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ARTE DA CRÔNICA
IVAN ANGELO HUMBERTO WERNECK LUÍS HENRIQUE PELLANDA
APRESENTAÇÃO
O encontro do jornalismo com a literatura Esta segunda edição da Revista da Arquipélago não poderia ter outro assunto de capa. O lançamento da coleção Arte da Crônica é um marco na história da editora ao dar vazão a um antigo desejo da nossa equipe: ampliar a linha editorial sem desajustar o foco. Explico: desde o começo da trajetória da Arquipélago, buscamos manter como principal vertente a publicação de livros de não ficção, especialmente reportagens e ensaios. O universo jornalístico é vasto e ainda temos muito o que fazer nesse campo. Ainda assim, sentíamos falta de editar literatura. E a crônica é, por excelência, o gênero que faz a ponte entre esses dois mundos. Em geral nascida nos jornais e revistas, a crônica é o cotidiano transformado em literatura.
Na preparação da reportagem de capa, o jornalista Tomás Adam entrevistou os três primeiros autores da coleção: Ivan Angelo, Humberto Werneck e Luís Henrique Pellanda. Além de apresentar as obras desses craques, a matéria também discute o panorama da crônica brasileira hoje, a relação do gênero com o jornalismo e o seu papel numa imprensa que parece reservar cada vez menos espaço para a subjetividade. *** A crônica também é um dos assuntos da entrevista com o professor Luís Augusto Fischer. O mote é a comemoração do centenário de nascimento de Nelson Rodrigues. Mais conhecido por sua produção
dramatúrgica, que inclui peças como Bonitinha mas ordinária e Vestido de noiva, ele também era um exímio cronista. É justamente essa faceta do trabalho do escritor que Fischer analisa em seu livro Inteligência com dor. Para o professor, as crônicas de Nelson se aproximam do ensaio, gênero inventado pelo francês Michel de Montaigne. Outro destaque da edição é a reportagem “A princesa que tomava ônibus”, do jornalista Christian Carvalho Cruz. Incluído no livro Entretanto, foi assim que aconteceu, o texto foi agraciado com o Prêmio Estado de Jornalismo 2011 na categoria “perfil ou entrevista”. Parabéns ao Christian. E uma boa leitura para você! Tito Montenegro
NESTA EDIÇÃO 4 UNIVERSO ARQUIPÉLAGO
Uma publicação da Arquipélago Editorial
Conselho editorial: Cristiano Ferrazzo Fernanda Nunes Barbosa Tito Montenegro Edição: Tito Montenegro Reportagem: Tomás Adam Capa: Humberto Nunes/Lume Design Apoio: Gráfica Pallotti Lume Design
6 COLEÇÃO
Os novos livros de crônicas de Ivan Angelo, Humberto Werneck e Luís Henrique Pellanda 12 ENTREVISTA
FERNANDA BIGIO DAVOGLIO
Nº 2 · 2012
Luís Augusto Fischer, autor de Inteligência com dor, fala sobre o centenário de Nelson Rodrigues 14 DEGUSTAÇÃO
Leia trecho do livro Entretanto, foi assim que aconteceu, do repórter Christian Carvalho Cruz 18 ARTIGO
Os Aforismos, de Karl Kraus, por Pedro Gonzaga PAULINHO SILVA
revista da
20 LIVRO-OBJETO
O design de Paola Manica para o livro Operação Portuga REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 3
UNIVERSO ARQUIPÉLAGO
A jornalista mais premiada do país A repórter Eliane Brum, autora do livro A vida que ninguém vê, é a jornalista mais premiada do Brasil, de acordo com ranking elaborado pelo site Jornalistas & Cia e divulgado no final de 2011. O levantamento considera não apenas a quantidade total de prêmios, mas também a importância de cada distinção. Em segundo lugar aparece Miriam Leitão e, em terceiro, Caco Barcellos. O histórico de Eliane Brum realmente impressiona. São mais de quarenta prêmios nacionais e internacionais de reportagem. Entre eles, destacam-se os prêmios Rei da Espanha, Esso e Vladimir Herzog. Formada pela PUC do Rio Grande do Sul, Eliane começou no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, onde foram publicadas as histórias de A vida que
A VIDA QUE NINGUÉM VÊ Eliane Brum 208 páginas | R$ 35,00
ninguém vê — livro que lhe rendeu um outro prêmio, o Jabuti de 2007 na categoria Reportagem. Vivendo em São Paulo desde 2000, ela foi repórter especial da Época. Atualmente, escreve uma coluna semanal para o site da revista.
Ivan Angelo na Oficina de Escrita Criativa O jornalista e escritor Ivan Angelo, autor de Certos homens, é o mais novo ministrante da Oficina de Escrita Criativa. Durante o ano de 2012, ele vai comandar a oficina de não ficção. No ano passado, esse mesmo curso foi ministrado por Humberto Werneck, autor de O pai dos burros e Esse inferno vai acabar. A Oficina de Escrita Criativa, localizada em São Paulo, foi criada em 2010 pela jornalista e dramaturga Rosângela Petta e tem como objetivo profissionalizar a atividade autoral. Além do módulo de não ficção, a oficina oferece uma adaptação do conceituado curso de ficção que o escritor Luiz Antonio de Assis Brasil (na foto, com um grupo de alu-
Escritor Luiz Antônio de Assis Brasil também está na oficina
nos) mantém há 27 anos na PUC do Rio Grande do Sul. Entre os cursos que ocorrem durante o ano estão os tutoriais de Conto, ministrado por Ronaldo Bressane, e de Livro
Infantil, coordenado por Cláudio Fragata. Para mais informações sobre inscrições e processo seletivo, acesse o site: www.oficinadeescritacriativa.com.br. REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 4
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UMA HISTÓRIA DE FAMÍLIA. E TAMBÉM A HISTÓRIA DE UM PAÍS INTEIRO. Cilon Cunha Brum foi visto pela última vez em 9 de junho de 1971. Militante comunista, deixou para trás a faculdade e uma carreira promissora para combater o regime militar na chamada Guerrilha do Araguaia. Cilon nunca voltou da selva. Seu sumiço foi encoberto pela mesma névoa de segredo e temor que a de outros desaparecidos políticos. Mas ele nunca foi – nem poderia ser – esquecido. Antes do passado ilumina um momento crucial da história brasileira pelo ponto de vista do núcleo familiar, sem cair nas armadilhas do interminável embate ideológico entre esquerda e direita, civis e militares, vítimas e algozes. Durante vinte anos, Liniane refez o percurso do seu tio Cilon, revirando arquivos e entrevistando todos que o conheceram. O resultado é uma prosa ao mesmo tempo cortante e poética, revelando uma história de família que é também a história de um país inteiro.
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COLEÇÃO
A ARTE DA CRÔNICA Nova série da Arquipélago Editorial apresenta alguns dos melhores cronistas contemporâneos POR TOMÁS ADAM
ra, e isso quer dizer: como um poema, como um conto, como um romance”, disse Angelo, em entrevista à Revista da Arquipélago. “A qualidade literária eu pretendo que seja a mesma. Os processos de criação é que são diferentes. O romance toma anos de concentração e aperfeiçoamento. A crônica toma um dia, dois, às vezes uma semana.” O autor de A festa e Amor?, ambos vencedores do Prêmio Jabuti, não se furta em lançar mão de alguns elementos ficcionais para escrever suas crônicas. Para ele, é legítimo haver uma “licença poética” que dê poderes ao cronista inventar personagens e histórias sem maiores constrangimentos. “E daí que as histórias sejam inverídicas? E daí
CERTOS HOMENS Ivan Angelo 208 páginas | R$ 35,00
se nós recheamos pedaços de realidade com pedaços de nós mesmos? Crônica pode ser ficção, recorte do cotidiano, memória, reflexão, você pode criar um personagem narrador de suas emoções”, relata.
O local como denominador comum Coincidência ou não, Ivan Angelo nasceu em Barbacena, Minas Gerais. O acaso está no estado natal: são mineiros alguns dos mais importantes nomes da crônica brasileira. A tradição passa por Hélio Pellegrino, Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende. E o mais célebre de todos, Rubem Braga, embora capixaba, viveu em Minas durante parte decisiva dos anos de sua formação, quando escrevia nas páginas do finado Diário da Tarde. Justo, portanto, que a Arte da Crônica desse espaço a mais um mineiro. É de Humberto Werneck outro número da coleção, Esse inferno vai acabar. Mesmo vivendo há mais de quarenta anos em São Paulo, o belo-horizontino dedica boa parte de seus textos ao lugar onde nasceu e se criou. “É natural, e até fatal, que aquele começo da minha vida tenha deixado em mim REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 6
MARCELO MIN
Ivan Angelo foi flagrado apanhando pitangas na calçada de uma rua de seu bairro. Tentando ignorar quem passava ao lado, impávido, o escritor colhia os frutos. “Gordas pitangas, de cores variando do vermelho ao roxo.” A imagem traz em si boa parte dos elementos que formam uma crônica. Há, na sua essência, um tema aparentemente prosaico. Também está ali certo grau de nostalgia: afinal, no meio de uma cidade, tirar frutas direto do pé já não é mais algo tão corriqueiro quanto outrora. Adicione a isso o fato de ser uma história pessoal, contada em primeira pessoa e salpicada com um leve senso de humor. Voilà. O caso das pitangas está em Certos homens, terceiro e mais recente volume da série Arte da Crônica, na qual a Arquipélago Editorial apresenta o trabalho de alguns dos principais cronistas brasileiros contemporâneos. Em seus textos, Angelo trata dos mais variados assuntos — desde a funcionalidade dos bolsos de uma calça até a maldição de abril, o mais cruel dos meses — com o mesmo lirismo que o consagrou como romancista. E é em seus trabalhos de ficção que o escritor busca a inspiração, e até o método para as crônicas. “Trabalho a crônica como literatu-
lembranças fortíssimas. Lembranças que, mesmo sem saudosismo, volta e meia vêm à tona”, conta. Completa o trio inicial da coleção Arte da Crônica o paranaense Luís Henrique Pellanda, que assina Nós passaremos em branco. Nas crônicas do escritor, fica ainda mais acentuada a importância de um determinado local físico como ponto de partida das histórias. De fato, a cidade de Curitiba parece ser um denominador comum às diferentes personagens que habitam o livro. Seja morando em São Paulo, Nova Iorque ou Vacaria, o leitor de Nós passaremos em branco acabará familiarizado com logradouros como Ébano Pereira, Saldanha Marinho, Boca Maldita, Praça Osório e Ermelino de Leão — locais da região central de Curitiba que, além
“
Então, retomando o início: vinha eu de volta do supermercado, com dois saquinhos de compras miúdas, caminhando atento às armadilhas das calçadas, quando vi, no chão, o cenário perturbador: pitangas caídas, maduras, vítimas de algum vento da manhã, muitas delas comidas pela metade, quantidade de caroços limpos de frutinhas já degustadas... Olhei para o alto: afe! Pé carregado, de vermelhas e roxas. Ali adiante, outro pé, igual! Foi automático: passei as compras de um saquinho do supermercado para o outro e comecei a colheita. Dava-me o prazer de escolher as mais bonitas. Quando ficaram mais difíceis,
Ivan Angelo é cronista da revista Veja São Paulo desde 1999
apanhei uma vassoura velha numa caçamba de demolição ali perto e com ela vergava os galhos mais altos, engordando o saquinho. Geleia rende pouco e a fartura de matéria-prima me empolgava. Nesse momento passava de carro um ex-colega de jornal, que me reconheceu e parou. Me senti ridículo. Já estava ensaiando explicações, longas talvez, que nos cansaria os dois, quando ele cortou: – Maravilha! Eu sempre quis fazer isso e nunca tive coragem! Desceu do carro e me ajudou. [Trecho da crônica Pitangas, ou explicações para um ato impensado, de Ivan Angelo.]
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COLEÇÃO
ESSE INFERNO VAI ACABAR Humberto Werneck 192 páginas | R$ 34,00
LILO CLARETO
de cenário da maioria das crônicas, foram representados pelo ilustrador Simon Ducroquet em um mapa no final do volume. Pellanda avalia que essa abordagem quase cartográfica não deve ser levada tão ao pé da letra: “Nomes de ruas, praças e avenidas às vezes servem para aumentar a carga de veracidade de uma história, fortalecem o tal pacto entre a crônica e quem a lê. Mas cada pessoa, seja ela paranaense, carioca, russa ou nigeriana, também desenvolve sua maneira individual de ler e interpretar qualquer livro.” Humberto Werneck escreve todo domingo no jornal O Estado de S. Paulo
O lugar da crônica na imprensa Outro aspecto que une os três autores da Arte da Crônica é a passagem pelo jornalismo. O ambiente das principais redações do país é mote de várias das crônicas publicadas nos volumes. Isso não significa, no entanto, que o retrato delas seja muito positivo — que o diga Humberto Werneck e suas histórias do que ele chama de “clínicas de envelhecimento precoce”. Ivan Angelo, que desembarcou em São Paulo em 1965 para trabalhar no Jornal da Tarde, acredita que a escrita factual dos jornais e a poe-
sia da crônica andam juntas, mesmo que por conveniência. “Não é que as redações produzam histórias que viram crônicas. Escrever é o que o cara sabe fazer. Surge a oportunidade de ganhar um dinheirinho extra usando uma habilidade que ele já tem. Por que não?”, questiona. A rotina de um repórter que faz da narração de histórias um exercício diário é, na visão de Luís Henrique Pellanda, o ponto de partida para treinar o olhar de um cronista. “Nas redações, somos postos diariamente em contato com todo tipo de histórias, boas ou ruins. Ao abordá-las e registrá-las por escri-
to, somos obrigados a treinar não apenas o nosso texto, a nossa habilidade de escrever, mas também o nosso discernimento em relação às coisas do mundo” aponta. Se as redações produzem bons cronistas, muito também se dá pelo tradicional espaço concedido pelos veículos brasileiros às crônicas. No caso dos textos agora publicados pela Arquipélago, eles tiveram uma primeira vida em revistas, jornais e até mesmo em sites. Ivan Angelo é cronista com espaço quinzenal na Veja São Paulo. Humberto Werneck é cronista dominical de O Estado de S. Paulo. Luís Henrique REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 8
COLEÇÃO
LUCIANA THOMÉ
NÓS PASSAREMOS EM BRANCO Luís Henrique Pellanda 192 páginas | R$ 34,00
Luís Henrique Pellanda foi um dos criadores e editores do site de crônicas Vida Breve
Pellanda é o representante da internet: suas crônicas foram publicadas originalmente no site Vida Breve, projeto coordenado por ele e pelo também jornalista Rogério Pereira. Diante de tantas formas de publicação, haveria alguma mídia mais adequada para o gênero? Fiel à tradição impressa, Werneck diz que a crônica “é uma benvinda contramão na imprensa de papel”. Isso porque ela traz um respiro à temporalidade característica das notícias. “Não tenho dúvida de que o leitor, em meio à aridez da imprensa de papel, com suas notícias quase sempre ruins, gosta de encontrar de repente um oásis de subjetividade — assim como gosta de encontrar tons assumidamente pessoais em meio a uma prosa que faz o possível para ser impessoal”, aponta. Um oásis virtual de subjetividade, pode-se dizer, foi o papel representado pelo Vida Breve. Assim como nos jornais e revistas, a internet reserva muito mais espaço à dureza do noticiário e ao espetáculo
das celebridades do que à literatura. Durante seus quase dois anos de existência, o Vida Breve publicava todos os dias uma crônica de um autor diferente, acompanhado por uma ilustração. O site, segundo Pellanda, comprova que o texto tem valor pelo que é, e não pelo suporte onde é publicado. “Há quem diga que a internet não serve para a crônica, como já se disse que o livro não servia. Alceu Amoroso Lima dizia que a crônica, num livro, era como um ‘passarinho afogado’. Bem, essas ideias caem por terra, não caem?”, pergunta.
Resistência contra a barbárie Unidos em torno da série Arte da Crônica, Ivan Angelo, Humberto Werneck e Luís Henrique Pellanda pertencem a gerações diferentes, mas representam o que há de mais relevante na produção brasileira do gênero neste início de século. Desde a chamada época de ouro da crô-
nica, o panorama da comunicação mudou, e, com isso, os textos vêm se adaptando. “O mundo, hoje, evidentemente já não é o mesmo dos anos 50 e 60, quando a revista Manchete, por exemplo, semana após semana, servia ao leitor nada menos de quatro crônicas de primeira ordem. Nos meios de comunicação, para o bem e para o mal, num movimento inexorável, a objetividade tomou quase todo o espaço da subjetividade”, lamenta Werneck. Apesar dessa tendência, ainda há lugar para esse gênero essencialmente brasileiro. “Cada cronista, sendo bom, encontrará seus leitores”. O diagnóstico de Luís Henrique Pellanda revela muito sobre a atual situação da crônica. Mesmo que os rumos do jornalismo tenham afastado o noticiário da literatura, a crônica resiste. Segue não apenas viva, mas cada vez mais necessária. Talvez para provar que, mesmo num mundo em que a pressa atropela, colher pitangas numa grande cidade e contar essa história aos leitores é a melhor maneira de enfrentar a barbárie. Clique aqui para assistir ao booktrailer do livro Nós passaremos em branco, dirigido por Rodrigo Stradiotto.
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ENTREVISTA
Um indivíduo em crise No centenário de Nelson Rodrigues, Luís Augusto Fischer celebra as qualidades que fazem o escritor relevante até hoje POR TOMÁS ADAM
Aos jovens que lotavam passeatas, liam Sartre, pregavam amor livre e transgrediam convenções, Nelson Rodrigues apresentava um lacônico conselho: “— Envelheçam!”. Essa relação tortuosa entre a ascendência da contracultura e o rabugento reacionarismo do escritor foi tema de boa parte de suas crônicas – face pouco lembrada de uma obra onde a dramaturgia sempre recebeu maior atenção e louvor. Transcendendo as páginas de jornal onde foram publicados, esses textos ganham uma dimensão ainda mais profunda e atemporal quando lidos hoje. É o que defende o professor Luís Augusto Fischer em Inteligência com dor: Rodrigues foi mais do que um cronista; ele era um verdadeiro ensaísta de seu tempo. Nesta entrevista, Fischer relembra alguns aspectos da obra do escritor pernambucano, cujo centenário é comemorado em 2012.
gante, quando em seu texto há bem mais que isso — há todo um depoimento profundo sobre a experiência de ser brasileiro e um ocidental em seu tempo, de estar vivo e pensando no auge da Guerra Fria. Por isso o centenário pode ser uma boa oportunidade de levar mais gente a lê-lo. E no exterior? Paulo Francis dizia que Nelson Rodrigues só não entrou no cânone teatral porque escrevia em português, língua pouco falada em outros países. O senhor concorda?
Claro que sim. E essa condição é mais notável ainda a respeito de seu ensaísmo, gênero que depende mais da língua do que o teatro. Digamos que neste gênero ele sobrevive fácil à tradução — ainda que talvez falte algo, em outra língua, do coloquial
A celebração de um centenário costuma aumentar o reconhecimento em torno da obra de um escritor. Na sua opinião, a obra de Nelson Rodrigues já é merecidamente valorizada no Brasil?
Creio que não ainda. Como dramaturgo sim, me parece que as coisas estão no devido lugar. Mas como cronista e ensaísta, ele parece ser ainda tomado como um mero esquisito, um peculiar, um extrava-
INTELIGÊNCIA COM DOR Nelson Rodrigues ensaísta Luís Augusto Fischer 336 páginas | R$ 39,00
que ele alcançou estetizar em português brasileiro. Mas no ensaio a coisa é bem mais complicada, porque o gênero de Montaigne é muito profundamente dependente do ritmo, das nuanças da língua em que é escrito. Nelson Rodrigues era politicamente incorreto e conservador, uma heresia nos meios intelectuais de sua época. Ele era a antítese do “radicalismo acadêmico típico de assembleia estudantil” presente na Universidade, como o senhor mesmo relatou em um dos textos de Filosofia mínima. As posições políticas de Rodrigues ainda causam algum tipo de preconceito na academia? O escritor é tão estudado quanto deveria ser?
Isso que tu chamas heresia de fato descreve bem o que aconteceu com sua obra entre, digamos, 1968 e sua morte, em 1980. Talvez tenha se agravado depois, até nossos dias, em função da maior presença da tal correção política nos meios intelectuais. Hoje me parece que vivemos ainda sob o signo dessa rejeição a ele por razões ideológicas. Pode ser que a prevenção anti-Nelson se dê hoje por motivos diferentes do que a de uma geração atrás – antes porque ele apoiava a ditadura e sacaneava a esquerda, hoje porque ele generaliza demais em seus juízos, sem ressalvar nada, uma espécie de crime em nossos tempos. De forma que ele é pouREVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 12
LEIA TAMBÉM
Conheça outras obras de Fischer lançadas pela Arquipélago
FERNANDA BIGIO DAVOGLIO
MACHADO E BORGES E outros ensaios sobre Machado de Assis 288 páginas | R$ 37,00
Karl Kraus retratado por Trude Fleischmann, em 1928
> Clique aqui assista a vídeo em que Fischer fala sobre “Inteligência com dor”
co estudado, sim: mais que vinte anos atrás, porque parece que em faculdades de Jornalismo ele ganha certo destaque por sua crônica de tema esportivo, mas menos do que merece. Justamente por suas opiniões fortes, muitas crônicas de Nelson Rodrigues têm fortes aspectos temporais - falam de acontecimentos da época em que foram escritos. Esses textos envelheceram bem?
Questão sempre delicada. Minha resposta modula a tua pergunta: lidos em conjuntos, os livros principais dele na área da crônica revelam, mais do que um conservador ou um reacionário, a agonia de
um indivíduo dos velhos tempos, anteriores à especialização no jornalismo, anteriores à massificação cultural norte-americana, anteriores à banalização da violência. Ele resulta ser uma vez forte no testemunho dessas passagens históricas, sempre na defesa intransigente de sua individualidade. Vistas em conjunto, de modo a constituírem mais do que um conjunto de palpites e excentricidades, suas crônicas, para fazer uma imagem, são uma espécie forte de narrativa, o romance da agonia de um indivíduo. E considerando assim, as referências circunstanciais perdem força, para dar lugar a esse grande
FILOSOFIA MÍNIMA Ler, escrever, ensinar, aprender 336 páginas | R$ 42,00
personagem: ele mesmo, um indivíduo em crise com a massificação, lutando agonicamente para manter sua cabeça sobre os ombros. Dramaturgo, ensaísta, cronista, jornalista, contista ou romancista: qual Nelson Rodrigues ficará para os próximos 100 anos?
Suspeito que será cada vez mais o dramaturgo. O narrador de contos e romances permanecerá como um caso, mais do que como um estilo. E o ensaísta, o cronista, o memorialista e em parte o jornalista permanecerá como uma espécie de segredo, compartilhado por não muitos — como, de resto, ocorre com Montaigne. REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 13
DEGUSTAÇÃO
A reportagem a seguir, de Christian Carvalho Cruz, foi a vencedora do Prêmio Estado de Jornalismo na categoria “melhor perfil ou entrevista”. Este é um dos 23 textos que compõem o livro Entretanto, foi assim que aconteceu
A princesa que tomava ônibus Na quinta-feira, ao sair bem cedo de sua residência no Pacaembu, em São Paulo, D. Bertrand Januário Maria José Pio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Orleans e Bragança, caso se dispusesse a dar uma respirada mais audaz, breve que fosse, sentiria aquele cheiro azedo de amônia a lhe conspurcar as narinas. Mas ele tinha mais o que fazer. Dois pares de horas depois, como chefe interino da Casa Imperial do Brasil, foi recebido com pompa na Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, no centro do Rio de Janeiro. Adentrou a nave escoltado por 12 cadetes do Batalhão do Imperador, imaculados e imóveis em suas casacas azuis, luvas brancas, chapéus de penacho e “sentido”, “apresentar armas” e “descansar” de praxe. Era a missa de sétimo dia da mãe de D. Bertrand: Sua Alteza Imperial e Real, D. Maria Elizabeth Francisca Teresa Josefa de Wit-
telsbach e Croÿ-Solre de Orleans e Bragança — D. Maria da Baviera, na corte; Princesa-Mãe, no popular. D. Maria expirou às 13h da sexta-feira 13, aos 96 anos, “confortada com os sacramentos da Santa Igreja”, conforme o anúncio fúnebre que a família fez publicar na seção de falecimentos do Estado. Nascida em um castelo em Munique e neta do último monarca alemão a governar, o rei Luís III, ela ingressou na história do Brasil pelo altar. Em 1937, no mesmo castelo, foi desposada pelo príncipe Pedro Henrique, francês de nascimento, neto da Princesa Isabel. Ela estava com 22 anos. Ele, com 28. Antes, noivaram um ano e pouco para se conhecer melhor. Sem direito a pegar na mão, mas com passeio de veleiro pelos lagos bávaros, como prova o álbum de fotos da família. Fazia cinco anos e meio que D. Maria, vítima de problemas cardíacos, não deixava seu apartamento
de quatro quartos na Lagoa. Na noite anterior, ela recebera a extrema-unção do padre Jorjão (requisitado casador e batizador de celebridades cariocas) e, quando chegou a hora, estava cercada por 11 de seus 12 filhos, que rezavam o terço. O primogênito D. Luiz Gastão Maria José Pio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Orleans e Bragança, de 73 anos e adoentado em São Paulo, não pôde comparecer às exéquias, daí ter sido sempre representado pelo irmão D. Bertrand, o segundo na linha sucessória ao trono brasileiro, se um trono existisse. A escolha da Antiga Sé para a cerimônia tem significado. Ali D. Pedro I foi coroado imperador e contraiu matrimônio. Duas vezes. D. Pedro II foi batizado, casado e coroado. E a Princesa Isabel se uniu ao Conde d’Eu. No cais lá adiante, onde agora aportam as barcas trazendo o poviléu (também chamado REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 14
trabalhadores) de Niterói todas as manhãs, D. João VI desembarcou fugindo de Napoleão, em 1808. Pois foi nesse pedaço de pátria que D. Bertrand saltou do carro e se dirigiu apressado à porta da frente da catedral. Se tivesse desviado o olhar para sua direita teria visto um grupelho de súditos que, coçando a barriga uns, chupando laranja outros, liam as manchetes penduradas na banca de jornal. “Louraça belzebu sofreu violência sexual aos 7 anos”, informava o Meia Hora. “Amante de Loura Fatal pode não ter sido estrangulado”, contava o Extra!. “Ronaldinho leva R$ 80 mil para brincar de foca”, espantava-se o Expresso da Informação. E, depois, quando Suas Altezas lamentam a “perda de valores da sociedade brasileira”, vêm uns esconjurados fazer troça... “Quem são os exemplos de nobreza desses nossos dias? Rainha Xuxa? Adriano Imperador?”, invoca o advogado Antonio Gameiro, diretor do Círculo Monárquico do Rio, conglomerado de simpatizantes da causa monarquista e, na presente ocasião, encarregado do cerimonial da missa. Ele está certo de que a salvação desse Brasilzão de pobres-diabos está na restauração da coroa. Garante que quando esse dia chegar não se torrará um tostão nem a paciência do erário. A capital do império permanecerá em Brasília e, a despeito da feiura dos prédios do Niemeyer, que se há de fazer?, o imperador ocupará um dos palácios lá existentes — o Alvorada, de preferência, podendo o primeiro-ministro se aboletar no Planalto.
ENTRETANTO, FOI ASSIM QUE ACONTECEU Quando a notícia é só o começo de uma boa história Christian Carvalho Cruz 184 páginas | R$ 34,00
Na sacristia, um ordeiro vaivém leva flores para lá e traz castiçais para cá. Alguém quer saber se deve usar a âmbula grande para as hóstias. “Não precisa. Pode ser a pequena, mas enche até a boca”, instrui o professor de coroinhas Leandro Pereira, da Juventude Monarquista. É fácil distinguir os monarquistas derredor. Eles vestem ternos escuros e carregam o brasão da Família Imperial na lapela. Falam mui educadamente e não exageram nos gestos — o que significa não fazer gesto nenhum, a maior parte do tempo. Tratam os príncipes e as princesas (juntando aí os 12 filhos, 25 netos e três bisnetos de D. Maria) por Sua Alteza, lhes dão sempre Dom e Dona, não importando a idade, e os cumprimentam com uma reverência, das pequenas: leve baixar de cabeça. Mas, acima de tudo, eles defendem a Família Imperial até no que ela não tem culpa. “Dom Luiz, o herdeiro do trono, contraiu pólio quando criança e se encontra debilitado, por isso não veio. Entre-
tanto, você deve considerar que naquela época não havia vacina para a doença”, ressalva Pedro Andrade Corrêa de Brito, presidente da Juventude Monarquista. O rapaz deixa o pescoço cair respeitosamente e dá um passo atrás quando D. Bertrand se aproxima trazendo o irmão, D. Antônio, terceiro na linha, para falar da mãe. Ele conversa baixinho e, traço comum nos Orleans e Bragança, tem um capricho natural na formulação das frases. “Mamãe teve trabalho comigo, fui uma criança teimosa”, ele começa, leve sotaque carioca. “Punha-me de castigo, proibindo-me os passeios a cavalo quando eu não entregava o dever de casa. Ela fazia questão de que arrumássemos nossas camas e passava para inspecionar. Estimulava uma pequena competição para ver quem deixava menos rugas no lençol”, continua. “Gostava demais da fazenda em Vassouras (interior do Rio), mas quando se mudou para a capital depois da morte de papai, em 1981, tomava ônibus para ir fazer o serviço social de que gostava tanto, que era dar aulas de pintura em porcelana em uma entidade assistencial. E, primordialmente, jamais deixou de nos dizer que um monarca não se pertence, pertence à nação. Que estivéssemos prontos.” Igreja cheia, sem viv’alma em mangas de camisa, a missa vai terminando. A família se reunirá mais uma vez no apartamento da falecida para um almoço. Degustarão estrogonofe de filé mignon e pudim de leite condensado como sobremesa. Um pequeno convescote de
DEGUSTAÇÃO no apartamento da Lagoa, 24 horas por dia. “Antes de piorar, o que aconteceu de seis meses pra cá, ela lia muito, sempre em alemão, tricotava e, todas as tardes, às seis horas, via DVDs de ópera e de balé”, conta Márcia de Jesus de Souza. “Nunca se queixou de nada, nem de dor.” Na noite de quarta, D. Bertrand já tinha destacado a resignação como traço importante da personalidade de D. Maria. E mais de uma vez ele repetiu o “nunca se queixou de nada” ao discorrer sobre as dificuldades que a vida pôs no caminho dela: títulos e patrimônio confiscados pelos nazistas, parentes mortos
em campos de concentração. “Ela falava para não nos preocuparmos, pois a Divina Providência não abandona as famílias numerosas. E assim foi. Jamais nos faltou o essencial, tampouco nos sobrou para luxar”, rememorava D. Bertrand na casa do Pacaembu, enquanto uma procissão de súditos de outro monarca, D. Edson Arantes do Nascimento Primeiro e Único, enchia a rua a caminho do estádio para ver Santos x Once Caldas pela Libertadores. Fácil ouvir a turba pela janela. D. Bertrand mora ali com D. Luiz, de aluguel. Casa não muito grande e seca de afetação. Eles não
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50 talheres. Antes, porém, os netos sobem ao altar para prestar a última homenagem à “vó Maria”. Lembram de como gostavam de caçar os ovos cozidos que, na Páscoa, D. Maria pintava à mão e escondia na propriedade. À saída, os 11 filhos se perfilam, D. Bertrand à frente, para receber os pesares “analógicos”, já que no anúncio fúnebre publicaram o e-mail condolências@casaimperialdobrasil.org a fim de recebê-los digitalmente também. Lá se vai mais de uma hora para atender a todos, entre eles as três enfermeiras que nestes últimos cinco anos e meio se revezaram para assistir D. Maria
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casaram nem tiveram filhos, e dizem viver graças a economias e doações vindas dos monarquistas país afora. Três desses trabalham voluntariamente na casa, em cujos cômodos de entrada funciona o escritório da Casa Imperial do Brasil. Seu diretor coordenador-geral, Gustavo Cintra do Prado, não escondeu o desapontamento quando me viu chegar sem gravata. Um zeloso da mesóclise, ele tinha recomendado o uso do acessório. “Obrigatório não é, mas far-se-á boa figura perante Sua Alteza”, me dissera ao telefone. Não deu. Mas nem por isso D. Bertrand me tratou como um insurrecto do jeans com tênis. Pelo contrário. Ele se desculpou por não servir um cafezinho (“não estou acostumado a esse tipo de coisa”) e por ser demasiadamente ordeiro: “Você mal se levantou e eu já estou arrumando as almofadas do sofá, veja que coisa”. Com paciência, ele me contou da lembrança mais remota que guarda de D. Maria. Aconteceu em Mandelieu, sul da França, onde ele e três irmãos nasceram. Devia ter três ou quatro anos, fim da Segunda Guerra. Passeio de velocípede, um soldado americano bêbado mete o coturno nas rodinhas do veículo. E lá se vai Sua Alteza Imperial voando e se esborrachando no chão... (com todo o respeito), depois acolhido e consolado pela mãe. Eu pergunto se ele, francamente, acredita na restauração da monarquia no Brasil. “Não tenho dúvidas disso, nunca as tive”, ele diz, desafiando minha impertinência com seus olhos grandes e resolutos. “A história é pendular. A era
das utopias se foi, o próximo passo é retornarmos aos tempos dos bons valores do imperador, que é uma figura suprapartidária e educada para servir à nação, não se servir da nação. Além do mais, a questão monárquica conta com a simpatia do povo. Você tem filha? Pois bem. Estará mentindo se disser que nunca a chamou de minha princesinha.” E, mais uma vez, insistiu no mantra da causa monárquica: “Precisamos resgatar os bons valores”. Lá fora, a vozeria santista aumentava e a cada dois minutos um torcedor chegava para regar a trepadeira que galga o muro de Suas Altezas, espargindo o odor de amônia que D. Bertrand não sentirá na manhã seguinte. A frente da casa se tornara uma fortaleza inexpugnável para o populacho urinar antes do jogo, protegido que ficava por uma caçamba coletora dos entulhos imperiais. Uns, mui respeitosos, ainda ralhavam com os amigos sem decoro: “Peraí, pô! Deixa as moça passar primeiro”. Outros, com invejável perícia, seguravam a lata de cerveja na outra mão e ainda cantarolavam: “Dá-lhe-ô! Dá-lhe Santos meu amor!” Tudo na mais perfeita ordem e absoluta ausência de confusão. Até fila faziam, numa ancestral tropicalização de valores. Afinal de contas, remedando o nobre Muricy Ramalho, Visconde de Ibiúna e Arquiduque de Vila Belmiro, dir-se-ia o seguinte: “Isso aqui é Brasil, meu filho!” Esta reportagem foi originalmente publicada no jornal O Estado de S. Paulo de 22 de maio de 2011
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ARTIGO
O fôlego mais longo O escritor e tradutor Pedro Gonzaga escreve sobre os aforismos de Karl Kraus, reunidos em livro pela Arquipélago Em um de seus mais célebres aforismos, Karl Kraus, figura mítica da Viena das primeiras décadas do século 20, no anoitecer e esfacelamento do Império Austro-Húngaro, dizia que “O aforismo jamais coincide com a verdade; ou é uma meia verdade ou uma verdade e meia”. Apesar da aparente condescendência da frase, um jovem Elias Canetti, em A consciência das palavras, relata o caráter de culto quase religioso que cercava as leituras públicas de Kraus a que compareceu, marcadas pelo poder do orador implacável, capaz de eletrizar sua plateia com seus ditos que lembravam, em sua “linguagem curiosamente cimentada”, a dureza dos “parágrafos judiciais”. Como publicista, Kraus é um inquisidor. Durante mais de três décadas, dirigiu o jornal Die Fackel (A Tocha), no qual atacou figuras de vulto da cultura e da sociedade vienense, nunca fugindo a uma polêmica ou ao combate. É preciso salientar, no entanto, que estamos diante de um inquisidor às avessas, pois atacava e condenava os poderosos e os célebres de uma posição periférica, fustigando a sociedade em seu comportamento bovino e fútil. “Um excelente pianista, mas a sua execução precisa superar os arrotos da boa sociedade após um jantar”. Isto me faz pensar que o aforista é, antes de tudo, um moralista (ao estilo de Quevedo e Swift) e um reacionário. Eliminando ambigui-
dades, entendo por reacionário o termo aplicado à voz que se ergue contra a mediocridade degenerativa de sua época – são os profetas bíblicos, um fabulista como Fedro (desprezado por ser ex-escravo), os grandes sátiros do Ocidente –, uma voz precisa e rascante, sempre afiada, que busca na máxima economia da expressão, a verdade que se ergue às margens do silêncio. “Há escritores que já conseguem dizer em vinte páginas aquilo para o que às vezes preciso de até duas linhas.” De fato, voltando à voz que se ergue isolada do vulgo, o aforista é, em sua solidão, um Quixote; suas armas, a ironia, o sarcasmo, o humor autorreferente; seus moinhos, o pensamento uniforme, cômodo e insidioso, que se compraz, como
AFORISMOS Karl Kraus Trad.: Renato Zwick 208 páginas | R$ 39,00
bem apontava Ortega y Gasset, em eliminar toda e qualquer diferença a fim de perpetrar um bem-estar em um primeiro momento estéril, mas que logo poderá se transformar em autoritarismo ao encontrar um líder que fale inconteste ao coração das massas. Mas, além dos predicados acima, o aforista também possui o dom da iluminação súbita, da antecipação de uma verdade ainda vedada a maioria de nós, tem o ouvido para o idioma das gentes, para descobrir nos interstícios de frases-feitas, de desgastadas sabedorias, uma forma nova de dizer as coisas, e nisso sua arte se assemelha à do poeta, embora sejam distintos os seus meios e fins. Em vez da lira e do verso, o aforista usa o cinzel e a frase, talhando-a até reduzi-la a uma estrutura mínima e perfeita. Por vezes tal escultura precisa de tempo para ser compreendida. Um lance de olhar apenas poderá levar a um erro de interpretação, como bem alerta Karl Kraus no aforismo que segue: “Meus trabalhos devem ser lidos duas vezes para serem bem compreendidos. Mas tampouco me oponho a que sejam lidos três vezes. Prefiro, porém, que não sejam lidos do que o sejam apenas uma vez. Não pretendo me responsabilizar pelas congestões de um imbecil que não tem tempo.” Considerado um dos grandes escritores em língua alemã do século passado e tido por muitos como um REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 18
“O aforismo jamais coincide com a verdade. Ou é uma meia verdade, ou uma verdade e meia.”
REPRODUÇÃO / ACERVO DO WIEN MUSEUM
“O Diabo é um otimista se acha que pode tornar piores os seres humanos.” “As mulheres pelo menos possuem cosméticos. Mas com que os homens encobrem seu vazio?” Karl Kraus retratado por Trude Fleischmann, em 1928
nome capaz de figurar ao lado de Públio Siro, Marcial, La Rochefoucald, Leopardi – para citar alguns artistas da forma breve, Karl Kraus estava, havia anos, afastado das estantes brasileiras, desde a edição de Ditos e Desditos, da Editora Brasiliense, publicado ainda nos anos 1980, hoje uma raridade. Aforismos procura corrigir essa ausência. Traduzido e selecionado por Renato Zwick a partir das três obras aforísticas publicadas por Kraus em vida (Ditos & Contraditos, Pro domo et mundo e De noite), o livro é uma excelente oportunidade para o leitor brasileiro conhecer um conjunto representativo de textos do autor, além, é claro, de permitir aos
antigos admiradores um reencontro, agora em língua materna, com a verve implacável do polemista de Viena, não poucas vezes citado pelo saudoso Paulo Francis. Entre o conjunto de temas em que se dividem as seleções estão as mulheres, os escritores, os políticos, as autoridades alemãs e a sociedade como um todo. A tom, porém, que percorre boa parte dos aforismos é o do humor, um humor ácido, por vezes tingido de melancolia, por vezes de deboche, por vezes com tal densidade de cores que dificulta qualquer classificação: “O mundo é uma prisão em que é preferível a solitária.” Kraus ainda investe suas cargas contra a psicanálise, a literatura de
seu tempo e os malefícios da guerra. Morto em 1936, escapou de ver o continente europeu ser mais uma vez assolado pela insanidade e pelo horror, horror que por certo antevira já à abertura de seu ensaio Terceira noite de Valpúrgis, publicado postumamente, em que dizia: “Nada me ocorre acerca de Hitler”. Como bem afirma Renato Zwick na introdução de Aforismos, “tal perplexidade é apenas retórica, pois Kraus tinha noção clara do que estava acontecendo”. Pedro Gonzaga é tradutor e escritor, autor de A última temporada (poemas), entre outros. Este artigo foi publicado originalmente na revista Dicta & Contradicta número 6. REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 19
LIVRO-OBJETO
OPERAÇÃO PORTUGA Designer inspira-se na imagem e na textura do asfalto para livro que a história de um grupo de corredores de rua O livro Operação Portuga — Cinco homens e um recorde a ser batido, do jornalista Sérgio Xavier Filho, diretor de redação da revista Runner’s World Brasil, conta a história de um grupo de corredores de rua às voltas com um problema: bater o recorde obtido por um de seus integrantes em uma maratona. O cenário da trama serviu de inspiração para a designer Paola Manica, que utilizou na capa uma foto de asfalto coberta por um verniz com textura áspera. “O asfalto faz parte do cenário em que o treino acontece. Muita gente corre na rua ou em pistas que têm essa textura”, diz Paola. “Além disso, traz a dureza do preparo de um maratonista direto para a capa.”
Caderno
de
ABC ABC
OPERAÇÃO PORTUGA Cinco homens e um recorde a ser batido Sérgio Xavier Filho 176 páginas | R$ 32,00
fotos
FONTES E FOTOS A escolha das fontes também foi muito bem pensada. “Nada melhor do que usar a referência até o fim. Na rua, as inscrições são pintadas com letras do tipo stencil”, diz Paola. No miolo do livro, há também um caderno de fotos, com 16 páginas coloridas. A imagem do asfalto e o amarelo também dão as caras por ali. “As fotos eram muito interessantes e tínhamos muito material para trabalhar. A inspiração veio de revistas esportivas”, conta Paola. “Usamos elementos da própria capa, acrescentando boxes pretos e amarelos com linhas fortes na diagonal para ganhar dinamismo, irreverência e dar uma cara mais esportiva mesmo.” REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 20
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