Marcelo Labes
Editora Oito e Meio Rio de Janeiro, 2016
© Marcelo Labes 2016 Este 4livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de XX Produção Editorial: Flávia Iriarte Diagramação: Fabi Cenci Desenhos: Andréia Peres
Dados Internacionais para Catalogação na Publicação. (CIP)
________________________________________ Labes, Marcelo Trapaça / Marcelo Labes – Rio de Janeiro: Oito e Meio, 2016 ISBN: 1 – Poesia brasileira I. Título CDD – B869
________________________________________ Travessa dos Tamoios, 32, Loja C Flamengo, Rio de Janeiro – RJ www.oitoemeio.com.br contato@oitoemeio.com.b
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um prefácio ou um poema, por Caio Carmacho
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PARTE 1 vento sul
15 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29
PARTE 2
desdiálogo variação #01 variação #02 entrelinhas ofício naftalina despoema às 3 da manhã resquiasce in pace solicitamos: código postal no entanto poesia S.A.
31 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43
PARTE 3
outono janela luiza respiro lusco-fusco votos manhã em solo de sax 130 quilômetros inverno balança agenda
45 47 48 49 50 51 52 53 54 55 56 58 59 61 63 64 65 66 68 69 70 71 72 73
PARTE 4
pigarro reviravolta ritual calendário os pássaros horário de verão ansiolítico advertência mcgyver vinícius se o alfredo alfaiate dona miranda daniel 1994 1999-2001 oitenta, noventa, dois mil e cinqüenta frente a frente manual de instruções festa de família desencontro retorno a 200 metros astronômico
75 77 78 79 80 81 82 83 84 87 89
PARTE 5
poço demolição demolição II quermesse queratina 659-9-1 atlântida ou não receita de bolo estragado paus & pedras boletim de ocorrência
91 92 93 94 95 96 97 99 100 101 102 103 104
pindorama macau anúncio publicitário progresso negócios 02/11 frio (sem estética) repartição quem diria bolsos como luvas quadrilátero academia desamante
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um guia corrido, egoísta e monologado
U M P R E F ÁC I O
OU UM POEMA
por Caio Carmacho a trapaça existe desde que o mundo é mundo paulo coelho & jesus cristo tudo é literatura até que se prove o contrário trapaça não é apenas autoficção milonga discurso para entendidos é obra em processo o caminhar superando o caminho marcelo andando no terreno movediço que é a poesia contemporânea buscando nos cacos dos dias uma unidade diversa assim como selarón em sua escadaria mas para você leitor este título pode soar estranho pacto com algo indefinível sub-reptício não é o caso trapaças são fugas não da realidade (pois dela se nutrem e valem) mas do sufoco é voltar à superfície após longo tempo submerso nas profundas águas
do cotidiano ouso dizer para desconfiança geral que nunca uma trapaça me pareceu tão sincera
*caio carmacho é poeta e picareta cultural.
A Alfredo Labes, meu pai, por ter me ensinado a poesia do silĂŞncio.
TRAPAร A
VENTO SUL
de qualquer forma sul como promessa de desengano melancolia grave de quando faz frio
PARTE 1
trรณpico de capricรณrnio redesenhado na garganta.
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PARTE 1
TRAPAÇA
tântrico tétrico tro vão
trânsito término ten ta ção
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TRAPAÇA
D E S D I Á LO G O
— A poesia tá morta faz tempo e a gente fica fazendo onda. — Mas aqui dentro faz calor, só tu que não vê. — O vento é frio e cortante, mesmo que o verão venha do alto? — Mataram as andorinhas e já não se olham mais no espelho.
PARTE 2
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TRAPAÇA
V A R I AÇ ÃO # 0 1
o poema pra existir necessita desse silêncio.
PARTE 1
o poema necessita do hiato que se forma quando pára finalmente de chover. o poema para haver necessita desse porão acinzentado que a gente leva consigo por onde quer que se ande. o poema necessita de mim e de ti nu n c a n e cessa r ia mente nessa mesma ordem. 18
TRAPAÇA
V A R I AÇ ÃO # 02
a poesia esporádica catártica sintomática e voraz deveria ser caminho de paz mas não:
PARTE 2
o poema é vento que antecede a tempestade. o poema é sombra para toda e qualquer verdade. poesia somente de vez em quando como quem diz não mas quer sempre mais.
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TRAPAÇA
ENTRELINHAS
o poema consuma e consome os anônimos e seus nomes.
PARTE 1
o poema reflete muito pouco [muito pouco] o que se espera apareça no espelho. por isso te aconselho: não procures no poema mais do que haja nas entrelinhas. assim evitas desvios e poupas que se entorte o caminho (já) incerto que caminhas.
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TRAPAÇA
OFÍCIO
Que o poema fale por si. Que os poemas dêem a si mesmos algum significado. Que os poemas nos deixem dormir cada um prum lado.
Que não exijam demasiado, que tenham em si a leveza daquele dia em que eu sorria. Por que poemas?, volta e meia me perguntam. [Eu me faço essa pergunta todo dia].
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PARTE 2
Que os poemas nos cobrem menos, andamos tão atarefados.
TRAPAÇA
NAFTALINA
Todas palavras guardadas decantaram e formaram crosta no fundo de meu aquário.
PARTE 1
As palavras não ditas mesmo intranqüilas sedimentaram.
E eu, que guardava cada palavra bem no fundo do armário
não pude escutar os segredos que as palavras me falavam.
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TRAPAÇA
DESPOEMA
Se os poemas ao menos nos dissessem o que a gente cresce sem nem desconfiar: que a vida é dura e é toda tua e que não perdes por esperar:
PARTE 2
[a gente só perde senta, espera; perde, senta e espera] Se os poemas ao menos dissessem que a gente nunca chega, de fato, a ganhar. Então os poemas seriam sinceros [e já não haveria mais que escrevê-los]
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TRAPAÇA
ÀS 3 DA MANHÃ
correr o risco de comprometer a palavra: reexistir no extinto redesenhar os destinos
PARTE 1
recaminhar a caminhada. autorizar o desatino reeditar o manuscrito: o poema deveria exigir silêncio, mas não cala.
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TRAPAÇA
R E S Q U I A S C E I N P AC E
aqui jaz um poema com todas suas mazelas sujo como uma janela que chuva alguma daria jeito de limpar.
PARTE 2
aqui jaz um poema-cela que se prendeu a si mesmo — porta trancada por fora que não vale a pena arrombar.
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TRAPAร A
SOLICITAMOS:
PARTE 1
o poema sรณ faz sentido quando se dรก conta de seus perigos. t que a poesia seja amiga pra toda vida. que os poemas silenciem e nos permitam dormir.
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TRAPAÇA
CÓDIGO POSTAL
escrever nos envelopes poemas como se endereços postá-los para quem sabe e esperar chegar o olhar atento e um balançar de cabeça como resposta: PARTE 2
“o senhor precisa preencher direito” aceita assim mesmo se o envelope se perde talvez que a gente se encontre por aí.
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TRAPAÇA
NO ENTANTO
sigo queimando poemas que quase ninguém lê três ou quatro leitores não se pode levar a sério
PARTE 1
: não levam à tevê ; ao encontro com a fátima ; às cozinhas enguiçadas dos programas de culinária sigo escrevendo poemas e me pergunto : pra quê? fazer dessa uma outra vida e recomeçar a caminhada , palavras , palavras , poemas armação & cilada.
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TRAPAÇA
POESIA S.A.
direto da prateleira do mercado marcado com o preço dos mais caros alvo, perfumado e macio. sobretudo despreocupado sobretudo vazio. mas quem disse? serve para limpar a pele e o plástico do bacio.
nada de poema umedecido com cheiro de talco de salto alto e juvenil: é necessário que diga a verdade mesmo que a verdade se encontre no fundo do rio. é preciso o poema da urgência das noites de tristeza e frio (que sirva a quem quer que seja sem lugar e hora marcados, sem norte ou algum outro lado) que seja água para os afogados espalhe merda pra todos os lados. já não preciso do poema sutil que sirva só pra limpar o meu rabo.
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PARTE 2
leve tanto quanto vadio. surdo — que não ouve meus reclames. mudo — que fala sem dar um piu.
PARTE 1
TRAPAÇA
sonhos de edredom num inverno que nasce belo e reflete nem o cinza nem o marrom: desabrocha amarelo.
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TRAPAÇA
OUTONO
Outono e o sol bate de lado — Leva casaco!, nunca se sabe do anoitecer. Outono de sonho acordado (vento que é brisa, morno ou gelado)
PARTE 2
Outono: nunca mais simples do que poderia voltará um dia a ser.
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TRAPAÇA
JANELA
Mirava com olhar de paralítico quando a via. Perdia-se num antigo devaneio — e esquecia
PARTE 1
que as portas que se abrem hora têm que se fechar. Abria uma janela amarela para ela.
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TRAPAÇA
LU I Z A
o emaranhado dos teus cabelos descomplicado: são tudo pêlos pro meu desejo condicionado por este beijo do teu café no meu cigarro. amargo.
PARTE 2
já foram dias de despedida (olhos fechados) hoje é encontro é desencontro é te ver ir sem ter chegado : mapa da mina rede de pesca piano indie descompassado: cadê teu rosto cadê teu cheiro eu te pergunto eu me pergunto querendo mais do lado-a-lado. (eu digo) foda-se o imprevisto e o calculado: estarás perto mesmo distante aqui do lado.
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TRAPAÇA
RESPIRO
se fosse fácil carregar nos braços a distâncialtura que engole o espaço e nos des-situa eu refaria como um afoito cada poema
PARTE 1
engoliria a seco cada velho dilema e te traria pra perto, pro abraço-abrigo que não respeita o tempo. (respiro) te procuro nos traços dos teus olhos-retrato, nos desenhos de nuvem nos metais com ferrugem nos olhares do povo no antigo do novo - te encontro no vento.
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TRAPAÇA
LU S C O - F U S C O
É preciso deixar que a noite chegue para sentir a tua falta para olhar a estrela mais alta e pensar que estamos aqui: o telefone não toca, ninguém baterá na porta e as cartas desesperadas se perderam por aí.
De perto, toda distância é segura. É preciso deixar que a noite chegue para nos esquecermos de dormir.
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PARTE 2
O scuro de que foge este Mastroianni maduro, sou eu mesmo quando me vi no Paradiso deserto.
TRAPAÇA
V OT O S
eu me quero assim todo eu todo meu e me quero assim comigo.
PARTE 1
eu te quero assim toda tu, tão tua pra que sejas feliz contigo. eu nos quero assim tão nós mesmos com cada um na sua de lua em lua eu me permito te querer livre eu mesmo livre me ter contigo te ter comigo pra que vivamos a plenitude dessa liberdade nua
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TRAPAÇA
M A N H Ã E M S O LO D E S A X
Esse silêncio que vem da distância é quem fala mais alto: quer ser abraço quer ser abrigo e quer que tomes café comigo na segunda de manhã.
PARTE 2
O teu cheiro no meu travesseiro é ainda o melhor amigo. Teus vestígios trago na pele marcada como casca de maçã.
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TRAPAÇA
1 3 0 Q U I LÔ M E T R O S
tô indo te ver porém a cada passo dado é como se distanciasse. tô indo te ver: o tempo corre invertido o caminho é mais comprido a ilha é mais distante o vale mais comprimido
PARTE 1
gvidero. rada ze os pés pisam em falso neste mais-tempo-que-espaço. os pés pisam em falso na saudade
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TRAPAÇA
INVERNO
Nenhuma palavra pode ser responsável por significar o que carece de significado. Nenhum abraço deve ser responsável por te abraçar se os teus braços cruzados. Toda manhã de outono revelará a cor pura dos dias.
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PARTE 2
Para as noites de frio, outros pés pra te esquentar os pés gelados.
TRAPAÇA
BALANÇA
O peso das coisas simples que não têm exatamente preço O peso das coisas simples que não cabem exatamente aqui
PARTE 1
O peso das coisas simples e a saudade exatamente dela O peso das coisas simples que pesa inteiro sobre mim
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TRAPAÇA
AG E N D A
eles se davam bom dia como quem espera mas ninguém sabia exatamente para onde aquele dia ia
PARTE 2
eles se olhavam como quem demora — àquela hora a vida ia v a g a r o s a m e n t e embora.
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PARTE 1
TRAPAÇA
felicidade? fica sempre um pouco mais pra la r
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TRAPAÇA
PIGARRO
sobre a rotina a nicotina e rancores: domingo é dia de rever a família e se te perderes, de espalhar excessos por onde tu fores.
PARTE 2
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TRAPAÇA
R E V I R AV O LT A
recitar lembranças como se amanhã rever fotografias como se o foco como se a luz reestruturar: relembrar
PARTE 1
para reesquecer.
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TRAPAÇA
RITUAL
antes de mais nada antes que tudo (o início do início do início de tudo): o ponto-chave, o x da questão: recantar a comida requentar a vida.
PARTE 2
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TRAPAÇA
CALENDÁRIO
recomeço retrocesso avesso e inverso: antigo.
PARTE 1
outono ou março, disfarço. refaço o caminho pelo mesmo acesso.
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TRAPAÇA
OS PÁSSAROS
A cidade é a mesma ainda que todos digam que as coisas mudaram muito e que já não somos mais tão eu tão tu Acredito. Os mapas nos mostram caminhos que não ouvimos.
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PARTE 2
E se é lua-cheia, o canto incessante dos pássaros não te deixará dormir quando fizer a primeira noite de calor.
TRAPAÇA
H O R Á R I O D E V E R ÃO
a noite é quase tão clara como a lembrança mais obscura telhados de zinco tilintam sob a luz dos postes
PARTE 1
em qualquer parte que fosses, a umidade te seguiria chove também por aí? aqui quase faz frio.
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TRAPAÇA
ANSIOLÍTICO
lembro das horas espessas quando havia muita pressa de ter logo uma vida inteira na memória . agora um pouco de calma:
PARTE 2
a vida inteira pra ser vivida não tem porque ser vivida exatamente agora.
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TRAPAÇA
A DVER TÊNC IA
pelo menos a gente tinha as propagandas de cigarro o herói o deserto os cavalos
PARTE 1
agora essa tosse esse cansaço. pelo menos a gente esperava que amanhecesse que o ano passasse que o brasil vencesse agora esse desatino esse despreparo. pelo menos as manhãs de domingo as festas de aniversário (esse silêncio inquieto bem poderia dar certo) [erra quem repousa sobre o correto e ri na cara do contrário].
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TRAPAÇA
M C GY V E R
de repente a gente lembra de algum dia dos 80 (na memória umas rasuras tantas tardes tantas ruas silhuetas quase sempre silhuetas) PARTE 2
de repente era 90 de repente não foi nada [e a gente fica besta, estancado no meio da escada como se aquilo de há tantos anos tivesse passado semana passada].
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TRAPAÇA
VINÍCIUS
o mundo não se podia dizer que era grande.
PARTE 1
tudo acontecia no bairro: o vô e a vó os tios e as tias os primos, as primas e as tristezas. tudo acontecia tão perto. o mundo só era grande quando a gente se aventurava a tomar banho de rio e tu me levavas. “não conta nada pra mãe” nunca contei mas igual a mãe brigava — a roupa molhada vinícius, a roupa molhada no varal era o que nos delatava. e tudo mudou tanto! mudou e deixamos os dois de ser meninos.
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TRAPAÇA
mudou e deixamos de nos aventurar pelos estradas de terra com aquela bicicleta vermelha e amarela que não se sabe mais onde está. o mundo ficou tão grande que a gente nem se encontra mais. — a roupa no varal, vinícius. nunca nos demos conta da roupa no varal. PARTE 2
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TRAPAÇA
SE O ALFREDO
sempre a certeza de encontrar meu pai ali sentado, cigarro aceso ali os olhos azuis encarando o mundo sem grandes desafios.
PARTE 1
a olhar o rio como quem aguarda “hoje não chove mais, o vento levou a trovoada”. [certeza passa a ser palavra ignorada: o ontem não volta o antes de ontem também não volta restam somente umas lembranças redesenhadas] o café esfria rápido no inverno e não tenho como te esquentar se não te acostumas com meias de lã.
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TRAPAÇA
A L F A I AT E
do lado de casa havia uma horta uma casa humilde um homem solteiro de cabelo liso e grisalho profissão e nome: alfaiate. quantas tardes quantas chuvas quantas perguntas feitas sobre a vida. PARTE 2
explicações sobre outros mundos, sobre outras coisas explicações que ele tirava tempo para inventar e contar como se fossem verdade. fazia café num fogão sujo, o café tinha gosto de sujo, mas eu aprovava. às vezes, muitas vezes, eu-criança-entediada: “por que as mulheres estão peladas na revista?” vai pra casa, ele me dizia. não vem mais aqui,
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TRAPAÇA
ele reclamava. passavam os dias eu nĂŁo conseguia, eu voltava.
PARTE 1
alfaiate foi meu primeiro desafio e minha primeira saudade.
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TRAPAÇA
DONA MIRANDA
dona miranda alugou um quarto para carminha de quem cuidava como se fosse filha conta hoje minha mãe. [anos depois, uma tarde fria, visitaríamos seu velório com tristezas e ave-marias] PARTE 2
um dia — a luz do século XX ainda reluzia — dona miranda encontrou um companheiro que construía uns instrumentos de madeira com as próprias mãos. numa visita, encantado que fiquei com o instrumento, ganhei de presente o meu próprio protótipo de violão. em hum mil novescentos e noventa e hum num colégio pobre para meninos pobres subi ao palco para cantar uma nuvem de lágrimas de chitãozinho e xororó. não sabia fazer direito
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TRAPAÇA
não sabia cantar direito não sabia tocar o instrumento que me haviam presenteado. dona miranda foi diretamente responsável pela minha primeira vergonha.
PARTE 1
por todas as outras até hoje e pra sempre eu me responsabilizo.
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TRAPAÇA
DANIEL
vejo tua casa, daniel, onde o quintal o futebol as conversas onde enterramos aquele pássaro e coroamos a terra com flores. vamos lembrar onde ele repousa? queria crer que todos vão pro céu (até os pássaros). PARTE 2
queria crer que a gente supera nossos fracassos, nossos passados. naquele tempo a vida ainda era longa e a gente nem pensava nisso. naquele tempo a gente enterrava os pássaros e ainda não sabia que iria enterrar os amigos.
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TRAPAÇA
1994
um abraço de pai como quem diz “meu filho”, mas não diz.
PARTE 1
dialeto que se encerra em si mesmo: tenho vontade de dizer que vai dar tudo certo, mãe. não poderei nunca ser pai, eu tão órfão de mim mesmo. faz dezembro, faz verão mas é como se não fosse.
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TRAPAÇA
1999-2001
de todas partes se escutam ecos do que nos restou daquelas velhas tardes. já ultrapassamos o que nos doía, restam apenas algumas verdades.
PARTE 2
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TRAPAÇA
O I T E N T A , N OV E N T A , D O I S M I L E C I N Q Ü E N T A
daqueles tempos posso dizer que havia poeira na garganta os domingos eram intermináveis
PARTE 1
apresentadores de tv inebriavam senhoras solitárias a gente tinha uns planos secretos a gente insistia nos erros e os apresentadores de jornal anunciavam dias melhores a gente não acreditava mas não tinha como desmentir a gente não acreditava e esperava esperava esperava daqueles tempos posso dizer daqueles tempos ouso dizer que o tempo nunca
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TRAPAÇA
passou e aqueles tempos são hoje.
PARTE 2
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TRAPAÇA
FRENTE A FRENTE
se meus pés estes passos só fazem levar pra frente
PARTE 1
é o abraço mais antigo que leva a gente pra trás — um tempo que soa abrigo , aqueles invernos compridos, alguma promessa de paz. quando fugimos nos aproximamos quando esquecemos é que mais lembramos que : não somos os mesmos : não somos nem mesmo diferentes ou iguais.
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TRAPAÇA
MANUAL DE INSTRUÇÕES
se meu pai tivesse mostrado o manual de instruções de como agir nas situações difíceis de como se despedir sem rasgar-se de como juntar os pedaços
então poderia culpar alguém por ter me ensinado tudo errado.
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PARTE 2
e comemorar aniversários
TRAPAÇA
FESTA DE FAMÍLIA
na fotografia chama atenção o abraço dos amputados
PARTE 1
a ciranda dos paralíticos cegos, cegos correndo desesperados tentando escolher o melhor lado : a última piada nunca costuma ser a que mais tem graça.
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TRAPAÇA
DESENCONTRO
eu vi a gente e parece que sempre e parece que tanto e parece que sempre mais. eu vi a gente num retrato antigo que eu trago comigo — vi a gente e muito mais:
eu vi a gente e parece que fomos muito mais do que somos — vi a gente, não vejo mais.
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PARTE 2
nunca futuro nunca certeza divide a mesa com teu irmão.
TRAPAÇA
RE TORNO A 200 ME TROS
eles perguntam as horas, os relógios estão parados
PARTE 1
eles perguntam pra onde, os mapas foram queimados ouvem vozes que prometem que prometem que prometem eles perguntam se é possível o futuro repete o passado.
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TRAPAÇA
ASTRONÔMICO
Supostamente falando, antigamente é um tempo passado esquecido, perdido e parado e que já não se sabe mais quando. O futuro é des(a)tino: chegaremos lá um dia ainda que, quem diria!, nunca saibamos como.
— Onde foi que nos perdemos de nós mesmos?, indagava. — Por que já não somos mais quem nunca fomos?
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PARTE 2
Numa tarde de outono, meteoros comemoram, em silêncio, seus contornos.
PARTE 1
TRAPAÇA
Sem um pingo de virtuosismo: Foda-se tudo! — e que o mundo se acabe em domingo.
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TRAPAÇA
POÇO
Andamos muito antes que explicassem-nos o quão redondo esse mundo era em linha reta sem fim nem fundo.
PARTE 2
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TRAPAÇA
D E M O L I Ç ÃO
somos riacho que ignora a correnteza : criamos atalhos destruindo pontes refazemos a margem à margem de onde andávamos antes
PARTE 1
certeiramente destroços.
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TRAPAÇA
D E M O L I Ç ÃO I I
de qualquer demolição resistirá o construído fantasma de maquete se sonhando concretado sirene de alerta 5 minutos botão vermelho disparado
PARTE 2
agora poeira: vento soprado passado antigo poema pensado e não escrito agora destroços agora detritos.
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TRAPAÇA
QUERMESSE
tentar a ciência a eloqüência a transparência seja o turvo que for tentar a família a partilha o amor
PARTE 1
amar uma vez e se der tentar amar novamente tentar ganhar dinheiro ou viver sempre por um triz e se nada de nada der certo enfiar Jesus rabo adentro e, sorrisinho no rosto, espalhar aos quatro ventos que é feliz.
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TRAPAÇA
Q U E R AT I N A
no mesmo sentido em que pele unha pêlos contém a mesma composição embora em sentidos diferentes
pra que não se confunda com feriado uma vida inteira vivida como se fosse sábado.
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PARTE 2
assim o riso, o grito, o rosnar até mostrar os dentes.
TRAPAÇA
6 59 - 9 - 1
trânsito forte teríamos sorte se evitássemos a encruzilhada?
PARTE 1
engarrafadas a vida e a alegria numa garrafa de bebida barata na contramão de direção um outro de mim que se parece em nada com aquele que te falava que a vida não vale a pena que a vida não vale nada sinal vermelho: sigo na estrada.
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TRAPAÇA
AT L Â N T I D A O U N ÃO
se até a fé, se até o café. porque a fome não pode se alimentar de si, então come. mas não come-se a si: devora o outro
PARTE 2
[mastiga-mastiga engole e digere pouco a pouco] se até o espelho, se até os joelhos rangem mais que dobradiças. se até a justiça ou muito pior se as injustiças. se a miséria, se a cobiça. seria séria a minha vida não fossem as interpretações das notícias? se até nós mesmos, se até nós juntos: em outros mundos seria o mesmo?
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TRAPAÇA
R E C E I T A D E B O LO E S T R AG A D O
uma receita de bolo mais perversa do que aquela descrita em ratos os amigos nunca mais vistos nem nunca revisitados
PARTE 1
os livros não lidos junto dos lidos e nem um mais: romances me deixam quase esgotado olhar adiante — ou quase um instante, dá na mesma: passado é passado e nunca se sabe se vai realmente amanhecer pitadas de insônia com cheiro de incenso barato; contatos, contatos abraços, cadê? eu durmo sorrindo se sonho acordado a música inspira pouco, um pouco mais e cantaremos as mesmas canções, aquelas canções de quantos anos atrás; eu choro baixinho com propagandas de pai & filho,
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TRAPAÇA
fico lembrando aquela antiga de gelol se sustenido ou bemol, já não estaremos mais vivos quando o eclipse voltar quando o cometa passar quando finalmente o asteróide saudade existe em português muito antes de a gente dizer xará se café ou chá, se chimarrão
PARTE 2
perdi muitos, já não encontrei mais meu irmão faz tempo que choro meu pai clóvis, quando se foi, deixou mais dúvidas que certezas, mais perguntas que desenhos, só não deixou angústias, que dessas já tenho os bolsos bem cheios aquela nossa leveza era bebida, por isso os pés tão pesados por isso os bolsos furados por isso a gente não lembra nunca se foi antes ou se foi apenas no ano passado a gente nunca sabe realmente de onde foi que a gente veio e quando percebe, é cortado pelo meio — alguma certeza
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TRAPAÇA
que se tinha, onde se vai encontrar a essa hora da noite?
PARTE 1
há um poema debaixo de cada travesseiro, não importa qual seja o andar e se o elevador quebrar, quais serão os monstros que nos tomarão no colo? evite perguntas em poemas, me disseram evite baixo calão em poemas, me aconselharam fale da vida como um todo, não cite nomes nem datas, faça um poema frio como a bebida barata que engolimos sem nunca sentir o gosto. o meu rosto, não reconheço mas sei exatamente em que cantos escuros dessa cidade escura chafurdei com a cara na lama a cama hoje tá grande e a ilha e a ponte estão tão do lado de lá um poema mais perverso do que ratos eu queria e não consegui escrever nada que não coubesse nesse dia.alterarar
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TRAPAÇA
P AU S & P E D R A S
— ela apanhou porque mereceu — enrabei o magrelinho que além de viado era ateu — coisa melhor do que ter seu próprio macaquinho de estimação?
paus e pedras, paus e pedras na primavera das datas, mais do que arco-e-flecha havia ali um silêncio trancado (não se interrompe silêncio, não se amarra, não se dissipa) na primavera das datas se estava ensaiando em silêncio o grito que ouvirás daqui uns dias. ele te dirá que te dispas de todas tuas verdades
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PARTE 2
[eles falavam tanto de classe fazer levantar as massas fazer a revolução — o branco, mais uma vez o homem que a si se vê como seu o pau lhe garantisse redenção]
TRAPAÇA
de todas tuas mentiras. ele te dirá que é tarde para ti e tua latrina (a boca pela qual falas em nome dos pretos, dos indígenas, dos meninos e das meninas) se já não sabes mais em qual direção, o precipício.
PARTE 1
ou será pra sempre isso: paus e pedras, paus e pedras.
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TRAPAÇA
BOLE TIM DE OCORRÊNCIA
vi o homem deitado no chão o rosto contra o chão na pista direita da BR 101 sentido sul sentido florianópolis. vi o homem deitado iluminado por lâmpadas de LED da polícia rodoviária federal. PARTE 2
além por cinqüenta metros sacolas de supermercado enfeitavam a rodovia (teria ido às compras?) sacolas que enfeitavam a autopista como talvez ele tenha enfeitado o pinheiro no natal passado. com seus filhos talvez com seus netos com os amigos que tenha tido e não reencontrará ali na metade do estado pra quem vem do rio grande do sul e segue caminho pro
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TRAPAÇA
paraná o homem deitado vestia bermudas e trazia sacolas de supermercado
PARTE 1
jazia ali atropelado não fazia nem cinco minutos que o mundo para sempre ignoraria o contato de seu rosto morto contra a certeza de um chão de asfalto.
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TRAPAÇA
PINDORAMA
terra à vista, se dizia. terras de santa cruz de pau-brasil de brasília hoje se sabe a verdade: esta terra não pode ter nome a não ser que se chame PARTE 2
terra-que-nunca-foi, mas ia.
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TRAPAÇA
M AC AU
PARTE 1
paralelamente aos fatos: do outro lado deste espelho quebrado escondem-se verdades expandem-se cidades recolhem-se os cacos. paralelas não se cruzam, é verdade. pra sair do outro lado do mundo não basta cavar um buraco.
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TRAPAÇA
ANÚNCIO PUBLICITÁRIO
não saia de casa com seu exclusivo /medo mais antigo /mania de perseguição /desejo antigo de estragar o dia não saia de casa por nada não precisa, não.
PARTE 2
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TRAPAÇA
PROGRESSO
PARTE 1
Subúrbio como promessa de muitos anos : nunca voltar para lá, eu me dizia. Mas a paisagem a umidade os contornos fazem de mim embaixador do subúrbio todos os dias.
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TRAPAÇA
NEGÓCIOS
Façamos um trato definitivo paremos de nos matar (ainda que com motivo) Contrato assinado, só um aviso: não olhe pro lado!
PARTE 2
[As crianças não compreendem o idioma estrangeiro tampouco têm tempo de descer as escadas] Estampido ligeiro Fecha-se a cortina de fumaça.
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TRAPAÇA
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dia três e a vida continua cada vez mais vida cada vez mais crua. dia três e as flores estão nuas.
PARTE 1
ontem paramos [não paramos] relembrando nossos mortos. hoje saímos às ruas sob chuva muita chuva. e a vida continua cada vez mais vida cada vez mais dura até que.
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TRAPAÇA
FRIO (SEM ESTÉ TICA)
o frio não quer nada da gente quer a gente inteiros desnudos incertos confusos o frio nos quer cedo pela manhã observando PARTE 2
pensando em outras manhãs pensando em outros invernos que ainda não passaram que ainda tardam chegar. o frio não quer nada da gente: quer a gente entre seus dentes eu te digo: vai chover vai ventar não há saída sabida
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TRAPAÇA
esquentar parece promessa mas faz parte da mesma farsa
PARTE 1
faz parte da mesma mentira.alterarar
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TRAPAÇA
R E P A R T I Ç ÃO
eu precisava trabalhar a cara enfiada no monitor dum computador amarelado. eu precisava acordar cedo e acreditar que o futuro ah, o futuro não repete o passado.
PARTE 2
eu precisava mostrar que sou forte e ademais pragmático. foi quando surgiu o poema e a poesia do dia-a-dia espalhou palavras por todos os lados.
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TRAPAÇA
PARTE 1
QUEM DIRIA
há promessas de revolução de manutenção de ultrapassagem pela contramão há promessas de fugas de retornos de exílios de abandonos há promessas de vida e de morte (depende do ano) há promessas e há sonhos há enganos e há o que a gen te nem sabe que ex iste.
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TRAPAÇA
B O L S O S C O M O LU V A S
das fotografias não batidas nesta vinda para o trabalho: a rosa champagne a umidade do orvalho o cogumelo de hiroshima na fumaça do meu cigarro as caras das pessoas que não queriam estar aqui que não querem mais nada PARTE 2
um termômetro ou uma notícia de rádio que anunciam [em blumenau 9 graus celsius às 7 horas da manhã]
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TRAPAÇA
Q U A D R I L ÁT E R O
viu que não apareceu o sol?
PARTE 1
nos consultórios nas fábricas nas repartições nas escadas nas fileiras nas estradas nos laboratórios tudo se resolverá sob lâmpadas fluorescentes.
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TRAPAÇA
AC A D E M I A
Vamos despertar antes que inicie o pesadelo: quem sabe se dando as mãos não criamos aqui um freio pra parar o que não devia ter começado mas já se encontra no meio? PARTE 2
Vamos evitar cair somente em devaneio e pisar firme com os pés: passo-a-passo, mas passo de pé inteiro Porque nisso de andar descalço a gente ainda se machuca Nisso de andar no alto a gente cai de forma abrupta e nunca vai ter certeza do que é sonho do que é luta do que é nuvem de fumaça e do que parece teoria e é trapaça.
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TRAPAÇA
DESAMANTE
Palito os dentes com o amor que achas que sentes. Cruzo pontes com a coragem que achavas que sentias.
PARTE 1
Descruzo os braços para falar das coisas mais simples. Carrego as armas empunho espadas e sigo adiante atravessando os dias : em frente!
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TRAPAÇA
U M G U I A C O R R I D O , E G O Í S T A E M O N O LO G A D O
*marcelo pierotti
Marcelo Labes é um cara legal pra cacete. Ele leu, um dia, um livro mais-ou-menos que escrevi faz certo tempo e entrou em contato comigo. Conversamos por algum tempo e, depois, ele me contou do presente volume de literatura, no qual estava trabalhando. Mandou-me uma versão preliminar, que li e que me fez ver o quanto o sujeito escreve bem. Devo dizer, de minha parte, que nos tornamos amigos nesse meio tempo e, num ato muito bonito, Marcelo me pediu para redigir algo para a tal coleção de poemas que seria lançada em breve.
O que se segue, enfim, é uma tentativa de organizar minhas impressões sobre o tal trabalho. Decidi fazê-lo na forma de um guia, que fui redigindo enquanto relia a obra. Não é didático ou inteligente porque não nasci para isso de ser pontual em minhas leituras (sei bem disso, até porque nunca completei o meu curso de Letras, mesmo após duas tentativas), mas cá está o resultado, que não sei bem para o que servirá. Antes de começarmos, devo apontar para algumas felizes coincidências: somos ambos Marcelos, somos ambos caipiras, e ambos escrevemos poesia. Somos, além disso, da mesma geração. E, preciso deixar isso claro, respeito o sujeito para cacete, porque ele escreve mesmo muito bem. Dito isso tudo, sigamos com o guia: o guia corrido, egoísta e monologado de trapaça O primeiro poema é “Vento sul”: deixa clara a procedência do autor, e dá uma tônica quase determinista. Conheço o peso do Trópico de
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PARTE 2
Deixei isso para a última hora, porque não sou uma pessoa organizada.
TRAPAÇA
Capricórnio. Muito vivi em Sorocaba, cidade que a linha imaginária atravessa. Os marcos geográficos são titânicos lá fora, mas, cá dentro, a gente é que os fere, mesmo que se rasgando no processo. Eles se recriam enquanto nos tatuamos com o que os mesmos nos impõem.
PARTE 1
Entra um poema que poderia ser chamado de construtivista. Quase não sei lidar com isso. Não manjo muito de construtivismo e vou continuar assim. Mas, tudo bem, o Marcelo é amplo. Sinto inveja sincera. Depois do cartão de visitas, poemas metalinguísticos. Pensei, da primeira vez que li o livro, e levando-se em conta o título, que a coisa seria só isso. Sei que fui tolo, eu sei. De qualquer forma, são poemas de vários formatos, que nos ajudam a pensar esse fazer meio inútil. Do já citado poema concreto ao diálogo versificado, Marcelo atira para todos os lados num esforço muito bonito de acertar todo o corpo do lírico. (Escrever sobre o escrever é algo que não sei fazer. E essa confissão até rima, de forma fraca, pobre e idiota, só para provar o quanto falo sério. Mais um motivo para respeitar todo esse pedaço da obra.) Do poema Ofício: Por que poemas?, volta e meia me perguntam. [Eu me faço essa pergunta todo dia] Esse aí é um autor honesto. Tudo que é camarada envolvido com essa coisa de escrever me critica quando uso tal adjetivo para tratar da nobre (ha-haha) arte do escrever: honesto(a). Mas, como abdiquei faz tempo do papel de crítico sério, então que se foda: o autor é honesto porque a célebre questão de Camus deve ser adaptada, como segunda grande pergunta da existência, para qualquer poeta que não se enxergue como o mais fodão entre fodões: para que continuar a 106
TRAPAÇA
escrever poemas, afinal? Nem precisamos de uma resposta, só o pensar sobre já vale. E ele o pensa. E eu, que guardava cada palavra bem no fundo do armário não pude escutar os segredos que as palavras me falavam.
Conforme vou relendo os outros poemas sobre o poetizar, preciso me segurar: prometi, faz menos de quinze minutos, não me alongar no tema. O leitor que vá atrás, então. Que cumpra o próprio papel. Que raiva uma certa composição quase toda dística me faz ter. Raiva sem maldade, e com toda a admiração. Sou dado a invejas inofensivas, acho. Quebrando minha palavra: e esperar chegar o olhar atento e um balançar de cabeça como resposta: “o senhor precisa preencher direito” Marcelo, eu te admiro pra cacete, você sabe que não 107
PARTE 2
Só mais esse trecho, para o último apontamento sobre a arte ingrata de brincar com letras, sílabas e palavras: às vezes, escrever poesia é um saco. Tem gente que, com uma gravura entregue ao mundo, exorciza tudo que é demônio e segue feliz por mais algum tempo. Já a poesia costuma agir pelos meios contrários: ela te pesa nas costas, um pouco mais para cada verso neonato. Espero que o Marcelo concorde comigo porque esta é, como grande parte do que escrevo nesta apresentação capenga, uma visão muito pessoal e egoísta.
TRAPAÇA
existe poema perfeito. Não para o pobre diabo que o escreve. A prova do que eu acabei de dizer está em “No entanto”: sigo queimando poemas que quase ninguém lê
PARTE 1
três ou quatro leitores não se pode levar a sério O problema está dentro e fora do poema e é sempre culpa do poeta. Não transcrevo o que se segue, porque seria da maior crueldade até para comigo mesmo. Só digo, e digo porque não sou confiável e quebrei no meio a promessa feita lá atrás, que não há muita saída. Nem que, por um acaso qualquer, a Fátima Bernardes apresente a obra completa do camarada em rede nacional, o negócio seria justo. Cavando um pouco você vê que o resultado final não é nunca o que se espera. Dentro e fora. E agora já estou me repetindo. Pulo o resto absolutamente significativo dos autopoemas e, do nada, caímos em outro âmbito. Sem marca ou aviso, o tema se transforma. Mas marca e aviso são desnecessários e a coisa flui. O cara não tem necessidade de avisar o leitor de que o assunto agora é outro. E isso funciona. Cacete. (Fiz as contas de quantas páginas escritas haverão sobre o livro caso eu continue neste ritmo e acho melhor me apressar, já que não sei qual o espaço que temos disponível.) “Outono”: nasci em maio, então qualquer coisa escrita sobre o outono vai me deixar sensibilizado. Mas, além disso, o poema é curto e direto, cara, que maravilha. O outono, acima de tudo, sempre sopra. Você está certo, meu xará. Saímos do domínio do escrever, como eu já apontei antes, e agora tratamos das relações com o outro. O 108
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eu-lírico, e digo assim só para manter a pose de quem fala do que já falaram em verso, vai seguindo deslocado pelo mundo, um pedacinho de universo que esbarra com outros pedacinhos feitos da mesma matéria, meio que alheio e roçando no outro como um cetáceo que emerge de leve para respirar. É uma merda de imagem ruim, eu sei, mas acho que serve bem para entender o que quero dizer.
Isso sim é transportar a figura desejada – porque isso é poema mirando em outro ente, que por acaso se deseja (de uma forma ou de outra) – para latitudes impensadas. Esses metais com ferrugem, isso aí dá gosto de chamar de imagem poética. Octávio Paz ficaria muito feliz. Passamos por mais interação com o outro. Temos aí cinema se somando às referências. A gente nasce, cresce, procura alguém, pensa muito em si mesmo, faz coisas desinteressantes e morre. Por isso é bem significativo que um poema endereçado totalmente a outra pessoa seja seguido de outro em que o autor se debruça sobre si mesmo, ainda que também sobre a outra pessoa: no caso, a pessoa que se quer bem. Mas não vou tratar disso como amor porque não quero limitar a paisagem. Vê-se o outro em si e vice-versa, só assim se gosta de verdade, e, a partir dessa fusão, seguimos. Lembrando que a falta da pessoa querida também é um tipo de presença, o tipo que, inclusive, mais faz peso. Não vou, só para continuar nas negativas, explicitar de quais poemas estamos falando. Não quero leitores preguiçosos nessa altura do campeonato. 109
PARTE 2
De “(respiro)”: (respiro) te procuro nos traços dos teus olhos-retrato, nos desenhos de nuvem, nos metais com ferrugem nos olhares do povo no antigo do novo te encontro no vento.
TRAPAÇA
E essa gravidade zero toda embaralhada? Porra! (e me perdoe o linguajar), a coisa funciona! Voltamos para a poesia debruçada sobre si mesma, meio que num piscar lá para trás, um pouco para lembrar onde estamos pisando. Depois disso vem mais do mundo pesando sobre o autor. São dois domínios irmãos que, quando acabados e preenchidos, quase não podem conviver. Bom para notar o contraste.
PARTE 1
Neste ponto da viagem, já podemos notar que o Marcelo resolveu engolir o mundo todo e escrever o máximo possível sobre cada mol de realidade que ele digeriu. Eu bato palmas: ele alcança uma aproximação sincera que só aquele que observa com quase inocência pode adquirir. Vide “Revira & Volta” para maiores esclarecimentos sobre isso de ponto de vista. (Tenho a impressão de que já não há o outro e nos aprofundamos em poemas existencialistas ou metafísicos, a seu gosto, só dependendo de seu posicionamento pessoal para a escolha do rótulo.) “Calendário”, depois das estações já tratadas anteriormente, me dá a certeza de que nos aprofundamos no problema do ser: poemas cosmósofos, se é que aqui posso criar palavras (horríveis e desnecessárias, eu sei). De Horário de Verão: chove também por aí? aqui quase faz frio. Encaramos essa linguagem pedestre e desinteressada após toda a inquietação subentendida no mesmo poema só para deixar claro algo denso e profundo que trespassa o “Bom dia. E aí, beleza?” de sempre. Talvez seja isso. Sei lá. Como eu disse, é um guia egoísta, falo só de minha leitura pessoal. E essa seção do livro continua. Poemas que me 110
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falam de amadurecimento, de envelhecimento, do envilecimento. Às vezes uns versinhos mais leves, quase Leminskianos, com jogos de palavras que escondem o peso da indagação. Poemas sobre os dias de antes, sobre décadas passadas, quando o mundo lá de fora se funde com o sujeito pela via das memórias de infância. Cara, como gosto desses poemas, principalmente os dedicados àquelas pessoas que não conheço. Somos dois Marcelos, quase da mesma idade, nascidos no mato, e os poemas tratam de uma vida que foi como a minha. Aqueles sobre o pai, então, a figura titânica e indecifrável, base de um mundo que a gente nunca vai entender, são coisa que me deixa quase prostrado. Mas larguemos isso de lado, porque já estamos passando dos limites do egoísta e pisando em terreno confessional. PARTE 2
De “1994”: um abraço de pai como quem diz “meu filho” mas não diz. Tenro e duro, tudo ao mesmo tempo. A gente escreve é para tropeçar nesses paradoxos. “Oitenta, Noventa, Dois mil e Cinquenta”: um poema chave, na minha opinião. Pelo menos no que tange à minha própria leitura dessa parte específica da obra. Não é muito, eu sei, mas é o que temos para dizer. Só para pontuar: até aqui já passamos por, pelo menos, três esferas “temáticas”. E tudo ainda parece seguir a mesma lógica simples. Não há saltos visíveis, é tudo orgânico. Isso me espanta. De “Festa de Família”: na fotografia chama atenção o abraço 111
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dos amputados a ciranda dos paralíticos. E, assim, não deve haver muito o que eu possa acrescentar com minha visão (deveras) míope. Se você, leitor, achar que não é isso, então, meu amigo, vivemos em mundos bem díspares.
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Continuamos no passado, matéria-prima de toda consciência. Continuo palpitando o menos que posso sobre o assunto. Marcelo tem controle sobre o que escreve. Eu não tenho controle sobre minhas imagens de ontem e, pelo visto, vou terminar este guia apenas com reticências. Quando a gente nota, percebendo que agora o assunto resvala no carbono de pele, unhas e pelos, já entramos em outro universo. Ou, pelo menos, passeamos pela junção de outros universos já apresentados. De verdade, tenho inveja dessa capacidade de síntese e organização, dessa coisa de criar longas correntes muito resistentes a partir de materiais tão diferentes. Neguei-me a fazer críticas formais e completas, por isso nada digo sobre “Receita de bolo estragado”. Permito-me apenas um apontamento: meu poema preferido em toda a coletânea. Rasteiro. Profundo. Coisa de qualidade indiscutível (até porque, como eu disse, não sou um crítico). Em “Paus & Pedras” notei que o foco já havia, de novo, mudado. Vamos às coisas chãs do mundo compartilhado. Rapaz, o Marcelo parece que fala de tudo. Releia Boletim de Ocorrência. Releia pelo menos umas quatro vezes. Subúrbio me faz revisitar Tatuí. Somos figuras provindas dos cantos mais cantos deste mundo. Também não sou bom com poemas sociais, lembrame 112
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Marcelo com coisas como “Negócios”. Mas ele sabe escrever esse tipo de poema sem tropeçar na linguagem professoral ou inflamada de panfleto. Aproximamo-nos do fim e só fico pensando: “Como caralhos ele conseguiu juntar tantos domínios de ser e/ou existir num só livro?” Aí reaparecem a palavra e o conceito que dão nome à obra:
Neste ponto eu odiaria Marcelo: ao descobrir que esteve tudo, sempre, sob controle na confecção da obra, odiá-lo-ia (que composição parnasiana, hein?) caso minha inveja fosse do tipo que permitisse esses arroubos. Mas ela não é. Então só pontuo o quanto a coisa foi bem pensada. Seguindo adiante, aprendemos sobre o mundo do (como já disse Drummond) poeta funcionário público e sua impossibilidade no presente caso. Continuamos falando sobre trabalho, mesmo quando somos surpreendidos pelo “cogumelo de Hiroshima” brotando dentre imagens tão mais plácidas. É o apocalipse de todo instante. Bom saber que o Marcelo se lembrou de tratar de um tema tão, no meu (de novo só egoísta) ponto de vista, fundamental. O livro acaba com “Desamante”. É um troço bonito, porque você não sabe de cara se é um poema pessimista ou otimista. Ele resvala na promessa de mundo melhor construído pela vontade do sofredor do ser (sem querer puxar para mim a genialidade de Maura Lopes Cançado), mas acaba nos largando, meio que sem mapa, numa encruzilhada qualquer das 113
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Nisso de andar no alto a gente cai de forma abrupta e nunca vai ter certeza do que é sonho do que é luta, do que é nuvem de fumaça e do que parece teoria e é trapaça.
TRAPAÇA
várias que encontramos pela vida, com a lembrança de que o amor é só sentido e ponto. De que a vida é vivida e ponto. E é só isso que nos é dado. O resto surge (sem juízo de valores, devo dizer de minha parte) a partir de nossas ações. Me dá muita vontade de esperar pelo próximo volume de poemas desse sujeito.
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Nem tratei aqui de aliterações, assonâncias, ritmo ou rimas (quando elas resolvem aparecer). O leitor que tenha a boa vontade de voltar lá para trás e reler tudo de novo – em voz alta, se quiser – para se certificar de que está tudo em seu devido lugar. Não sou, como já disse, professor. E assim terminamos esta viagem pelo livro de Marcelo Labes. Espero que a tenham apreciado. Se não, só posso lamentar. Não sou um crítico de verdade, digo pela última vez, e não estou aqui para ensinar ninguém a apreciar a boa literatura. O presente texto foi escrito em 14 de outubro de 2016, numa tarde chuvosa. Demandou oito latões de cerveja e um disco de Bob Dylan (agora Nobel de literatura), Johnny Cash e outros bons músicos que gravaram em Nashville – álbum que foi ouvido pelo menos três vezes. Só para constar.
Marcelo Pierotti é poeta, autor de Domingo no Matadouro (Patuá, 2013).
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DESENHO
Outros títulos do autor: Falações – EdiFurb, 2008 Porque sim não é resposta – Hemisfério Sul/Antítese, 2015 O filho da empregada – Hemisfério Sul/Antítese, 2016 Entre em contato: labesmar@hotmail.com
A produção da primeira impressão deste livro contou com o fundamental apoio de seus primeiros leitores na campanha de financiamento coletivo entre agosto e outubro de 2016.
Essa obra foi composta em Palatino Linotype e impressa em papel Pólen Soft em agosto de 2016, para a Editora Oito e Meio.
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TRAPAÇA
PARTE 2
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A LT E R A R
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