As Mais Originais Histórias da Mitologia Galesa, o novo livro de Carmen Seganfredo

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MITOLOGIA GALESA

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CARMEN SEGANFREDO


Carmen Seganfredo

AS MAIS ORIGINAIS HISTÓRIAS DA

MITOLOGIA GALESA MABINOGION

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© Carmen Seganfredo, 2015 edição e editoração

Antônio Wenzel Luzzatto capa

Gonza Rodriguez revisão (conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa)

Fernanda Dora

S456m Seganfredo, Carmen, 1956As mais originais histórias da mitologia galesa : Mabinogion/ Carmen Seganfredo. — 1. ed. — Porto Alegre, RS : Artes e Ofícios, 2015. 264 p. : il. ; 23 cm. ISBN 978-85-7421-236-4 1. Mitologia — Ficção. 2. Ficção brasileira. I. Título. 15-21428

CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

reservados todos os direitos de publicação para ARTES E OFÍCIOS EDITORA EIRELI-EPP Rua Almirante Barroso, 215 — Floresta CEP 90220-021 — Porto Alegre — RS telefone 51 3311 0832 arteseoficios@arteseoficios.com.br www.arteseoficios.com.br facebook.com/ArteseOficiosEditora instagram.com/ArteseOficios twitter @arteseoficios IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL ISBN 978-85-7421-236-4

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PREFÁCIO Os celtas do País de Gales são, dentre todos os povos, aqueles que desenvolveram com mais requinte a divertida arte de contar histórias. As onze lendas que compõem esta coletânea são consideradas, por sua vez, as mais coesas e originais dentre as histórias galesas. Registradas no decorrer do século XIV, estas narrativas enriqueceram de forma extraordinária os registros da cultura e língua da “terra dos druidas”, e afetaram, tão profundamente, durante séculos, os gostos e literatura ocidentais que chegaram ao ponto de serem reivindicadas como o berço da literatura europeia. A tradição oral foi tão obsessivamente cultivada pelos galeses que, apesar das evidentes influências inglesas e normandas, suas lendas prosseguiram sem jamais perder sua essência celta e sua linguagem própria. Diferente de tudo o que já se viu ou se ouviu falar sobre os celtas, algumas destas crônicas chegam até nós evocadas de uma era turbulenta e instável, produto da Idade Média cristã, e temperadas com peculiaridades da tradição da Idade do Ferro. Os contos mais claramente mitológicos contidos nesta compilação são Os Quatro Ramos do Mabinogi com seus criativos e instigantes bardos e seus audaciosos heróis. Não menos fantásticas são as novelas de cavalaria do Ciclo Arturiano, cujo rei, com seus cento e cinquenta cavaleiros da Távola Redonda, originou os romances da literatura ocidental. Não sem vanglórias e alardes, verdade seja dita. “Quero que a aventura seja contada. Pois é inútil fazer o bem se for feito de jeito que ninguém fique sabendo”, frase extraída do livro Romance da Távola Redonda, do francês Chrétien de Troyes, que viveu no século XII e foi um dos mais bem-sucedidos cultuadores da literatura do País de Gales. Altivos de seu passado, suas crenças e seus rituais, os galeses, apesar de pertencerem ao Reino Unido, têm orgulho de viverem isolados no seu país. Independentes do jugo da coroa britânica, mantiveram ferrenhamente seu

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idioma nativo celta (o mais antigo idioma vivo deste reino), como também seu apego pátrio e sua forte identidade. Ao contrário do que aconteceu em outras regiões da Europa, cristianizada de maneira avassaladora no primeiro período medieval, os galeses persistiram em cultivar características pré-cristãs, resistindo às opressivas imposições de mudanças sobre seus ritos e crenças. Conservaram suas antigas tradições pagãs e atravessaram a Idade Média com suas histórias, muitas vezes sem qualquer mescla de “enxertos” cristãos. O País de Gales — cuja bandeira é representada por um dragão vermelho, o deus celta Dewi — conserva até hoje sua rica e exótica linguagem, que chama a atenção por suas particularidades e extensões. O “w” e o “y” atuam como vogais e os nomes dos lugares são elucidações detalhadas de sua localização. Daí a razão, por exemplo, de uma pequena aldeia situada no norte de Gales possuir o nome mais longo da região do reino Unido — e talvez do mundo inteiro: Llanfairpwllgwyngyllgogerychwyrndrobwllllantysiliogogogoch (a pronúncia é um desafio. Para os curiosos, a tradução seria mais ou menos esta: lugar situado na ilha de Anglesey com duas igrejas, a Igreja de Santa Maria perto de um redemoinho e a Igreja de São Tysilio próxima de uma caverna vermelha). Na presente adaptação, foi tomado como base o punhado de lendas que compõem o livro Mabinogion traduzido por Lady Charlotte Guest e foi adotada a sua mesma sequência de narrativas, visto que cada conto independe dos demais e os personagens conectam-se harmoniosamente por vínculos familiares e relações imbricadas por laços de casamento no mesmo clã. Os contos que compõem a coletânea do livro Mabinogion estão registrados em dois manuscritos medievais galeses, o Livro Branco de Rhydderch (Llyfr Gwyn Rhydderch), do ano 1350, e o Livro Vermelho de Hergest (Llyfr Coch Hergest) do período de 1382 a 1410. Apesar de seu valiosíssimo material, esta literatura galesa permaneceu inacessível ao público em geral e até mesmo aos especialistas do assunto até a metade do século XIX. Em 1849, porém, Lady Charlotte Guest resgatou-a com sua tradução para o inglês de onze contos do Livro Vermelho de Hergest, editados em três volumes, recheados de esclarecedoras notas de pé de página. Em 1877, Guest publicou-o num único volume, que intitulou de Mabinogion, incluindo um décimo segundo conto, Hanes Taliesin, de um manuscrito do século XVI (aqui adaptado em apêndice). 6

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Há inúmeras controvérsias quanto ao significado exato do termo Mabinogion, sendo a mais popular a versão de que, ao se deparar com a palavra galesa mabynogyon no seu trabalho de tradução, Lady Guest a tenha adotado equivocadamente como forma plural do galês mabinogi. Alguns estudiosos antigos, e os atuais eruditos galeses concluíram, no entanto, que o significado verdadeiro seria “conto de um herói” ou “contos” ou “histórias”. Assim, seguindo o mesmo raciocínio, um “ramo dos Mabinogi” significaria “uma parte da história”. Tanto esta teoria se ajusta verossímil que há contos que são rematados com um mote: “assim termina este ramo do mabinogi”. Fonte de inspiração para as mais variadas obras da Literatura de Fantasia, a riquíssima mitologia galesa inspirou a criação de incontáveis trabalhos literários de célebres autores como: J. R. R. Tolkien, cujo livro escrito por seus personagens, Bilbo e Frodo, foi nomeado de O Livro Vermelho da Marca Ocidental; Lloyd Alexander, autor de As Crônicas de Prydain, se inspirou no Mabinogion e na geografia do País de Gales para criar o seu universo de fantasia; Bernard Cornwell dedicou inúmeras de suas histórias às antigas lendas de Artur, e o contemporâneo George R. R. Martin embasou suas obras nos quatro ramos do Mabinogi, e assim por diante. Não escaparam, tampouco, a essa influência, os jogos de videogame como Mabinogi, jogo eletrônico MMORPG, entre muitos outros. Enfim, poucos foram os autores de fantasia que não beberam da fonte da mitologia do país dos druidas e poucos os povos que se utilizaram mais do sobrenatural, da magia e do imaginário do que o mundo celta primitivo. Nele, os animais eram donos de segredos ocultos aos humanos, a caça e a pesca eram tidas como sagradas e as bruxas e feiticeiras lutavam frente a frente com heróis e guerreiros — como no caso das nove feiticeiras de Gloucester que enfrentaram o exército do rei Artur e seus cavaleiros e, conforme a profecia, haveriam de perecer nas mãos do célebre cavaleiro Peredur. Afinal, para se compreender a arte e a literatura desta civilização, é preciso manter-se aberto para entender a natural ausência de barreiras e limites entre o real e o imaginário, o desencanto e a magia, a liberdade e o acato — elementos que se interligam nestas bem entrelaçadas histórias com a eficácia e coesão dos nobres elementos de liga no cadinho para a fundição do ouro.

A autora

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OS QUATRO RAMOS DO MABINOGI

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PWYLL, PRÍNCIPE DE DYFED

METAMORFOSE DE DOIS REIS Pwyll seguiu, em nome de sua honra e liberdade, para reinar no palácio que não era seu, como o rei que não era e dormir com a mulher que não era sua. Passou os portões do palácio alheio, relutante e indeciso, pois mudara de corpo, mas não de alma, como diz a máxima. Conhecia muito bem suas próprias limitações e não se sentia nem um pouco confortável de estar no corpo do poderoso rei do outro mundo, dono de riquezas inimagináveis e glórias e prestígios inconcebíveis. Após travar um breve combate dentro de si, argumentando contra o seu eu impostor que procurava persuadi-lo quanto à sua inabilidade em realizar a façanha da troca de identidade, Pwyll entrou no pátio. Seu coração batia mais forte a cada baque das patas do cavalo na pedra dura do assoalho, temeroso que a qualquer momento surgisse um astuto que descobrisse o embuste. Mas muito crê quem nunca mente, e confia muito quem nunca engana. Solícitos e gentis serviçais correram ao seu encontro para auxiliá-lo, como era de hábito com o verdadeiro rei. Um escudeiro ajudou-o, entusiasticamente, a desmontar do corcel e dois pajens lhe trocaram, com devoção, as roupas de caça por uma túnica de seda e ouro. O mais elegante e atencioso dos anfitriões veio recebê-lo e anunciou que o banquete estava servido. A mesa já posta oferecia glamour e abundâcia cornucópica acima de todas as cortes. Surgiu, então, a rainha, acompanhada de suas amas e aproximou-se num passo gracioso e cadenciado que fazia ondular sua brilhante túnica de cetim amarelo. AS MAIS ORIGINAIS HISTÓRIAS DA MITOLOGIA GALESA

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Durante a refeição o rei conversou amenidades e encontrou na rainha inteligência e bom humor, características que realçavam ainda mais sua beleza natural. Todos procuravam uma chance para conversar ou ser ouvido por Pwyll, que não se deslumbrou, em absoluto, com este novo mundo que lhe era oferecido, mas sentiu-se relaxar aos poucos. Por fim, acabou por se divertir bem mais do que esperava, aclamando e revigorando, a cada bocado, mais e mais, o impostor que vivia antes tão tímido e negligenciado, dentro de si. Findo o banquete, a rainha deu-lhe o braço e seguiram para os aposentos reais. Uma vez na cama, ele deu-lhe as costas e, sem pronunciar uma única palavra, assim permaneceu até o amanhecer. Se ele dormiu ou não, a lenda não menciona. O que é digno de atenção é que, durante o ano inteiro, Pwyll jamais tocou de forma lúbrica na mulher alheia — a despeito de toda censura que o seu eu impostor lhe impingia por esta determinação, e das investidas tentadoras que este insistia em lhe açular a mente, noite após noite.

DE COMO O PACTO SE DEU Os cavaleiros do castelo de Pwyll levantaram-se assim que raiou o dia e, munidos de armas e flechas, partiram para uma grande caçada nas cercanias de Glyn Cuch, nos domínios do príncipe Pwyll. Escarrachados em suas montarias e com o peito exaltado de entusiasmo, os caçadores cavalgaram em direção à floresta, mantendo sempre um elevado estado de prontidão, num espetáculo esplêndido de se ver. Pwyll fez soar sua trompa, a plenos pulmões, para que se iniciasse a caçada. Os cães, que ansiavam mais que todos pela largada, alucinados para fugir em perseguição às caças, logo transformaram a floresta num verdadeiro pandemônio. Farejaram a primeira presa: um cervo apavorado que com a rapidez com que surgiu, também desapareceu por entre os arbustos, disparando a toda velocidade. — Persigam-no! — ordenou-lhes Pwyll, animado com este sinal de sorte logo de início. Nem teria sido preciso dizer nada, os cães já seguiam no encalço da ladina caça, velozes e implacáveis, embrenhando-se na mata, pulando obs12

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táculos, rebentando arbustos. Mas por mais que corressem só podiam ver o frágil e pequenino vulto embrenhar-se mais e mais e sumir pelas moitas e vegetações. Pwyll seguiu seus cães numa fidelidade inversa. Subindo e descendo pequenos morros, resvalando pelos penhascos, meteu-se por gargantas e vales, até que por fim perdeu de vista os companheiros. Distinguiu latidos de cães desconhecidos misturando-se aos ruídos dos seus e viu passar chispando por ele uma matilha branca como a neve, com orelhas vermelhas como sangue. Acompanhou-os e os viu jogarem-se sobre o cervo acossado, derrubando-o com a presteza das feras que eram. — Fora daqui, bestas desgraçadas! Esta caça é minha! — gritou o príncipe, bufando de raiva e atiçou seus próprios cães contra a presa. — Alto lá, príncipe! Que canalhice é esta? — ouviu de uma voz irritada atrás de si. Virou-se e se deparou com um nobre cavaleiro, montado num esplêndido corcel acinzentado, no mesmo tom da roupa e devidamente aparado e chifrado ao modo dos caçadores nobres. Seu rosto estava crispado de raiva e numa vermelhidão tal as orelhas dos seus cães. — Não sei do que está falando, senhor — respondeu o príncipe. — Pelas cerdas do javali, se não sabe! Até um serviçal conhece as regras de caça e sabe que não há desonra e grosseria maior do que espantar os cães alheios e atiçar, contra a presa, os seus próprios. — Não seja por isso, meu senhor. Em nome de minha honra, devolvo-lhe a caça, com meu pedido de perdão! — disse Pwyll, desmontando, após o que ofereceu ao rei o cervo dilacerado. — Afaste esta carne morta de mim e saiba o senhor que por mais esta desfeita pagará tão caro, que nem mil cervos poderão redimi-lo — esbravejou. — Vejo que me conhece. Eu, entretanto, tenho certeza de jamais tê-lo visto, meu senhor — disse Pwyll, lançando o corpo do animal morto sobre a neve e limpando nela as mãos enluvadas. — Arawn, rei de Annwfyn — apresentou-se o homem. — Pois bem, rei de Annwfyn, se considera que agi mal, mostre-me uma forma para que me retrate. — Como devemos pedir o que queremos — respondeu o rei, prontamente —, peço-lhe que enfrente Hafgan, meu maior inimigo, que está sempre me

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importunando e cujos domínios são fronteiriços aos meus. Vá lutar em meu lugar e poderemos colocar uma pedra em cima desta grosseria. — Com prazer o faria, se soubesse como. — Por arte de meus encantamentos dar-lhe-ei a minha aparência e o senhor reinará em meu lugar durante um ano e lutará em meu nome no dia marcado. — Ninguém há de engolir esta farsa, no meu entender — rebateu Pwyll. — Afirmo-lhe que nem um único homem de meu séquito duvidará que você não seja eu. Assim como todos confiam em mim, confiarão em você. — Tenho compromissos com meu reino e não posso me ausentar por um ano. — Ficarei em seu lugar e farei com que ninguém jamais suspeite que eu não seja o senhor — garantiu-lhe Arawn. E ao ver a dúvida pairando no rosto do outro acrescentou: — As dívidas de honra, para os homens honestos, meu senhor, são muitas vezes uma servidão, uma servidão amarga. Aqui, ao contrário, ofereço-lhe uma aventura. — O que me cabe fazer? — Encontre-se com meu adversário no campo de batalha para enfrentá-lo daqui a um ano. Enfrente-o sem temor, príncipe, pois o primeiro golpe seu ser-lhe-á fatal. No caso dele não morrer e de pedir-lhe que dê o golpe de misericórdia, recuse-se veementemente. Pois por algum estranho mistério, a clemência, ao invés de matá-lo, o fortifica. Eu caí na armadilha de atender o seu pedido uma vez e, na revanche, ele se mostrou invencível. — Há um porém: não admito que toque na minha mulher. — Pode contar com minha honra de cavalheiro em relação a ela, como também contarei com a sua em relação à minha esposa, que é a mais bela e adorável rainha dentre todas as cortes que há. — Sigamos, então, adiante com esta singular combinação — decidiu-se Pwyll. Em dois passes de mágica, Pwyll estava transformado no rei de Annwfyn e foi com o rei verdadeiro até sua corte. — Eis o meu palácio! — disse Annwfyn, assim que chegaram. — Seu, agora, é o reino e o poder de governá-lo como bem lhe aprouver durante um ano. Sinta-se seguro. Confie extremamente e logo se familiarizará aos costumes desta corte. 14

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Pwyll adentrou o palácio de Annwfyn enquanto o rei legítimo seguia, por sua vez, em direção contrária, a fim de tomar o lugar do príncipe no outro reino. Assim foi selado, entre os dois nobres cavaleiros, este insólito pacto.

O DUELO MORTAL ENTRE PWYLL E HAFGAN Chegou o dia da batalha e não houve um único homem no reino, até mesmo aqueles que viviam nas regiões mais longínquas, que não estivesse pronto para assistir de perto o tão esperado duelo. “Que eu o enfrente de uma vez por todas!”, pensou, por fim, Pwyll, com ânimo revigorado, dirigindo-se ao local de encontro. “Um temor enfrentado desvia com a mão todas as angústias”. — Senhores, prestem atenção! — disse um cavaleiro, erguendo-se, assim que Pwyll e seus homens pisaram no campo de batalha. — Ninguém se meta a besta nesta batalha que é somente entre os dois. Cada um reclama do outro sua terra, pois que a contenda seja decidida aqui e agora. Defrontaram-se, os dois, no meio do campo, sob um coro alegre de hurras da torcida que bradava e ululava, enquanto Arawn acertava as contas com o inimigo alheio. Mal Hafgan colocou o pé no campo de batalha, foi morto num piscar de olhos: à primeira investida, o rei Arawn o golpeou no centro de seu escudo, que se partiu em dois, quebrando também sua armadura. Na segunda, lançou-o do cavalo, numa distância de um braço e uma lança, causando ferimento mortal. — Minha vida se esvai... — lamentou-se Hafgan, na agonia de morte — por piedade acabe com esta tortura e dê-me o golpe de misericórdia! — Não quero matá-lo, senhor, e correr o risco de me arrepender depois — respondeu Pwyll. — Que faça isso quem quiser, pois eu não o farei — e embainhou sua espada, escarlate de sangue até o cabo. — Se é assim, meu fim chegou — concluiu o moribundo, antes de dar seu último suspiro. Ninguém ali parecia interessado na morte de Hafgan nem na morte de coisa alguma, apenas no prosseguimento dos acontecimentos entre os vivos.

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— Decidam quais os homens de Hafgan que farão parte de meu exército — disse Pwyll. — São todos seus os exércitos a partir desta vitória, senhor, uma vez que já não há rei algum sobre Annwfyn, além de Vossa Majestade — responderam os conselheiros. O vencedor recebeu as homenagens dos presentes e deu início à conquista de todo o país. No dia seguinte, por volta do meio-dia, os dois reinos já estavam em seu poder. Ele seguiu, então, a Glyn Cuch, para manter seu compromisso com o verdadeiro rei de Annwfyn, conforme o combinado. O rei Arawn o recebeu como a um velho amigo. — Estou a par do ocorrido — disse ele, já voltando a ser quem era. Transformou Pwyll novamente no príncipe de Dyfed e acrescentou: — Agradeço sua lealdade e afeição. Quando chegar ao seu reino, verá o que fiz por você. Partiram, então para suas respectivas Cortes e foi com prazer que reavivaram os contatos com seus entes queridos do palácio e os demais habitantes de seus reinos. Não houve espantos, uma vez que nenhum dos dois fizera sentir sua ausência. Arawn sentou-se com sua esposa e seus nobres e, quando chegou a hora de dormir, o casal foi. Mas, nesta noite, a rainha teve uma agradável surpresa. A primeira coisa que o rei fez foi tomá-la nos braços e abandonar-se ao seu amor e paixão. E como não mais estava acostumada àqueles deleites, ela pôs-se a cismar silenciosamente sobre o estranho comportamento do marido no ano que passou, sem responder às questões dele e só voltando a dirigir-lhe a palavra quando ele lhe elucidou os fatos, compartilhando-lhe a aventura. Com Pwyll não foi muito diferente. Tão logo colocou os pés no palácio, perguntou aos nobres do reino: — Que tal acharam meu modo de governar no último ano? — Jamais foi tão grande sua generosidade e sabedoria, Majestade, e em época alguma sua justiça foi mais íntegra quanto no último ano — foi a resposta unânime. — Querem dizer que este ano eu me saí melhor que nos anteriores? — espantou-se o príncipe. — De fato superou a si mesmo, senhor. Estamos todos satisfeitos e nos sentindo seguros e felizes neste reino. 16

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— Pesa-me dizê-lo, mas não era eu quem aqui estava reinando e sim Arawn, o rei Annwfyn — e Pwyll relatou a sua aventura, ante os olhos atentos dos ouvintes. — Dê graças aos deuses, Majestade, por esta amizade, e prossiga nesta linha, é o que lhe rogamos — concluíram todos. — Assim hei de fazer — respondeu Pwyll. Desde então, o rei e o príncipe fortaleceram os laços de amizade entre si e presentearam-se respectivamente com cavalos, falcões e muitos tesouros. Foi assim que Pwyll, metamorfoseado durante um ano em outra pessoa, e num único dia de combate, uniu os dois reinos e, por esta razão, mudou seu título de príncipe de Dyfed para Senhor de Annwfyn.

UMA DIVERTIDA NOVIDADE A PWYLL Pwyll se encontrava no seu palácio, em Narberth, numa longa e divertida festa. Após a primeira refeição, o rei resolveu dar uma caminhada com seus companheiros e subiu no monte Gorsedd Arberth que ficava distante do palácio. Estava pronto para sentar-se no topo, quando um de seus homens o deteve com um gesto alarmado, dizendo: — Não se sente ali, Majestade! — E por que não? — perguntou o rei, olhando o chão à procura de um motivo. — Quem senta aí neste cume não levanta sem antes ser atingido por golpes de armas ou, ao contrário, deparar-se com algo maravilhosamente extraordinário. — Estou pronto para receber golpes de espada e curioso para ver maravilhas! — respondeu Pwyll e sentou-se à espera de uma pancada ou de um milagre. Mal se abancou no topo e avistou, na estrada da montanha, uma mulher com roupas douradas, montada num cavalo branco que avançava como quem voa, tão veloz era sua cavalgada. — Ninguém cavalga com mais destreza e rapidez do que esta mulher. Parece que foge de um perigo terrível, ou busca algo com paixão. Quem é ela? — perguntou Pwyll, admirado.

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— Nunca a vimos, senhor — responderam seus homens a uma só voz. — Vá até ela e descubra de quem se trata — ordenou a um deles. O cavaleiro obedeceu à ordem com presteza, mas a moça passou por ele antes que tivesse colocado o pé no estribo. Montou e esporeou o cavalo com selvajeria, seguindo-a com furor. Entretanto, através de uma lógica inversamente proporcional, quanto mais o pobre diabo corria, mais dela se distanciava. Voltou, por fim, com o cavalo arquejante e sem conhecer dela nada mais do que a imagem de suas costas, que diminuía de forma cadenciada e gradual no horizonte. — É impossível alcançá-la, Majestade, seu cavalo anda mais rápido do que voa a águia — atestou o homem a Pwyll. — Pegue o cavalo mais rápido que há e corra atrás dela — ordenou o rei, dirigindo o olhar a outro cavaleiro. Este último seguiu na perseguição que resultou igualmente infrutífera. Por fim, retornou o homem exausto da frenética cavalgada e prestou contas ao rei de seu fracasso, acrescentando: — Majestade, esta mulher parece que foge do diabo. Aqui há ilusão suficiente para arregalar os olhos de qualquer um. Vamos embora, Majestade. — Não a deixarei escapar — garantiu Pwyll e, tomado por uma paixão febril, ordenou que trouxessem seu cavalo a toda pressa. — Verão se não a pego! — e voou no seu encalço, rápido como o vento. Cortou caminhos por atalhos, deixando que seu cavalo saltasse sobre os obstáculos que entre ele e ela se impunham, fossem perigosos ou não. Resfolegava Pwyll tanto quanto o animal na ânsia de alcançá-la, pensando que chegaria até ela no segundo ou terceiro salto. Mas cedo percebeu que continuava tão longe dela como sempre esteve, numa luta continua do ilógico contra o incompreensível. — Espere-me, donzela! — gritou, por fim, num último alento e no último grau de exaustão. — Não fuja, que eu estou disposto a segui-la até o inferno. Ela diminuiu a marcha e encostou seu cavalo ao dele. Quando chegou perto de Pwyll, seus fartos seios arfavam sob a fina seda de suas vestes. — Teria poupado o seu cavalo se tivesse feito o pedido antes — disse, e deixou cair o manto que lhe cobria o rosto. Beleza igual não havia entre os mortais. Ela olhou nos olhos acesos de Pwyll e ele percebeu que só neste momento entendia porque viera ao mundo. 18

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Seu coração galopou em terrível descompasso, sua boca ficou seca e seus olhos esqueceram-se de piscar. Ali estava um rei emabasbacado de amor. — Qual é sua missão, minha senhora? O que busca com tal velocidade? — Viajo por minha própria conta e risco e meu desejo não era outro senão encontrá-lo, Majestade — respondeu ela, despida de subterfúgios. — Ora, essa é para mim a mais agradável das novidades e a mais bem-vinda. Quem é você e por que queria me ver? — Chamo-me Rhiannon, sou filha de Hefeydd Hen e estou sendo forçada a casar com um nobre rico e arrogante. Entretanto, jurei que não casaria com ele a menos que fosse recusada pelo senhor. — Entre todas as mulheres do mundo você é aquela que eu escolheria para ser a minha esposa — disse ele, sem pestanejar. — Se é assim, prometa-me que irá encontrar-me, daqui a um ano, a contar deste dia, no palácio de Hefeydd e será recebido com um grande banquete. — Lá estarei com toda certeza. — Que os céus o protejam para que possa manter a promessa. Agora preciso ir — ela disse e desapareceu na poeira da estrada. — Quem era ela? Conseguiu falar-lhe? — perguntavam seus homens, assim que Pwyll retornou. Mas o rei seguia mudo e absorto, conjeturando uma forma de fazer passar rapidamente o longuíssimo ano que se arrastaria a sua frente. Todo seu desejo era tornar a ver aquela extraordinária mulher e casar-se com ela.

NO PALÁCIO DE HEFEYDD HEN NOIVO ENGANADO NO BANQUETE DE CASAMENTO

O longo ano finalmente passou e Pwyll partiu, acompanhado de cem cavaleiros, ao palácio de Hefeydd Hen, para o seu casamento, conforme o combinado com a futura noiva. Foi recebido no reino estrangeiro com toda pompa e circunstância. Quando chegou o tão esperado momento, todos se sentaram para o grande banquete. — Minha querida! — disse Pwyll, abraçando a noiva, banhada em riso. — Você não poderia estar mais encantadora e a festa mais magnífica. Tenho

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medo de acordar e descobrir que tudo não passa de um sonho maravilhoso. Mal acabou de falar, viu apontar à porta do salão um jovem garboso, alto e ruivo, que se aproximou de Pwyll e o cumprimentou amavelmente, incluindo-se tacitamente nas boas-vindas. — Sente-se e comemore conosco! — convidou o noivo. — Obrigado, mas eu não vim aqui para comer e me divertir e sim para lhe pedir um favor — respondeu o recém-chegado. — Conte comigo para qualquer favor, meu senhor, desde que esteja ao meu alcance — respondeu o noivo, com a apreciada galanteria galesa. — Oh, está a seu alcance e não é nada que vá reduzi-lo à miséria, meu senhor! — animou-se o convidado com um meio sorriso. — Mas, pesa-me dizê-lo, acaba de se comprometer na presença de todos estes nobres e não pode voltar atrás na promessa feita. Peço para mim a mão da sua noiva, com a festa, banquete e tudo o mais — concluiu, perfidamente. Esta audácia deixou Pwyll mudo e um ligeiro tremor de espanto sacudiu suas pestanas. O intruso sorriu interiormente de seu primeiro triunfo, e um silêncio pairou no ar tornando a situação ainda mais desconfortável. Todas as respirações ficaram suspensas a espera da resposta que não veio. — Emudeça agora quanto quiser que nada irá mudar esta embaraçosa situação em que nos meteu — sussurrou a noiva ao ouvido de Pwyll, nada piedosa. — Vejo que homens inteligentes sabem cometer burrices. — Meu excesso de gentileza me colocou numa cilada que, confesso, não esperava — tartamudeou Pwyll, coçando a cabeça com ar culpado. — Mas quem é, afinal, esse atrevido que ousou tudo? — É Gwawl, o pretendente odioso sobre o qual já lhe falei. Agora, com sua promessa, acaba de entregar-me a ele de bandeja, com festa e tudo. Pois, neste reino, uma vez a palavra dada não pode mais voltar atrás, para que a vergonha e a desonra não recaiam sobre nós, como a sombra da morte — informou-lhe Rhiannon. — Eu desconhecia o costume desta corte — defendeu-se o noivo como pôde, sacudindo a cabeça com fúria diante da plateia que se juntava em volta dos dois. — Jamais poderei compactuar com esta infâmia e ceder a este pedido execrável. A noiva colocou água na fervura, sussurrando estas palavras ao pé do ouvido de Pwyll. 20

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