fosse para dançar niketxe, pegava nas cobras e dançava com elas, como como se adereços se tratassem; pendurando-as nos ombros ou segurando-as nas mãos. Para poder compartilhar com os seus mais próximos a sensação de dançar niketxe com cobras, Nacopo teve que preparar um grupo de amigos e colaboradores, vacinando-os contra o veneno das cobras, formando, assim, o primeiro núcleo do grupo da dança Inouwa n´niketxe por ele chefiado.34 Desde então, esta dança teria passado a ser uma das mais preferidas e executadas, em momentos como, no final das jornadas de trabalhos de ajuda mútua, sobretudo em actividades agrícolas, designados por mutheko wo owakela35, em elómwè, por kukumbi36 em echuabo e por tsima37, em shangana e outras. Os trabalhos realizados nestes moldes não careciam de pagamento, em contrapartida, o anfitrião tinha por obrigação oferecer otheka e comida a todos os participantes, no fim da cada jornada. Estes teriam sido os momentos mais marcantes que antecederam o surgimento da dança Inouwa n´niketxe e para confirmar este facto Sarera se refere nos seguintes termos: 34
Entrevista com Bautene e Candeeiro, Abibo, Namarrói, 15/10/08
35
Mutheko wo owakela- expressão em elomwè que significa trabalho de ajuda mútua. 36
Kukumbi- palavra em echuabo que significa trabalho de ajuda mútua.
37
FELICIANO, José Fialho, Antropologia Económica dos Thonga do Sul dul de Moçambique Maputo, 1998: 194 e COVANE, Luís António. O Trabalho Migratório e a Agricultura no Sul de Moçambique, Promédia, Maputo.2001: 134
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Inouwa N’niketxe
“A iniciativa de transformar o niketxe em Inouwa N’niketxe, foi do meu marido, Nacopo, que através dos conhecimentos obtidos através do mestre Nampolio, ele começou a caçar cobras e a dançar niketxe com elas. Assim teria iniciado a dança Inouwa N’niketxe. 38
Sarera Nasserua, viúva de Nacopo
Deste modo, Nacopo ao incorporar as cobras no niketxe, passou a dar um significado mágico, assim como, a incorporar elementos da natureza na nova dança como a afirma Hanna nos seguintes termos: “O homem, nos tempos remotos, atribuía à dança um significado mágico, quando dançava imitando a natureza, os animais e tudo o que o cercava, como uma forma de se aproximar e se identificar com esse mundo maior que lhe causava estranheza” 39. 38
Entrevista com Sarera Nasserua, Namarrói, 17/01/08
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HANNA, Judith Lynne,: http://www.cosmicadesign.com.br/etno/dança/ dança. htm acesssado a 20/02/2008
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Inouwa N’niketxe
Nesta ordem de ideias, Nacopo, ao dançar com as cobras penduradas, quer no pescoço, quer nos ombros, pretendia demonstrar o seu domínio das técnicas terapêuticas contra as mordeduras das cobras, o que se consubstancia na convivência do homem com meio que o cerca, em que as cobras representam o ponto mais elevado do domínio dos segredos da natureza em que o homem se sente também parte dela. Assim, Nacopo atribuía à dança um significado transcendente e mágico dando uma forma ritual porque dançava o mistério da sua cura e a capacidade de ter descoberto, compreendido e dominado o mundo misterioso dos seus ancestrais. Mais ainda, estes conhecimentos ancestrais da prática de tratamento das mordeduras das cobras, começaram a ser utilizadas na comunidade para prevenir as mordeduras fatais das cobras. Actualmente, esta vacina encontra-se bastante divulgada em quase toda a extensão do distrito de Namarrói. Além deste conhecimento terapêutico herdado dos ancestrais surgiu a dança que teve como base outra dança designada niketxe na qual Nacopo agregou o elemento cobra passando a ser designada Inouwa n’niketxe e Nacopo como seu incontestável precursor. Desde então, as cobras passaram a ser consideradas dádivas dos seus antepassados. Assim sendo, elas não podiam ser molestadas ou mortas. Por outro lado, as cobras passaram a emprestar à dança um aspecto mais exótico, emotivo e arrepiante para os mais sensíveis, diferentemente, do niketxe original. Por isso, Inouwa n’niketxe é uma versão de niketxe com as cobras como elementos de coreografia, tendo como impacto nos assistentes, particularmente, os mais sensíveis, um misto de curiosidade e calafrio.
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Inouwa n’niketxe, como outras expressões culturais, foi alvo da repressão cultural movida pelas autoridades coloniais portuguesas, que incidiu de um modo particular ao nível das danças. Esta repressão traduzia-se em proibições e agressões movidas contra quase todas as danças o que concorreu para que a sua prática se tornasse clandestina, regionalizada, reforçando algumas características obscurantistas que possuía e, nalguns casos, levando ao seu desaparecimento. Porém, esta repressão do invasor colonial esbarrou com uma muralha natural de resistência do povo moçambicano ao utilizar a dança como uma arma de luta. Através dos seus movimentos e mímica, os dançarinos ridicularizavam o comportamento dos agentes da administração colonial e da autoridade religiosa. O povo pretendia disseminar a sua arte e afirmar livremente a sua cultura, facto que se consubstancia nas danças do trabalhado forçado: nas plantações, estradas, minas e construções dos caminhos-de-ferro, exprimindo o sofrimento e a luta através do gesto, da canção e da música.
3.3. Nakamuwa Nakamuwa é um ritual de evocação dos espíritos dos antepassados que surgiu depois da morte de Nacopo, como uma forma dos seus seguidores evocarem os seus antepassados, a fim de lhes pedirem protecção e sucessos na caça das cobras. Por isso, sempre que os praticantes de Inouwa n’niketxe pretendem levar a cabo esta manifestação cultural devem invocar os espíritos dos seus antepassados, no ritual designado localmente por Nakamuwa. Este ritual tem como objectivo estabelecer um pacto entre os vivos e os mortos onde estes, protejam aqueles que vão à caça das cobras, dos perigos que advêm desta actividade.
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O ritual ganha consistência, na óptica de Marconi e de Presottos 40 , pois estes afirmam que os homens através de cultos e rituais públicos ou privados, tentam conquistar ou dominar, pela oração, sacrifícios, etc., a área do seu universo. Dentro do mesmo pensamento Lamas41 refere que os rituais correspondem a uma forma de expressão que permite ao homem comunicar-se com os seus antepassados ou com forças sobrenaturais, isto é, uma actividade religiosa através da qual o homem se dirige ao mundo espiritual para estabelecer um entendimento para a realização dos seus desejos. Para a execução do ritual Nakamuwa, assim como para a participação na caça às cobras, é condição indispensável, a observância da abstinência sexual na véspera, pois segundo esta comunidade, esta abstinência é um factor determinante para o sucesso na caça das cobras. Este ritual é restrito ao chefe do grupo e à sua primeira esposa42, ao seu adjunto chefe e ao irmão do chefe com as respectivas esposas e a viúva de Nacopo (o fundador da dança Inouwa N’niketxe). Cabe a este grupo o privilégio de comunicar-se com os seus antepassados e às forças sobrenaturais, pedindo-lhes uma caça abundante às cobras muito abundante e protecção contra todos os perigos inerentes a este acto quase impensável noutras comunidades. Nakamuwa realiza-se junto ao tronco de Muepe43, que fica no quintal da casa do chefe. Este local é designado por vamussaclany/ vamukhuthony, em elómwè, por maiyé mukutho, em emakuwa, por vamaiyé mukutho, em echuabo e por gandzel, em tsonga. Na falta desta, o ritual pode ter lugar numa outra árvore de nome Mossolo. 40
MARCONI e PRESOTTO, Antropologia: Uma Introdução; 6ª Ed. Editorial Atlas S.A. São Paulo, 2006.p.324 41
LAMAS, Maria, Mitologia Geral: O Mundo dos deuses e dos Heróis, os primeiros Mitos, 2ª Ed. Estampa. Lisboa, 1972. p. 45-46. 42
O chefe do grupo tem duas esposas e só a primeira é quem participa neste ritual.
43
Muepe é nome local duma ateira silvestre muito comum em Namarrói.
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Para o local do ritual, o chefe e a esposa levam dois pratos, um contendo farinha de milho ou de mapira e outro um pouco de areia para o ritual, e seguidos pelos elementos com o direito a participar neste ritual. Chegados ao sítio da realização de Nakamuwa, todos acocorados, atitude habitual durante o culto, aqueles preparam o local do ritual, deitando e alisando a areia dum dos pratos, em seguida o chefe enterra lá uma moeda com valor facial igual ou superior a um metical. As preces aos antepassados efectivam-se quando o chefe, na qualidade de oficiante do ritual, retira do prato uma mão cheia de farinha e com o dedo polegar vai depositando-a no “altar” até formar um montinho, enquanto invoca os nomes dos seus antepassados: “Nampolio, Mutxetxo, Muwangue e Nacopo pedindo-lhes protecção durante a caça das cobras”44. Este gesto é repetido pelos membros do grupo através da seguinte prece: “Fostes vós que iniciastes este acto e nunca tivestes problemas de mordedura de cobras. De igual modo, hoje, vos pedimos que o grupo que vai à caça seja por vossa intercessão protegido de todo o mal. Simultaneamente, vos pedimos que esta caça seja bem-sucedida e, também, nos comprometemos a devolver as cobras ao seu habitat natural, logo que terminarem as nossas danças, porque estamos cientes que elas são vossa pertença”.45 Durante as preces aos antepassados os participantes manifestam sentido de muita religiosidade e respeito. Enquanto decorre o ritual os restantes membros do grupo e seus familiares permanecem na casa do chefe do grupo aguardando o fim do ritual para os homens iniciarem a caça às cobras e as mulheres ficam em casa a preparar a refeição para os maridos que estão na caça. 44
Entrevista com Bautene Mirione (Nakey), Namarrói, 15/10/08
45
Idem
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Dois momentos do ritual Nakamuwa
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3.4. Processo de Caça e Captura das Cobras Desde os primórdios, o homem preocupa-se em dominar o meio que o cerca. Este homem procura, assim, garantir a sua sobrevivência e protecção contra as adversidades da natureza. Foi assim que o grupo de Inouwa n’niketxe se apropriou do poder de certas plantas para dominar as cobras no seu uso espiritual. Nesta busca permanente do domínio da natureza, o grupo cria rituais para estabelecer contacto com os espíritos dos seus antepassados de quem esperam protecção e sucesso na caça das cobras, reservada apenas aos homens. A caça das cobras inicia quando termina o ritual Nakamuwa e o chefe do grupo ordena a partida para caça e, os “caçadores” munidos de catanas e paus, espalham-se, imediatamente, pela mata adentro para uma verdadeira vasculha, em tudo o que é lugar: nas margens dos riachos, na copa das árvores, nas montanhas e nos buracos, onde elas vivem.
Ida à caça das cobras
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No processo da caça, sob comando do chefe do grupo, é frequente ouvir palavras pronunciadas pelos caçadores, como as que se seguem: Olé! Olé! Olé! Olé! Aquela” Olé! Otupha! Olé Ohaly omorra! Olé Okokela! Hé! Hé! Hé! Hé! Cuidado!” Olé ahanly omorrela m’maine cair na água” Olé ahanly omorra Onvarre! Onvarre! Onvarre! Agarre!” Omorra! Omorra! Onamurroua! Munvarre! Munvarre! Komparra! Okely uno! Yotchauwa!
“Aquela! Aquela! “Aquela saltou” “Aquela está para cair” “Aquela está a voltar” “Cuidado! Cuidado! “Aquela está para “Aquela está para cair” .“Agarre! Agarre! .“Caiu! Caiu!” “Está a fugir!” . “Peguem! Peguem!” . “Peguei!” . “Veio aqui” “Fugiu!”
As cobras capturadas são recolhidas num saco que o chefe leva sempre consigo. O sucesso da caça depende da época do ano, sendo bem promissora no verão, período em que se registam queimadas e a vegetação é mais escassa. Os répteis confinamse nos locais que tem alguma vegetação e junto aos riachos, o que facilita a sua captura. No inverno, com a abundância da vegetação, elas espalham-se por áreas mais extensas, facto que dificulta a sua localização. Pode-se considerar uma caçada bemsucedida quando os caçadores conseguem capturar entre 15 a 25 cobras.
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No fim da caçada, o chefe do grupo ordena o regresso à casa, onde os caçadores são recebidos em apoteose entre cantos, danças e “elulu”46em elómwè, ou “thungulu” em echuabo ou “n’kukungwane” em tsonga, como sinal de alegria pelo sucesso da caçada.
3.5. Tipos de cobras utilizadas na dança Inouwa n’niketxe O termo cobra atribui-se aos répteis ofídios da família dos Colubrídeos. Existem várias centenas de serpentes. O termo cobra deve ser aplicado para designar as serpentes perigosas pelo seu veneno. Segundo o seu habitat, as cobras podem ser marinhas e terrestres.47 De acordo com Guissamulo,48 a nível do nosso País estima-se que existam cerca de oitenta espécies de serpentes. Destas, apenas trinta e sete são venenosas As serpentes perigosas, cuja mordedura pode causar a morte são nove espécies e as restantes são menos perigosas. O mesmo interlocutor acrescenta o seguinte: “Existem várias espécies de cobras adaptadas aos diversos habitats; desde florestas, montanhas, matas das zonas costeiras, savanas e zonas áridas. Estas podem ser venenosas e não venenosas. As venenosas são as das zonas áridas e quentes, zonas de floresta e de montanha porque devem garantir a caça de animais de grande porte; e as das zonas costeiras não são venenosas porque se alimentam de pequenos animais como lagartos e outras cobras, aves, ovos e insectos.49”. 46
“Elulu” – É uma manifestação de alegria, que as mulheres fazem em momentos de euforia e congratulação. 47
Dicionário Enciclopédico Alfa. Publicações Alfa, 1992, p.280 e 1087 e Enciclopédica Luso-Brasileira de Cultura. Verbo, 5° Vol., Ed. Verbo, Lisboa, p.778 48
Entrevista com Biólogo Almeida Guissamulo, Museu de História Natural, Maputo; 2007. 49 Elas são carnívoras. Algumas cobras matam as suas presas antes de as comerem por meio duma picada venenosa. Outras matam-nas por estragulamento. Entrevista com Guissamulo. Maputo; 2007)
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3.6. Conservação das cobras Inicialmente as cobras depois de caçadas eram conservadas numa palhota por um período indeterminado. Porém, devido ao perigo que estas representavam, este projecto foi progressivamente abandonado. Actualmente, as cobras capturadas são guardadas numa caixa de madeira, localmente designadapor caixote,50 onde permanecem durante o tempo necessário, até que sejam devolvidas ao seu habitat. Durante o período que as cobras permanecem guardadas, o chefe do grupo é o principal responsável pela sua alimentação, baseada na mistura de farinha de milho ou de mandioca e as gemas de ovos de galinha. No entanto, em liberdade elas alimentam-se de pequenos roedores, lagartos, passarinhos, pequenos mamíferos, animais anfíbios e respectivos ovos. Além dos cuidados a ter com a sua alimentação, elas necessitam de outros cuidados para que permaneçam vivas ao longo do período que estão com o grupo de Inouwa n’niketxe, o que requer algum conhecimento do comportamento de cada tipo de cobra. É com base neste conhecimento, que as cobras podem ser separadas de acordo com o seu comportamento. As mais agressivas são colocadas em caixas diferentes das menos agressivas, para que aquelas não molestem as outras a ponto de as matarem. A título de exemplo, temos os casos da cobra mamba e da (cobra mansa) que localmente são conhecidas por, mouko ou m’bobo e nivuvury, respectivamente. Estas duas espécies devem ser isoladas das outras cobras porque elas podem matalas, se postas na mesma caixa. Estas precauções encontram suporte e justificação no facto das cobras serem consideradas 50
Caixote, é uma caixa feita de madeira, com uma rede lateral, por onde se pode ver as cobras e uma pequena abertura por cima da caixa, por onde são introduzidas ou retiradas as cobras.
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por aquela comunidade como “dádivas dos seus defuntos e que não podem morrer. Deste modo, estamos perante um modelo de conservação da biodiversidade baseada em crenças. Por isso, as cobras capturadas ficam com os dançarinos o tempo estritamente necessário para apresentação da dança previamente programada. Assim que terminar o tempo necessário de permanência, realizase uma cerimónia de invocação dos espíritos dos antepassados agradecendo-os por conseguirem cumprir com o programa préestabelecido e procede-se à devolução ao seu habitat natural.
A caixa de madeira onde são guardadas as cobras
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Capítulo IV
Inouwa N’niketxe
O Culto da serpente O culto da serpente encontrava-se presente em diversas sociedades primitivas e da Antiguidade. Este culto teria origem num misto de respeito e medo que a serpente causava às comunidades. O respeito e o medo teriam sido causados pelas reacções e consequências fatais da mordedura da serpente. Estaria, igualmente, associado à ideia da serpente como um animal benéfico, atribuido o mito da sabedoria, de conhecimentos secretos, poder mágico, qualidades terapêuticas, a fertilidade, a imortalidade, a omnisciência e a omnipotência, a incorporação de um deus e como símbolo religioso.51 Na Antiguidade, o culto da serpente teve a sua origem no Baixo Eufrates, propagando-se depois a outras partes do Mundo. No Egipto, os camponeses acreditavam que a serpente era a 51
Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Editorial Enciclopédico, Ltd . Lisboa, Rio de Janeiro, vol.28:470
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incorporação da deusa Rannut52. No México, a serpente foi tida como um símbolo religioso; na China, tem templos próprios e o culto surge associado à crença na metempsicose53. Os japoneses adoram-na como um ser misterioso e por vezes como a incorporação de um espírito ou um deus.54 Na Grécia, as serpentes eram tidas como sagradas porque se acreditava que os heróis e os mortos apareciam nas formas de serpentes. Por isso, a serpente esteve associada à fertilidade.55 Em Roma, o culto à serpente foi influenciado pelo culto grego da Serpente Asclépios56. e estava relacionado à incorporação de um génio ou espírito, e as serpentes eram guardadas nos templos e nas casas particulares. Na Roma Antiga, a forma mais clássica do culto era a prova da castidade das virgens.57 Neste contexto, em Moçambique, concretamente no distrito de Namarrói, sendo uma região muito acidentada e coberta por florestas, apresenta condições excelentes de um habitat propício para a existência de uma diversidade de cobras, desde as mais venenosas às menos venenosas58. 52
Rannut - deusa da fertilidade e da colheita. 53 Metempiscose – doutrina religiosa e filosófica de várias escolas segundo a qual a alma transmigra depois da morte do corpo em que estava alojado para outro corpo (humano, animal ou vegetal), segundo os merecimentos alcançados. 54
Dicionário Enciclopédia Publicações Alfa. 1992:470 Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Editorial Enciclopédico, Ltd Lisboa, Rio de Janeiro, vol.28:470 55
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Asclépios – refere-se ao filho de Apolo, deus da Medicina. Prova da castidade das virgens consistia em levarem, anualmente, para a cova da serpente oferendas se esta aceitasse as oferendas feitas pelas virgens, era sinal de que elas se mantinham virgens. 58 As cobras venenosas caracterizam-se por possuir a cabeça achatada e bem destacada do corpo. As cobras inofensivas, a cabeça confunde-se com o corpo, e apresenta placas córneas em lugar de escamas. A pupila tem fenda vertical, cauda que afina rapidamente, e escamas com aspecto áspero, também indicam cobras venenosas. As não peçonhentas têm pupilas circulares, as escamas são lisas e a cauda afinada lentamente. Dannemann, Fernando Kitzinger, Pato de Minas /MG - Brasil, 2007. 57
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Entre as cobras seleccionadas para a dança podemos encontrar nivau ou mikoma, isto é, a mamba (grande ou pequena) cujo nome científico é dendroaspis polylepis (mamba negra) e dendroaspis angusticepis (mamba verde); namarrawe ou naja mossambica (cobra cuspideira moçambicana); mutota (cobra caracterizada por possuir listras pretas ao longo do corpo). Não foi possível identificar o nome da cobra mutota em português; Evily, é bitis arietanis - (víbora comum), esta é considerada como sendo espírito e, como tal, os dançarinos deixaram de utilizá-la na dança59. Igualmente, a cobra mansa ou nivuvury foi numa primeira fase, utilizada na dança. Todavia, porque quando devolvida para mata voltava a pendurar-se, na porta ou em algum sítio dentro da casa onde estava “hospedada” ou por se enrolar no pescoço do dançarino no momento da dança e por estas razões foi preterida por constituir perigo para a vida das pessoas60.
Dendroaspis Angusticepis (mamba verde) capturadas no mato já numa caixa de madeira 59
Entrevista com Sarera Nacerua e Bautene Mirione, Namarrói, 19 /Jan/2008, citados
60
Entrevista com Cristina Miguel, Namarrói, 17/01/08.
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4.2. Preparação Tradicional das Vacinas Contra o Veneno das Cobras e as interdições para os vacinados Como é do conhecimento geral, as mordeduras venenosas das cobras podem ser fatais para um homem adulto e saudável, num curto espaço de tempo, se este não for imediatamente socorrido. De acordo com Fernando K. Dannemann (2007) e Almeida Guissamulo61 a preparação laboratorial do soro (paliativo) da mordedura das cobras, é da seguinte maneira: “São injectados em cavalos doses repetidas e gradualmente maiores de veneno. O sangue do animal produz anticorpos que neutralizam o tipo de veneno injectado. Em seguida, o cavalo é, parcialmente, sangrado e o soro separado do sangue é posteriormente purificado, concentrado e colocado em ampolas, para o uso em humanos.” 62 No que tange ao processo de preparação da vacina contra o veneno das cobras, em moldes tradicionais, esta é feita à base de misturas das cinzas de duas plantas, localmente designadas por konamo e m´pitchi e as cinzas da cabeça de uma cobra venenosa. Konamo é uma planta herbácea com cerca de 20 a 40 cm de altura e utiliza-se a raiz, o caule e as folhas. Enquanto no m´pitchi se utiliza apenas o caule e a respectiva casca. É da mistura destes três tipos de cinzas que resulta a vacina contra o veneno das cobras63. 61
Entrevista com Almeida Guissamulo, Biólogo, Museu de História Natural, Maputo, 2007 62
Entrevista com Maria Alice Daniel, Administradora de Namarrói, Namarrói, 16/10/2008 63
Entrevista com Bautene Mirione, Namarrói, 19/01/2008
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Para a vacinação primeiro fazem-se incisões nas articulações do corpo64, seja por meio do dente de uma serpente, seja por um estilete de ferro, ou por uma lâmina. Em seguida, a mistura de cinzas de konamo e m´pitchi, é aplicada nos locais das incisões com ligeiro sangramento, friccionando com dedo para que o remédio possa penetrar mais profundamente no corpo, o que irá imunizar a pessoa vacinada. O simples acto de vacinar contra as mordeduras das cobras em si pode não surtir os efeitos desejados se não forem observadas certas restrições, como as que abaixo vêm detalhadas: a) – “não lavar as mãos na panela onde se prepara xima; designado mukarikony em elómuwè; b) - não comer com uma colher de pau usada para cozinhar, namukope em elómuwè; c) - não bater numa criança com as mãos; d) e, não saltar o pau usado para pilar muthy65”. Para tornar estas restrições menos rígidas, por causa das dificuldades em cumpri-las integralmente, foi introduzida uma modalidade que torna as restrições nulas logo que a pessoa acaba de ser vacinada. Segundo Suluvai Mwanakwaly, um dos peritos em vacinas contra as mordeduras das cobras mais venenosas, existe a possibilidade de prevenir violações apenas das interdições supra citadas. Para tal, a pessoa mal é vacinada deve violar tais interdições como:lavar as mãos na panela onde se 64 As incisões são feitas: nos intervalos entre os dedos polegares e indicador das ambas as mãos, nas articulações entre o braço e antebraço, na perna, é na articulação junto aos joelhos, na região dos tornozelos, em cima dos pés.
65 Entrevista com Cristina Miguel, segunda esposa, de Bautene Mirione, Namarrói, 19/01/2008 38
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prepara xima; saltar o pau usado para pilar66. Posto isto, acreditase que a vacina manterá a sua validade, sem que a pessoa se preocupar em observar as tais restrições. No capítulo das interdições é preciso destacar, duma forma particular, a que diz respeito aos membros que se envolvem, directamente, na caça às cobras e na dança Inouwa n’niketxe. Estes devem observar de forma rigorosa, a abstinência sexual. Nas comunidades existe a crença de que a abstinência sexual é um factor de sucesso em áreas produtivas tais como; na caça e na pesca, e nas áreas socioculturais como, produção de instrumentos musicais e em actividades ligadas à guerra. Segundo elas, a não observância da abstinência sexual, contribui para o insucesso destas actividades. E Sarera Nasserua reforça este aspecto, nos seguintes termos: “Quando meu marido caçava cobras, e durante o tempo que elas estivessem guardadas, em nossa casa, devíamos observar a abstinência sexual” .67 Assim, no dia anterior a ida a caça das cobras, todos os elementos do grupo Inouwa n’niketxe são previamente informados da missão e advertidos sobre a necessidade da observância da abstinência sexual,68 durante todo o tempo que as cobras permanecerem em “cativeiro” sob responsabilidade do chefe do grupo. Em caso do grupo ter que sair numa digressão e uma parte dos elementos não puder tomar parte nela, por limitações, sobretudo, de ordem logística ou outras, estes que ficam no povoado também se vêm na obrigação da observância da abstinência sexual, até que o grupo regresse e se realize o ritual da devolução das cobras 66
Entrevista com Suluvai Mwanakwaly, Namarrói, 19/01/2008
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Entrevista com Sarera Nasserua, Namarrói, 19/01/2008
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Entrevista com Cristina Miguel, segunda esposa, Namarrói, 19/01/2008
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ao seu habitat natural. Depois deste ritual, todos retomam a sua vida sexual sem nenhumas restrições. Neste momento uma pergunta se impõe: porque é que o grupo Inouwa n’niketxe faz questão duma observância muito escrupulosa da abstinência sexual? Esta questão pode encontrar uma resposta na crença que eles têm, segundo a qual se alguém do grupo, no período da interdição, não observar a abstinência sexual, as cobras se tornam agressivas e o risco de elas morderem alguém ser iminente. E, ainda, segundo eles, se todos observarem com rigor estas normas, as cobras se mantem passivas. Como forma de conferir maior autenticidade, Paulino Trinta contou alguns episódios em que as cobras se revoltaram contra eles nos seguintes termos: “devido à falta de observância das prescrições por parte dos elementos do grupo de Inouwa n’niketxe ocorreramse dois incidentes: O primeiro, quando o grupo se deslocou ao distrito de Milange, tendo o chefe do grupo sido atacado por uma das cobras69; o segundo, deu-se quando uma cobra mordeu o chefe adjunto do grupo, na cidade de Quelimane, durante a preparação para uma digressão à cidade de Maputo, por ocasião do II Festival Nacional da Dança Popular, em 2002. Nos dois casos, o grupo entendeu que alguns dos seus elementos haviam desrespeitado certas normas. No final da digressão, os presumíveis infractores foram sancionados e sujeitos a um ritual de purificação. O ritual de purificação serve para colmatar a infracção cometida, e para tal o infractor deve ser sujeito à uma nova vacinação. Para prevenir tais situações, o grupo da dança é constituído, 69
Entrevista com Paulo Trinta, Namarrói, 16/10/2008
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maioritariamente, por casais, e para as digressões são escolhidos estes casais, o que facilita de certa forma, a observância rigorosa destas normas.
4.3. O Secretismo na Transmissão dos Saberes e Valores Culturais A transmissão dos saberes e dos valores culturais, regra geral, é feita dentro de um quadro restrito da linhagem, onde se replica e se conserva de geração em geração. O objectivo deste procedimento é garantir a preservação e continuidade dos ensinamentos dos seus ancestrais às novas gerações. Estes actos, não só garantem a valorização dos saberes e de valores culturais, mas igualmente, permite a coesão dos elementos dentro da sua linhagem. Dentre esses valores encontramos duas categorias principais: valores gerais e valores secretos. Os primeiros são do domínio de toda a comunidade que vive no espaço geográfico da linhagem e segundos, a sua transmissão é de carácter restrito; ou seja, a transmissão dos saberes tradicionais, só pode ser feita no seio da própria família. Todavia, na falta de um descendente directo dentro da linhagem, a transmissão será feita para uma pessoa mais próxima e de confiança. Este último caso encontra um paralelismo com o de Nacopo que, apesar de não pertencer a linhagem de Nampolio, teve acesso aos conhecimentos sobre as técnicas de cura contra as mordeduras de cobras. É por isso que Nacopo, antes da sua morte teve que devolver à família de Nampolio, da qual tinha recebido os conhecimentos técnicos terapêuticos de cura das mordeduras das cobras. Foi deste modo que Bautene Mirione, pertencente à árvore genealógica de Nampolio, se tornou sucessor de Nacopo, logo após da sua morte. O parentesco de Bautene com Nampolio é confirmado por Sarera Nasserua nos 41
Inouwa N’niketxe
seguintes termos: “Nacopo, meu marido, estava também casado com Maria Magara, irmã de Bautene e prima de Nampolio” 70. Por isso, Nacopo teve de iniciar Bautene nos conhecimentos sobre a medicina contra o veneno das cobras. E assim, este passaria a assumir a chefia do grupo de dança Inouwa n’niketxe, depois da morte de Nacopo. Esta passagem de testemunho de Nacopo para Bautene é igualmente confirmada por Suluvai nos seguintes termos: “Nacopo, já com idade avançada e antes da sua morte preparou Bautene como seu legítimo sucessor porque este era da família de Nampolio” .71 Actualmente, Bautene é o chefe do grupo da dança Inouwa n’niketxe e, como tal, tem se preocupado em transmitir os conhecimentos recebidos de Nacopo ao Mateus, seu irmão e Maurício, seu filho primogénito, como forma de passar o legado da família Nampolio, à nova geração O secretismo é uma realidade na dança Inouwa n’niketxe na medida em que não se pode transmitir às pessoas estranhas os conhecimentos e saberes, estes são passados dentro da linhagem, como aliás, é norma de transmissão desta categoria de conhecimentos. Foi neste contexto, que alguns coreanos, depois de terem assistido uma das exibições de dança Inouwa n’niketxe, em Maputo, em 2004, decidiram ir a Namarrói contactar o grupo de dança e colherem informações mais detalhadas sobre aquela manifestação cultural. Os coreanos queriam igualmente, saber dos pormenores do processo de imunização contra o veneno das cobras e obter as plantas que eles utilizam para produzir as respectivas vacinas. 70
Entrevista com Sarera Nasserua, Namarrói, 17/01/08
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Entrevista com Suluvai, Namarrói, 16/10/08
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Konamo planta utilizada para preparação de vacina contra o veneno das cobras
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Os coreanos, apesar de terem tido uma boa receptividade e colaboração por parte do chefe do grupo de dança, este não chegou a lhes revelar nenhum segredo sobre a preparação da vacina contra o veneno das cobras, muito menos das plantas usadas para tal efeito. No entanto, dada a insistência dos visitantes, o chefe do grupo da dança, como forma de lhes satisfazer a curiosidade, limitouse a apresentar-lhes plantas não verdadeiras72. Esta atitude do chefe do grupo surge como um meio de proteger os valores e conhecimentos que o grupo da dança Inouwa n’niketxe recebeu dos seus ancestrais. É neste contexto, que a então administradora do distrito, Maria Alice Daniel, aconselhou a ter-se mais compreensão, mais paciência e procurar-se ganhar a simpatia com os conhecedores dos segredos nos seguintes termos: “Devemos reconhecer que para eles, esta dança e os respectivos conhecimentos são para a família Nampolio e Nacopo, uma riqueza e um património. Por isso, quando queremos ter alguma informação devemos ser bastante compreensivos e tolerantes à sua resistência para nos satisfazerem” .73
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Entrevista com Bautene Mirione, Namarrói, 19/01/2008
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Entrevista com Maria Alice Daniel, Administradora de Namarrói, Namarrói, 16/10/2008
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Suluvai Mwánakwaly (San mwetxone) – perito em Vacinas contra as cobras mais venenosas
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Capítulo V
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O Processo de Divulgação da Dança Inouwa N’niketxe Falar da divulgação da dança Inouwa N’niketxe leva-nos a revisitar a histórica da sociedade moçambicana no que se refere as atitudes das autoridades coloniais perante as manifestações culturais, dos povos colonizados, que elas as consideravam inferiores as delas, por isso, tudo faziam para as marginalizar e até as banir. Segundo Duarte, o povo moçambicano, desde os tempos mais remotos foi detentor de uma grande riqueza e diversidade cultural que até à actualidade são pouco conhecidas. Esta situação, por um lado, prende-se pelo grande número de manifestações culturais que tradicionalmente estavam subordinadas às barreiras étnicas e regionais, que durante séculos, o povo moçambicano esteve submetido74”. DUARTE, Maria da Luz Teixeira, Catálogo de Instrumentos Musicais de Moçambique, Tipografia “Notícias”, Maputo, 1980. p.3 74
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Por outro lado, com a dominação colonial do nosso país, este sistema moveu um processo de repressão cultural que consistia em proibições e agressões, particularmente contra as danças o que fez com que a sua prática se tornasse clandestina, regionalizada, reforçando certas características obscurantistas que possuíam e, noutros casos, levando ao seu desaparecimento75. Neste contexto a dança Inouwa N’niketxe, não foi uma excepção, pois sofreu um forte processo de repressão por parte das autoridades coloniais, facto que, provavelmente, teria contribuído para que esta manifestação cultural se limitasse a um grupo restrito de praticantes. Entretanto, no pós-Independência, esta dança passou a ser um dos meios de mobilização das comunidades locais e das massas populares, com a alteração do conteúdo das canções que passaram a difundir novos valores que, então, se desenvolvem. 76 Como forma de sustentar estas afirmações, Candeeiro com base num conto popular se refere a um episódio de intolerância que teria acontecido no período colonial, protagonizado pelo administrador de Milange, contra o grupo de dança Inouwa N’niketxe: “O administrador da então Circunscrição de Milange teria convidado o grupo da dança Inowa n’niketxe para aquela região onde lhes esperava uma cilada, pois ao chegar, este foi recolhido à cadeia, acusado de práticas de charlatanice. Foi durante a permanência na cadeia que a filha do administrador teria sido mordida por uma cobra. Ele aflito com a situação, viu-se obrigado a recorrer ao chefe do grupo para salvar a vida da sua filha. Uma vez 75
Dança Popular em Moçambique, I Festival Nacional de Dança Popular, República Popular de Moçambique, 1978.p.16 76 Dança Popular em Moçambique, I Festival Nacional de Dança Popular, República Popular de Moçambique, 1978.p.16
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tratada e curada, o administrador, em reconhecimento pelo sucedido, libertou o grupo da dança de Namarrói”.77 De referir que o sentimento de desprezo à cultura moçambicana pelas autoridades coloniais foi uma constante durante a vigência daquele regime. Este desprezo era uma estratégia visando desprover e esvaziar o colonizado da sua cultura, considerando-o acéfalo, em contrapartida, o regime colonial procurou assim, impôr ao colonizado a sua cultura. Entretanto, esta estratégia falhou porque o povo moçambicano resistiu de várias formas e praticou de forma secreta as suas expressões culturais como o caso de gule wa nkulu (nyau), mapiko, n´quayo, e outras que, actualmente, constituem o património cultural do povo moçambicano. Refira-se que a cultura de um povo não pode desaparecer pela simples vontade de quem julga inconveniente ou julga que ela é, simplesmente inferior, ela resistiria a tudo. Citando Samora Moisés Machel, “a cultura de um povo é o sol que nunca desce”, isto é, tanto a cultura, como o povo, nunca desaparecem. Importa salientar, que apesar destas atitudes hostis das autoridades coloniais portuguesas em relação ao Inouwa n’niketxe, estas admiravam esta expressão cultural a ponto de a solicitar sempre que assim o entendessem, para ser exibida nas datas comemorativas. Desde esta altura, Inouwa n’niketxe, no contexto da dinâmica cultural, passou a sofrer algumas transformações, em função da conjuntura política e sociocultural de cada momento. No período pós – independência este processo de divulgação ganhou maior ímpeto e a dança passou a ser executada em paralelo com outras manifestações culturais, em celebrações das datas comemorativas e em vários festivais nacionais.
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Entrevista com Abibo Candiero, Namarrói, Chefe de Repartição da Cultura Distrital 18/Jan./2008
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É de salientar que desde a década de 80 que o grupo começou a participar em manifestações locais de carácter competitivo com outras expressões culturais locais e na década de 90 já surge em manifestações culturais de âmbito provincial e nacional, tais como: A nível provincial, o grupo tem participado em eventos e festivais inter-distritais, a título de exemplo: as deslocações aos distritos de Morrumbala, em 2008; Guruè, Mocuba, no VI Festival Provincial, em 2010, no Alto Molócuè, em 2010 e no Festival de Zalala, um evento turístico que decorre anualmente na Praia de Zalala, no Distrito de Nicoadala. No II Festival Nacional de Dança Tradicional, realizado em Maputo no ano de 2002; a província da Zambézia, apresentou a dança Inouwa n’niketxe e o grupo recebeu um Diploma de Honra, além de outras recordações78. Participou também em 2008, no V Festival Nacional de Cultura, em Xai-Xai.
Diploma de Honra da participação do grupo no II FNDP, 2004 78
Bautene Mirione, Namarrói 19/01/2008
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Capítulo VI
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5.1. Os Instrumentos Musicais Em termos de instrumentos, a dança Inouwa N’niketxe é bastante modesta, merecendo especial referência dois tipos de chocalhos: O primeiro é o que os dançarinos amarram nas pernas. Estes são feitos a partir de caroços secos de manga, que depois de extraído o conteúdo do seu interior, são neles introduzidas algumas pedrinhas que com o movimento das pernas dos dançarinos, produz um som característico “ketxe, ketxe, ketxe”, daí o nome de niketxe. Estes também podem ser confeccionados, com latas e pedras. O outro tipo de chocalhos os dançarinos trazem nas mãos, que localmente, é conhecido por missassa79. Nesta dança os homens são os únicos que dançam amarrando chocalhos nos dois pés. E de acordo Paulino Trinta: 79
Missassa- em emacuwa, é masseve, em tsonga, por mafawafawa ou matxatxa
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“Os chocalhos são apenas para os homens, porque na dança, eles movimentam mais os pés e as mulheres mexem, graciosamente, os seus quadris, emprestando a dança maior beleza e espectacularidade” 80.
Chocalhos que os dançarinos amarram nas pernas durante a dança.
A ausência de chocalhos nas mulheres não é facto isolado, pois em muitas danças do país não é frequente o uso deste tipo de instrumentos pelas mulheres. Contudo, existem excepções, por exemplo, em Mueda, província de Cabo Delgado, as mulheres usam chocalhos, particularmente, na dança Lingundumbwe. Para se protegerem da dureza dos chocalhos, os dançarinos, enrolam nas pernas e nos pés sacos ou cascas de árvores.
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Entrevista com Paulino Jorge Tinta, secretário do grupo, Walasse, Nammrroi, 16/10/08
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Chocalhos que os dançarinos amarram nas pernas durante a dança.
Outros instrumentos musicais sempre presentes na dança Inouwa N’niketxe são os batuques. Para a execução desta dança podem existir três a quatro tipos de batuques feitos a partir de umbila e, são todos da família dos unimebranofones, constituídos em tamanhos diferentes. Segundo Bautene, o maior de todos é designado em elomwé por murepele, e é coberto na parte superior por uma pele de um animal selvagem, chamado n’komathi (cabrito de mato ou chango). Este batuque tem a função de produzir o tom baixo. O médio é designado por m’lapa; coberto de pele de jibóia, produz tom médio. Finalmente, o pequeno, designado massa, coberto com pele de salamandra, tem como função, produzir um tom baixo.
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Missassa, outro tipo de instrumentos que o grupo leva nas mãos
Estes três tipos de batuques diferem também no modo de perfuração da parte inferior de cada um, pois o maior (murepele) possui a cavidade no lado lateral; o médio (m’lapa), tem uma perfuração na base e o menor possui um pequeno furo na parte lateral do batuque, com um diâmetro aproximadamente de meia polegada. Outra diferença, está relacionada com a maneira como eles são tocados. Os dois primeiros são percutidos com as mãos, enquanto o pequeno, a percussão é feita por meio de dois pequenos pauzinhos chamados ekopo. Para que o som produzido seja o mais fiel possível ao som desejado, os batuques são aquecidos ao lume ou aos raios solares. Assim, as superfícies das peles tornam-se ásperas, produzindo tons de acordo com as tonalidades requeridas.
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Da esquerda para a direita os batuques murepele, m´lapa e finalmente, massa.
5.2 Coreografia Como já nos referimos anteriormente a dança não é somente, uma simples sequência de gestos e movimentos corporais simultâneos, dentro de um ritmo musical, mas também uma expressão rítmica gestual de sentimentos humanos. Deste modo, os executantes do Inouwa N’niketxe, ao som de batuques e chocalhos executam os passos da dança. Os dançarinos, dispostos em círculo, em torno dos tocadores de batuques e intercalados entre as mulheres, crianças de ambos os sexos ou mesmo de forma aleatória, exibem movimentos cadenciados e rítmicos. O número de dançarinos pode variar entre 10 a 30. Os passos desta dança são constantes, mesmo com a variação da canção. O movimento é bastante suave, destacando-se o pé
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direito na cadência do passo base, contribuindo para a produção do efeito sonoro dos chocalhos. Portanto o pé direito faz um movimento discreto para frente e para trás auxiliado pelo pé esquerdo. Estes passos são acompanhados pelo movimento de braços e, sobretudo, das ancas, que se movem com uma perícia invejável e deliciosa para os olhos sensíveis à cultura tradicional. A dança atinge o auge quando o chefe do grupo (o maestro) retira as cobras da caixa bem protegida por ele e distribui-as pelos dançarinos. Cada elemento pode receber, em princípio, uma cobra que a exibe, quer segurando-a nas mãos, quer colocando-a nos seus ombros. Este é o momento mais alto da apresentação da dança, pois mostra todo o potencial, tanto da execução, assim como da demonstração das faculdades e capacidades de dominar as cobras tornando-as inofensivas e sem poder de reacção até para com as crianças. Os dançarinos permanecem com as cobras entre 8 a 10 minutos e findo este tempo, o maestro recolhe-as para a caixa. De acordo com Paulino Trinta, as cobras são postas em repouso para evitar que elas fiquem cansadas o que as pode agitar. Este momento é preenchido por um outro ritmo de dança, sem as cobras que é designado khamurumole.81 O ritmo Khamurumole82, inicia logo depois que o maestro recolhe as cobras que até então estavam com os dançarinos. Este ritmo, além de servir de um intervalo para as cobras, é caracterizado por movimentos que as mulheres fazem das ancas e dos quadris cuja duração é, sensivelmente, entre três a cinco minutos. E, em seguida, retoma-se o ritmo Inowa N’niketxe, quando o líder volta a distribuir as cobras. Para terminar, o líder recolhe todas as cobras, coloca-as em volta do pescoço e, assim, dança algum tempo, com elas e termina devolvendo-as na caixa. 81
Entrevista com Paulino Jorge Tinta, secretário do grupo, Walasse, Namarroi, 16/10/08 82
Idem
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Alguns momentos da dança Inowa N’niketxe
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5.3. Conteúdo das Canções As canções reflectem o quotidiano da vida dos artistas e da comunidade circundante. Estas abordam sobre a educação, a fome e a colheita. É preciso sublinhar que a canção nesta dança não tem um papel de grande destaque, daí que ela é feita por apenas duas a quatro palavras. Para o caso em apresso, os artistas falam de caça das cobras invocando aos seus espíritos pelo sucesso, assim como elogiam os fundadores da dança, e agradecem pelos conhecimentos da medicina verde e dos antídotos contra o veneno das cobras. Entretanto, no ritmo khamuromole, as canções tem o sentido crítico, sobretudo, dos seus educandos que, por vezes, não aceitam os conselhos que lhes são dados. Dada a dinâmica social e cultural, as canções têm procurado reflectir e acompanhar a situação real vivida a nível do distrito e do país, como transmitir mensagens de combate ao HIV/SIDA e outros males que afectam as comunidades. 5.4. A Problemática da sustentabilidade da dança Inouwa N’Niketxe, Inouwa n’niketxe constitui uma dança de carácter exclusivista e secreta na sua essência mais profunda. Ela continua a ser praticada exclusivamente por um único grupo de pessoas da mesma comunidade. Apesar deste carácter, a dança Inowa n’niketxe constitui um excelente meio de integração e coesão social do grupo, resultando assim na necessidade de ajustar o comportamento individual às normas que regem a comunidade. Sendo uma dança associada à rituais; como Nakamuwa em que são evocados os espíritos dos antepassados e ritual em que as cobras são devolvidas ao seu habitat natural, com este gesto, eles acreditam estarem a devolver as cobras aos seus legítimos donos, 57
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os seus antepassados; além disso, é uma dança regida por muitas prescrições e regras comportamentais, tendo como principal destaque a da abstinência sexual colectiva em momentos de caça as cobras e o tempo que elas permanecem com elas. O outro factor de risco é por ser praticada na sua maioria por gente da terceira idade, agravado pelo facto dos jovens abandonarem o distrito em busca de melhores condições de vida; a não integração de novos elementos que não sejam do grupo quer por medo das cobras quer por outras razões; e pelo facto de a dança não ser praticada por outros grupos por falta do domínio das técnicas. Esta dança tem um valor inestimável por ser a única, tanto ao nível do distrito de Namarroi, como do país daí, os riscos do seu desaparecimento são maiores. Assim, a questão da sustentabilidade, como um legado recebido do passado, constitui uma ameaça. Segundo a UNESCO: “A conservação do nosso passado cultural e natural é da nossa responsabilidade como povo83”. Para a materialização desta asserção cabe a nós todos como parte deste povo desenvolver mais trabalhos de investigação como forma de preservar e promover o nosso património cultural. Refira-se no entanto, que a participação deste grupo nos festivais nacionais de dança popular constitui uma iniciativa notável nos esforços visando a sua valorização, promoção, e, portanto, a sua divulgação. Contudo, a participação nestes eventos culturais nacionais tem se deparado com alguns constrangimentos que advêm do medo que as pessoas têm das cobras e da falta de confiança de que elas podem protagonizar algum pânico. A título de exemplo, no âmbito do II Festival Nacional da Dança Popular, 83
UNESCO, Educação para Direitos Humanos e Democracia, na África Austral, Longman, Namíbia, 2000. p.56
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em Outubro de 2002, para o grupo poder viajar via aérea, de Quelimane à Maputo foi necessária a intervenção do Governador. Entretanto, nas deslocações seguintes, somente os membros do grupo viajaram via aérea, enquanto o chefe do grupo teve que viajar via terrestre para transportar as cobras. Igualmente, ao grupo se impôs restrições em algumas actuações nos palcos e certos lugares de forma a prevenir possíveis incidentes para não pôr em perigo a assistência84. As dificuldades deste grupo, também se estendem para a área financeira, como falta de incentivos monetários para manter as suas famílias e melhorar as suas condições em que vivem. Para reverter este cenário, o grupo pretende apostar na angariação de fundos, através de digressões distritais e províncias Apesar destas dificuldades, o grupo sente-se motivado por considerar esta dança uma herança cultural recebida das gerações anteriores. No âmbito de reconhecimento nacional pela participação em festivais nacionais o grupo recebeu Diploma de Honra, no II FNDP realizado em 2004, além de medalhas e crachás recebidos noutros festivais em que participaram.
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Capítulo VII
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Considerações Finais Inouwa n’niketxe é uma versão da dança Niketxe que surgiu, se desenvolveu e é praticada no povoado de Walasse, arredores da sede distrital de Namarrói. Contrariamente, a dança niketxe que é oriunda do distrito de Gilé, ambos distritos da Zambézia, e uma manifestação cultural bastante praticada em quase toda a alta Zambézia, Inouwa n’niketxe é apenas praticada em Namarrói. Apesar da dança Niketxe não ter sido originária de Namarrói, este facto não impediu que as populações deste distrito se apropriassem dela por intermédio dos trabalhadores das plantações de Gurué que a praticavam nos momentos de lazer depois de jornadas de trabalho forçado. Foi neste contexto que a dança chega ao distrito de Namarroi. Mais tarde, esta manifestação cultural seria enriquecida por Nacopo que fora salvo da morte por Nampolio, uma figura muito
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prestigiada pelos conhecimentos técnicos terapêuticos de cura das mordeduras das cobras, cujos conhecimentos ele adquiriu e passou a caçar e a dançar com as cobras, criando assim, a partir do Niketxe, a dança Inouwa n’niketxe. E a cobra passou a ser o elemento central desta nova manifestação cultural. Teria sido assim que Nacopo criou a dança Inouwa n’niketxe e passou a tratar das mordeduras das cobras como se preocupou em deixar este legado para as gerações futuras. E até aos nossos dias, tanto a dança como a técnica terapêutica de cura das mordeduras das cobras são praticadas em Namarrói. Inouwa n´niketxe, como outras manifestações culturais do povo moçambicano, sobreviveu a repressão colonial, factor que fez com que a prática de algumas dessas manifestações culturais se tornassem, quer clandestinas, quer ganhassem características regionalizadas, ou adoptassem formas obscurantistas e, em certos casos, fossem condenadas ao seu desaparecimento precoce.
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Entretanto, esta repressão das autoridades coloniais portuguesas teve de enfrentar a resistência natural do povo moçambicano que transformou a dança numa poderosa arma de luta. Foi através dos movimentos e da mímica que os dançarinos atacavam os agentes da administração colonial e da autoridade religiosa ridicularizando os seus comportamentos. Por outro lado, o povo moçambicano soube por meio da dança denunciar os maus tratos no trabalho forçado, nas plantações, estradas, minas e construções dos caminhos -de- ferro, através do gesto, da canção e da música. Foi neste contexto que a dança Inouwa n´niketxe surge e se impôs como mais uma forma de expressão cultural moçambicana. Ela lança as suas bases em três grandes pilares; sendo o primeiro suporte, a ligação com espíritos dos seus antepassados, segundo 62
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suporte, a crença na força dos seus rituais que são o suporte para o sucesso da caça as cobras e o ritual da devolução das cobras para seus habitat como garantia da continuidade e gratidão as seus antepassados, a quem consideram os donos das cobras por isso as devolvem depois de alcançarem os objectivos que os levaram a caçá-las; e o terceiro pilar é o grande domínio dos conhecimentos das práticas curativas e preventivas contra as mordeduras das cobras, herdadas dos seus ancestrais que esta comunidade desenvolveu e utiliza para prevenir e curar os males que advêm das picadas mortíferas das cobras. A componente de conhecimentos de medicina tradicional merece um estudo multidisciplinar para o desenvolvimento de mais trabalhos investigativos mais específicos, com objectivo de fazer estudos mais detalhados das plantas utilizadas para o fabrico dos antídotos que eles utilizam para anular a acção 63
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das cobras para se descobrirem as virtudes terapêuticas destas plantas. Deste modo, poder-se-á proteger, valorizar e preservar os conhecimentos ancestrais desta comunidade. A dança Inowa N’niketxe apesar da sua base, tipicamente familiar, tem estado a ser divulgada através de actuações públicas em momentos festivos e em participações em Festivais à nível distrital ou provincial, assim como nacional. Esta dança constitui um motivo de orgulho para os praticantes da mesma, para as autoridades distritais, assim como para o povo moçambicano no seu todo. É neste contexto, que as estruturas administrativas locais manifestam a esperança de um dia, Inowa N’niketxe vir a ser considerada um património cultural da humanidade.
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Apesar de toda a expectativa, esta manifestação cultural apresenta algumas fragilidades comprometedoras para o futuro desta como: o secretismo, a não integração de elementos doutras comunidades; o facto de ser praticada maioritariamente por gente da terceira idade, a não integração de muitos jovens e a falta de incentivos económicos para o grupo. Por último, a dança Inowa n’niketxe é um meio de integração e coesão social dos elementos do grupo, pois reajusta o comportamento individual às normas da comunidade baseadas em prescrições e regras compartimentais.
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6. Referências Bibliográfia 1 - AHM, ISANI Relatório da Inspecção Ordinária à Circunscrição de Namarrói, Cx.75 2 - ANNEMANN, Fernando K., Cobra, Origem: Wikipédia, a Enciclopédia livre. Brasil, 2007 3 - BALANDIER, Georges Antropologia Política, 2ª edição, editorial presença, Lisboa, 1097. 4- BARROS, Jussara de, Graduada em Pedagogia, Equipe Brasil Escola, http://pt.wikipedia.org/wiki/Baco 5 - COSTA, Keilla, A Arte da Dança, http://www.suapesquisa.com/folclorebrasileiro/ dancas_folcloricas.htm , 2008
6 - DIAS, Saul, Glossário Toponímico, Histórico Administrativo Geográfico e Etnográfico de Moçambique, Lisboa, 1981 (AHM) 7 - Dicionário Enciclopédia Publicações Alfa. 1992 8 - II Festival Nacional de Dança Popular, R.P.M., Ministério da Cultura, Maputo, 2002: 9 - Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Editorial Enciclopédico, Ltd. Lisboa, Rio de Janeiro, vol.28: 10 - HANNA, Judith Lynne: http://www.cosmicadesign.com. br/etno/dança/dança.htm em 2008 11 - HUMPHREYS, D. J., Toxicologia Veterinária, 3ª edição, Espanha, Madrid, 1992 12.- http://www.alunonline.com.br/educação-artistica/danca/ 13 - INAC – Grupo Nacional de Canto e Dança, República Popular de Moçambique, 1978 66
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14 - LAMAS, Maria, Mitologia Geral: O Mundo dos deuses e dos Heróis, os Primeiros Mitos , Mitologia dos Primitivos Actuais, 2ª ed. Vol.I, Editorial Estampa, Lisboa, 1972. 15 - MARCONI, M. A., PRESOTTO, Z. M. N., Antropologia: Uma Introdução; 6ª edição, Editorial Atlas S.A. São Paulo, 2006 16 - MARTINEZ, Francisco Lerma, O Povo Macua e a Sua Cultura, Universidade de Roma, 1980; 17 - MARTÍNEZ, Francisco Lerma, Antropologia Cultural, 2ª Edição, Matola, 1995, 18 - M.E.C, Palestra sobre dança Tradicional e Moderna, Reunião Nacional de Cultura. Maputo Julho de 1977: 19 - NHACALIZE, Domingos, at all; Canção, dança e Instrumentos de Música Tradicional nos distritos de Búzi, Dondo e Marromeu. Prov. Sofala – 1, Beira. 2005 20 - PROGRAMA, 1º Festival Nacional de Dança Popular: República Popular de Moçambique, 1978 21 - Serviço Distrital da Educação, Juventude e Tecnologia (SDEJT) de Namarrói), Estudos da Origem e Aspectos Históricos do Distrito de Namarrói, Namarrói, 2003 22 - TAMELE, Viriato e João A. Vilanculo, Algumas danças Tradicionais da Zona Norte de Moçambique, Maputo, 2003 23 - VARGAS, José, Sociologia 12° ano, Porto Editora, Porto, 1998
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7. ANEXO
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8. Lista das Entrevistas 1. Abibo Candiero, Namarrói, Chefe de Repartição da Cultura Distrital 18/Jan. /2008; 2. Almeida Guissamulo, Biólogo, Museu História Natural, Maputo, 2007; 3. Bautene Mirione, 75 anos, camponês, chefe de Inouwa N’Niketxe, Namarrói, 19 /Jan/2008; 4. Cristina Miguel, 50 anos, camponesa, 2ª esposa do Chefe de Inouwa N’Niketxe, Namarrói, 19 /Jan/2008; 7. Maria Alice Daniel, Administradora do Distrito, Namarrói, 16/10/08 8. Paulino Jorge Tinta, secretário do grupo de Inouwa N’Niketxe, Walasse, Nammrroi, 16/10/08 9. Sareara Nasserua, 80 anos, anciã, viúva de Sebastão Anamuchecho Nakopo, ou Mãe Yavia, Namarrói, 19 / Jan/2008 10. Sozinho Injara – 82 anos, um ex-carpinteiro da Circunscrição Civil de Namarrói, em 1951; 11. Suluvai Mwánakwaly, (San Mwetxone) 90 anos, ancião, chefe das vacinas das cobras, Namarrói, 21/1/2008;
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