Julio reny histórias de amor & morte primeiras 20 páginas

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Cristiano Bastos

Hist贸rias de Amor & Morte

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© Cristiano Bastos, 2015 editor

Antônio Luzzatto criação do lettering

Vit Nuñez revisão

Consuelo Vallandro transcrição de entrevistas

Bruno Goulart fotos

Tamires Kopp, Fernanda Chemale, Giovani Paim, arquivos pessoais de Consuelo Vallandro e Julio Reny revisão (conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa)

Fernanda Dora

B326j Bastos, Cristiano, 1972Julio Reny: Histórias de amor & morte / 1. ed. - Porto Alegre, RS : Artes e Ofícios, 2015. 328 p. : il. ; 23 cm. ISBN

978-85-7421-237-1

1. Reny, Julio, 1959-. 2. Músicos - Brasil - Biografia. I. Título. 15-23519

CDD: 927.8164 CDU: 929:78.067.26

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

reservados todos os direitos de publicação para ARTES E OFÍCIOS EDITORA EIRELI-EPP Rua Almirante Barroso, 215 — Floresta CEP 90220-021 — Porto Alegre — RS telefone 51 3311 0832 arteseoficios@arteseoficios.com.br www.arteseoficios.com.br facebook.com/ArteseOficiosEditora instagram.com/ArteseOficios twitter @arteseoficios IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL ISBN 978-85-7421-237-1

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Sumário Prólogo, 9 Prefácio, por Luís Nenung, 15 Primeiros Verões, 19 Garoto Troglodita, 29 Uma Tarde de Outono de 1973, 37 Helton Estivalet, 49 Jogada Noturna, 55 Uma Canção nas Trevas, 67 Estórias Elétricas de Uma Guitarra Acústica, 75 Amor & Morte, 83 Consuelo Vallandro, 95 Não Chores Lola, 109 Carlos Eduardo Miranda, 119 Mil Noites, 127 Expresso Oriente, 139 Cristiane Santos, 153 Aconteceu no Verão, 159 Plato Divorak, 166 Café Marrakesh, 169 5


Mauro Borba, 183 Outros Verões, 191 Carlos Pianta, 199 Jovem Cowboy, 207 Forasteiro Triste, 221 Edu K, 233 Seguindo com o Vento, 239 Cão Vagabundo, 255 Coisas do Futebol, 263 Cristiano Varisco, 277 Bola 8, 281 Maomé, 293 A Noite se Move, 307 Último Verão, 315

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“Eu tentei o exílio, o silêncio e a esperteza.” Lawrence Ferlinghetti

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Dedicatória Julio Reny

A todas as pessoas que passaram ou ainda estão na minha vida, não importa o que aconteceu.

Dedicatória Cristiano Bastos

À P., que me mostrou uma nova maneira de ver e de viver.

Agradecimentos especiais

Ao Bruno Goulart, que transcreveu as inúmeras e longas entrevistas pra este livro e sem o qual o mesmo nunca teria sido feito a tempo.

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Prólogo Por Cristiano Bastos

Lembro como se fosse hoje. Ou será que foi ontem? Marcamos o nosso encontro à tarde, em um café do Bom Fim, Porto Alegre, bairro que é o centro freak-semita-rocker-hippie-punk-rajneesh da cidade. Numa dessas ruas da qual já não lembro o nome ou numa das alamedas de Porto Alegre que o Flávio Basso cantou na sua canção de amor/desamor “Eu e minha ex”. O homem chegou exatamente na hora combinada. Pontualidade, aliás, é uma de suas marcas registradas – “pontualidade inglesa”, como ele faz questão tanto de dizer como de praticar. Vestia um terno escuro meio desgrenhado que compunha seu estilo “noir”, os cabelos pretos perfeitamente cortados, lambidos num corte clássico. O pai, por toda vida, fora barbeiro. A ocultar-lhe a face, indefectíveis óculos escuros de aros grossos. Aparentava estar nervoso, um tanto inquieto. Naqueles dias, já vinha sendo assediado por esquizofrênicas vozes. Mas o que realmente importava, naquele momento, não se tratava das vozes: sua urgência era tomar um trago, uma bebida qualquer pra “regular a lenta” e “amaciar as palavras”. Afinal, o homem me revelaria, numa grande entrevista, ricos e confessionais detalhes sobre a sua errante vida e trajetória de outsider, tal como ele próprio se define. Julio Reny é um dos pioneiros, nos primeiros anos da década de 80, da chamada “música independente” em Porto Alegre (os outros desbravadores foram os cantores e compositores Nei Lisboa, com seu disco Pra Viajar no Cosmo Não Precisa Gasolina – resultado de um dos primeiros crowdfuding da história no Rio Grande do Sul, a popular “vaquinha”, cujo projeto recebeu o nome de “Neilisbônus” – e Juntos, álbum de Nelson Coelho de Castro). Mais do que “bandeirante” do hoje popularizado independente, Julio, porém, poderia se dizer, também é o criador-mor da música jovem-rock/gaúcho-porto-alegrense da maneira como 9


ainda hoje a ouvimos e entendemos – o primeiro e solitário aventureiro da leva que disseminaria uma turba de bandas de rock naqueles incipientes tempos. Meu encontro com ele, na verdade, era pra entrevistá-lo pro livro Gauleses Irredutíveis, sobre a cena da música rock gaúcha, do qual sou um dos autores. Dos 167 entrevistados, entre músicos, radialistas, produtores, jornalistas e outros folclóricos seres pro volume, Julio seria o primeiro a ser sabatinado. Naquele café bonfiniano, Reny optou por uma garrafa de vinho e, dadas as primeiras talagadas, soltou a voz pra desaguar parte de suas inacreditáveis histórias – as quais ele tem de sobra pra contar. Histórias de amor & morte, fracassos, alguns sucessos e muitas epifanias. Histórias que, em Porto Alegre, dentro da mitologia roqueira, poucos artistas possuem iguais. Na música e, especialmente em seus feitos, o homem é inigualável. Lembro de ter ficado profundamente impressionado com o teor daquelas suas narrativas e também, não vou negar, com o vulto daquele sujeito à minha frente, que tanta coisa um dia fizera – não só na música, mas igualmente no teatro, rádio, cinema e televisão. E bota coisa nisso! Muitas das revelações feitas, nesse dia, por Reny foram editadas em Gauleses, que foi publicado em novembro de 2001. Dos hits que inauguram a “invasão gaudéria” nas rádios, o primeiro deles, a “pedra fundamental”, é “Cine Marabá”, gravado em Último Verão, seu primeiro álbum, lançado em fita cassete no começo de 1983. Em Gauleses Irredutíveis, Julio nos dá alguns detalhes a respeito: “Gravei ‘Cine Marabá’, e a música estourou de uma maneira insólita. Eu larguei a fita pro [locutor da Ipanema FM] Mauro Borba tocar na rádio, mas ele não tocou. Depois ele me disse que havia perdido a fita. Mas eu tinha outra cópia, e entreguei pra ele de novo. A música estourou, mas ao mesmo tempo, a banda com quem eu estava na época começou a se desmanchar. Eu pensei em gravar uma fita-cassete, e o meu projeto era fazer uma gravadora de fitas. Era 1983, e a minha mulher na época, a Jaqueline Vallandro, montou com uns amigos uma loja de artigos alternativos de música, a Armação – bem na frente do que depois veio a ser a [casa noturna] Garagem Hermética. Consegui lançar a fita, mas vendi apenas meia-dúzia de cópias”. Logo após o lançamento de Gauleses, mudei-me pra Brasília, Distrito Federal. Fui trabalhar com política e também ser repórter da Rolling Stone, escrevi pra a extinta Bizz e ainda contribuía, à distância, com a revista Aplauso, de Porto Alegre. Na Rolling Stone, eu pude exercer a vocação jornalística que sempre busquei: a grande reportagem – modalidade jornalística que prima pelo aprofundamento 10


e pela apurada exploração dos temas. Em sete anos de reportagens e perfis, lá tive a oportunidade de escrever (Raul Seixas, Luiz Gonzaga, João Donato e Novos Baianos, entre outros) e de entrevistar nomes como Zé Ramalho, eu também embarquei em reportagens sobre temas subterrâneos e olvidados da cultura brasileira: a história do disco Paêbirú – Caminho da Montanha do Sol, de Lula Côrtes e Zé Ramalho, por exemplo, e dos perdidos fonogramas de Native Brazilian Music, uma inacreditável trama que, literalmente, envolve o roubo de importante parte de nossa cultura. Caso, aliás, de política internacional. Também tive a oportunidade de conversar com muitos artistas que se têm em alta conta pela tal “MPB”. Entretanto, durante todo esse tempo, latentemente, volta e meia um nome não me saía da cabeça: Julio Reny. E também as lembranças de nosso encontro, anos atrás, naquele café. O inconsciente desejo de biografá-lo andava rondando-me os pensamentos havia algum tempo. Antes disso, eu tivera uma frustrada experiência com a tentativa de biografar aquele que, pra mim – e muitos que ainda lembram-se dele –, fora o maior astro e um dos mais grandiosos personagens de nossa música: o “Rei do Rádio” Nelson Gonçalves. Mas, impedido pela tranca-rua Lei das Biografias, por fim o projeto se viu malfadado; no caso de Nelson Gonçalves, pra atravancar ainda mais a viabilidade do projeto, o cantor tem vários herdeiros. Em meados de 2013, voltei a Porto Alegre a fim de revelar ao Julio (ele, que não é afeito em falar sobre o seu passado) meu projeto de biografá-lo. E, desde então, durante mais de um ano e meio de sessões psicoterápicas, esta é a palavra, passamos a limpo sua vida e obra em longas sessões de entrevistas. Neste livro – uma biografada autorizada e sincera até doer –, Julio Reny revela suas desventuras amorosas, um dos combustíveis de suas canções, e não poupa sua língua pra falar francamente sobre sexo, drogas e, até mesmo, magia negra. O nome da obra não poderia ser mais adequado: “Histórias de Amor & Morte” – metáfora perfeita, que resume os amores e tragédias pelas quais passou ao longo da vida. Franca e autorizada, a biografia do dono de hinos como “Amor & Morte”, “Não chores Lola” e “Razões do coração”, entre tantos outros, é toda em primeira pessoa, mas também conta com depoimentos de importantes personagens que, na vida e na música, cruzaram a vida de Julio Reny como, por exemplo, sua filha, Consuelo Vallandro, Carlos Eduardo Miranda, Edu K, Carlo Pianta e Mauro Borba. O músico Carlo Pianta, que acompanhou Julio Reny numa das formações da sua Expresso Oriente e, nos anos 90, formou com ele Frank Jorge a “Guitar 11


Band”, reserva, em sua dissertação de mestrado – “A Gênese da Bossa Nova: João Gilberto e Tom Jobim” –, uma generosa deferência a Julio Reny, ao qual chama de o maior “cancionista” gaúcho: “Julio Reny, pra mim, [foi] o maior compositor gaúcho de canções de todos os tempos, que me proporcionou muitas coisas, que não cabem nesses agradecimentos. Mas faço questão de enumerar algumas: vendo-o tocar ‘Razões do coração’, no Ocidente, em 1986, compreendi o que é uma canção; tocando com ele, na Expresso Oriente, de 1987 a 1989, fiz coisas que já me permitiriam morrer em paz; tocando com ele na Guitar Band, entre 1991 e 1993, cheguei ao ponto culminante de minha carreira como músico, como baixista. (...) E, finalmente, convivendo esporadicamente com o Julio, tendo tido a honra de participar como compositor e instrumentista em vários discos por ele lançados, a epifania estética e intelectual de poder dizer de novo: Julio Reny é o maior cancionista gaúcho”. Nas entrevistas feitas pra este livro, outro importante personagem na trajetória de Julio é Carlos Eduardo Miranda, o “Gordo Miranda”, que, na longa entrevista que concedeu, afirma que o Último Verão é “o grande disco, uma das melhores coisas feitas na música brasileira em todos os tempos”. E assume: “Eu sou um fanático disso daí”. Pro Miranda, o Julio é um cara que sempre esteve aos pedaços. “Nunca [o Julio] foi inteiro. Em nada. Nunca chegou, nas músicas dele, a tudo que ele podia ou que gostaria. Nunca alcançou todo o sucesso que ele devia ter alcançado. Eu sempre sinto que o Julio nunca foi revelado por inteiro, mais do que ele mesmo se revelou no Último Verão. Eu nunca sinto que ele foi um cara que se fez e, mesmo quando se fazia sempre, se desconstruía e se destruía, mas não propositalmente – a vida fazia isso com ele. E isso o transforma, hoje, num personagem ainda maior do que um dia ele sonhou ser”. Embora pouco conhecido fora do Rio Grande do Sul, onde tem status de herói, nos anos 80 Julio ganhou enorme prestígio, entre a crítica, com a sua big band Expresso Oriente e, no final dos anos 90, conseguiu um hit nacional com a música “Jovem cowboy”, o improvável crossover, que beira à perfeição, entre o country e o hip-hop. Mas, além dessas, teve muitas outras bandas: Guitar Band, Os Daltons, Os Topetes e Uma Canção Nas Trevas, a sua primeira. Sem esquecer que, fora grandioso compositor, Julio Reny de tudo um pouco foi na vida: ladrão de discos (roubou mais de 300 discos em lojas de Porto Alegre nos anos 70), temido brigador de rua (seu apelido era “Pé na Cova”), goleiro do infantojuvenil do Sport Clube Internacional e, na idade adulta, ator de teatro e cinema (pro12


tagonizou dois filmes geracionais do cinema jovem porto-alegrense: Deu Pra Ti Anos 70 e Verdes Anos). E além disso tudo, foi brigadiano mirim: Julio nos conta nesta biografia que, durante a Copa do Mundo de Futebol de 1970, ano de seu ingresso na corporação militar, deram-lhe a ingrata função de distribuir os famigerados adesivos “Brasil: Ame-o ou Deixe-o”. “Sim, aos onze anos de idade, servi à ditadura”, ele confessa. O que também poucos sabem é que os Engenheiros do Hawaii, em início de carreira, frequentavam a casa do Julio, no bairro Santana, em Porto Alegre, onde, entre outras bandas, Os Replicantes ensaiavam. Os Engenheiros, ele revela, tinham a chave de sua casa. Eles, aliás, chegaram a abrir para o Julio em shows que fizeram no esquema “programa duplo”. Entre os inúmeros causos e histórias que Julio Reny divide conosco em Histórias de Amor & Morte, uma delas é a quase trágica passagem na qual, durante uma jam session na garagem, ele e seus comparsas mandaram ver uma garrafa de herbicida pra ervas daninhas que ele guardava na dispensa de casa junto com outros vasilhames que foi, literalmente, tomada por uma garrafa de vinho. O som pegou fogo, ele narra: “A gente se empolgou tanto que fizemos até uma versão de ‘Let’s stay together’, do Al Green, a qual cheguei a tocar em show. Chapado de herbicida, versionei: ‘Quando você foi embora / Quase enlouqueci / De tanto que eu sofriii’. Lá pelas tantas, no final da noite, extasiado eu pego aquela garrafa e ‘bah, mas que vinho mágico!’”. Por sorte não morreram. Mas o som fluiu à beça e, por sinal, continua fluindo.

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Prefácio Por Luís Nenung

Um garoto de míopes olhos sonhadores desliza suas sandálias rotas pelas dunas marroquinas. Pegadas sopradas pelo vento quente de um oásis imaginário. O céu sem nuvens o convida ao deslimite. Talvez seja o calor extasiante de um sol implacável que torna a sua imaginação ainda mais viva. Sonha haréns de garotas indizíveis, revoadas de discos jamais ouvidos, heróis rebeldes com perfeitos topetes erguidos e as melodias fantásticas de uma guitarra elétrica. Tem também um pesadelo recorrente: uma bola enorme o persegue como sombra, lenta e implacável. Tenta agarrá-la e não a alcança, tenta correr e já não pode. Ela é a sua sombra. E ele sabe que ela quer, e vai esmagá-lo, um dia. É apenas uma questão de tempo. Quando ele percebe, a noite o envolve e se apropria de seus olhos. Já não enxerga mais do que vultos. Assim seria dali pra frente. Segue o sonho. Em outra parte do mundo, acorda um rapaz tímido, agitado ora por seus devaneios, ora pelos seus hormônios. Ele leva consigo a sensibilidade de um anjo e os desejos de um demônio: um cruzamento bombástico como tudo o que é extremo. Volúvel, criativo, reativo, sensível e frágil por natureza. O chamam de Julio. Parece ser tão distante do garoto que sonha, mas a imaginação que os une não deixa dúvidas: Julio respira e sonha sua vida ilimitada e sem regras, cercado de projeções, fantasias e desejos românticos – haréns radiantes, futuros brilhantes, desfrutes perfeitos. Coisas de menino, que precisa urgentemente afirmar-se homem e criar defesas na selva moralista de escolhas retas e cruelmente concretas em que foi cair. Sente os dedos enredados numa rede que não vê, aprisionado aos próprios pés e sem saber pra onde correr. Mas sabe que não tem outra escolha senão ir em frente. E vai. Procurando desesperadamente uma saída da cilada, Julio vai da agressividade à recorrente autossabotagem. Cria seu próprio personagem e por ele é possuído. Envolve-se em brigas, roubos, drogas, viagens e muita bebida. Garotas fantás15 “Aqui você vai ler e saber: depois de tanto, poucos sobreviveriam pra contar. Ele viveu tudo o que viveu, sobreviveu e aceitou abrir sua caixa de segredos e lembranças ardentes” – Crédito das fotos: Tamires Kopp


ticas saltam das telas e tomam forma em romances explosivos, confusos, trágicos. O sonho se alterna com o pesadelo com uma velocidade estonteante. Fantasmas tomam conta de seus olhos desfocados. (A bola se aproxima recorrente e assustadora: a sombra devoradora que o consome). De tão fora dos trilhos ganha até um diagnóstico: esquizofrênico. Dá de ombros e toma outra dose. A música o salva. Assume querer ser outro e mergulha em ser ator. Ator no palco, na tela, na vida a dois. Mas atuar cansa. O roteiro vira rotina e o apavora. E rende bem pouco pras finanças. E alguém nos conte o que fazer com as crianças? Fiel e constante, a tensão o acompanha. (A bola agora é de neve e se aproxima mais e mais... lenta, densa, muda). Mudo é o medo de frustrar o pai que ama. As mulheres, os amigos, as filhas. As fãs que leva pra cama. Mesmo que dele já tenham dele partido. “Um coração partido não é o fim”, ele decanta pra se convencer a seguir. E segue. No fundo, leva dentro o compromisso inconfesso e inegociável de se manter leal a ele: aquele garoto inocente de olhos sonhadores que adormece sob a Lua amarela em uma duna imaginária, além do tempo e da dor de ser vivente e assim sensível nesse mundo dormente. Esse que ele virá a encontrar um dia para cantar então suas aventuras, chorar num abraço, rir até o cansaço de suas tantas histórias loucas. E deixá-lo feliz. Nem que por um instante. Julio Reny destilou aventuras e angústias até fazer de si sua poesia. E sua música. Essa que sentimos como nossa e comove e acompanha a tantos que, como ele, se encontram em busca de si mesmos sem permitir se perder de sua inocência. Criar um mundo próprio – no pequeno oásis de uma canção que seja – uma ilha livre de pressões e jogos sujos. Em um romance livre de pressões e compromissos, desculpas e artifícios. Em uma noite infinita de alegria, amigos, bebida e... garotas. Querendo ser livre e feliz, do seu jeito. Sua ilha idílica. Seu universo lírico. Seu porto aberto para receber e acalentar o coração de poetas perdidos como ele. Anti-herói rebelde. Apaixonado lúdico. Ladrão singelo de sonhos plásticos. Contraventor romântico cantor de amores impossíveis. Outsider. Aranha fora da teia que resiste ao ataque de si mesmo. Contraditório, confuso, brilhante rude boy sem maldade. São tantos os reflexos desse personagem múltiplo que cumpre à risca sua função de levar consigo a dor ardente de sentir sem cessar. Um incessante exercício de exorcismo. Do meu, do seu, do nosso mundo. 16


Um artista sem filtros e sem maquiagem, que só se recorda completo no palco. Compartilhando o que é só seu, mas é também de ninguém: propriedade de nossa humanidade que busca consolo em se acreditar moderna. Só como é o mundo. Poeta desiludido que acha formas de seguir vivendo como pode, disfarçando o garoto entre as paisagens de suas tantas miragens. O lutador que calejado, deixa o rosto desprotegido e exposto. E mesmo a blindagem do álcool – ele bem sabe – não lhe é suficiente. Ele lembra e ainda sente como se fosse ontem. Ou hoje. E há sua obra, essa que irá perdurar no imaginário de nossa humanidade fragmentada e, portanto, tão abertamente necessitada de poesias sinceras e vivas. Desprotegidas. Sua obra que irá viver sem perder a vida ou o significado. Em fitas cassete ou corações expostos. Quem ainda viver e sentir por aqui saberá. Aqui você vai ler e saber: depois de tanto, poucos sobreviveriam pra contar. Ele viveu tudo o que viveu, sobreviveu e aceitou abrir sua caixa de segredos e lembranças ardentes, sabendo claramente o quanto ia sentir. O quanto ainda sente. E já não é só por si. (A bola segue no ar. Ele já não teme tanto. Aprendeu muito e muito aprendeu no tranco. Mas o que aprendeu não se perde. O que se doa com sinceridade não se perde jamais, e isso é tudo). A deixa vir. Se deixa levar. Segue e sente. Tudo ao seu tempo. Ave Julio.

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Primeiros Verões Nos meus sonhos eu caminhava por uma praia imensa, e o mar trazia despojos que não me eram estranhos. Então me aproximei e peguei o que parecia ser um brinquedo e o reconheci: era um pequeno carro de madeira que tive na infância, e percebi que tudo o que estava ali já tinha sido meu um dia. Aquela era a praia onde quebra o mar das lembranças. Guardado em meu surrado estojo de violeiro carrego comigo, há mais de trinta e cinco anos, um intrincado encordoamento de metáforas. Algumas delas beiram a perfeição sobre quem eu sou. O meu nome é Julio Reny. Músico, compositor, cantor, ator, outsider, radialista, pai e, nos atribulados anos de juventude, goleiro, brigadiano mirim, ladrão de discos e brigador de rua. As histórias, contudo, melhor detalham minha errante trajetória. E histórias eu tenho de sobra pra contar. Histórias de amor & morte, aventuras e infortúnios, tropeços e reviravoltas. Repartindo sucessos com temporadas ora de criação, ora de ardente sofreguidão, senti o sabor genuíno de fracassos e epifanias. Vivi noites no paraíso e certas tardes no inferno. Eis uma narrativa cuja estreia nos “palcos da vida” se dá no dia 27 de fevereiro de 1959, noite de sexta-feira. Nasci de parto de parteira, no seio da família Gay Barbo, em Porto Alegre. Morávamos na Rua General Lima e Silva, no tradicional bairro da Cidade Baixa, no pulsante coração da cidade. Vivi meus dez primeiros anos nesse endereço. No horóscopo chinês, pertenço ao signo de “Porco”. De inquietude e melindrante franqueza, aponta o zodíaco, e de boas intenções e aptidão pra prática de esportes. Mas, por outro lado, de irreparável “atração pelo incerto” e propenso a inconstâncias – seja na música, no coração e, principalmente, na vida pessoal. Quanto aos meus defeitos, todavia, deixo o julgamento inteiramente com o leitor. Enquanto paria-se Julio Reny, 1959, o último dos nostálgicos “anos dourados”, encerrava em turvas, ou melhor, cinzentas cores. De assalto, o derradeiro ano da década via-se tomado por revoluções políticas e culturais, mortes e insur19


gências. No rock-and-roll, os primeiros dias de fevereiro ceifavam prematuramente as vidas de Buddy Holly, Ritchie Valens e J. P. “The Big Bopper” Richardson. Amados pela juventude dourada, os três astros morreram na queda do pequeno avião Beechcraft Bonanza no qual viajavam na volta de um show. Foram perdas tão sentidas que o melancólico 3 de fevereiro se eternizaria na história como “O Dia em que a Música Morreu”. Pelas bandas do Sul do Brasil, o compositor gaúcho Vítor Mateus Teixeira, o popular “Teixeirinha”, debutava com Teixeirinha Interpreta Músicas de Amigos, nome de seu primeiro compacto simples editado pela gravadora Chantecler. O disco seria peça inauguradora de incontáveis êxitos fonográficos do trovador, que, dado seus fabulosos recordes de vendas, ficou conhecido como o “Rei do Disco”. Lançado em 1959, Chega de Saudade, álbum de estreia do bossa-novista João Gilberto, por sua vez, inaugurava uma fase de cores brasileiras na música mundial. Ano marcado, ainda, por irreparáveis falecimentos: do maestro Heitor Villa-Lobos, da compositora Dolores Duran e da diva do jazz Billy Holiday. Na política externa, ao raiar do primeiro dia do ano, liderada pelo guerrilheiro Fidel Castro, se instaurava a Revolução Cubana, que culminaria com a destituição do ditador Fulgêncio Batista. E, distante algumas poucas jardas submarinas da Ilha de Cuba, os Estados Unidos deflagrava outra incendiária sublevação – baseada na tríade “polirritmia, liberdade e improvisação”. O jazz, com imortais obras-primas de Dave Brubeck, Ornette Coleman, John Coltrane, Miles Davis, Charles Mingus e Sun Ra, se modernizava. Musicalmente, minhas mais remotas memórias são do estouro da jovem guarda, fenômeno que, em meados dos anos 60, ditava a moda, o comportamento e o som que era ouvido pelos jovens brasileiros. Não esqueço minha irmã Regina, aos seus dezesseis anos, curtindo no rádio, na TV e na vitrola – tal qual faziam milhares de outras meninas de sua idade – o “trio de ouro”, Roberto e Erasmo Carlos e Wanderléa, a “ternurinha”. Por tabela, o frenesi de Regina por Roberto Carlos também me contagiou com o irresistível vírus pop. Do alto dos meus 55 anos ainda sou portador dessa febre, e até hoje me refiro a Roberto Carlos, meu ídolo maior na música, pelo afetuoso aumentativo: “Robertão”. Aos cinco anos de idade, em 1964, tornando-me voraz apreciador da arte cinematográfica, eu iniciava um interesse que se perpetuaria por toda vida, antes que, com o avançar dos anos, eu perdesse parte significativa da visão devido à acentuada miopia. O cinema contribuiria extraordinariamente pra minha for20


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