[TCC ARQUITETURA] CENTRO DE APOIO E ACOLHIMENTO PARA PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA | PARTE 1

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ARQUITETURA DA

( I N ) V I S I B I L I D A D E

Centro de Apoio e Acolhimento para Pessoas em Situação de Rua em Maringá-PR

Tatiane Mayara Alcântara Vieira

FACULDADE DE ENGENHARIA E INOVAÇÃO

TÉCNICO PROFISSIONAL

CURSO DE ARQUITETURA E URBANISMO

TATIANE MAYARA ALCÂNTARA VIEIRA

ARQUITETURA DA (IN)VISIBILIDADE: CENTRO DE APOIO E ACOLHIMENTO PARA PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA EM MARINGÁ-PR

MARINGÁ 2021

TATIANE MAYARA ALCÂNTARA VIEIRA

ARQUITETURA DA (IN)VISIBILIDADE: CENTRO DE APOIO E ACOLHIMENTO PARA PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA EM MARINGÁ-PR

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à FEITEP – Faculdade de Engenharias e Arquitetura, como parte dos requisitos para obtenção do título de Bacharel em Arquitetura e Urbanismo.

Orientadora: Profa Ma : Thais da Silva Santos

Coorientador: Prof. Esp.: Gabriel Secco Paz

2021
MARINGÁ

FEITEP – Faculdade de Engenharia e Inovação Técnico Profissional

TATIANE MAYARA ALCÂNTARA VIEIRA

ARQUITETURA DA (IN)VISIBILIDADE: CENTRO DE APOIO E ACOLHIMENTO PARA PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA EM MARINGÁ-PR

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à FEITEP – Faculdade de Engenharias e Arquitetura, como parte dos requisitos para obtenção do título de Bacharel em Arquitetura e Urbanismo

Orientadora: Profa. Ma.: Thais da Silva Santos

Coorientador: Prof. Esp.: Gabriel Secco Paz

BANCA EXAMINADORA

Professora Orientadora: Ma. Thais da Silva Santos - FEITEP

Professora: Ma. Hana Beatriz El Ghoz Kopp - FEITEP

Professora: Ma. Pollyana Larissa Machiavelli - FEITEP

Data de Aprovação: 10 de novembro de 2021

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a todos os (in)visíveis que por falta de opção acabaram nas ruas

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus por me manter forte e me permitir esta incrível conquista. À minha família, em especial a minha mãe, Solange, e avó, Ana, que sozinhas criaram eu e meus irmãos. Sempre me apoiaram e me inspiraram a ser quem sou. Vocês são guerreiras.

Ainda, aos meus irmãos, sobretudo minha irmã, Diana, que sempre me incentiva a buscar mais conhecimento.

Ao meu namorado, Carlos, por me entender e me apoiar ao decorrer dessa difícil jornada, alegrando meus dias com seu companheirismo – E obrigada por ficar ao meu lado quando até mesmo o computador quis me deixar nos últimos minutos do segundo tempo rs

Aos meus amigos da vida por todo apoio, trocas de afeto e momentos compartilhados, e por entenderem as minhas ausências ao longo do curso. Embora eu não os mencione (pois são muitos), cada um é especial e único para mim.

Aos amigos fiéis da faculdade, especialmente Everton, Ewerton, Isabela e Mônica, pelos momentos de revolta e muito trabalho duro, pelas trocas de conhecimento, pelas risadas e por todos os momentos. Irei levá-los para sempre.

A todos os meus professores pelo aprendizado profissional e pessoal Sobretudo minha orientadora, Thais, pela paciência e dedicação ao longo deste trabalho. Obrigada pelas orientações descontraídas e por sempre me ouvir desabafar.

Ao meu coorientador, Gabriel, pelo suporte e prontidão em todos os momentos que precisei de um empurrão extra.

Às equipes dos meus dois estágios atuais. Ao pessoal da Diretoria de Habitação, da Prefeitura Municipal de Maringá, por serem tão acolhedores. E ao arquiteto Bruno, pela oportunidade de estagiar em escritório e compartilhar tantos conhecimentos. Possivelmente eu não conseguiria conciliar tudo isso sendo em outros locais. Obrigada.

Ao querido amigo de turma, Willian, que infelizmente não pode estar conosco ao fim desta jornada. Obrigada por nos ter permito fazer parte de sua vida. Por fim, agradeço a todas as pessoas que de alguma forma contribuíram para minha chegada até aqui. Mesmo se não citados, vocês residem em meu coração. Sem vocês não seria possível. Obrigada!

Um dos maiores desafios é provar que a arquitetura é uma mais-valia e não um custo extra.

RESUMO

A desigualdade social no Brasil é um fato inegável e, a distribuição discrepante dos recursos evidenciam a precariedade de acesso da parcela mais pobre da população aos direitos básicos, até mesmo alguns a priori garantidos pela Constituição Federal e pelo Estatuto das Cidades Dito isso, este trabalho tem como tema a problemática de pessoas que vivem em situação de rua, que se mostra um tanto quanto invisível para a sociedade. Por este motivo, o objetivo é a criação de uma proposta arquitetônica de apoio e acolhimento que promova meios para reinserção social destes indivíduos, instituída no município de Maringá, no estado do Paraná. Além disso, o trabalho busca expressar o caráter social da arquitetura, bem como papel do arquiteto como agente promotor dos espaços, visto que a conformação das cidades pode influenciar diretamente no comportamento humano e, o que atualmente se percebe são cidades cada vez mais excludentes e menos democráticas, a exemplo da prática da arquitetura hostil. Através de estudos e pesquisas para o desenvolvimento, a proposta de projeto busca garantir espaços que satisfaçam às necessidades dos usuários por meio das escolhas construtivas e conceituais. Ainda, há a aplicação dos parâmetros de flexibilidade, adaptabilidade, e aspectos da psicologia ambiental para promoção de um ambiente acolhedor e eficaz, buscando ressaltar a essência e as particularidades de cada indivíduo.

Palavras-chave: População em situação de rua. Desigualdade social. Arquitetura hostil. Arquitetura social. Acolhimento.

ABSTRACT

The social inequality in Brazil is an undeniable fact and the difference in resources' distribution shows the precarious accessibility for the poorest to basic rights, even those guaranteed by the Federal Constitution and the Statute of Cities. That said, this job has as its theme, the situation of those who live on the streets, those who seem invisible to society. For that reason, the objective is to create an architectural proposal of support and reception that promotes ways for the social reintegration of these individuals, established in the city of Maringá, in the state of Paraná. In addition, this work seek to express the social character of architecture, as well as the role of the architect itself as a promoter of spaces, since the conformation of cities can directly influence human behavior. What is currently perceived are cities that are increasingly excluding and less democratic with the practice of hostile architecture. Through studies and development research, the project proposal seeks to ensure places that meet the needs of its users through constructive and conceptual choices. Furthermore, there is the application of parameters of flexibility, adaptability, and aspects of environmental psychology to promote a welcoming and effective environment, looking foward to highlight the essence and the particularities of each individual.

Key words: Homeless population. Social inequality. Hostile architecture. Social architecture. Welcoming places.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

BPC – Benefício de Prestação Continuada

CAPS – Centro de Atendimento Psicossocial

CIAMP-Rua – Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População de Rua

CENTRO POP – Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua

CMNP – Companhia Melhoramentos Norte do Paraná

CRAS – Centro de Referência em Assistência Social

CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência Social

COMAS – Conselho Municipal de Assistência Social

EJA – Educação de Jovens e Adultos

FMAS – Fundo Municipal de Assistência Social

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

MDS – Ministério do Desenvolvimento Social

ONG – Organização Não Governamental

PCD – Pessoa com Deficiência

PNDH – Programa Nacional dos Direitos Humanos

PNPR – Política Nacional para a População em Situação de Rua

PSE – Proteção Social Especial

PSR – População em Situação de Rua

SASC – Secretaria de Assistência Social e Cidadania

SEAS – Serviço Especializado de Abordagem Social

SENAI – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial

SESC – Serviço Social do Comércio

SUAS – Sistema Único de Assistência Social

SUS – Sistema Único de Saúde

UBS – Unidade Básica de Saúde

UEM – Universidade Estadual de Maringá

UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância

UPA – Unidade de Pronto Atendimento

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Hierarquia de necessidades humanas

Figura 2 – Indicadores da desigualdade social no Brasil

Figura 3 – Índices de comparação da linha de pobreza no Brasil

Figura 4 – Desigualdade social em São Paulo

Figura 5 – Processo de gentrificação no Brasil

Figuras 6 e 7 – Bancos antimendigos em Londres

Figuras 8 e 9 – Elementos pontiagudos em soleiras de estabelecimentos comerciais em Maringá-PR

Figuras 10 e 11 – Paralelepípedos sob viaduto de São Paulo

Figura 12 – Gráfico de estimativa da população em situação de rua no Brasil entre 2012 à 2020

Figura 13 – Alguns prazeres cotidianos do habitar

Figuras 14 e 15 – Exemplo de composição do layout de salas comuns e individuais

Figura 16 – Fachada do Centro de Assistência The Bridge

Figura 17 – Localização do The Bridge Homeless Assistance Center

Figuras 18 e 19 – Pátio central e refeitório

Figura 20 – Esquema de implantação

Figura 21 – Planta baixa do pavimento térreo

Figura 22 – Planta baixa do 1º pavimento

Figura 23 – Planta baixa do 2º pavimento

Figuras 24 e 25 – Dormitórios semi-privativos

Figuras 26 e 27 – Textos escritos nas janelas dos dormitórios

Figuras 28 e 29 – Fachada principal e posterior da Children’s Home

Figura 30 – Localização do Children’s Home of the Future

Figuras 31 e 32 – Esquemas de composição plástica dos blocos

Figura 33 – Esquema de implantação do abrigo

Figura 34 – Planta baixa pavimento térreo

Figura 35 – Planta baixa primeiro pavimento

Figuras 36 e 37 – Tatilidade dos ambientes externos e internos

Figuras 38 e 39 – Espaço Alana

Figura 40 – Localização do Espaço Alana

Figura 41 – Planta baixa do pavimento térreo

Figura 42 – Planta baixa do primeiro pavimento

Figuras 43 e 44 – Utilização de cores nos ambientes

Figuras 45 e 46 – Iluminação e transparência do Espaço Alana

Figuras 47 e 48 – Anteprojeto original de Macedo Vieira

Figura 49 – Dados gerais de Maringá, segundo IBGE

Figura 50 – Locais de maiores incidências de pessoas em situação de rua em 2019

Figura 51 – Gráfico comparativo dos locais onde costumam dormir

Figura 52 – Gráfico comparativo das razões por estar em situação de rua

Figura 53 – Gráfico comparativo de escolaridade

Figura 54 – Demais dados sobre a população em situação de rua em Maringá

Figura 55 – Mapeamento de instituições assistenciais em Maringá

Figura 56 – Esquema de setorização do Portal da Inclusão

Figuras 57, 58 e 59 – Cozinha, sala de atendimento individual e lavanderia

Figuras 60, 61 e 62 – Dormitório, sala de estar e jardim

Figuras 63, 64 e 65 – Refeitório, lavanderia superior e banheiro

Figura 66 – Mapeamento de lotes livres de propriedade pública

Figura 67 – Principais vistas do terreno escolhido

Figura 68 – Análise de equipamentos do entorno

Figura 69 – Uso e ocupação do solo

Figura 70 – Mapa de figura-fundo

Figura 71 – Hierarquia viária

Figura 72 – Mapeamento de pontos de ônibus

Figura 73 – Subdivisão do lote

Figura 74 – Esquemas de concepção formal

Figura 75 – Planta layout do bloco administrativo

Figura 76 – Planta layout dos blocos social e de serviços e educacional

Figura 77 – Planta layout do bloco dormitórios

Figuras 78 e 79 – Divisórias das salas multiuso

Figuras 80 e 81 – Dormitórios masculinos

Figuras 82 e 83 – Praça da entrada e praça redário

Figuras 84 e 85 – Praça Palco

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Caracterização dos modos de permanência da população de rua

Quadro 2 – Tipologias de abrigos improvisados pelos moradores de rua

Quadro 3 – Principais características das tipologias de acolhimento

Quadro 4 – Ambientes mínimos dos abrigos

Quadro 5 – Efeitos do uso das materialidades nas construções

Quadro 6 – Impressões causadas pelas cores mais comuns

Quadro 7 – Ficha Técnica do Centro Assistencial The Bridge Homeless

Quadro 8 – Ficha Técnica do Children's Home of the Future

Quadro 9 – Ficha Técnica do Espaço Alana

Quadro 10 – Funcionamento de instituições assistenciais em Maringá

Quadro 11 – Parâmetros de ocupação do solo

Quadro 12 – Programa de necessidades e dimensionamento

SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO............................................................................................. 17 1.1 OBJETIVOS................................................................................................. 20 1.1.1 Objetivo geral 20 1.1.2 Objetivos específicos................................................................................ 20 2 A SITUAÇÃO DE RUA: UMA EXPRESSÃO DA QUESTÃO SOCIAL...... 21 2.1 POBREZA E EXCLUSÃO............................................................................ 23 2.2 URBANISMO EXCLUDENTE.... 27 2.2.1 Invisibilidade: a arquitetura hostil............................................................ 30 2.3 OS INDIVÍDUOS DA RUA. 35 2.4 O ACOLHIMENTO................................................... 39 3 O ESPAÇO DO HABITAR 45 3.1 ARQUITETURA COMO INSTRUMENTO SOCIAL. 47 3.2 O ACOLHER PELA ARQUITETURA........................................................... 49 4 OBRAS CORRELATAS.............................................................................. 53 4.1 THE BRIDGE HOMELESS ASSISTANCE CENTER.................................. 54 4.2 CHILDREN’S HOME OF THE FUTURE.... 62 4.3 ESPAÇO ALANA......................................................................................... 67 5 MARINGÁ, CIDADE PLANEJADA............................................................. 72 5.1 A PROBLEMÁTICA SOCIAL EM MARINGÁ............................................... 75 5.2 ESPAÇOS DE ACOLHIMENTO NO MUNICÍPIO 79 5.3 RECORTE DA ÁREA DO PROJETO.......................................................... 86 6 PROPOSTA................................................................................................. 90 6.1 DIRETRIZES PROJETUAIS........................................................................ 91 6.2 A CONCEPÇÃO DO ESPAÇO DE ACOLHIMENTO......... 95 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................ 102 REFERÊNCIAS........................................................................................... 104 APÊNDICES................................................................................................ 110
Introdução

De acordo com a Política Nacional para a População em Situação de Rua, instituída pelo Governo Federal:

[...] considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória (DECRETO Nº 7 053/2009, Art. 1º).

Segundo dados disponibilizados pelo Instituto de Pesquisa Econômica

Aplicada (IPEA), desde 2012 o número de pessoas em situação de rua cresceu 140%, atingindo o total de mais de 220 mil brasileiros em 2020. Além disso, verificou-se que 81,5% desse total se localizam em municípios com mais de 100 mil habitantes, enquanto que em municípios pequenos e médios somam-se 15,5% (IPEA, 2020, p. 11). Trata-se de uma problemática antiga, mas recorrente na atualidade, que reafirma a desigualdade social do país.

Aponta-se o capitalismo e a industrialização como alguns dos agravantes desta problemática, mas as causas que levam as pessoas a viverem nas ruas são diversas, como dependência química, ausência de oportunidades e desemprego, desentendimentos familiares, entre outros. O problema é que alguns direitos garantidos pela Constituição não os abrangem, como “[ ] a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, [...], a assistência aos desamparados” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988, Art. 6º)

O direito ao “[...] uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo” , “[...] à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer [...]”, regulamentados pelo Estatuto da Cidade (LEI Nº 10.257/2001, Art. 1º e Art. 2º), também não alcançam a população em situação de rua. E, infelizmente, estes se submetem a condições insalubres de sobrevivência, ficando expostos a intempéries, alimentação deficitária, passíveis de sofrerem violência física, psicológica e/ou sexual, além de ocasionar o agravamento da saúde física e mental.

Quanto as cidades, estas têm se tornado cada vez mais excludentes. O cenário vivenciado pela população em situação de rua leva à modificação do espaço público e da paisagem urbana. Por isso, é comum os centros urbanos adotarem

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medidas de repressão e expulsão destes indesejáveis através de intervenções de 'revitalização e valorização' nestes espaços, sem que haja ações e políticas públicas que assumam a responsabilidade pela problemática e garantam os direitos humanos a esta população.

Nos últimos anos a cidade de Maringá, localizada no interior do estado do Paraná, vem ocupando notórias posições em rankings nacionais, que a levaram a obtenção do título de melhor cidade do Brasil para se viver, segundo Macroplan Para tal colocação foram avaliados fatores como emprego, saúde e segurança. Entretanto, a cidade, assim como os demais centros urbanos, carrega consigo a invisibilidade da problemática social já mencionada.

Ao andar pela cidade é comum deparar-se com pessoas em situação de rua, geralmente ocupando áreas de calçadas, viadutos, marquises e casas abandonadas Mas para a maioria dos que passeiam e caminham pela cidade, estas acabam passando 'despercebidas' ou são vistas como 'poluição visual' do ambiente urbano, fato que explica o descaso e preconceito da sociedade, sendo este um problema social enraizado culturalmente.

Sabe-se que a cidade de Maringá tem sido palco de marketing desde sua gênese e seu alto custo de vida tem ocasionado um considerável déficit habitacional. Resultado disto pode ser percebido quando comparado o crescente percentual de 105,5% do número de pessoas vivendo em situação de rua entre o período de 2015 a 2019 (OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES NÚCLEO UEM/MARINGÁ, 2019).

Quanto ao atendimento a este público, a cidade conta com algumas instituições assistenciais de apoio a necessidades imediatas e abrigamento temporário Mas, tais instituições são, na maioria das vezes, alocadas em edificações cedidas e/ou adaptadas, havendo déficit de infraestrutura e limitações de atendimento. Soma-se a isso, o fato das políticas municipais não serem tão efetivas no que diz respeito ao processo de saída das ruas e reinserção social; além do Plano Municipal da Política para a População em Situação de Rua ainda estar em fase de elaboração.

Diante disso, o presente trabalho utilizou de levantamentos bibliográficas a respeito da temática a partir de artigos científicos, dissertações, teses, livros, legislações e reportagens, encontrados em alguns bancos de dados relevantes, como Periódicos da EBSCO, Biblioteca Digital da USP, Google Acadêmico, entre outros Também foram estudadas estratégias para promoção de um ambiente

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acolhedor e aspectos da psicologia ambiental, além de análises de obras correlatas direta e indiretamente relacionadas à temática. Quanto a cidade de Maringá, foram abordadas caracterizações do público e verificação de instituições de apoio e parâmetros municipais. Para implantação da proposta foi realizado um estudo da disponibilidade de lotes públicos na região central para escolha do terreno, visitas técnicas, análises do entorno e estabelecimento de diretrizes. Por fim, a proposta de projeto vai além de um local para simples permanência provisória, permitindo o desenvolvimento de parcerias e realização de atividades diurnas que garantam ensino e profissionalização, apoio à saúde mental e física, acesso à cultura e fortalecimento de vínculos sociais, entre outros aspectos, visto que a situação de rua se dá por muitas complexidades, indo além da falta de acesso à renda.

1.1 OBJETIVOS

1.1.1 Objetivo geral

Elaborar uma proposta arquitetônica de acolhimento e acompanhamento à população em situação de rua da cidade de Maringá-PR, a fim de garantir ferramentas para reinserção social destes indivíduos.

1.1.2 Objetivos específicos

• Proporcionar visibilidade para as pessoas em situação de rua;

• Propiciar uma arquitetura inclusiva, que promova o acolhimento digno e a valorização humana;

• Permitir a liberdade de expressão e o fortalecimento de vínculos sociais;

• Promover a recuperação das identidades pessoais e devolutiva da autoestima dos indivíduos;

• Garantir suporte para reabilitação, apoio à saúde mental e a ressocialização do público alvo.

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A situação de rua: uma expressão da questão social

O termo “cidadania” é usado para se referir aos membros plenos de uma comunidade que detém o atributo de exercer seus direitos básicos garantidos pela Constituição Quanto às necessidades humanas, estas podem ser interpretadas como as necessidades físicas pessoais e as necessidades sociais dos indivíduos (ALVES, 1997).

Sobre isso, Abraham Maslow, psicólogo e pesquisador norte americano, desenvolveu na década de 1950 a teoria da hierarquia das necessidades, também conhecida como Pirâmide de Maslow (Figura 1), um esquema hierárquico de necessidades humanas, compreendida pelas categorias: fisiológica, segurança, social, estima e realização pessoal (ROBBINS, 2005).

De acordo com esta teoria, as necessidades são divididas entre as mais básicas para a sobrevivência (as que ficam na base da pirâmide), e as mais complexas (as do topo), precisas para o alcance da satisfação. Dessa maneira as necessidades são satisfeitas progressivamente, ou seja, à proporção em que uma categoria é saciada, a próxima se torna a predominante (ROBBINS, 2005).

Como exposto por Lefebvre (2011, p. 66), "[...] a cidade se manifesta como um grupo de grupos, com sua dupla morfologia (prático-sensível ou material, de um lado, e social do outro)" As relações sociais dos indivíduos são conformadas por parâmetros estabelecidas pela cultura e valores da própria vida em sociedade. Portanto, é possível aferir que a desigualdade é fruto da construção social permeada pelos interesses de classe (SANTOS, 2019), sendo assim:

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Figura 1 – Hierarquia de necessidades humanas Fonte: Elaborado pela autora (2021)

A imagem que temos de nós próprios encontra-se assim ligada àquela que temos de nosso grupo, o que nos conduz a defendermos os valores dele. A proteção do nós incitaria, portanto, a diferenciar e, em seguida, a excluir aqueles que não estão nele. (JODELET in SAWAIA, 2008, p. 61)

Estas relações impõe ainda uma conformidade de subordinação, determinando quais sujeitos terão acesso ou não aos direitos, que a priori deveria ser de todos, promovendo o status social a alguns e o negando a outros, fato este que se manifesta como fruto da exploração capitalista (SANTOS, 2019).

Nesse contexto revela-se que "[...] toda situação de pobreza leva a formas de ruptura do vínculo social e representa, na maioria das vezes, um acúmulo de déficit e precariedades (WANDERLEY in SAWAIA, 2008, p. 22)” A exclusão social percorre parcelas da população mundial, não se limitando aos países pobres, assim, têm-se que mendigos, pedintes e marginais percorrem as histórias das cidades (WANDERLEY in SAWAIA, 2008) e, mesmo que se trate de uma temática antiga, ainda é recente e polêmica.

Sendo assim, este capítulo irá retratar os moldes da desigualdade e exclusão social que assombram o país, além de retratar como elas ocorrem, bem como apresentar o conceito de gentrificação e suas consequências no meio urbano. Ainda, será retratado o contraponto da arquitetura social que pode revelar-se como a arquitetura hostil. Tratando-se propriamente da população em situação de rua, serão abordadas algumas de suas caracterizações, bem como apresentar possíveis motivos que os levam a buscar as ruas, além de pontuar os diferentes tipos de acolhimento e políticas públicas relacionadas à temática.

2.1 POBREZA E EXCLUSÃO

A pobreza é mutável, o que a leva a assumir diferentes conotações em relação ao espaço-tempo, já que esta é vinculada aos modelos de vida da sociedade, estando em constante modificação. Concomitante:

[...] é possível tomar a pobreza como um problema que está inserido num complexo jogo de forças que se opera na sociedade, frequentemente em favor daqueles que possuem o capital. Não se trata de um problema individual na sua gênese (MARTINUCI, 2008, p. 31)

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Sendo possuidora de muitas correlações, até o século XIX, por exemplo, era comum acreditar que a pobreza não tinha solução, logo, não era possível ajudar a todos. Na visão do protestantismo a pobreza estaria ligada à uma 'condenação divina', sendo a riqueza como sinal de benção. Por outro lado o catolicismo costumava apreciá-la como sinal de virtude do homem. Há também as variações decorrentes do lugar, ou seja, a pobreza assume uma configuração específica de acordo com a localidade e o tamanho do centro urbano a qual pertence (MARTINUCI, 2008).

Contudo, a pobreza pode ser determinada pela escassez de recursos ou pela má distribuição dos existentes. No caso do Brasil, é caracterizada pela segunda opção, já que, apesar de ser um país com muitos pobres, não está entre as populações mais pobres quando comparado mundialmente Aliás, o país ainda vive uma herança de injustiça a qual exclui uma parcela significativa da população do acesso a parâmetros de dignidade e cidadania (BARROS; HENRIQUES; MENDONÇA, 2000).

A pobreza ainda pode ser categorizada em dois níveis: pobreza primária –indivíduos cuja renda é insuficiente para assegurar sua sobrevivência – e pobreza secundária – não tão grave, mas ainda assim reflete um estado de carência (ALVES, 1997). Cabe ainda expor que se trata de um fenômeno multidimensional, o qual aborda tanto condições materiais quanto dimensões subjetivas da existência (MARTINUCI, 2008).

Nesse cenário, segundo Alves (1997, p. 5), "[...] o conceito clássico de pobreza parece já não ser suficiente para dar resposta às crescentes formas de disfunção social". De mesmo modo, o termo "exclusão social", ainda que seja impreciso, é cada vez mais reconhecido pelas instâncias públicas.

Do ponto de vista econômico, o termo “exclusão” aponta para a pobreza monetária; já do ponto de vista social “exclusão” retrata o conceito de discriminação e desigualdade, e por questões éticas representa a injustiça. Esta ainda não se trata de uma 'falha' no sistema, mas sim, é o produto de seu funcionamento (SAWAIA, 2008), uma vez que a "[...] sociedade exclui para incluir e esta transmutação é condição da ordem social desigual, o que implica o caráter ilusório da inclusão. Todos estamos inseridos de algum modo, mas nem sempre decente e digno [...]” (SAWAIA, 2008, p. 8).

Como reforço a esta ideia, Alves (1997) propõe que:

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A noção de exclusão social põe em destaque a dimensão relacional da "pobreza em sentido lato", referindo-se a uma situação de inadequação (ou inexistência) de interação social de pessoas na sociedade de que fazem parte. [...] é este carácter de maior abrangência que distingue, basicamente, a análise de 'exclusão social' da análise de "pobreza em sentido estrito” (ALVES, 1997, p. 14).

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019), entre as formas de desigualdades sociais do país, a por cor ou raça é a que se mostra mais intensa, como pode ser visto na Figura 2 Enquanto a população branca ocupa os maiores cargos de gerência, a preta ou parda se mostra mais ativa em trabalhos informais, indo de encontro à desigualdade educacional, onde os pretos ou pardos apresentam maiores índices de abandono escolar, ocasionado por diversos motivos (entre eles pela necessidade de trabalho, para complementação de renda familiar), o que justifica o fato da taxa de analfabetismo se mostrar 5,20% maior do que a população branca. Além disso, outra discrepância é quanto à taxa de violência e homicídio que, novamente, coloca a população preta como as maiores vítimas.

Fonte: IBGE (2019)

Com relação ao mercado de trabalho, a informalidade é associada à precariedade ou ausência de acessos aos direitos básicos, como salário mínimo e aposentadoria. E, mesmo em emprego formal, há desigualdade de salário quando comparadas a raça ou sexo já que essa minoria (pretos ou pardos, principalmente quando do sexo feminino) detém menores acessos a oportunidades profissionais,

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Figura 2 – Indicadores da desigualdade social no Brasil

enquanto o homem branco, quase sempre, se sobressai entre os demais (IBGE, 2019).

Sobre isso, Alves (1997) defende que o emprego é um dos principais fatores de integração social, sendo assim, a análise do funcionamento do mercado de trabalho pode explicar como este contribui para a vulnerabilidade do conjunto de pessoas em situação de exclusão social. Quanto à moradia, a população preta ou parda possui mais chances de residir em aglomerados subnormais, ou outras inadequações, do que a população branca (IBGE, 2019).

Para o acompanhamento e avaliação da pobreza a nível global, o Banco Mundial estipulou o valor comparativo de renda per capita de US$1,90 diários para países menos desenvolvidos e a linha de US$5,50 diários para os países de desenvolvimento médio alto, caso do Brasil (IBGE, 2019). Sendo assim, a partir da figura abaixo é possível aferir que o país possui um considerável índice de pessoas que vivem com rendimentos abaixo da linha da pobreza, sendo 15,40% entre pessoas brancas e 32,90% entre a população preta ou parda.

A Agenda 2030 aprovada pelos membros das Nações Unidas em 2015, aponta para um plano de ação em prol do desenvolvimento sustentável que inclui 17 objetivos e 169 metas globais integradas em três dimensões: econômica, social e ambiental. Dentre seus objetivos estão: redução da desigualdade dentro dos países e entre eles; erradicação da pobreza e da fome; educação inclusiva; emprego

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Figura 3 – Índices de comparação da linha de pobreza no Brasil Fonte: IBGE (2019)

decente e garantia do bem-estar de todos os seres humanos. Tais metas foram estipuladas para serem alcançadas até o ano de 2030, no entanto, até os dias de hoje, nota-se que em alguns países esta realidade ainda é distante e o cenário de disparidade de riqueza e oportunidades ainda se faz presente nos centros urbanos (AGENDA 2030, 2016).

Diante disso, são pertinentes alguns questionamentos acerca da efetividade das políticas públicas. É discutível o fato de serem efetivas atualmente para que o quadro de pobreza e desigualdade seja reduzido no país. Por consequência e concomitante, questiona-se, inclusive, se a sociedade pode ter uma coparticipação no cenário de descaso com essa população menos favorecida. Tais pontos serão abordados nos tópicos seguintes.

2.2 URBANISMO EXCLUDENTE

As composições espaciais das cidades são mutáveis, sendo alteradas com o decorrer do tempo (FURTADO, 2014). Contudo, cabe pontuar uma característica que, geralmente, os centros urbanos possuem em comum: o fato de associar suas regiões centrais às relações de poder.

Historicamente na cidade arcaica, grega e romana, a centralidade é definida por uma praça de reuniões, seja a Ágora ou o Fórum. Na cidade medieval a praça é retomada como centro comercial, já se fazendo presente a exclusão de algumas vizinhanças a partir da disposição dos espaços – as regiões mais privilegiadas pertenciam a igreja, as demais se destinavam às camadas servidoras –, sendo nela instituída o sentido da função econômica e do valor de troca (LEFEBVRE, 2011).

Na cidade capitalista por sua vez, é criada a centralidade de consumo e seu duplo caráter de 'lugar de consumo' e 'consumo de lugar', na qual além de produtos, o espaço também é consumido pelos usuários como lugar de encontro, associado ao aglomerado de coisas, como lojas, locais de lazer, entre outros (LEFEBVRE, 2011). A partir desta concepção, revela-se que os mais afortunados costumam ocupar os centros das cidades, onde todos os recursos e privilégios são garantidos, enquanto a minoria pobre vive às 'margens’, muitas vezes em locais sem infraestrutura, vítimas da distribuição desigual dos direitos.

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Outra legitimadora da especulação capitalista e da seletividade social diz respeito às intervenções urbanas de interesses mercadológicos pautadas nos conceitos de city marketing e/ou cidade-espetáculo – na qual a própria cidade e a cultura são transformadas em mercadorias –, responsáveis por enfraquecer o planejamento urbano igualitário e contrapor os direitos dos indivíduos à cidade, à qualidade de vida e à cultura (PAES-LUCHIARI, 2005).

Neste contexto mais recente, a revitalização urbana tem sido erroneamente usada como instrumento do poder econômico para reincorporação de áreas degradadas, abrindo espaço não somente para a requalificação, mas também ao enobrecimento e à gentrificação (PAES-LUCHIARI, 2005). De mesmo modo, essas intervenções urbanas também podem ser reconhecidas e categorizadas como:

O urbanismo dos promotores de vendas. Eles o concebem e realizam, sem nada ocultar, para o mercado, visando o lucro. O fato novo, recente, é que eles não vendem mais uma moradia ou um imóvel, mas sim urbanismo. Com ou sem ideologia, o urbanismo torna-se valor de troca. (LEFEBVRE, 2011, p. 32).

Sobre isso, Jacobs (2011) aponta que as regras da revitalização urbana somente transferem os cortiços – ou os pobres – de lugar, não os extinguem. Por sua vez, os arquitetos, urbanistas e autoridades governamentais, na maioria das vezes, em nada contradizem a isto, os únicos que se opõem são a pessoas que moram ali, que acabam sendo vistas como entraves para o progresso.

Dadas às circunstâncias, a gentrificação trata-se de um fenômeno que consiste em melhorias físicas e mudanças imateriais (econômica, social e cultural) e, por conseguinte, a elevação do status da área, na qual o Estado se manifesta não só como condutor de mudanças, mas como um agente gentrificador (BATALLER, 2012).

A partir do exposto é possível correlacionar que a segregação socioespacial é extremamente presente nas cidades do Brasil Como representação concreta deste fato cabe aqui a famosa fotografia feita em 2004 por Tuca Vieira (Figura 4), nesta, é simbolizada a profunda desigualdade social brasileira, pois contrapõe a diferença brutal e injusta que há entre pobres e ricos, sendo retratada pela favela de Paraisópolis e ao lado um condomínio de classe alta do Morumbi, em São Paulo.

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Furtado (2014) explica que o processo primário de gentrificação segue alguns parâmetros em comum nas cidades do Brasil, onde se tem a pressão sobre o Estado para reorganização de áreas urbanas desocupadas ou consolidadas como cortiços, havendo, por consequência, a erradicação da população de baixa renda, como exemplificado na figura abaixo.

Ademais, em virtude do viés excludente do qual a cidade capitalista se constrói, revela-se o indivíduo mais excluído e vulnerável dessa história: o ‘morador de rua’, o qual, muitas vezes, vê o logradouro como única alternativa para estas mazelas do sistema e dificilmente recebe atenção da sociedade, é renegado e não obtém nenhuma confiança ou consideração do outro, nem sequer do Estado, "[...] Vive nas e das entranhas de uma cidade estruturalmente excludente e

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Figura 4 – Desigualdade social em São Paulo Fonte: The Guardian (2017). Figura 5 – Processo de gentrificação no Brasil Fonte: FURTADO (2014), adaptado pela autora (2021)

discriminatória, socialmente produzida para quem tem [...] (PALOMBINI, 2013, p. 47)", cenário que fomenta ainda mais a situação de vulnerabilidade do ser humano, inclusive:

O número alarmante de moradores de rua expõe desigualdades estruturais na sociedade brasileira, evidenciando o estado mais degradante que um ser humano pode chegar, que muitas vezes vem acompanhado de falta de opções, abandono familiar, dependência química, problemas psiquiátricos, etc. Além disso, a responsabilidade não pode ser colocada nas costas dos arquitetos, projetistas e sociedade. Mas fica a provocação de que, sempre ao abordarmos o tema de cidades inclusivas ou para pessoas, acabamos omitindo os moradores em situação de rua. (SOUZA e PEREIRA, 2018, p. 6).

De acordo com Palombini (2013), o ‘morador de rua’ é inexistente aos olhos da maioria, já que o sistema patriarcal impõe um modelo civilizacional pautado na família e na produção, na qual, os que vivem fora do 'padrão' são ignorados. Por outro lado, o 'sobrevivente' da rua pode representar a maneira mais primitiva de sociedade – viver de acordo com o que espaço oferta –, sendo este:

[...] um ser em sobrevivência em uma selva urbana e, justamente por representar um antagonismo em relação às normas vigentes de convivência, é muitas vezes não só temido e rechaçado pela sociedade tradicional, mas também e principalmente perseguido e reprimido pelo Estado. (PALOMBINI, 2013, p. 48).

Além do fato de já serem sujeitos excluídos por essência, o Estado e outras iniciativas privadas conseguem repelir ainda mais a população em situação de rua através de práticas inóspitas A exemplo da criação de barreiras e empecilhos que os afastam de locais públicos, denominados de arquitetura hostil, como modo de escondê-los dos olhos da sociedade, reafirmando sua invisibilidade.

2.2.1 Invisibilidade: a arquitetura hostil

A segregação socioespacial revela os hábitos cotidianos da sociedade atual, na qual os espaços de uso coletivo privado e com entrada controlada, como os shoppings centers ou os condomínios fechados, vêm cada vez mais ocupando o cenário urbano, justificados pelo discurso de comodidade e fuga da desordem. Entretanto, as mesmas ações que proporcionam comodidade a alguns promovem o isolamento a outros.

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Sobre isso, Gehl (2013) aponta que a desigualdade socioeconômica é uma das circunstâncias que fomentam os altos índices de criminalidade e defende que as práticas de proteção privada das propriedades não ajudam os locais onde a sensação de insegurança é fruto das condições sociais. Assim, há um pêndulo entre a segurança real e a percebida, vendida pela visão idealista de cidade segura. Como reforço de que esse ideal é algo estabelecido culturalmente, o autor expõe que:

[...] muitas comunidades urbanas são menos trancadas, incluindo bairros duramente atingidos pela criminalidade. [...] Em outras partes do mundo existem cidades e sociedades nas quais a tradição cultural, as redes familiares e a estrutura social mantêm baixos índices de criminalidade, apesar das desigualdades econômicas. (GEHL, 2013, p. 97).

Nesta conjuntura, é ressaltado que "[...] arquitetura, design e segurança caminham deliberadamente juntos, com o objetivo de inibir contatos das pessoas com ‘o outro’, mantendo-o fora, excluído, ou mantendo-o dentro, confinado” (ANDRADE, 2011, p. 3).

Nas cidades brasileiras tem ocorrido um aumento crescente de técnicas de design e vigilância usadas como forma de controle do espaço público afim de ordenar e limitar o comportamento das pessoas nos ambientes. Tais alternativas reduzem a natureza democrática do espaço e são pautadas de maneira errônea pelo argumento da segurança (FARIA in ROSANELI, 2019).

Apesar da preocupação com a violência não ser de forma alguma infundada, os equipamentos de proteção patrimonial invadiram o espaço urbano, mudando a paisagem e, muitas vezes, aumentando a sensação de insegurança nos espaços públicos da cidade. Aborda-se então fatores sociais e comportamentais – medo de estranhos, posição social, apropriação privada do espaço público – que induzem a implantação de arquitetura hostil como forma de dominar o ambiente. (FARIA in ROSANELI, 2019, p. 224).

Podendo ser caracterizada como “arquitetura hostil” – termo usado primeiramente em 2014, pelo repórter Ben Quinn no jornal britânico The Guardian (SOUZA; PEREIRA, 2018) –, a utilização de elementos inóspitos se relaciona à imagem de fortificação e afirmação social de status, além de reafirmar a segregação e exclusão social (FARIA in ROSANELI, 2019). Como estratégias, os arranjos espaciais são dispostos de maneira que impeçam a permanência de moradores de

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rua em locais públicos ou semipúblicos, locais estes que seriam mais utilizados para pernoite (ANDRADE, 2011).

Dentre alguns dos equipamentos originados dessa ideologia podem ser mencionados: grades, muros e portões de segurança, arames farpados, cacos de vidros, pinos e espetos, e até mesmo chuveiros com sistema de irrigação por sensores de presença (FARIA in ROSANELI, 2019). Também podem assumir versões mais disfarçadas – como exemplificado nas Figuras 6 e 7, que revelam bancos desconfortáveis fotografados em Londres –, mas assim mesmo, todos são utilizados com o mesmo objetivo: o afastamento de estranhos indesejáveis, sobretudo pessoas em situação de rua e pedintes.

As estratégias se assemelham independentemente da localização geográfica e são utilizadas em muitos centros urbanos da atualidade. Para implementação desses elementos, o poder público assume o papel de higienizador, apoiado pelo poder privado dos proprietários das áreas nobres, já que a paisagem formada pelos sem-teto não é nada atrativa para estes (FERRAZ et al., 2015).

De acordo com Faria (in ROSANELI, 2019, p. 239), os dispositivos usufruídos pela arquitetura hostil podem ainda ser classificados em três tipologias:

• Bloqueios do espaço público: uso privativo dos passeios cobertos através da colocação de mesas, como extensão dos estabelecimentos comerciais;

• Mobiliários urbanos hostis: bancos com divisórias, lixeiras, vasos de plantas, espetos e esguichos de água;

• Grades: barreiras usadas para fechar parcial ou totalmente os edifícios. As instalações em edifícios privados revelam a hostilidade permanente do design como tentativa silenciosa de manter os mendigos 'sob controle' e afastá-los

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Figuras 6 e 7 – Bancos antimendigos em Londres Fonte: ArchDaily Brasil (2017).

dos locais nobres das cidades. "Assim é que a arquitetura antimendigo se tornou, como conjunto de artefatos, a mais eficaz artimanha para expulsar os sem-teto da paisagem bonita e segura para turista ver” (FERRAZ et al., 2015, p. 139).

Ao retratar este aspecto pode parecer algo distante, mas essas alternativas estão presentes em boa parte dos centros urbanos, a questão é que são, muitas vezes, empregadas de maneira tão singela que acabam passando despercebidas, ou a sociedade, de modo geral, costuma não notá-las simplesmente pelo fato de não atingirem a si próprio.

Em Maringá percebe-se a presença da arquitetura hostil aplicada de maneira “disfarçada”, como pode ser observado nas Figuras 8 e 9, por meia da utilização de elementos pontiagudos em soleiras de estabelecimentos.

Figuras 8 e 9 – Elementos pontiagudos em soleiras de estabelecimentos comerciais em Maringá-PR

Fonte: Acervo pessoal (2021).

A prática de adoção destes elementos é uma representação de como o desenho urbano pode influenciar no convívio e comportamento humano (SOUZA; PEREIRA, 2018) Aliás,

É curioso que o planejamento urbano não tenha consideração pela diversificação espontânea das populações urbanas nem tente criar condições para ela. É curioso que os planejadores urbanos pareçam não reconhecer essa força da diversificação nem sejam atraídos pelas questões estéticas de sua expressão (JACOBS, 2011, p. 321).

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Enquanto alguns se opõem e confrontam esta abordagem, outros a defendem, alegando ser uma “prevenção ao comportamento criminoso”, e assim Souza e Pereira (2018) colocam em cheque a seguinte pergunta: A cidade é para todos?

Em São Paulo, um caso muito comentado se dá pela instalação de blocos de paralelepípedo sob viadutos da zona leste da capital durante a gestão do prefeito Bruno Covas. Em fevereiro de 2021, repercutiu a cena em que o Padre Júlio

Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo da Rua, da Arquidiocese de São Paulo, quebrou a marretadas pedras pontiagudas colocadas pela prefeitura para repelir as pessoas em situação de rua que utilizavam o local para pernoite. Após receber

inúmeras críticas, a própria prefeitura optou por retirar as pedras que, na palavra de Lancellotti, tinham aspecto de um ‘campo de concentração’ (G1 SP, 2021). O caso é ilustrado nas Figuras 10 e 11, que demonstram as pedras sendo quebradas pelo padre e a remoção efetivada pela subprefeitura da Mooca, respectivamente.

Após o fato, no dia 31 de março, o Plenário do Senado decidiu por aprovar o Projeto de Lei nº 488/2021 que altera o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), na busca de proibir o uso da arquitetura hostil nos espaços de uso público. Do senador Fabiano Contarato e relatada pelo senador Paulo Paim, a proposta denominada de “Lei Padre Júlio Lancellotti” segue, até então, para aprovação da Câmara dos Deputados. Em justificativa, Contarato afirma que muitas cidades brasileiras têm incentivado esta inospitalidade motivada pela especulação imobiliária que objetiva a valorização do entorno através da remoção do público indesejado, além disso,

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Figuras 10 e 11 – Paralelepípedos sob viaduto de São Paulo Fonte: G1 SP (2021).

defende que a arquitetura urbana não deveria ir por este caminho, mas sim, promover conforto, abrigo, bem-estar e acessibilidade nos espaços livres de uso público (SENADO NOTÍCIAS, 2021).

Por fim, acerca dos mobiliários urbanos, Gehl (2013) aponta que são fundamentais aos encontros e, dependendo de como são utilizados, podem ajudar ou atrapalhar o convívio social. Diante disso, entende-se que os mobiliários hostis em nada contribuem para os encontros e convívios, mas tornam-se incômodos e desagradáveis, contrapondo o aspecto das trocas democráticas dos locais públicos que deveriam garantir o livre acesso para expressões e manifestações sociais.

2.3 OS INDIVÍDUOS DA RUA

As denominações dadas às pessoas em situação de rua sempre partem da privação e da ausência, assim, em inglês "homeless" – traduzido como sem teto, sujeitado à falta do home –, em alemão "wohnungsloser" – aqueles que perderam a moradia –, em francês "sans domicile fixe" – sem possuir domicílio fixo. Já a expressão “morador de rua” usada no Brasil, não denota tão expressivamente a carência; nela a privação é dada de maneira mais implícita, mas assim mesmo, morar na rua já denota um estado de privação (KASPER, 2006).

A Política Nacional para a População em Situação de Rua (Decreto nº 7.053/2009) considera como População em Situação de Rua – PSR, os indivíduos cujos vínculos familiares são fragilizados e não detém uma moradia regular, resultando na utilização dos logradouros públicos como moradia e sustento, de forma temporária ou permanente. Igualmente, ressalta-se a heterogeneidade de seus modos de vivência, sendo em relação à escolaridade, faixa etária, tempo de permanência nas ruas e fontes de renda, além de outros fatores que dificultam a caracterização unidimensional do público (SECRETARIA NACIONAL DE RENDA E CIDADANIA et al., 2011) Portanto:

São diversos os grupos de pessoas que estão nas ruas: imigrantes, desempregados, egressos dos sistemas penitenciário e psiquiátrico, entre outros, que constituem uma enorme gama de pessoas vivendo o cotidiano das ruas. Ressalte-se ainda a presença dos chamados “trecheiros”: pessoas que transitam de uma cidade a outra. (BRASIL, 2008, p. 8).

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Além disso, a expressão "pessoas em situação de rua" é utilizada quando se trata de políticas sociais de órgãos públicos municipais, estaduais e federais. Na fala informal, o termo "moradores de rua" é comumente adotado. Também são associados a alguns estereótipos, como vagabundos e “mendigos”, usado não pelo sentido literal da palavra, mas sim como representação da imagem do sujeito perante a sociedade que os enxergam como sinônimo de bagunça e sujeira (PEIXOUTO, 2005; KASPER, 2006).

Dito isso, a usabilidade da denominação "moradores de rua" pode ser um tanto quanto infiel e infundado, uma vez que o público é demarcado pelo desabrigamento e falta de moradia fixa. Embora possam desempenhar a construção simbólica de uma 'casa', limitadas por cobertores, caixas de papelão, ou outros elementos, suas ‘casas-na-rua’ podem ser facilmente, e por diversas vezes são, removidas por terceiros (PEIXOUTO, 2005). Como reforço a esta ideia, cabe o excerto abaixo:

A casa do ‘morador de rua’, pensada principalmente como espaço simbólico, existe, mas ela é feita de material tão frágil, em condições institucionais tão ameaçadoras que, talvez, chamá-los ‘moradores de rua’ seja uma forma dos ‘abrigados’, os que usufruem a proteção de uma casa ‘permanente’, e que são a maioria da população das cidades, encobrirem uma situação alarmante, deprimente, desumana de uma minoria que se prefere ‘esquecer’: há muitas pessoas ‘na rua’, desabrigadas e muitas vezes famintas. (PEIXOUTO, 2005, p. 3).

Para Kasper (2006), as maiores consequências de viver nas ruas é a falta das garantias proporcionadas pelo lar, de modo que o sujeito esteja sempre exposto aos riscos – risco de ser despojado pelos policiais e órgãos públicos, além do risco de ser agredido ou roubado

Onde se localizam, a partir de um plano geográfico, pode ser variável e relativo, uma vez que não há habitat fixo. Porém, mesmo que suas atividades cotidianas possam ser dispersas e revogáveis a qualquer momento, Kasper (2006, p. 84-85) aponta que há alguns fatores relevantes para permanência, sendo estes:

• Presença de espaços apropriáveis;

• Acesso à água;

• Proximidade a algumas instituições em que possam recorrer, caso necessário, como locais de distribuição de comida, vestimentas ou onde possam tomar banho;

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• Recursos coletáveis, como papelão, latinhas, caixotes de sobras de feira ou lixo doméstico, etc;

• Relações pessoais, tanto de amigos, parentes ou conhecidos, para aproximação, quanto inimizades, para fuga.

Ainda segundo o autor, a exposição também é avaliada de maneira relativa, ou seja, o fato de poder ser encontrado/percebido pode trazer tanto aspectos positivos – visibilidade para instituições e indivíduos que contribuem com distribuição de alimentos, roupas e cobertores – quanto negativos – estar vulnerável às repressões Pautado nestas questões, Kasper (2006, p. 86) identifica diferentes modos de permanência, conforme o quadro abaixo:

Categoria Características

Persistentes Pessoas que permanecem mais de um ano no mesmo lugar.

Deslocados Pessoas que ficam alguns meses, até não suportar a pressão de remoções ou afastamentos ocorridos pelo fechamento do espaço utilizado, podendo instalar-se em outro ponto próximo do local.

Alternantes

Pessoas que possuem algum tipo de moradia fixa, mas passam parte do tempo morando nas ruas.

Pessoas que circulam de cidade em cidade, podendo acampar por algum tempo em lugar fixo, não passando mais que alguns dias. Quadro 1 – Caracterização dos modos de permanência da população de rua Fonte: Kasper (2006), adaptado pela autora (2021).

Itinerantes

Já com relação aos alojamentos e abrigos improvisados nas ruas, Rabinovich (1992, p. 19-20) propõe que sejam classificados em diferentes tipologias, segundo exposto abaixo:

Categoria Características

Assentados

Construídos sob viadutos, com paredes e tetos parciais, podendo ter até mesmo trancas nas 'portas', assemelhando-se aos barracos de favela. De certa forma, garante o mínimo de estabilidade.

Nômades Alojados sob viadutos, porém somente com paredes laterais móveis e frágeis, feitas de caixotes, papelão ou compensado, estando em permanente transformação.

Cavernas

Selvagem

Os indivíduos habitam dentro das próprias estruturas urbanas, como as paredes sólidas dos viadutos. Aqui alguns problemas são intensificados, como a falta de insolação e luminosidade e a presença de bichos rasteiros.

As pessoas não demarcam território, só possuem o que carregam consigo ao deambular pela cidade, o abrigo pode ser qualquer tipo de proteção à cabeça, como papelão, cobertores ou caixotes.

Quadro 2 – Tipologias de abrigos improvisados pelos moradores de rua

Fonte: Rabinovich (1992), adaptado pela autora (2021)

Quanto aos debates da sociedade, é costumeiro se deparar com opiniões que associam o sujeito em condição de vulnerabilidade como escolha pessoal. Porém,

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ao conhecer um pouco de suas histórias é possível compreender que não se trata de opção e sim a falta dela. Dentre alguns motivos que levam as pessoas a buscar as ruas estão: o abandono ou desentendimento familiar, dependência química, ausência de oportunidades e desemprego, problemas psiquiátricos, entre outros

(PEIXOUTO, 2005; SOUZA; PEREIRA, 2018; SECRETARIA NACIONAL DE RENDA E CIDADANIA et al., 2011).

No Brasil, durante os últimos anos tem sido observado um aumento expressivo do número de pessoas vivendo nas ruas, cujas causas podem estar relacionadas à crise econômica e ao desemprego. Notou-se ainda que a taxa de crescimento possui relação direta ao tamanho dos centros urbanos, uma vez que os maiores aumentos têm se dado nos municípios acima de 100 mil habitantes. Desde o ano de 2012 até 2020 ocorreu um crescimento quantitativo de 140%, atingindo um total de mais de 221 mil pessoas, como observado na figura abaixo (IPEA, 2020).

Fonte: IPEA (2020).

A PSR se caracteriza como a parcela mais vulnerável da sociedade. São, por diversas vezes, vistos como incapazes por serem desprovidos de recursos materiais, mas, também representam a contrariedade e resistência à sociedade capitalista, outro motivo de serem temidos e reprimidos – aqui é colocada em pauta a

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Figura 12 – Gráfico de estimativa da população em situação de rua no Brasil entre 2012 à 2020

ambiguidade entre liberdade e prisão, ao revelar-se a falta de relação de posse com os espaços, já que vivem no espaço urbano público e social (PALOMBINI, 2013). Além disso, o sofrimento dessas pessoas é constantemente reduzido apenas por sua expressividade corporal, cuja característica é atribuída à sujeira, isto é, suposta sujeira de seus corpos e a exposição de feridas, que levam a serem assimilados ao lixo. Esta, por sua vez, é tratada como ameaça a saúde pública, sendo a própria justificativa para eliminação desses sujeitos (KASPER, 2006). Como retrato, pode-se considerar que:

[...] o trabalhador cuja força de trabalho (seu único bem negociável) se tornou inútil para o sistema produtivo acaba sendo reduzido a um corpo, no sentido estritamente biológico da palavra. Os moradores de rua encarnam, de maneira extrema, essa situação. São tratados, em toda circunstância, não como cidadãos, sujeitos de direito, mas apenas como corpos. As queixas ao seu respeito concernem, na maioria dos casos, as suas dejeções, o exercício público de suas atividades corporais, a sujeira e o fedor de seus corpos, quando não é sua simples presença na paisagem que incomoda. (KASPER, 2006, p. 195).

Cabe ainda ressaltar outro parâmetro de correlação destes indivíduos, retratado por Palombini (2013), que diz respeito à produção da paisagem urbana e os usos dos espaços públicos, principalmente das centralidades, na qual é notável a diferenciação das práticas diurnas e noturnas. Durante o dia, as ruas são usadas para consumo e trabalho formal, marcado pelo ritmo apressado e imediatista das cidades contemporâneas; durante a noite, fora do horário comercial, é o momento de maior expressão desse público, assim, longe dos olhos alheios é que se manifestam com intensidade, principalmente ao escolherem os locais mais adequados para troca social ou pernoite.

2.4 O ACOLHIMENTO

As lutas por conquistas de liberdade democrática e justiça social no Brasil tiveram início por volta de 1970, momento em que as organizações civis colocaram em pauta reivindicações de cidadania e participação política, objetivando avanços nos parâmetros de moradia; saúde; educação; igualdade de gênero e racial; meio ambiente e melhoria das condições de vida. Durante a década de 1980, deu-se

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início às iniciativas voltadas especificamente para pessoas em situação de vulnerabilidade, ocasionadas a partir de mobilizações de especialistas, estudiosos e movimentos religiosos (SECRETARIA NACIONAL DE RENDA E CIDADANIA et al., 2011).

Nesse período, apoiado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), foi conquistado projetos de atendimentos para crianças e adolescentes em situação de rua. Também foram reafirmados os esforços para garantia do direito humano à vida e à dignidade da PSR. A partir disso, em 1993 foi instalado o Fórum Nacional de Estudos sobre População de Rua, além de ocasionar o movimento Grito dos Excluídos, organizado por instituições religiosas em 1995, cujo objetivo era promover a visibilidade aos direitos de moradia e sobrevivência. Foi então que, em 2001, em Brasília, ocorreu o 1º Congresso Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis e a 1ª Marcha do Povo da Rua (SECRETARIA NACIONAL DE RENDA E CIDADANIA et al., 2011).

Em 19 de agosto de 2004, ocorreu um episódio denominado de "Massacre da Sé", em que sete pessoas em situação de rua foram assassinadas com golpes na cabeça, enquanto dormiam na Praça da Sé, em São Paulo. A data então passou a ser um marco para o Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua (GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ, 2018).

De acordo com o exposto pelo Governo Federal (2008) e pela Secretaria Nacional de Renda e Cidadania et al. (2011), outro fato historicamente importante ocorreu em 2005, denominado como 1º Encontro Nacional de População em Situação de Rua, realizado pela Secretaria Nacional de Assistência Social do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) – órgão atualmente extinto, cujas funções foram atribuídas ao Ministério da Cidadania –, culminando na aprovação da Lei nº 11.258/2005, a qual se refere à criação de programas de assistência social voltados para a PSR, categorizando-se como uma conquista política democrática e participativa que designa ao poder público a missão de manter serviços e programas de atenção a esta população

Em 2009, pelo Decreto nº 7.053/2009, em consolidação à Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPR), foi instituído o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População de Rua (CIAMP-Rua), em que estabelece a criação de comitês locais, estaduais e municipais, responsáveis por elaborar, acompanhar e monitorar planos de ação para

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esse segmento, visando alguns aspectos, como: desenvolvimento de pesquisas e indicadores sociais, implantação de Centros de Defesa dos Direitos Humanos da População de Rua, garantia de acesso a benefícios previdenciários e assistenciais e, implantação de Centros de Referência Especializados. Além disso, outro importante reconhecimento dos direitos destes indivíduos se deu pela inclusão ao Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH).

Igualmente, destaca-se o fato da inclusão da população de rua no Cadastro Único, permitindo a participação em programas sociais do Governo Federal e da implantação do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP), sendo este uma unidade de caráter público estatal, integrado aos demais órgãos de políticas públicas de promoção de direitos - saúde, educação, moradia, renda, cultura, entre outros (SECRETARIA NACIONAL DE RENDA E CIDADANIA et al., 2011).

A Proteção Social Especial (PSE) trata-se de um programa de organização de projetos e serviços socioassistenciais especializado, cujo objetivo é ajudar a população com o processo de saída das ruas. Os serviços são categorizados e divididos entre Média Complexidade e Alta Complexidade. Com relação ao primeiro, as unidades atuantes são: Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) e o Centro POP, destinadas ao serviço de abordagem social Quanto aos serviços de acolhimento de Alta Complexidade, ofertados pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e aprovados pela Resolução CNAS nº 109/2009, têm-se os Abrigos Institucionais, Casas de Passagem e os Serviços de Acolhimento em República (SECRETARIA NACIONAL DE RENDA E CIDADANIA et al., 2011; SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL, 2012).

O acolhimento é caracterizado pela oferta de condições para repousar e restabelecer-se por meio de acompanhamento profissional à PSR. Para cada modalidade de acolhimento de alta complexidade, bem como a estruturação das equipes e da oferta de serviços, devem ser consideradas as especificidades e orientações da Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais. O que é comum para todos os serviços de acolhimento é o fornecimento de kits de higiene pessoal e o fato de que todos os prazos de permanência estipulados podem ser alterados de acordo com os anseios de cada indivíduo, além disso, devem ser implantados sempre onde houver maior concentração de pessoas em situação de rua (SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL, 2012).

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Os Abrigos Institucionais são locais de acolhimento provisório com características residenciais, destinados a pessoas adultas e/ou famílias com ou sem crianças, contendo atendimento individualizado e especializado, além de abordagens coletivas. Seu funcionamento deve ser ininterrupto, durante 24 horas diárias, mantendo horários flexíveis para entrada e saída e, o período de permanência é em média de 6 meses.

Já as Casas de Passagem o público alvo é marcado por adultos e/ou famílias em transitoriedade que não possuem a intenção de permanência por longos períodos. O acolhimento é de caráter imediato e emergencial, com funcionamento ininterrupto e tempo de permanência médio de somente 3 meses.

Por fim, o acolhimento em Repúblicas se dá pela oferta de proteção, apoio e moradia subsidiada, além de possibilitar meios para autonomia gradual dos usuários através de um sistema de autogestão ou cogestão, sendo destinado a pessoas adultas em fase de reinserção social. Seu funcionamento também ocorre de maneira ininterrupta e o período de permanência médio é de 12 meses, segundo os parâmetros expostos pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS), em 2012.

Para uma melhor compreensão das tipologias de acolhimento, o quadro abaixo demonstra uma síntese de suas principais características desenvolvido a partir das orientações contidas no Caderno de Orientações do SUAS (2012):

Pessoas

3 – Principais características das tipologias de

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Tipologia da Unidade Acolhimento Público atendido Quant. usuários Funcionamento Permanência
Provisório
Abrigo Institucional
com características residenciais
adultas e/ou famílias com ou sem crianças (menores de 18 anos somente acompanhados dos responsáveis) 50 usuários por unidade Ininterrupto, durante 24 horas diárias, horários flexíveis para entrada e saída 6 meses Casa de Passagem Caráter imediato e emergencial Adultos e/ou famílias em transitoriedade que não possuem a intenção de permanência por longos períodos 50 usuários por unidade Ininterrupto, durante 24 horas diárias 3 meses República Moradia subsidiada/ possibilita meios de autonomia gradual Pessoas adultas em fase de reinserção social 10 usuários por unidade Ininterrupto, durante 24 horas diárias 12 meses
Elaborado pela
Quadro
acolhimento Fonte:
autora (2021)

Também de acordo com o Caderno de Orientações do SUAS (2012), as atividades desempenhadas como auxílio ao processo de saída das ruas devem ser elaboradas em conjunto como uma equipe técnica e os próprios usuários, considerando as particularidades de cada indivíduo. Contudo, considera-se que este processo já se inicia a partir do primeiro contato com o usuário, no qual são estabelecidos vínculos sociais. Quanto aos meios de promoção da reinserção social e saída das ruas, destacam como estratégias:

• Inserção a programas e benefícios assistenciais, como o Programa Bolsa Família Benefício de Prestação Continuada (BPC);

• Participação em projetos, programas e benefícios da Assistência Social;

• Projetos Habitacionais – aquisição de moradia de interesse social ou aluguéis sociais;

• Fortalecimento dos vínculos familiares, sociais e comunitários;

• Participação em movimentos sociais e organizativos;

• Trabalho digno e formal de acordo com as aptidões dos (as) usuários (as);

• Acesso aos serviços de saúde e de educação; Segundo Kasper (2006), o local de acolhimento mais utilizado e apreciado pela PSR é o albergue, sendo este marcado como um local de hospedagem e amparo às pessoas em situação de carência, podendo ser administrado por uma ONG (Organização Não Governamental), entidades religiosas ou outras instituições. Geralmente é composto por um estabelecimento simples que oferece pernoite, banho, janta e café da manhã. Sua procura por parte dos usuários se dá principalmente para se proteger do frio ou motivado por suas necessidades pessoais de higiene e alimentação. Em contrapartida, alguns não são adeptos ao abrigo pela existência de regras pré-estabelecidas, como horário para comer, horário de apagar as luzes, entre outros aspectos particulares.

Pelo exposto, a proposta de projeto a ser desenvolvida irá se enquadrar como serviço de alta complexidade, semelhante à categoria de república, uma vez que além do abrigamento temporário, serão ofertados meios para reinserção social e autonomia gradual, como parcerias para incorporação de apoio psicológico e jurídico, promoção de alfabetização, cursos profissionalizantes, acesso à cultura, inserção em programas habitacionais do município, e outros.

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Infraestrutura e espaço mínimo

Com relação à infraestrutura e implantação dos abrigos, o Caderno de Orientações do SUAS (2012) dispõe de algumas sugestões a fim de garantir espaços adequados às necessidades dos usuários. É recomendado que as instituições de apoio sejam localizadas em locais estratégicos, onde haja a maior concentração de pessoas em situação de rua para que sejam de fácil acesso, além de serem estruturas próprias e não alugadas.

Outra questão abordada é a promoção de espaços acolhedores para que não haja segregação dos usuários. Os espaços devem ser confortáveis, com iluminação e ventilação adequada. Nesse sentido, são estabelecidas algumas características essenciais e mínimas aos abrigos, contidas no quadro abaixo.

Tipologia da Unidade

Abrigo Institucional

Ambientes mínimos Quartos Cozinha Sala de jantar/ Refeitório Banheiro Área de serviço

4 pessoas por quarto/ espaço para camas e armários para pertences individuais

Casa de Passagem

4 pessoas por quarto/ espaço para camas e armários para pertences individuais

República

Espaço suficient e para preparo de comidas e armazen amento dos utensílios

Espaço suficient e para preparo comidas e armazen amento utensílios

Até 4 pessoas por quarto/ espaço para camas e armários para pertences individuais

Espaço suficient e para preparo comidas e armazen amento utensílios

Espaço suficiente para acomodar todos os abrigados (o ambiente também pode ter outros usos)

Espaço suficiente para acomodar todos os abrigados (também pode ter outros usos)

Espaço suficiente para acomodar todos os abrigados (também pode ter outros usos)

1 lavatório, 1 sanitário e 1 chuveiro para até 10 pessoas (ao menos 1 PCD)

1 lavatório, 1 sanitário e 1 chuveiro para até 10 pessoas (1 PCD)

1 lavatório, 1 sanitário e 1 chuveiro para até 5 pessoas ( 1 PCD)

Quadro 4 – Ambientes mínimos dos abrigos

Espaço suficiente para lavar e secar roupas dos usuários, sendo de uso comum

Espaço suficiente para lavar e secar roupas dos usuários, sendo de uso comum

Espaço suficiente para lavar e secar roupas dos usuários, sendo de uso comum

Sala equipe técnica

Espaço e equipame ntos suficientes para desempen ho das atividades da equipe técnica

Espaço e equipame ntos suficientes para desempen ho das atividades da equipe técnica

Sala coordenação administração

Espaço suficiente para mobiliário administrativo e acomodação da equipe (1 área sigilosa para guarda de prontuários)

Espaço suficiente para mobiliário administrativo e acomodação da equipe (1 área sigilosa para prontuários)

Fonte: Sistema Único de Assistência Social (2012), adaptado pela autora (2021)

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