EDITORIAL
Renato Ferracini
A colonialidade, em diversos países, implementou a extração dos recursos naturais, a exploração através da conquista e controle de terras, a escravidão e a divisão de raças. Mais do que isso, houve um controle do conhecimento e da subjetividade, que foi emaranhada na questão da modernidade/colonialidade levando a uma geografia do conhecimento específica e a um controle da existência. Esse controle do conhecimento e da subjetividade atua em várias instâncias. Há diferenças epistêmicas em termos de entendimento do mundo que aparecem em cosmogonias, narrativas, saberes e práticas. Interessa-nos discutir questões sobre o póscolonialismo e o descolonialismo a fim de pensar a prática e a arte da cena no Brasil. A ILINX 10 é um primeiro número dedicado a essa temática importante para o sul do equador. Nesse número podemos verificar pesquisas em processos e conceituais com esse tema, mas também reflexões a partir de uma antropofagia realizada por pesquisadores brasileiros e latino americanos de alguns processos ditos colonizadores (View Points, Sistema Laban/Bartenieff, dança contemporânea). Importante observar como os pesquisadores latinoamericanos, nem processo de apreensão e recriação de seus elementos buscam descolonizar seus procedimentos. Acreditamos na importância desse debate antropofágico, não nos sentido de gerar uma divisão extremada nós-eles, colonizados-colonizadores.- apesar dos estudos decoloniais afirmarem a essa dicotomia (e ela realmente existe!) - devemos dar um passo além dela e afirmar alianças descolonizadoras a partir de uma ética da inventividade e de aliança. Essa postura ética nos proporcionaria coligações nos movimentos decoloniais a partir de uma recriação epistêmica no jogo de forças afetivos, políticos e sociais da atualidade e não a partir de um ingênuo resgate epistemológico e ontológico perdido.
Bom apetite a todos!
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AÉREO DO CORPO, ACROBACIA DA VIDA Julia Coelho Franca de Mamari (Pós-graduação em Estudos Contemporâneos das Artes - UFF).
Resumo: O presente artigo é o resumo do trabalho de conclusão de curso de pós-graduação Latu-Sensu em Sistema Laban/Bartenieff (Faculdade Angel Vianna-RJ), no qual apresentamos a análise de uma experiência metodológica para a acrobacia aérea, realizada na Cidade do México (MEX) em 2012, que apresentou encontros com o Sistema Laban/ Bartenieff de maneira a buscar um treinamento que pudesse se utilizar da parte técnica da acrobacia e, ao mesmo tempo, levar em consideração a pessoa que a pratica, sua corporeidade e originalidade. Palavras-chave: Dança Aérea; Originalidade, Sitema Laban/Bartenieff;
Abstract: This article is the summary of the Latu-Sensu postgraduate course in Laban /Bartenieff System (Angel Vianna-RJ College), in which we present the analysis of a methodological experience for aerobatics, held in Mexico (MEX) in 2012, which met with the Laban / Bartenieff System in order to seek training that could be used in the technical part of the acrobatics and, at the same time, take into account the person who practices it, its corporeality and originality. Keywords: Aerial Dance; originality, Laban / Bartenieff System;
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Neste artigo, analisaremos experiência metodológica para a acrobacia aérea que apresenta encontros com o Sistema Laban/Bartenieff1, de maneira a buscar um treinamento em que possa ser utilizada parte técnica da acrobacia e, ao mesmo tempo, levar em consideração a pessoa que a pratica. Ao identificar quais das relações um “corpoaéreo” possui que se diferenciam e quais se assemelham ao corpo que está no chão, soluções adaptativas aparecem e demonstram que, a partir dos Exercícios Fundamentais da Bartenieff (Bartenieff Fundamentalssm) (BARTENIEFF E LEWIS, 1980) e seus Princípios, e de algumas referências da Categoria Esforço2, uma linha transversal de compreensão da acrobacia aérea pode ser traçada, constatando soluções reais provenientes desse encontro. Para o aprofundamento do estudo, foi estruturado um curso de acrobacia aérea a partir do Sistema Laban/Bartenieff e suas principais vertentes de prática e análise do corpo e do movimento. Realizado na Cidade do México, na lona do Cirko De Mente, o curso teve dois meses de duração, com três horas por aula, totalizando quarenta e duas horas. Ao todo a aula contou com seis integrantes, todos eles com idades entre 20 e 25 anos. Considerando que o Sistema Laban/Bartenieff formula um complexo sistema de experimentação, observação e análise do movimento, o curso buscou enfatizar as categorias Corpo3 e Esforço. Tal escolha se deu devido ao tempo de duração e, principalmente, levando em conta que o enfoque do curso estaria ligado aos respectivos temas, já que a complexidade deles atingiria os outros e as categorias Forma e Espaço, mesmo que subjetivamente. Na primeira parte do curso foi enfatizada a Categoria Corpo, desenvolvida por Irmgard Bartenieff (1900-1981), aluna de Rudolf Von Laban, bailarina, fisioterapeuta e terapeuta do movimento, que deu seguimento às suas experiências com Laban, criando o que hoje é denominado Bartenieff Fundamentalssm. Sob a perspectiva de um corpo que se equilibra num quadro dinâmico de inúmeras forças direcionais que se relacionam ao eixo vertical da postura ereta (cf. Miranda, 2008), os Seis Básicos (Basic Six) (BARTENIEFF E LEWIS, 1980: APPENDIX B) foram desenvolvidos num primeiro momento da aula, quando o corpo geralmente estava mais disponível e aberto a utilizar mobilidades que aparentemente eram pequenas, porém, que viriam a ser indispensáveis para a adaptação desse quadro relacional com o eixo vertical no aparelho aéreo. Ao revisitar os exercícios fundamentais que levam o corpo a levantar – mudança de Nível Espacial (LABAN, 1966) – e a caminhar – deslocamento espacial –, esse mesmo corpo é levado a perceber as 1 Hoje denominado Sistema Laban Bartenieff, pode ser considerado uma visão integrada entre a LMA/ (Laban Movement Analysis) e os estudos desenvolvidos por Irmgard Bartenieff, discípula de Rudolf Laban, sobre corpo e movimento a partir da ideia de um corpo relacional totalmente conectado em equilíbrio sutil. (MIRANDA, 2008, p. 27). 2 A Categoria Esforço foi desenvolvida por Rudolf Laban predominantemente em seu livro Effort: economy in body movement, no qual o autor analisa detalhadamente distintos ritmos e nuances inerentes a todo movimento humano (inspirado no contexto pós-guerra europeu), onde os reconhece como uma energia desprendida consciente ou inconscientemente e os caracteriza como suscetíveis de serem reconhecidas através de quatro Fatores: Tempo, Espaço, Fluxo e Peso. (LABAN, 1974). 3 A Categoria Corpo foi consideravelmente desenvilvida a partir dos estudos de Irmgard Bartenieff e explicita que a organização corporal e os padrões do movimento humano se constroem com base em esquemas conectivos desenvolvidos ao longo de nossa vida. Nesse aspecto, o trabalho com os Padrões do Desenvolvimento (Developmental Patterning) é esclarecedor para a percepção de quais são e como se organizam as conexões mais primitivas do corpo (BARTENIEFF, 1980).
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mudanças e transformações internas em transcurso durante o próprio movimento. Ativando as conexões neuromusculares, esse conjunto de exercícios não lineares procura integrar e conectar o corpo como um todo, incluindo partes lesadas ou esquecidas (cf. Miranda, 2008) como parte da cadeia profunda que estimula e mantém vivo o movimento. Ainda durante toda a primeira etapa do curso, o Princípio fundamentado nos Padrões do Desenvolvimento (Developmental Patterning) (HACKNEY, 2002) foi trabalhado através de vivências desses padrões e estágios primitivos, buscando uma re-memorização e reidentificação com cada uma delas. O reconhecimento dessas etapas no corpo permite sua integração no movimento e, nesse caso, também foram abordados como um aspecto de referência conectiva na adaptabilidade, uma vez que o corpo não mais se sustenta primordialmente por sua parte inferior, mas pela superior. Em relação ao trabalho dos Bartenieff Fundamentalssm para preparar o corpo, o processo foi bastante transformador. No início das aulas, os alunos tiveram dificuldade na realização dos exercícios que envolviam a Sensação de Peso (Weight Sensing), mantendo o corpo com um empurrar intencionalmente ativo, pela facilidade em unir o ativar com contração muscular e o ceder com estar relaxado e passivo, alternâncias muito usadas na acrobacia aérea. Essa mesma alternância foi identificada na dificuldade ao longo do início do trabalho com os Seis Básicos. Os corpos mantinham um ponto máximo de concentração no Nível Baixo e, depois de um tempo, os alunos começaram a olhar em volta, mudar de postura e procurar recuperações. Nesse processo com os Seis Básicos, foi incluído o trabalho de Fraseado (Phrasing) (HACKNEY, 2002) no chão a partir dos Bartenieff Fundamentalssm, o que pareceu deixar os corpos mais concentrados e calmos, buscando sua recuperação no próprio movimento. As dúvidas, que começaram sendo absolutamente classificatórias, com uma ideia de colocar o movimento em seu devido Padrão de Desenvolvimento, foram se tornando mais integradas e complexas, abordando as conexões a níveis de possibilidades de outros movimentos ou de suas várias formas de execução e percepção. O Suporte Respiratório4 e o Suporte Muscular Interno foram incorporados pela movimentação dos alunos e somados à investigação pessoal, considerados principais facilitadores do movimento, potencializando a ativação dos músculos a partir de suas conexões e sequenciamentos e dispensando as excessivas contrações locais. O trabalho com os Seis Básicos e com os Padrões do Desenvolvimento pareceu clarear as Intenções Espaciais, conectando o Esforço do movimento aéreo de uma forma mais viva, o que gera uma expressividade mais autêntica e presente. Quanto à Categoria Esforço, que foi mais profundamente trabalhada da metade ao final do curso, foram feitas algumas associações dos princípios aliados a uma preparação do corpo através dos Bartenieff Fundamentalssm como um ativador das percepções e das possíveis variações dos fatores de Tempo, Peso, Espaço e Fluxo. Favorecendo uma 4 O Suporte Respiratório busca vivificar o corpo, a partir do uso da respiração como principal recurso de pertencimento e troca entre o meio ambiente externo-interno, estimula a percepção das ênfases, lideranças e encadeamentos energéticos do movimento. Como o fogo necessita de oxigênio, movimentos de muito esforço e tônus muscular são estimulados mais facilmente a partir desse suporte e, por esse motivo, o Suporte da Respiração foi trabalhado pontual e profundamente durante todo o curso, em todas as fases de preparação do corpo, exploração e manutenção dos movimentos aéreos.
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expressão integrada, o Esforço aborda a inversão da energia no movimento a partir de seu impulso, voluntário ou involuntário. Sua aplicação foi focalizada no conhecimento de suas dinâmicas e intensidades, encorajando os alunos a descobrir novas possibilidades do movimento de chão e nos aparelhos aéreos com relação à coordenação dinâmica dos aspectos do corpo, facilitando também o reconhecimento de suas diferenças e identificações. Ao buscar outras qualidades para o movimento, o corpo parece optar por caminhos menos óbvios. Muitas vezes, na observação dos alunos em exercícios de criação, ao buscar um Fator de Esforço específico, não somente era comum que entrassem com outros secundários para a manutenção daquele desejado, como também pareciam buscar outros Percursos Espaciais5 em sua execução. Percursos geralmente Centrais tornavamse Transversos; os Periféricos em Centrais (LABAN,1966), assim como a Kinesfera6 de modo geral, pareciam ser mais explorados a partir de uma mudança consciente de um ou mais Esforços. A partir daí, se pôde perceber como o uso e exploração dos Esforços vai coexistir com a interação com o Espaço. Paralelamente, faz-se necessário reiterar que o foco deste estudo foi entender como o trabalho com os Princípios dos Bartenieff Fundamentalssm e os Temas labanianos podem complementar a investigação dos Esforços nos aparelhos aéreos, entendendo a complexidade do movimento como ativadora de todas as suas relações com o mundo à sua volta. Provavelmente devido às mudanças de apoio do corpo junto à influência da gravidade, o Fator Peso foi explorado com grandes dificuldades adaptativas, porém com grandes descobertas. Por esse motivo, foi primordial o cruzamento com o trabalho sobre Enraizamento no chão e, posteriormente, no aéreo, porque ajudou na compreensão desses novos apoios em sua interação com os vetores espaciais interno-externos, ampliando as potencialidades dos impulsos necessários para cada movimento. A questão espacial apareceu como orientadora do movimento aéreo. Contudo, o Espaço Direto muitas vezes aparece como necessário para segurar o aparelho num 5 O Suporte Muscular Interno enfatiza o uso da musculatura profunda para estabilizar e diversificar o movimento em múltiplas nuances expressivas, liberando a musculatura superficial, agindo como minimizador de esforços e otimizador da conectividade do corpo. Dessa forma, estabelece-se uma conexão dos movimentos de grande exigência muscular com uma maior consciência do Suporte Interno, a partir do uso do Suporte da Respiração, primeiramente desenvolvido. A maior dificuldade metodológica foi em como passar do uso desse Suporte no chão para o aéreo, devido ao nível de exigência muscular exigida. 6 Esse conceito foi elaborado pelo arquiteto, bailarino-coreógrafo e teórico do movimento Rudolf Laban (1879-1958) para fazer referencia ao espaço que rodeia o corpo e que pode ser alcançado por ele, sem que haja uma transferência de peso e, consequentemente, determinado deslocamento desse mesmo espaço imaginário: “Em qualquer lugar em que o corpo está ou se move, ele ocupa espaço e está cercado por espaço. Podemos distinguir entre espaço no geral e o espaço dentro do alcance do corpo. Este último pode ser chamado de Kinesfera ou espaço pessoal. A Kinesfera é a esfera ao redor do corpo cuja periferia pode ser alcançada facilmente ao se estender os braços sem dar um passo adiante do lugar que é o ponto de suporte quando parado em um pé, que podemos chamar de ‘posição’(...). Nós nunca deixamos nossa esfera de movimento, mas a carregamos sempre conosco, como uma aura.” (LABAN, 1966, p. 10)*. *Tradução nossa para: “Wherever the body stays or moves, it occupies space and is surrounded by it. We must distinguish between space in general and the space within the reach of the body. In order to dintinguish the later from general space, we shall call it personal space or ‘kinesphere’. The kinesphere is the sphere around the body whose periphery can be reached by easily extended limbs without atepping away from that place which is the point of support when standing on one foot, which we shall call ‘atance’. (...). We never, of course, leave our movement sphere but carry it Always with us, like an aura.” (LABAN, 1966, p. 10).
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caminhar aéreo, ao mesmo tempo em que o Indireto parece estar igualmente préestabelecido quando algum movimento de expansão é realizado. Dessa forma, pode-se dizer que houve mais conscientização sobre o uso do Fator Espaço do que realmente uma investigação desse Fator em todas suas possíveis variantes. É muito importante, também, o trabalho sobre o Fator Tempo para a acrobacia aérea, devido ao fato dela já ter o Esforço do movimento quase que pré-estabelecido, pela questão do impulso necessário aos movimentos de fortes dinâmicas e alto nível de dificuldade, que, geralmente, necessitam de um tempo específico e preciso para que possam ser bem executados. A ideia de tempo pareceu ser utilizada como sensação geradora do movimento virtuoso, estando ligeiramente condicionada a promover uma determinada superposição do impulso pelos tempos necessários ao movimento aéreo formalmente executado. O trabalho a partir das variações de Tempo em movimentos executados quase sempre de maneira parecida foi muito esclarecedor para os alunos e, de certa forma, talvez o mais explorado. O trabalho com o Fator Tempo no chão foi essencial para a compreensão do movimento nos aparelhos aéreos. Pelo fato dele ser muito pouco desenvolvido em termos de Fraseado (Phrasing), incluindo todas suas nuances, os exercícios de pesquisa de movimento no chão antes de subir no aparelho aéreo foram incrivelmente frutíferos. Abriram, assim, caminhos para percepções com os outros Fatores, promovendo impulsos não tão formalmente executados, porém íntegros e diversificados. Tanto que, durante as aulas, a questão da manutenção de um Esforço e suas necessidades de recuperação apareceu em exercícios de deslocamentos espaciais mesmo que Níveis Baixo e Médio, fora do contato com o aparelho aéreo. Quando foi vivenciada já com a abordagem do tema Ação/Recuperação (Bradley, 2009), despertou um corpo ainda mais consciente de suas necessidades. Quanto ao Fluxo, escolheu-se não enfatizá-lo como Fator, já que para um corpo trabalhar as variações de Fluxo como Esforço na acrobacia aérea, ele tem que estar muito seguro de cada movimento,pois, se estiver realmente Livre, pode ser mais fácil perder o referencial espaço-corporal, ocasionando uma queda. Optou-se por trabalhar a ideia de fluxo como fluidez do movimento e, também, como auxiliadora dos outros Fatores de Esforço. Dentro do pouco que foi experimentado a partir do Fluxo como Esforço, o Fluxo Livre se mostrou um forte aliado, mas extremamente perigoso quando mantido durante um grande período de tempo. Em função da tendência em acelerar o Tempo do movimento em Fluxo Livre, o corpo pode facilmente vir a perder o controle do aparelho aéreo ou de seu equilíbrio. Portanto, a escolha de aprofundar a ideia do fluxo como energia intrínseca ao movimento se deu também por questões de segurança. De uma forma geral, o aprofundamento da categoria Esforço serviu para evidenciar como as dinâmicas do movimento mudam quando são realizadas com o corpo localizado a partir de outros parâmetros espaciais. O movimento parece ser mais vivo a partir do momento em que se tem mais consciência de como se colocar em termos de Esforço. Ao mesmo tempo em que se tenta variar qualidades de movimento, o corpo se torna mais presente em relação ao que está fazendo, mantendo sua atenção para fora e para dentro, e desprende-se do que está fazendo para ter mais atenção ao como está fazendo.
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A partir desses novos questionamentos, repetidamente os alunos comentaram sobre a mudança dos apoios do corpo e como isso influenciava diretamente sobre a força que deveriam desprender para cada movimento, como também suas direções. No primeiro mês, a cada Padrão do Desenvolvimento que se experimentava, surgia um novo comentário sobre como o corpo sentia a diferença em acionar essas forças com o corpo pendurado. Exigia-se mais de certas articulações e regiões do corpo, apontando novas Contratensões e realizando toda uma adaptação do movimento para que determinado padrão conectivo pudesse realmente ser vivenciado. Em termos de observação e análise de movimento, frequentemente era necessário experimentar o movimento para compreendê-lo. Inclusive, foi percebido, em alguns momentos, como um possível recurso para a comparação dos movimentos realizados no chão e as referências de movimento que podiam ser trabalhadas para ampliar o vocabulário em cada aparelho. Constatou-se que, pelo homem ter sido acostumado a acionar seus grupos musculares com seu peso e centro do corpo em relação ao chão, também acostumouse a pensar que certos movimentos trabalham mais certas partes do corpo, justamente, por já existir um olhar condicionado para uma memória terrestre. Porém, quando apoiado em superfícies não regulares e por partes do corpo relativamente inusitadas, esses vetores podem mudar e até chegar a inverterem-se por completo. Nos primeiros exercícios de improviso e criação foi percebida uma importante questão metodológica que condiz com a dificuldade em investigar nos aparelhos com o mesmo ritmo cognitivo que o corpo processa quando experimenta movimentos no chão. A pesquisa do movimento da acrobacia aérea foi percebida como um processo extremamente lento e cansativo, se comparado ao ritmo da pesquisa em dança, por exemplo. Algumas vezes os exercícios de criação não foram finalizados, exigindo continuação em outras aulas, o que acabou gerando uma adaptação estrutural temporal da aula. O dia em que o tempo para o trabalho aéreo pareceu perfeito foi quando os alunos ficaram quase uma hora e meia em seus aparelhos. Muitas pausas e momentos de racionalização do movimento foram constantemente observados, explicitando a necessidade de tempo dessa adaptação interna, não somente durante os exercícios de criação. A questão das pausas e de um movimento repentinamente mais pensativo apareceu principalmente em vocabulários novos e indica um recurso possivelmente involuntário e relacionado à sensação de risco ligado à acrobacia aérea. Nesse momento é que a questão do risco torna-se mais que essencial para uma busca metodológica da dança aérea, já que os limites do corpo se fazem presentes, mesmo quando se busca desvincular o movimento virtuoso do vocabulário aéreo. Por mais que não seja primordialmente virtuoso, ainda sim será extraordinário e necessitará de mais tempo para ser experimentado de forma normal, pois provavelmente encontrará barreiras entre o que era e o que será ordinário, após um mínimo de repetição e/ou costume. O fato de o circo estar ligado ao risco e, consequentemente, ao extraordinário, tem inúmeras implicações nas suas práticas e formas de produção. O que foi proposto teve a pretensão de apresentar algumas delas. O extraordinário exigido pelo público, num mundo da especialização, é algo que pode tornar-se exaustivo e, por vezes, inalcançável. Proporcionar aventuras sem limites pode ser um empreendimento arriscado em si mesmo. A acrobacia aérea, por ser executada por um grupo social relativamente pequeno, 8
pode ser considerada extraordinária e de maior dificuldade motora para a maior parcela da sociedade. Pelo mesmo motivo, os acrobatas aéreos, por pertencerem a essa mesma sociedade, vão querer aprender e executar sua arte de maneira correspondente. Para isso, as metodologias da acrobacia aérea vão de encontro a essa procura e possuem, como já foi dito, estruturas muito parecidas. Os exercícios são extremamente repetitivos, treinados de forma mecânica até a exaustão do corpo e enfocados em uma perspectiva exterior do movimento. Já que o objetivo do treino é encantar os olhos do espectador, o movimento buscado também possui um aspecto visual mais relevante, abordando sua execução pela forma e esquecendo que esta mesma forma é adquirida através de um corpo em particular. Quando se esquece da conexão entre o externo e o interno do movimento, se perde o movimento em si mesmo. Não é à toa que os acrobatas aéreos, atletas e circenses de um modo geral, se lesionam tanto. Ao trabalhar a acrobacia aérea a partir do Sistema Laban/Bartenieff, o importante Tema Função/Expressão (Bradley, 2009) apareceu não como objetivo específico, mas como consequência do que parecia necessário a cada aluno e ao contexto acrobático vivenciado neste estudo. Parece existir uma considerável demanda por encontrar a expressividade do artista-técnico acrobata em seus movimentos virtuosos, que para ele são extremamente funcionais, já que ele depende da virtuosidade para serem reconhecidos como tais. Assim como dentro da expressividade do corpo virtuoso também pode existir uma funcionalidade importantíssima, capaz de manter o corpo integrado, consciente de seus desejos e vontades. Quando é enfatizada a tridimensionalidade e os esquemas conectivos do corpo, coordenações complexas são facilmente realizadas, pois as cadeias musculares são acionadas em sequências, trabalhando juntas para dar suporte ao movimento. O trabalho de um músculo isolado, sem as possibilidades oferecidas pela tridimensionalidade do corpo, interfere em sua própria coordenação e execução, sobrecarregando a musculatura e facilitando a incidência de lesões. Geralmente, pelo risco e pela altura, o aluno focaliza-se na parte vista como essencial na execução do movimento, esquecendo completamente que são justamente as partes não vistas como tão essenciais que vão impedir que ele se machuque e que, inclusive, vão conferir o suporte realmente necessário para uma realização plena em sua intenção. No movimento de esticar um braço estará, em sua execução consciente ou não, toda a vida de quem o executa. O braço está ligado ao ombro, que está ligado ao tronco e ao corpo todo. A gestualidade, estando sempre repleta de singularidade, pode acabar por encerrar-se em formas e padrões demasiado definidos e generalizados. Nesse aspecto, o movimento deriva do que pode ser considerado ordinário e geral, falando a linguagem clara das funções sociais. Nessa tendência generalizante da gestualidade, a singularidade pode ser absorvida pela disciplina. Aí reside a dificuldade metodológica encontrada e, concomitantemente, sua própria solução. Ou seja, é na complexidade encontrada na execução das formas dos movimentos acrobáticos que residem soluções simples para suas realizações; e é na simplicidade do fazer acrobático que reside sua complexidade. A dificuldade encontrada ao longo do curso proposto foi encontrar formas simples de realizar movimentos complexos e abordar a complexidade em movimentos considerados simples pelos alunos. Porém, é nessa simplicidade do fazer que está a complexidade simbólica contida em cada movimento, 9
acrobático ou não. Aparece aqui o Tema ligado ao Princípio de Bartenieff utilizado como pilar metodológico: a Simplicidade/Complexidade (Bradley, 2009). A solução metodológica foi encontrada sob uma perspectiva de trabalhar e experimentar qualquer movimento como potente e complexo em si mesmo. Ao fazer isso, corre-se outro tipo de risco, o risco de enfrentar seus próprios costumes e hábitos de forma inovadora e original. O risco não precisa estar necessariamente vinculado ao risco de lesão, mas também ao risco de fazer do ordinário, extraordinário. Isso pode ser feito por qualquer um e deve ser feito pelos acrobatas aéreos. Ao invés de buscarem sempre mais riscos na extraordinaridade do movimento por sua forma, por que não buscar o extraordinário dentro do que já foi assumido como ordinário? A complexidade está na abertura às mudanças e mudar pode ser extremamente arriscado. Mudar implica conhecer-se e conhecer o mundo melhor e mais intensamente. Ao descobrir o movimento a partir de seus esquemas conectivos, despertase a originalidade pessoal, pois cada esquema é único e manifesta-se de forma única. Os espaços ampliados através da conectividade do corpo geram criatividade. Ao encontrarse consigo mesmo, resgata sua individualidade e expressa-se a partir dela. É o risco de escapar-se a si próprio, de ser original, de questionar e observar a si mesmo e ao mundo. Por mais que esses esquemas sejam uma base e conduzam princípios da movimentação humana, cada pessoa tem um percurso por onde se abrirá para a plenitude de seu corpo. O corpo e os acontecimentos se influenciam mutuamente. O ambiente influencia o movimento criativo se o corpo mantém-se aberto às suas possibilidades e, na medida em que nos integramos, o transformamos tanto quanto a nós mesmos. Ao sair da experiência pessoal e ao compartilhar experiências através de descobertas em aula, as percepções tornaram-se questionamentos que puderam ser levantados neste texto. O virtuosismo e o extraordinário se fazem necessários, mas ao mesmo tempo foram abordados num contexto de inclusão do corpo que executa a acrobacia, com todas as suas particularidades. A inserção dos Bartenieff Fundamentalssm mostra-se essencial para a prática que inclui a Originalidade (Bradley, 2009) no fazer e, ainda, na compreensão de uma acrobacia aérea que seja menos sofrida e dolorosa e mais eficaz em termos de Esforço. Estando mais integrado com seu próprio corpo e com sua expressão em totalidade, o acrobata aéreo poderá, portanto, percebê-lo e se adequar às suas próprias necessidades, otimizando o desgaste muscular e prevenindo lesões. Esse impasse metodológico de prover ambas as necessidades, o trabalho funcional e o expressivo, é algo que ainda deve ser investigado. É um caminho de muitas ramificações e o que foi descrito aqui é apenas uma delas. O importante é saber que tais cruzamentos geram inúmeras possibilidades que não incluem somente a relação de aprendizado, mas também de criação e performance na acrobacia aérea. Acima de tudo, é a partir do Sistema Laban/Bartenieff e do olhar que se apresenta para o corpo e para o movimento que este estudo se fez possível e, como representado pela Fita de Moebius (cf. Miranda, 2008), sempre poderá ser revivenciado e sensibilizado por infinitas e distintas perspectivas de um mesmo trajeto.
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Referências:
ALMEIDA, Luiz Guilherme Veiga de. Ritual, Risco e Arte Circense: O homem em situações-limite. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. BARTENIEFF, Irmgard; LEWIS, Dori. Body Movement: Coping with the Enviroment. New York: Gordon and Breach Science Publishers, 1980. BRADLEY, Karen K. Rudolf Laban. New York: Routledge, 2009. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. _______. Educação como Prática da Liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 2003. GOLDMAN, Ellen. The Geometry of Movement: A Study in the Structure of Communication. New York: Second Edition, 2008. HACKNEY, Peggy. Making Connections. Total Body Integration through Bartenieff Fundamentals. NY: Routledge, 2002. LABAN, Rudolf. A Vision of Dynamic Space. Philadelphia: The Falmer Press, Taylor & Francis Inc., 1984. ______. Effort: economy in body movement. London: Macdonald and Evans Limited, 1974. MIRANDA, Regina. Corpo-Espaço: Aspectos de uma Geofilosofia do Corpo em Movimento. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. NACHMANOVITCH, Stephen. Ser Criativo. Trad. Eliana Rocha. São Paulo: Summus, 1993. VIANNA, Klauss. A Dança. Klauss Vianna; em colaboração com Marco Antônio de Carvalho. São Paulo: Summus, 2005.
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Curriculum Vitae Resumido:
Julia Franca é CMA - Certified Movemet Analyst, artista circense, bailarina contemporânea e educadora do movimento. É pós-graduada em Sistema Laban/Bartenieff pelo LIMS – Laban/Bartenieff Institute of Movement Studies – NYC/USA e pela Faculdade de Dança Angel Vianna (2011), licenciada em dança contemporânea pela mesma faculdade (2007) e formada na Escola Nacional de Circo - FUNARTE (2010). Passou na audição do Cirque Du Soleil (2009) e ganhou diversos prêmios, como 1° lugar no Festival de Intercâmbio de Linguagens (2009); o Festival Tápias (2008); “Revelação Feminina” - Malabares Rio (2008), entre outros. Ao longo dos últimos 10 anos, ela vem aplicando diferentes aspectos do LMA - Laban/Bartenieff Movement Analysis a um estilo único de dança-acrobática, combinando pesquisas teóricas e práticas numa expansiva possibilidade de criações performáticas e metodologias específicas de ensino/ aprendizagem entre coreografia, dança-teatro, circo, vídeo-danças, e colaborações interdisciplinares.
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POÉTICAS DE UMA EXPERIÊNCIA EM VIEWPOINTS Fernanda Dias de Freitas Pimenta (Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena - IA - UNICAMP)
Resumo: Esse trabalho apresenta o andamento de uma pesquisa de mestrado que propõe a reflexão sobre o treinamento do ator com base em uma experiência prática que articula fundamentos de encontro/exploração de limites e procedimentos da Teoria dos Viewpoints. Relata aspectos do estudo até então realizado e arrisca-se em breve análise das reverberações causadas em cada indivíduo e na interação coletiva entre atores resultante dessa prática, tendo como intuito a busca de um corpo poético.
Palavras-chave: Limites. Viewpoints. Experiência. Corpo poético;
Abstract: This work aims to present the progress of the master’s research focuses on reflection on a training experience that explores hybridity between fundamentals of limits exploration, and procedures of the Viewpoints Theory and the subsequent analysis of the reverberations caused in each individual and the collective that forms through this practice, with the intention to search for a poetic body. Keywords: Limits. Viewpoints. Experience. Poetic body;
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Oficialmente esta pesquisa de mestrado teve inicio em 2014. Entretanto, a história que me fez chegar até aqui começa em março de 2003, quando eu, então estudante de Direito, conheço o teatro e apaixono-me pelas artes da cena. Através dessa experiência pude conhecer meu corpo7 em perspectivas nunca antes por mim imaginadas. Aos poucos, e tendo a oportunidade de encontrar alguns mestres do teatro e também da dança, fui conscientizando-me de minha corporeidade, de minha singularidade, de minhas preferências, tornando-me, enfim, atriz. Meu corpo nunca mais seria o mesmo. Ao longo desses anos conheci diferentes procedimentos do fazer teatral, assim como diversos métodos de criação e exploração da cena artística. A ideia e a escolha de pesquisar limites e Viewpoints não é por acaso. Questões de afinidades permeiam a eleição e exploração desses temas. Segundo Renato Cohen: Várias motivações podem levar à escolha de um tema e à delimitação de um feixe de interesse: motivações ideológicas, estéticas e até afetivas. Evidentemente existe uma combinação desses fatores, mas, talvez, o mais importante seja mesmo a identificação afetiva através da empatia com a obra e o processo criativo de alguns artistas. (COHEN, 1989, p. 19).
Meu desejo em pesquisar o encontro com limites e o seu consequente ultrapassar, surge na ideia do treinamento energético8, apresentado por Luís Otávio Burnier e praticado inicialmente pelo Lume Teatro. Nesse trabalho o ator vai ao encontro de limites físicos que, quando encarados e explorados, instrumentalizam o artista na obtenção e utilização de um corpo mais orgânico, mais condizente com a cena, isto é, mais presente e fluido. Pratiquei um trabalho similar ao treinamento energético no início de meu percurso teatral, através de oficina com o preparador Rodrigo Cunha9. Atualmente, um dos discípulos de Burnier, o ator e pesquisador Renato Ferracini, propõe um novo pensamento acerca da exploração de limites, deslocando-os do treinamento energético, enraizado no esgotamento físico, e os instalando em outros parâmetros e procedimentos. Esses limites agora se expandem e podem ser espaciais, emocionais, psicofísicos, sensórios, relacionais, temporais. Enfim, agem em diferentes vieses do artista, provocando-o e impulsionando-o a buscar novas configurações de si, quebrando possíveis padrões de conduta. Em entrevista Ferracini (2015) afirma: Se o ator atinge esse estado de limite, possivelmente ele abre canais pra outra formatação de si, outro modo de operação de organização corporal. Outras expressões, outras composições do corpo. Quando se diz corpo, se quer dizer mente-corpo. Então há um princípio que não é o da exaustão, é o princípio do limite. Então um estado de limite leva o corpo a se reorganizar. (informação verbal). 7 Quando digo “corpo” refiro-me a mente-corpo-sensações-singularidades-padrões-dificuldadesrelações entre ambientes, a tudo que engloba o ser atuador, não somente o corpo físico. 8 “Trata-se de um treinamento físico intenso e ininterrupto, e extremamente dinâmico, que visa trabalhar com energias potenciais do ator. Quando o ator atinge o estado de esgotamento, ele conseguiu, por assim dizer, ‘limpar’ seu corpo de uma série de energias ‘parasitas’, e se vê no ponto de encontrar um novo fluxo energético mais ‘fresco’ e mais ‘orgânico’ que o precedente” (Burnier, 1985, p. 31). 9 Ator e preparador goiano, onde teve contato com procedimentos similares aos do treinamento energético. No ano de 2004 ele ministrava aulas de preparação corporal para o Grupo Guará, do qual eu fazia parte.
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Adotei nesta pesquisa, portanto, o princípio do limite, a premissa de que o artista deve se perguntar constantemente, segundo Ana Cristina Colla: “Posso ir mais? Posso ir além? Ir até o extremo até algo realmente acontecer, algo mudar” (COLLA, 2010, p. 65). Minha ideia inicial era abordar a exaustão em hibridismo com outro método de treinamento que será aqui também abordado, os Viewpoints. Contudo, ao tentar conduzir uma prática de preparação do ator a partir de procedimentos de exaustão, reconheci que o que me instigava na experiência por mim vivida a tempos atrás, era uma questão mais ampla. Não me interessava mais adentrar ao material advindo da estafa física somente, precisava ir mais adiante, o que me levou a eleger os limites como um dos eixos desta investigação. Se faz necessário esclarecer que esse princípio do limite não descarta a possibilidade de se trabalhar o esgotamento físico, mas para além dessa opção, abre espaço para outras formas de superação, que diversificam a ideia de exaustão. Antes o treinamento energético abrangia o encontro com limites, agora o contrário é proposto: o princípio dos limites abarca a estafa física como apenas uma de suas provocações. Cantar seria uma tarefa muito simples para atores, que supostamente não sentem vergonha, não é mesmo? Entretanto, na experiência realizada, a qual vamos nos referir como treinamento núcleo10, pode configurar-se num limite capaz de paralisar o atuador. Assim, resolvi pesquisar a Teoria dos Viewpoints porque pareceu-me uma renovação de todo o pensamento de teatro que eu tinha até conhecê-la. Aprendi o ofício de atriz focada em um teatro dito “mais tradicional”, com personagens bastante compostos, precisos fisicamente, e uma dramaturgia linear, por isso não tinha a dimensão da pluralidade que poderia ter a linguagem teatral. O trabalho com os VPs11, iniciado em 2011, fez-me expandir meus horizontes em relação à linguagem cênica e à atuação, apresentando-me novas possíveis formas de criação e presença. Essa teoria, que é também um Método, trata de princípios de movimentos e ações relativas aos aspectos de espaço e tempo. Experimentados em jogo de improviso, constituem técnica de treinamento para performers e de criação de ação para o palco. A prática busca aprofundar a percepção do ator e sua relação com o ambiente em que ocupa através de pontos de atenção específicos. São pontos de consciência do ator para com o todo da cena. Preocupações com o lugar onde se está no espaço, ou um movimento realizado a partir de uma atenção para com o ritmo, constituem formas de pensar a cena que, até pouco tempo atrás, eram inconcebíveis para aqueles que se utilizavam, por exemplo, da ação a partir de emoções, como proposto no Método Stanislávski, ou procedimentos parecidos, que “psicologizam” a atuação cênica. A história dos Viewpoints começa nos anos sessenta, quando a coreógrafa americana 10 O treinamento a que eu chamo de “núcleo” consiste na principal prática realizada nessa pesquisa, pois se configurou na vivência de maior tempo e intensidade durante o processo investigatório. Durante 20 encontros, 8 artistas da cena experienciaram em seus corpos a reverberação deste treino. 11 Abreviação de Viewpoints, comumente encontrada em estudos sobre o tema.
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Mary Overlie12 cria – a partir de tendências de movimentos da dança que já trabalhavam pautadas em noções de tempo e espaço – os Six Viewpoints, os quais, mais tarde13, seriam apropriados e refeitos por Anne Bogart, a criadora dos nove VPs, assim como são conhecidos atualmente14. Conheci os Viewpoints em 2011, quando residia no Rio de Janeiro. Lá frequentei durante 2 anos um grupo de treinamento chamado LPC (Laboratório de Pesquisa Continuada), coordenado pelo ator e pesquisador Jarbas Albuquerque15. O objeto de treino desse grupo era exatamente os VPs. Na primeira aula fui embora instigada pelo desconhecido. Aos poucos, à medida em que conhecia mais as possibilidades que a prática oferecia, fui entendendo melhor sua dinâmica e deparando-me com as minhas novas percepções, que já sentia estarem em mim dilatadas. Pude perceber e apreciar a evolução de uma postura mais sensível e coletiva em todos os participantes do grupo, além de tomar consciência em meu próprio corpo de que não precisava mais pensar na cena antes dela acontecer, pois ela mesma ditaria a ordem de seus acontecimentos. Os nove VPs são divididos em dois agrupamentos: espaço, que abrange topografia, relação espacial, arquitetura, forma e gesto; e tempo, referente ao ritmo16, à duração, à repetição e à resposta sinestésica. Adentrar cada um dos VPs é um trabalho meticuloso que não cabe no presente resumo, mas vale ressaltar que são instrumentos procedimentais de atuação. Parte importante do método é também a composição, que só é trabalhada após a prática e o entendimento básico dos VPs. Segundo Bogart (2005, p. 12), composição “é a prática de selecionar e organizar componentes separados de uma mesma linguagem teatral em um trabalho de arte coerente para o palco”. Porém, a parte mais interessante do Método ao meu ver – além da adoção de procedimentos relativos aos 9 VPs – está relacionado aos seguintes princípios que ele nos oferece e que procuramos instituir em nossa experiência: foco suave (visão periférica), escuta extraordinária (escuta com todos os sentidos a todo tempo), contínua percepção (clareza geral da cena), e estímulo e resposta (ação externa que dispara o movimento). A coletividade e a receptividade a que o jogo nos remete também é de extrema importância na nossa prática. 12 Coreógrafa americana, criadora dos Six Viewpoints, são eles: espaço, forma, tempo, emoção, movimento e história. 13 No fim dos anos oitenta Anne Bogart conhece a diretora Tina Landau e, trabalhando juntas durante dez anos, gradualmente expandiram os Six Viewpoints de Overlie para os nove VPs, que passaram a ser ainda mais usados no campo teatral. Elas desenvolveram também os VPs Vocais (2005, p. 6), que, não enfocados nesta pesquisa, mereceriam outro espaço de investigação para seu aprofundamento. 14 Atualmente a diretora Anne Bogart e o diretor japonês Tadashi Suzuki mantêm a SITI Company – Saratoga International Theatre Institute, em Nova Iorque, onde eles desenvolvem, desde 1992, treinamentos e oficinas cujo foco é a pesquisa dos VPs. Em conjunto com os VPs eles desenvolvem a prática do Método Suzuki, um interessante procedimento de preparação do atuante que se baseia em caminhadas e posições estáticas e em movimento, com alto grau de esforço físico, o que mantêm os corpos em prontidão para encarar posteriormente os VPs. 15 Ator e pesquisador pernambucano radicado no Rio de Janeiro há 15 anos, onde desenvolve ainda hoje o trabalho com o LPC. 16 Originalmente Bogart chama esse VP de tempo, mas muitos profissionais usam outras terminologias, como ritmo, velocidade ou andamento.
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Você leitor talvez esteja se perguntando: mas por que sobrepor justamente esses dois elementos, limites e Viewpoints? O que os aproxima? O que os distancia? As razões para se misturar limites e VPs começam na minha própria história. Conheço o encontro com limites desde o meu início nas artes, seja através de treinos físicos intensos, ou pela minha antiga dificuldade com a palavra, por exemplo. Já os VPs são mais recentes na minha prática, mas não menos importantes, pois me deram um novo fôlego quando os conheci, após nove anos de atividades teatrais. Fator que justifica essa combinação limites/VPs é que: o primeiro requer uma atenção majoritariamente focada em si, em seu corpo, em sua entrega; já a prática dos VPs requer uma atenção voltada para o fora, o externo, o espaço além de si. Forma-se uma relação de complementariedade que nos interessa, pois o paradoxo ou polaridade em fluxo potencializa a atuação. Segundo Ferracini (2013, p. 95), “o paradoxo – o e – pode levar o corpo à fronteira, pode gerar uma linha de fuga, pode fazê-lo adentrar na zona de experiência e atravessar a macro-memória-lembrança. Outras potencias, percepções, sensações, afetos”. Utilizando os procedimentos de VPs como base de ação da experiência proposta nesta pesquisa, os limites foram instalados de duas formas. A primeira forma se dá dentro dos exercícios de VPs, fazendo com que os participantes os explorem ao máximo; como exemplo cito questões espaciais, quando só era permitido atuar em determinado espaço restrito da sala de trabalho. A segunda forma de lidar com os limites está em exercícios que não advém dos VPs, mas que foram elaborados pensando nessa fronteira de si; como exemplo está o ato de cantar, já mencionado acima. O que busco ao contrastar limites e VPs é que haja uma transformação positiva do atuador, afim de potencializar a atuação cênica. Convoco agora o conceito de experiência explanado no texto “Notas sobre a experiência e sobre o saber da experiência”, de Jorge Larossa de Bondia (2002), pois creio que esta reflexão versa sobre uma conduta que dialoga com o trabalho que proponho. Antes sugiro completar a nomenclatura com os termos “estado de”, resultando em estado de experiência que, portanto, seria a base de nosso território-pesquisa, atuando como pressuposto ético do nosso participante, de forma a potencializar o momento único que estamos a construir. Assim, as reflexões acima nos norteiam em direção a uma postura de dilatação do tempo e de busca da calma, possibilitando ao artista adentrar-se nesse estado de experiência. A busca é por uma experiência que seja poética. Interessa-nos criar algo com o intuito de evoluir e desenvolver as potencialidades do artista da cena ao máximo. Assim, essa pesquisa se norteia com o objetivo de conquistar um corpo poético de atuação. Não apenas criar, mas criar de uma forma a evoluir nossas habilidades cognitivas e expressivas, potencializando as relações, os afetos, a cena. Entretanto, quais os requisitos para se obter esse corpo poético? O domínio de um estado cênico, ou poético, pressupõe a conquista de um corpo nessa vibração, um corpo-em-vida17, ou o corpo como uma máquina autopoiética18. Nas palavras de Grotowski podemos encontrar mais vestígios para nosso 17 Termo utilizado por Eugenio Barba para designar o ator que integra suas dimensões interior e exterior, promovendo a ação de um corpo vibrante, fundamental para a arte de ator. 18 “(O termo) máquina autopoietica é o conceito de vida em Maturana e Varela. (...) Oras, criação é
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entendimento do corpo poético que sugiro: Aqui tudo se concentra na ‘maturação’ do ator que é expressa por uma tensão em direção ao extremo, por um completo desnudar-se, por um revelar a própria intimidade: tudo isto sem a mínima marca de egotismo ou de auto-complacência. O ator faz total doação de si mesmo. Essa é uma técnica do ‘transe’ e da integração de todos os poderes psíquicos e físicos do ator que emergem dos estratos mais íntimos do seu ser e do seu instinto, irrompendo em uma espécie de ‘transiluminação’. (FLASZEN, 2010, p. 106).
Analisando as palavras do mestre polonês acima citado, ele nos dá pistas de elementos e aspectos necessários à essa tal “transiluminação”, o que eu nomeio de corpo poético. Assim, na busca desse corpo, podemos ressaltar alguns fatores que se evidenciam condicionais para vivenciar essa outra disposição de si: primeiramente criar/agir, estando fisicamente presente; atuar na procura de uma intensificação de si; procurar os extremos (limites), desafiando-se continuamente; repudiar a vaidade ou qualquer tipo de ego latente; caçar a integração de si; recorrer ininterruptamente à coletividade; e ocupar-se da relação com o espectador e suas reverberações, abrindo-se aos afetos mútuos e potencializadores que daí emergem. Dentre as oito práticas disparadoras da reflexão realizadas durante esse processo de investigação, destaco o treinamento núcleo, já mencionado anteriormente, por ter sido uma oportunidade de muito aprendizado, seja com minhas falhas, enquanto condutora e preparadora de tal experiência, seja com as conquistas que pude notar em cada corpo, inclusive no coletivo. As outras práticas deram-se em diferentes formatos: treinamentos intensivos ministrados, minha participação em grupos de pesquisa como participante e como condutora, integrante de oficinas, e entrevistas. No início do treinamento núcleo, deparei-me com as seguintes questões: como montar esse treinamento? Como organizar os procedimentos certos para que pudéssemos agir de acordo com os pressupostos de ação? Inspirada na oficina “O Corpo como Fronteira”, ministrada por Renato Ferracini, e nas escolhas metodológicas realizadas pela Professora Marisa Lambert ao lecionar suas aulas, elaborei a estrutura pedagógica do treinamento núcleo. Dessa forma os princípios da presente pesquisa agem como propulsores na elaboração de procedimentos práticos selecionados para serem experienciados no treino. Cada treino, em geral, é dividido em 4 partes, às quais eu nomeei como: alongamento, ativação, coletivo e expressivo. Ao final da maioria dos encontros eram registradas pequenas percepções advindas dos participantes. E assim fomos tecendo, adaptando, errando, procurando, acreditando e vivenciando esse desafio de buscar um corpo poético através desses procedimentos e princípios. Esses, apesar de, por vezes, mostrarem-se um pouco mecanicistas, devido ao jogo ser condicionado a regras de conduta, também, por vezes, poiésis, então autocriação, uma máquina, máquina enquanto conjunto de partes que se relacionam, então um conjunto de partes que se relacionam enquanto autocriação é o conceito que eles criaram de máquina, ou seja, um conjunto de partes que se relacionam, e faz o que nessa relação? Autocria, ou seja, ela faz uma autopoiésis. Então a máquina autopoietica é uma relação de autocria.” (FERRACINI, 2015, informação oral)
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nos presentearam com momentos únicos de unidade entre o coletivo, com interessantes composições e importantes conquistas individuais. No decorrer da realização das práticas, alguns temas mostraram-se relevantes em serem estudados. Eles constituem o segundo capítulo da dissertação em construção, fruto da presente pesquisa de mestrado. Agora brevemente, relatarei alguns desses temas. No subcapítulo “Construindo nossa língua” abordo as metáforas de trabalho. Encaradas como significações que remetem a um comando diverso daquele literalmente dito, as metáforas surgem de matéria sensível e deflagram a língua da obra, promovendo o encontro e a conscientização de um estilo próprio, seja por parte do condutor (que comunica através delas), ou por parte dos atuadores (que entendem o “devaneio linguístico” e reagem por meio dele). A metáfora é usada para acelerar o entendimento da questão, aumentando a dinâmica da tarefa e explorando com mais eficiência o fluxo do trabalho, por facilitar a compreensão de seus disparadores. Importante parte dessa pesquisa diz respeito à “Atmosfera de Jogo”, outro subitem da dissertação. Dessa forma convoco o conceito de “jogo” abordado por Richard Schechner em seu “Performance e Antropologia” (2012), por entender que sua reflexão ampara a experiência vivida nessa pesquisa. Convido, então, o participante dessa prática a atuar não com suas referências anteriores de teatro, ou de dança, mas a encarar a experiência como um jogo. Uma possível faceta do jogo que é conveniente à nossa experiência é a de que não há certo ou errado nem vencedores ou perdedores. Procura-se a leveza e a diversão de um jogo aqui em nossa experiência, porque “Jogar é ‘brincar’” (SCHECHNER, 2012, p. 109). Caetano Veloso poetizou que “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”19. As singularidades de cada indivíduo determinam suas habilidades e sua capacidade de colocar-se em relação potente com o mundo e com a vida. Assim, as “diferenças entre os corpos” é tema de outro subcapítulo da dissertação. As singularidades e subjetividades são detectáveis pela forma como percebemos as coisas, pelo nosso entendimento dos acontecimentos. Portanto, para analisar cada encontro, cada dispositivo prático dessa pesquisa, temos que observar o perfil dos integrantes que formam o corpo único do grupo. O perfil de cada encontro, portanto, é traçado pela junção de seus componentes, e as qualidades que eles trazem para a relação. Em continuação a esse último tema pretendo tratar de “intensidade e desejo”, refletindo sobre a vontade com que o artista trabalha em sua preparação e criação, fazendo um paralelo com a procura do tempo aiônico, kraiós (tempo da intensidade da criança) e sobre o desejo. Seguindo por esse caminho sugiro aprofundar na “dimensão das percepções”, refletindo sobre propriocepção, percepções e as micropercepções, nos ancorando nos estudos de José Gil. Em “Precioso sim” desenvolvo o princípio do sim20 e o conceito de receptivatividade (FERRACINI, 2013, p. 30). Através desse conceito vislumbra-se não somente uma relação 19 Frase da música “Dom de iludir”, composição de Caetano Veloso. Foi lançada através da voz de Gal Costa no álbum “Minha voz minha vida”, em 1982. 20 Utilizado por Narciso Telles em seus grupos de pesquisa prática, consiste em aceitar ações sugeridas pelo jogo.
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de causa e efeito, como estímulo e resposta, mas almeja-se um estado tal de sintonia de afetos relacionais que poderia o artista antever e antecipar o movimento ou a ação do outro, amparando o fluxo que sustenta a cena. Por falar em “fluxo”, que se apresenta como outro tópico que merece seu espaço, apresentaremos-o como condição de jogo e analisaremos sua hipossuficiência e seu funcionamento qualitativo quando em plenitude, nos amparando nas reflexões de Lambert, Schechner e Eleonora Fabião. No último capítulo dessa pesquisa em andamento, abordarei reflexões acerca da cena “Noites Brancas”, inspirada na obra homônima de Fiódor Dostoiévski. Esta cena, de aproximadamente 14 minutos, foi criada nos cinco últimos encontros (de vinte) do treinamento núcleo. Sobre tal trabalho pretendo tecer os seguintes temas: criação e composição, estética performativa, dramaturgia eruptiva, e performer X personagem. Na conclusão, pretendo adentrar os problemas que surgiram pelo percurso, assim como a (minha) condução. As minhas escolhas serão aqui acolhidas e meus enganos serão mencionados, afim de que tenhamos uma dimensão mais aproximada dos ganhos e insuficiências obtidas no trabalho. Gostaria de discorrer aqui sobre uma condução feliz, alegre e potente, mesmo diante dos impasses inerentes ao jogo. Por fim, apresentarei as pistas de potencialidades em preparação, refletindo sobre a capacidade de emprego dos procedimentos e princípios aqui utilizados na manutenção de atuadores atentos, disponíveis e poéticos.
Referências:
BOGART, Anne. LANDAU, Tina. The Viewpoints Book. A practical Guide to Viewpoints and Composition. New York: Theatre Communications Group, 2005. BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, n.19, 20-28, 2002. BURNIER, Luíz Otávio. A Arte de Ator - Da Técnica a Representação. Campinas: Editora da Unicamp, 2001. COHEN, Renato. Performance como Linguagem: criação de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: Perspectiva, 1989. COLLA, Ana Cristina. Caminhante, não há caminhos. Só rastros. São Paulo:
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Perspectiva, 2013. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 4. Tradução. Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997(1). FABIÃO, Eleonora. Corpo Cênico, estado Cênico. Revista Contrapontos Eletrônica, Vol. 10 - n. 3 - p. 321-326 / set-dez 2010. FERRACINI, Renato. Ensaios de Atuação. São Paulo: Perspectiva, 2013. ___________. Entrevista I. (ago, 2015). Entrevistadora: Fernanda Pimenta. Campinas, 2015. GIL, José. A Imagem-Nua e as Pequenas Percepções - Estética e Metafenomenologia. Tradução Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio d’água, 2005. 2a edição. RABELO, Flávio. Cartografia do Invisível. Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação em Artes do Instituto de Artes da Unicamp. Orientação Prof. Dr. Renato Ferracini. Campinas: 2014. STUART, Izabel. A Experiência do Judson Dance Theater. In: PEREIRA, Roberto; SOTER, Sílvia (Orgs.). Lições de Dança 1. Rio de Janeiro: Univercidade, 2000. p. 191-203. TELLES, Narciso. Entrevista I. (ago. 2015). Entrevistadora: Fernanda Pimenta. Uberlândia, 2015.
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ARTAUD, GROTOWSKI, O RITUAL E O TRANSE – UM TEATRO DE MEMÓRIAS EM AÇÃO TRANSFORMADORA DO CORPO Rafael Ricieri (UEM) Ludmila de Almeida Castanheira (UEM; UNICAMP)
Resumo: O presente trabalho apresenta uma investigação referente ao estado de transe no Teatro. Verifica – no Teatro Ritual – que este ocorre em nível físico: o corpo. Averígua questões ligadas a processos de criação do ator e a estados de atenção que lhes são próprios. Traça ligações entre autores como Antonin Artaud (1999), Jerzy Grotowski (1959), Michel Foucault (2010), Richard Schechner (2012), Félix Guattari e Gilles Deleuze (1947), no que se refere a pontos convergentes e divergentes entre conceitos teóricos e práticas. Palavras-chave: Teatro Ritual; Corpo; Transe;
Abstract: This present work shows an investigation about the state of transe in theatre. We see in Ritual Theatre that this happens in a physic level: body. Ascertain issues about the creation process for the actor and their own attention states. Connects authors like Antonin Artaud (1999), Jerzy Grotowski (1959) Michel Foucault (2010), Richard Schechner (2012) Félix Guattari and Gilles Deleuze (1947), as regards the converging and diverging points between theoretical concepts and practices. Keywords: Ritual Theatre; Body; Transe;
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Quando nos remetemos às origens do Teatro, chegamos ao Ritual. Há diferentes teorias que chegam a um ponto em comum: os rituais religiosos. Por uma necessidade de retornar àquelas origens, Jerzy Grotowski funda o Teatro Laboratório em busca da ancestralidade teatral. Foi em contato com essa parcela de suas inquietações que iniciei meu caminho de pesquisa. Eu, Ludmila Castanheira, autora deste artigo em conjunto com Rafael Riciere, tinha a ideia de um tema e, a partir dele, passei a transitar entre esse ir e vir, entre as origens e o contemporâneo, entre o teatro e o ritual, entre o que eu a princípio entendia como “o corpo e a alma”. A princípio, desejei que o campo de investigação acerca do ritual fosse diretamente ligado à reações e gestos comuns aos cerimoniais religiosos. Quisera que as diferentes formas em que ocorrem e nas diferentes religiões que os praticam, pudessem ser diretamente comparados as reações e gestos do ator em processos de criação no fazer teatral. Havia, o que era próprio do meu juízo – genérico nesse primeiro momento – a ideia superficial de que as reações e gestos inerentes a essas cerimonias poderia ser um estado de “transe” muito semelhante ou exatamente igual a outros obtidos pelo ator em seu processo de criação. Esse estado de “transe” – a meu ver – ocorria na alma daquele que está inserido no ritual religioso, assim como na alma do ator, portanto, um estado que ocorria fora do corpo. No momento que expus estas formulações a minha orientadora, fui provocada a investiga-las mais profundamente. Ao longo de minha pesquisa, ao passo em que me surgia um questionamento e ele era sanado, conforme caminhava em direção às respostas, novas perguntas eram suscitadas. Notei, assim, que para melhor compreensão do conteúdo, poderia organizar meus estudos em capítulos e intitulá-los de acordo com cada um dos questionamentos que os produziram. O caminho pelo qual fui instigada a direcionar minha pesquisa partiu de inquietações que se referiam ao estado de “transe” A meu ver, tratava-se de um estado ligado à alma, psíquico e metafísico; ou – segundo as provocações com as quais fui contemplado em minhas orientações – de um estado ligado ao corpo, material e concreto, perspectiva da qual eu duvidava. Instauraram-se assim um caminho a trilhar, e as perguntas a que eu me lançaria.
COMO ALCANÇAR UM CORPO FORA DO CORPO?
Esse foi o norteador que serviu de gatilho para minha pesquisa. A partir dos primeiros estudos, no entanto, pude perceber o meu equívoco. Michel Foucault (2013) na conferência “O corpo utópico”21, versa sobre o corpo e a alma. O autor indica que existem utopias e utopias, refere-se a um mundo idealizado, um local onde há luz, potências e onde o 21 É importante esclarecer que o termo “corpo utópico” foi cunhado por Foucault, assim como em outras passagens aparecerão termos como “corpo novo”, “Corpo sem Órgãos”, ou “corpo-vida”, todos indicadores de um corpo potencialmente dilatado, para além do corpo cotidiano. Neste trabalho, sempre que a palavra corpo venha adjetivada, ainda que não pelos termos concernentes aos autores, tratará de um corpo não corriqueiro, em elaboração, pulsante e agenciador da vida para além do comum. Ainda, em outros trechos, quando não adjetivada, a palavra “corpo”, pretende se referir a este de maneira generalizada.
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corpo é belo e colossal, um lugar fora de todos os lugares, mas onde teremos um corpo sem corpo, porque o corpo é o contrário disto: é visível, desprotegido e finito. Uma das utopias contrárias ao corpo é a alma. Existente no corpo, mas que escapa dele, não está aprisionada ao corpo. Após a morte permanece viva, existe nos sonhos fora desse material corpóreo. Quando o corpo morre, fica a utopia da alma que está ligada à esse mundo iluminado e belo. No decorrer de suas falas, o autor percebe que está equivocado quando entende que os olhos enxergam o sublime, o belo. E o que é visto – assim como a alma – existe dentro do corpo. Para que se alcance esse corpo utópico, basta que se tenha corpo. Logo, entendo que para alcançar um corpo fora do corpo, de mesmo modo, tê-lo é o essencial. A partir destas considerações faço um novo questionamento.
POR QUE BUSCAR POR UM CORPO FORA DE SI?
Foucault (2013) explica, a partir do trabalho de um ator, como é possível alcançar esse “mundo idealizado” (essa utopia). O modo como o ator incorpora a máscara, como a maquiagem cria um novo rosto, ou o figurino nos transpõe a outro tempo: estas vias de transformação resultam em um corpo utópico. Esses meios de acesso ao corpo utópico que tocam o corpo e o transportam para outros mundos, são “utopias seladas no corpo”, que o projetam em outro espaço, “fora de todos os lugares”. Mas talvez fosse preciso descer mais, por baixo da vestimenta, talvez fosse preciso atingir a própria carne, e veríamos então que, em certos casos, no limite, é o próprio corpo que retorna seu poder utópico contra si e faz entrar todo o espaço do religioso e do sagrado, todo o espaço do outro mundo, todo o espaço do contra-mundo, no interior mesmo do espaço que lhe é reservado. Então, o corpo, em sua materialidade, na sua carne, seria como o produto de seus próprios fantasmas. Afinal, o corpo do dançarino não é justamente um corpo dilatado segundo um espaço que lhe é ao mesmo tempo interior e exterior? (FOUCAULT, 2013, p.13-14).
Embora a concentração e o imaginativo estejam relacionados ao psíquico, eles ocorrem dentro do corpo e, conforme eu imaginava – antes de tomar contato com tal referência – o corpo, a partir desse estado de consciência, pode ir para fora de si. Apesar disso, assim como Foucault (2013) e a partir do estudo de sua pesquisa reconheço o meu equívoco e compreendo que mesmo “fora de si” o corpo continua sendo corpo: um corpo dilatado. Notei, portanto, que o caminho para esse teatro não é, senão, o próprio corpo. Ao encontrar o corpo como cerne da pesquisa, a aproximação com as ideias de Jerzy Grotowski, reunidas em textos e materiais organizados por Ludwik Flaszen (2010, p. 126), deu-se de forma quase natural. Ele afirma que, do ponto de vista do fenômeno teatral, é impossível reconstruir o ritual no teatro, pois ele estará diretamente ligado à fé – “pelo ato religioso ligado à profissão de fé”. Explica que, como não há um única religião ou
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uma fé exclusiva, não é possível ressuscitar o ritual pois, para isso – ator e espectadores devem ser uma unidade – mas as religiões são várias. Portanto, ao chegar à conclusão de que para que aconteça o Teatro Ritual em sua essência, consequentemente deve ocorrer o ritual religioso, e que essa é uma questão inevitável, Grotowski deixa de lado a ideia do teatro ritual por não conseguir alcançar um “ritual laico”. Apesar de abrir mão desse preceito, Grotowski relata que deixando de lado a ideia do Teatro Ritual, aproximou-se mais do teatro ritual, pois ao perceber a impossibilidade do ritual laico, ele voltou seu trabalho ao ator como criador, e ao corpo, como explica: Se um grande artista enfrenta tal tipo de pesquisa, é capaz de ir além disso. Tenho em mente certos trabalhos de Béjart, que também explorou diferentes imagens, que provém de diversas civilizações religiosas, mas ao mesmo tempo foi além delas, graças à matéria, graças à própria natureza do seu ofício […] ali foi decisiva a parte corpórea, até mesmo sensual, ligada às reações do ser humano, que aconteciam em um ritmo específico e não aquelas representações religiosas tomadas a esmo. O grande artista é portanto capaz de ir além desse limite. De resto eu não disse que é absolutamente inoportuno utilizar temas tomados de outros continentes, a questão é outra, estou falando de uma certa tentação. (FLASZEN, 2010, p. 127).
O diretor compreende, que ao pesquisar e experienciar o teatro ritual há “certa tentação” de vincular essa arte ao ritual religioso, sagrado. Mas conclui que para alcançar o Teatro Ritual de modo laico é preciso chegar ao corpo, que passa a ser seu objeto de investigação.
COMO CHEGAR AO CORPO DO TEATRO RITUAL?
Grotowski auxiliou-me a compreender o processo pelo qual passei no início de minha pesquisa. Embora não tenha sido minha primeira leitura, possibilitou que eu estabelecesse paralelos possíveis entre a minha e a sua trajetória. Grotowski dissociou ritual e religião, e afirmou que “aquilo que é a essência do teatro seja capaz – de modo laico – de satisfazer certos excessos da imaginação e da inquietude desfrutados nos ritos religiosos.” (FLASZEN, 2010, p. 40). Para que isso acontecesse seria preciso substituir o ritual religioso pelo núcleo da teatralidade como arte. Destacou que “O teatro é a única dentre as artes a possuir o privilégio da ‘ritualidade’.” (FLASZEN, 2010, p. 41), mas que em sentido puramente laico essa ritualidade trata de um sistema de signos, é um ritual coletivo em que o espectador é coparticipante e sua coparticipação nesse sistema estimula a criação e a concentração, “organiza a imaginação e disciplina a inquietude”. Ele conclui que o ritual religioso é sagrado, é encantado, divino, é uma espécie de magia. E o ritual no teatro é uma espécie de jogo. Tais leituras sobre o ritual me levaram a Richard Schechner (2012), cujas conexões de pensamento transitam entre o teatro e a performance. O autor traça uma íntima relação entre Performance, Jogo e o Ritual. Segundo ele, “uma definição de performance pode ser:
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comportamento ritualizado condicionado/permeado pelo jogo. Rituais são uma forma de as pessoas lembrarem” (SCHECHNER, 2012, p. 49). O jogo abre caminho para experiências temporárias que conduzem à situações de risco, a tabus e a excessos. Ele explica: Ambos, ritual e jogo, levam as pessoas a uma ‘segunda realidade’, separada da vida cotidiana. Esta realidade é onde elas podem se tornar outros que não seus eus diários. Quando temporariamente se transformam ou expressam um outro, elas performam ações diferentes do que fazem na vida diária. Por isso, ritual e jogo transformam pessoas, permanente ou temporariamente. Estes são chamados de ‘ritos de passagem’, e alguns exemplos são: iniciações, casamentos e funerais. No jogo, as transformações são temporárias, limitadas pelas regras do jogo. (SCHECHNER, 2012, p. 50).
Para o citado autor, ritual é memória em ação, pois explica que ele não está apenas conectado a alguma lembrança, algo passado, mas está também ligado ao corpo, aos objetos, no modo como o corpo se relaciona com objetos ou símbolos. O ritual transforma o indivíduo e a forma como ele se nega, o “não não eu” é a negação do negar-se, e a transformação em uma nova personalidade. Ainda que os autores consultados (Schechner e Grotowski) estejam tecendo suas práticas e teorias em continentes e por vezes com propósitos diferentes, são contemporâneos e seus estudos apontam para caminhos muito próximos. Ritual, para Grotowski, é uma espécie de jogo. E, para Schechner, ritual é memoria em ação – já que não está ligado somente à lembrança, mas também ao corpo. Ritual e jogo transformam pessoas. Logo, entendo que o ritual é uma memória em ação que transforma o corpo. Compreendo, então, que os termos “Teatro” e “Ritual”, reunidos na formulação grotowskiana “Teatro Ritual”, significam um teatro de memórias em ação transformadora do corpo. A partir desse entendimento, para pesquisar o corpo, e como ele pode ser transformado, busquei referências em Artaud (2012), poeta que aspira à cura do corpo. Para ele, o artista é um “médico da cultura” que opera – a partir do teatro – sobre seu próprio organismo. Propõe uma “saída corporal para a alma” para que essa reencontre o seu ser no sentido inverso dela, no sentido do corpo. Quando Artaud diz sobre o ator (e o Homem) atuar sobre o seu organismo, refere-se a um corpo de experiência que não funciona por um organismo, mas pela consciência do próprio corpo. Corpo sem órgãos. Um corpo de reconstruções e plenitude, infinito, livre, inclassificável e desmedido. Corpo existente e cotidiano transformado em outro para fazer ou refazer o teatro. Sobre o estudo de Artaud, Lins (1999) aponta que: Bifurcação e reta, o corpo sem órgãos é plenitude e vazio; é carne sofredora convertida em ‘corpo-de-consciência-da-morte’ (que não é nem o espírito, nem a carne, nem o corpo), corpo transfigurado, corpo glorioso ‘corpo de luz, estado de consciência do não-ser’, que Artaud o denominou corpo puro, corpo novo, não oprimido, corpo sem órgãos. (LINS, 1999, p. 47).
Seguindo o estudo de Artaud, Gilles Deleuze e Félix Guattari (2015), tratam das “experiências” de um corpo sem órgãos, ou, o “CsO Não se é (essência) e nem se está em (lugar de) um CsO, mas se está um (estado de passagem) CsO. As estruturas orgânicas e 26
biológicas são descontruídas por meio de experiências concretas que conduzem o corpo a um caminho de reterritorializações não exteriores ao desejo, nem interiores às pessoas, mas “é antes como o Fora absoluto que não conhece mais os Eu, porque o interior e o exterior fazem igualmente parte da imanência na qual eles se fundiram” (DELEUZE E GUATTARI, 2015, p. 21). Essa experiência permite que o corpo flua livre de estruturas hierarquizadas como o organismo: Por que não caminhar com a cabeça, cantar com o sinus, ver com a pele, respirar com o ventre, Coisa simples, Entidade, Corpo pleno, Viagem imóvel, Anorexia, Visão cutânea, Yoga, Krishna, Love, Experimentação. Onde a psicanálise diz: Pare, reencontre o seu eu, seria preciso dizer: vamos mais longe, não encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos ainda suficientemente nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação. (DELEUZE E GUATTARI, 2015, p. 13).
Quando os autores apontam para o organismo, dizem da organização recaída sobre os órgãos, da maneira como são dispostos cada um à sua função, ao seu escopo, suas delimitações. O CsO vive sem a necessidade dessa “sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações, organizações dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas para extrair um trabalho útil” (DELEUZE E GUATTARI, 2015, p. 13), pois ele pode inverter funções, criar novos sentidos, recriar, experimentar e sentir. Opera por intensidades, desejos, esse violar o corpo é como acessar um estado de transgressão de si, acessar um estado que – como mencionam – pode conduzir à autodestruição. Deleuze e Guattari (2015) retratam corpos que já perderam seus órgãos, como o corpo paranoico, o corpo esquizo, o corpo drogado, o corpo masoquista e o corpo hipocondríaco, “cujos órgãos são destruídos, a destruição já está concluída, nada mais acontece” (DELEUZE E GUATTARI, 2015, p. 12). Destacam que, mesmo que o organismo seja inimigo do corpo, é importante que ele seja preservado em pequenas proporções, suficientes para que seja posteriormente restaurado; principalmente que haja uma autogestão destes métodos e meios de reserva do organismo, de modo que se saiba e seja possível conservar o suficiente para poder voltar à realidade dominante. Essas ideias permitem-me escrutinar o termo Corpo e suas implicações a partir da perspectiva do Teatro Ritual. O juízo de corpo, inserido no ritual, passa a ser o de um veículo de transformação. A pergunta lançada no início dessa investigação de “Como chegar ao corpo do Teatro Ritual?” pode ser traduzida de forma mais clara. A partir dessa nova formulação, por conseguinte, faz-se necessário buscar por novas chaves de acesso que respondam ao questionamento reformulado a partir de outra perspectiva.
COMO TRANSFORMAR O CORPO A PARTIR DA MEMÓRIA EM AÇÃO?
Quando Artaud (2012) e, posteriormente, Deleuze e Guattari (2015) explicam que o Corpo sem Órgãos é um corpo altamente dilatado, associam termos diretamente ligados
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a este estado, como a autoconsciência, as reconstruções e as experimentações no lugar da interpretação e da subjetividade. Percebo que o disparador da ação transformadora do corpo é o estado de consciência de si. A memória é responsável por projetar essa consciência a partir da concentração, da reconstrução e da experimentação do corpo que se torna ação/veículo (no jogo/ritual) de sua própria transformação. A partir do momento em que o corpo está concentrado e aberto para reconstruir a si mesmo por meio das experimentações, permite-se recriar, exceder, violar, torna-se um novo corpo permeável de potencialidades para criações profundas. Vale lembrar que o corpo-vida, termo utilizado por Grotowski para se referir a esse corpo potencialmente dilatado, é um estado temporário – assim como queriam Artaud, Deleuze e Guatarri. Acaso se torne permanente, ou alcancemos a sua totalidade, ele estará liquidado. É importante reservar ao menos parte de sua lucidez, de sua interpretação e subjetividade para que o corpo do ator não se transforme de corpo-vida para corpo paranoico ou qualquer outro cuja destruição já esteja concluída. Os termos passam de um estudo isolado (Corpo e Ritual), para um estudo mais contextualizado, que é o Corpo e o Ritual no Teatro. Já sabemos que o ritual é o jogo da memória em ação e o corpo nesse jogo é um corpo potencialmente dilatado, veículo transformador. Agora, faz-se necessário retornar a um dos primeiros questionamentos o qual me lancei: porque – pelo estudo do teatro ritual – essa busca de um “corpo fora de si” (em transe)? Algumas respostas vieram no sentido de que o “fora” ainda é o corpo, o que me leva a refazer a questão. Levando em consideração, também, que Grotowski e Artaud viram nas conexões entre teatro e ritual algo que lhes soou positivo ou que de alguma maneira responderam algumas de suas inquietações. Mais uma vez, reformulo portanto, meu questionamento.
PORQUE SOMOS LEVADOS A ASSOCIAR A EXPERIÊNCIA DO RITUAL AO TEATRO?
Repiso o que diz Grotowski: “O teatro é a única dentre as artes a possuir o privilégio da ‘ritualidade’” (cf. FLASZEN, 2010, p. 41), o jogo ritual é que vai acionar as memórias em ação do corpo de seus atores, de modo que como veículo de si, transporta-se e se transforma em corpo-vida. Assim como para Artaud, o corpo novo se dá a partir da auto consciência, das reconstruções e das experimentações proporcionadas pela ritualidade do seu fazer teatral. Formulo, então, alguns enunciados: 1. Para alcançar um “corpo fora do corpo”, basta termos/sermos essa forma; 2. O teatro ritual busca um “corpo fora de si” porque busca um corpo dilatado que seja produto de suas próprias fantasias; 3. Chega-se ao corpo do Teatro Ritual pelo ritual, que é uma espécie de jogo e é memória em ação; 4. A transformação do corpo a partir da memória em ação é feita pela auto consciência a partir da concentração, da reconstrução e da experimentação do próprio corpo.
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Tendo em vista tais chaves de acesso, busco reunir conceitos e práticas elaborados por Artaud e Grotowski, Foucault, Deleuze e Guatarri, convergindo para e pela autoconsciência: o estado de concentração ligado ao autoconhecimento transforma os corpos, todos e cada um deles, de simples corpo para corpo utópico, corpo-de-consciência-da-morte, corpo glorioso, corpo de luz, corpo puro, corpo novo, corpo sem órgãos, corpo-vida. O corpo é fulcral nessa discussão, é ele o veículo transformador do ator, do teatro e da vida. Fabiana Monsalú (cf. Brondani, 2015) explica que tanto Artaud quanto Grotowski queriam refazer o teatro a partir de uma criação mais profunda e humana, e parafraseia: Segundo Grotowski, é necessário dar-se conta de que nosso corpo é nossa vida e nele estão inscritas todas as experiências: na pele e embaixo dela, desde a infância até a idade madura e, ainda, talvez desde antes da infância e desde o nascimento de uma geração. O corpo em vida é algo palpável. É o retorno ao corpo-vida e exige desarmamento, desnudamento, sinceridade. (MONSALÚ in BRONDANI, 2015, p. 41).
Por essa razão, chega-se ao ritual, porque ele guia todo o trabalho de criação pelo próprio corpo e o transporta e o transforma, pela sua capacidade de desnudar, de permear, de contrair e dilatar, de ser uno e múltiplo, ele proporciona impulsos; proporciona choques entre o físico e o mental, entre o sensível e o intelectual, o dentro e o fora. É esse trabalho que gera uma organicidade tão estimada por esses e outros teatrólogos, uma organicidade total que afeta não somente o ator mas a todos os indivíduos presentes e cria em cena uma pulsão de vida capaz de conduzir o ator ao seu extremo, a um ser social transformador e provocador que proporciona ao espectador o desejo de também criar, de transformar, de estar junto no “aqui e agora” e pertencer ao acontecimento artístico. A esse respeito, Artaud acreditava que: Qualquer ator, até mesmo o menos dotado, pode crescer através dessa consciência física, a densidade interior e o volume de seu sentimento e a essa tomada de posse orgânica associa-se uma corporosa transposição. É útil a esta finalidade conhecer certos pontos de localização. O homem que levanta pesos, os levanta com os rins… inversamente, cada sentimento feminino, cada sentimento que cava – o soluço, a desolação, a respiração ofegante espasmódica, o transe – realiza seu vazio à altura dos rin […] Existem na acupuntura chinesa 380 pontos, dos quais 73, os principais, servem à terapia habitual. Muito menos numerosas são as saídas rudimentares da nossa humana afetividade. E ainda menos numerosos são os pontos de apoio que é possível indicar como base de um atleticismo da alma. O segredo consiste em exacerbar esses pontos de apoio, como uma musculatura a ser despida. O resto termina em gritos. Para reconstruir a cadeia, a cadeia de um tempo no qual o espectador buscava no espetáculo a sua própria realidade, deve-se permitir a esse espectador que se identifique no espetáculo em cada respiro seu e em cada ritmo seu (…) No teatro, poesia e ciência devem então identificar-se. Cada emoção tem bases orgânicas. E cultivando a emoção no próprio corpo o ator recarrega a voltagem. Saber antecipadamente quais pontos do corpo precisa tocar significa jogar o espectador em transes mágicos (…) Não existe mais ninguém que seja capaz de gritar na Europa, e especialmente os
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atores em transe não sabem mais emitir o próprio grito. Não sabem mais fazer outra coisa que falar, no teatro, esqueceram de ter um corpo (…) (ARTAUD, 2012, p. 158-160).
A investigação do corpo do ator – qual caminho trilhar para alcançar o seu maior e mais dilatado estado de corporeidade na busca de um corpo inclassificável e desmedido, infinito em sua plenitude – por meio da pesquisa do Teatro Ritual permite que eu reconheça e reconsidere meu falho postulado inicial. Retomo, então, minha primeira inquietação: o estado de transe –prenotado pela problemática maior decorrente da dúvida a respeito de onde ele ocorre, no corpo ou na alma.
O ESTADO DE TRANSE E SUAS RELAÇÕES COM O TEATRO
Campo (2015, p. 52) escreve sobre seu “interesse específico no transe e os estados alterados de consciência, e a utilização desses no âmbito teatral”. Assim como Schechner, ele estabelece uma relação entre ritual e os estados alterados de consciência com a performance, mais precisamente com o performer. O interesse de Campo pelo trabalho do performer, deve-se ao fato deste ser o atuante de seu próprio trabalho. A performance, segundo Schechner, é algo feito com o propósito de ser visto; e o espectador (aquele que vê), para Grotowski, é coparticipante, pois é testemunha. Dessa organização “deriva uma nova atenção às origens do teatro […] e então, ao ritual e ao fenômeno de possessão” (CAMPO, 2015, p. 56). Segundo Grotowski, em citação organizada por Brondani (2015, p. 130-131): O Performer, com letra maiúscula, é homem de ação. Não é o homem que faz o papel de um outro. É o dançarino, o padre, o guerreiro: está fora dos gêneros artísticos. O ritual é performance, uma ação realizada, um ato. O ritual degenerado é espetáculo. Não quero descobrir algo de novo, mas algo esquecido. Uma coisa totalmente velha que todas as distinções entre gêneros artísticos não são mais válidas… Na tradição hindu se fala de vratias (as hordas rebeldes). Um vratias é alguém que está no caminho para conquistar o conhecimento. O homem de conhecimento dispõe do doing, do fazer e não de ideias ou de teorias. O que faz para o aprendiz o verdadeiro teacher? Diz: faça isso. O aprendiz luta para compreender, para reduzir o desconhecido a conhecido, para evitar de fazê-lo. Pelo próprio fato de querer entender opõe resistência. Pode entender somente se faz. Faz ou não faz. O conhecimento é questão de fazer… O ritual é um momento de grande intensidade. Intensidade provocada. A vida se torna, então, rítmica. O Performer sabe ligar o impulso corpóreo à sonoridade (o fluxo da vida deve se articular em formas). As testemunhas entram, então, em estados intensos porque, dizem, terem sentido uma presença. E isso, graças ao Performer, que é uma ponte entre a testemunha e algo. Nesse sentido, o
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Performer é pontifex, executor de pontes.
Campo apresenta a ligação do Performer com o ritual e o fenômeno de possessão, devido ao autoconhecimento gerado pelas consequências do fazer, de construir pontes. Ao experienciar o corpo e a autoconsciência, chega-se ao corpo infinitamente pleno em sua corporeidade culminante e às relações estabelecidas entre a atenção e o transe. Em suas pesquisas, o autor propõe uma escala dos tipos de transe22, explicando cada um dos níveis. Ao todo, são apresentados quatorze níveis, além de níveis físicos, são apresentados níveis psicofísicos, patológicos e místicos. Estes fogem ao escopo desta pesquisa, já que a ela interessa o corpo fora de si (dilatado ou em transe), conectado à imanência mais do que à transcendência, e ancorado nas pesquisa de Artaud e Grotowski essencialmente. O termo transe tem a sua derivação da palavra homógrafa francesa transe que quer dizer “medo do mal”, e que é originária do verbo latino transire, esse, por sua vez, significa atravessar. “Ao longo dos tempos passou da definição da passagem da vida à morte, à passagem entre dois estados de consciências diferentes” relata Campo em artigo organizado por BRONDANI (2015, p. 60). Também afirma que o transe é um acontecimento corriqueiro da experiência humana e o termo possui uma acepção vasta para os mais conhecidos estados alterados de consciência (alterated states of consciousness, ASC), entre eles a meditação, a hipnose, o êxtase e a possessão: Observamos que há uma estreita relação entre o transe e os percursos de conhecimento sobre si mesmo. Existem, também, vários níveis de atenção, que em outras palavras, são níveis do transe, que constituem uma das diferenças essenciais entre o momento criativo e a performance criativa, controlada, estruturada (formalizada), estável. (CAMPO in BRONDANI, 2015, p. 131).
Campo enumera e explica uma grande lista de estados alterados de consciência (ASC), no entanto, para fins de um recorte concernente a esta pesquisa, me ative as análises próximas ao teatro. Com o auxílio delas, compreendo que assim como o corpo altamente dilato, o estado de transe pode ser atingido a partir dos níveis de atenção alcançados pelo ator ou performer. Tão basilar quanto o corpo é o trabalho realizado sobre determinado estado de atenção: desenvolvê-lo constantemente sem ceder (ou cedendo apenas o inevitável) à tentação de estabelecer estratificações impenetráveis. Estar, enfim, em perene abertura à experiência, reconstrução de energias e impulsos concomitantemente intelectuais e sensíveis, inclassificáveis, atemporal, desmedido. 22 Para melhor elucidar, cito dois níveis de transe da escala proposta por Campo em seu artigo e que estão ligadas ao teatro e a performance, são estes: “11. Transe avançado de quarto tipo – Existe no âmbito de uma performance psicofísica precisa, a qual pode utilizar cantos vibratórios ou objetos e máscaras, e pode ser vivenciada publicamente ou de maneira privada. No teatro, é a expressão mais elevada da arte do performer. Diferencia-se em relação à precedente, pelo fato de ser muito estável. 12. Transe de ritual de possessão – É um estado avançado, estável, que envolve, em diversos planos, todos os participantes do ritual. O sujeito possuído, aqui, perde a sua individualidade por certo período de tempo, em um lugar estabelecido e organizado para a realização da experiência. No teatro é aquela experiência grotowskiana do Ato Total e para além do teatro, isto é, o modelo apresentado por ‘Action’ com os membros do Workcenter de Pontedera no âmbito da Arte como Veículo.” (CAMPO, 2015, p. 89).
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Referências:
ARTAUD, Antonin (1896-1948). O Teatro e Seu Duplo. Trad. Teixeira Coelho. 1ª reimpressão. São Paulo: Martins Fontes. 2012. _______. (1896-1948). Para Acabar de Vez com o Juízo de Deus – seguido de O Teatro da Crueldade. Trad. Luiza Neto Jorge e Manuel João Gomes. Lisboa: Publicações Culturais, 1975. BRONDANI, Joice Aglae. (Org.) Grotowski: estados alterados de consciência – teatro, máscara, ritual. Coletânea de artigos de pesquisadores do legado de Jerzy Grotowski reunidos por Joice Aglae Brondani. São Paulo: Giostri, 2015. CAMPO, Giuliano. A arte do ator a possessão: os Estados Alterados de Consciência (ASC) nas suas inter-relações com o Teatro. São Paulo: Giostri, 2015. CUESTA, Jairo; SLOWIAK, James. Jerzy Grotowski. Trad. Julia Barros. São Paulo: É Realizações, 2013. DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. Vol. 3. 1ª reimpressão. São Paulo: Editora 34. 2015. FOUCAULT, Michel. (1926-1984). O corpo utópico; As heterotopias/ Michel Foucault. São Paulo. N-1 Edições, 2013. FLASZEN, Ludwik (curad.); BARBA, Eugenio (text.). O teatro laboratório de Jerzy Grotowski: 1959-1969. 2. ed. São Paulo, SP: Perspectiva: SESC (São Paulo), 2010. GROTOWSKI, Jerzy. Para um Teatro Pobre. Trad. Ivan Chagas. 3ª Ed. Brasília: Teatro Caleidoscópio & Ed. Dulcina, 2013. LIGIÉRO, Zeca (Org.). Performance e antropologia de Richard Schechner. Trad. Augusto Rodrigues da Silva Junior. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012. LINS, Daniel. Antonin Artaud: o artesão do corpo sem órgãos/Daniel Lins Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999. QUILICI, Cassiano Sydow. Antonin Artaud: Teatro e Ritual. São Paulo: Annablume, 2004.
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Curriculum Resumido do(s) autores(s):
Rafael Ricieri É formado em Artes Cênicas – Licenciatura Plena em Teatro, pela Universidade Estadual de Maringá (2015) e participante do “Grupo de Pesquisa e Experimentação Cotidiana Utilizando Como Paradigma a Figura do Clown”, coordenado pelo professor Me. Marcelo Colavitto.
Ludmila Castanheira É doutoranda em Artes da Cena pela UNICAMP, sob orientação da profa. Dra. Verônica Fabrini. Leciona no curso de Artes Cênicas – Licenciatura Plena em Teatro da Universidade Estadual de Maringá (UEM), onde organiza o “Bastardas, encontro de performance”, evento voltado às intersecções possíveis entre pedagogia e performance arte. Está entre os organizadores do Festival de Apartamento, encontros de performance que, em suas quinze edições, são itinerantes, livres de curadoria e ocorrem em casas de artistas que se dispõem a abrigá-lo.
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CARTAS PARA QUEM ME FAZ DANÇAR Moacir Romanini Junior (Mestrando em Artes da Cena – Unicamp)
Resumo: A partir de uma vivência prática ocorrida na sede do Lume Teatro, em março de 2015, esse estudo pretende dar luz a aspectos sobressalentes que emergiram da disciplina Mimese e Dança, ofertada aos alunos da pós-graduação em Artes da Cena, do Instituto de Artes da Unicamp e ministrada pela professora e atriz do Lume, Ana Cristina Colla, e pela dançarina e pesquisadora, Prof.ª Ana Clara Amaral. Como possibilidade de aproximação entre a experiência da prática e a interlocução com o leitor, essa escrita se faz por meio de cartas, as quais foram endereçadas às matrizes coletadas nesse processo artesanal de criação. Palavras-chave: Mímesis Corpórea; Dança; Teatro;
Abstract: Based on a practical experience that took place at Lume Teatro’s headquarters in March 2015, this study intends to give light to aspects that emerged from the Mimesis and Dance subject, offered to postgraduate students in Arts Scene, the Institute of Arts of Unicamp and taught by professor and actress of Lume, Ana Cristina Colla, and the dancer and researcher, Prof. Ana Clara Amaral. As a possibility of approximation between the experience of the practice and the interlocution with the reader, this writing is done through letters, which were addressed to the matrices collected in this artisanal process of creation. Keywords: Bodily Mimesis; Dance; Theater;
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[Antes das cartas] Ainda era verão... Em março de 2015, na sede do Lume Teatro em Campinas, uma turma maciça ocupava a sala de ensaios. Ministrada por Ana Cristina Colla e pela professora convidada, Ana Clara Amaral, a disciplina “Mimese e Dança” era ofertada pelo Programa de PósGraduação em Artes da Cena, do Instituto de Artes da Unicamp. Desenvolvida pelo Lume Teatro, a Mímesis Corpórea é uma metodologia que consiste na coleta e apreensão minuciosa de matrizes físicas e vocais que se dá por meio da observação, codificação e teatralização de ações – físico/vocais – de pessoas, animais, fotografias, obras de artes visuais e monumentos encontrados no universo cotidiano e/ ou pessoal do ator (FERRACINI, 2006, p. 256). Daquilo que comumente é entendido por mimese e que linguisticamente mora no mesmo campo semântico da palavra “imitação”, esse processo de investigação, criado e desenvolvido pelos atores do Lume, transpõe esse lugar do “mimético” para instalar-se em uma observação apurada daquilo que emana orgânico das matrizes que geram as ações. Cabe ao ator munir-se de lentes para encontrar os micros detalhes que se escondem nas frestas dos materiais coletados durante o processo de investigação para então, recriar: [...] a mimese corpórea, como entendida no Lume, se coloca: não como mera tentativa de cópia, reprodução ou mesmo representação do que foi observado, mas como busca de recriação que tem, como ponto de partida, as observações de ações físicas e vocais encontradas no cotidiano. (FERRACINI, 2006, p. 226).
Como proposta dessa vivência e como mais um modo de transposição da imitação para a compreensão das organicidades das matrizes, essa experiência propunha ainda a articulação do procedimento de mímesis corpórea com o fazer-pensar da linguagem da dança. Para tanto, foi considerada a qualidade de observação detalhada e os modos de recriação da mímesis corpórea direcionada à exploração do movimento dançado. Dessa forma, foram exploradas noções como eixo global, peso, qualidade e fluxo de movimento no espaço, abordadas a partir de princípios da Técnica Klauss Vianna, explorando ainda os direcionamentos ósseos do Processo dos Vetores como âncora e motor do movimento que nasce da observação (AMARAL, 2015, p. 67). Sobre os dez dias intensamente vividos ali, escrevi cartas endereçadas às imagens23 que mais se fixaram durante a investigação. Esse formato, sugerido por Colla, tornou-se também o registro final da disciplina e que agora é aqui compartilhado. Retornar àquelas imagens foi um reencontro com as matrizes que, impressas em sulfite, reacenderam certas memórias musculares, memórias da carne. Dessa materialidade celulose, o objetivo foi revisitá-las na tentativa de restabelecer aquela intimidade dos dias de março. Foi também uma tentativa de exercitar uma qualidade de escrita que procura diminuir 23 Cabe ressaltar, no entanto, que em um processo de investigação e criação por vias da Mímesis corpórea, as matrizes que geram as ações não se resumem apenas à imagens impressas em papel, como fotografias ou reproduções de obras de arte, mas também, por exemplo, na observação de pessoas e monumentos e em registros de áudio contendo diferentes qualidades timbrísticas de vozes variadas. Na experiência aqui vivenciada, foram realizados trabalhos de observação no centro de Barão Geraldo, bairro onde se encontra a sede do Lume.
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a distância entre a experiência da prática e o seu registro. É, assim, a escrita a própria prática e, mais do que chamá-la assim, eu a chamaria de registro gráfico, que para além da palavra abre espaço para que imagens-textos possam tomar corpo de parágrafos ou páginas. Portanto, convido-o a dançar também.
[Carta 1]
São Paulo, 9 de abril de 2015 À Bruxa, de Salvator Rosa24 [Figura 1]
Prezada Senhora...
Venho através desta, muito mais que cumprimentá-la, informá-la sobre um certo uso, uma certa ocupação momentânea realizada entre os dias 16 e 27 de março do corrente ano, sobre alguns de seus pertences. No entanto, já me desculpo aqui sobre a utilização dos termos “uso” e “pertences”, bem como “ocupação”, o que parecerá estranho e desrespeitoso assim que tudo for revelado, mas espero que compreensível, assim que esclarecido. Desejo também não acumular má sorte ou ser vítima de um feitiço, já que a senhora é uma Bruxa, uma respeitosa Bruxa, grifaria. Embora cronologicamente, estruturalmente e ósseamente diferentes, foi o seu corpo que ocupei nos dias acima citados. Sou ator e entre diferentes maneiras de trabalhar, de acessar outras corporalidades, empreendi-me nos últimos dias em um processo de Mímesis corpórea e Dança coordenado pelas professoras Ana Cristina Colla e Ana Clara Amaral – as quais são cúmplices, caso haja sanções. Mas sim, ocupei-me de sua imagem. Trata-se de uma ocupação por inteiro, de músculos e vísceras, de veias e nervos saltados, de desarranjo, desconforto, conforme Salvator Rosa a apresentou. Sem licença, ocupei-a sem medo, desmedidamente. Coloquei-me, incialmente, a registrar exatamente a sua imagem: o braço ao céu, numa imposição de força, o outro com os dedos devidamente enrijecidos como se segurasse algo, costas levemente arqueadas, de joelhos ao chão, a musculatura do pescoço em tensão, e um olhar para o céu com a boca aberta e pronta para um grito – era um grito! Repetidas vezes cheguei até a senhora nessa imagem, prestando atenção para que cada canto da minha musculatura estivesse como a sua: repuxados, como se um vento forte ampliasse essa força e, da terra, viesse outra força que levasse a figura toda para cima e para frente. Após esse momento inicial, que consistia nessa cópia fiel, a repetição de sua imagem foi me levando a outros estágios de percepção e, por indicações, pude dançá-la. Não se 24
Trata-se da obra, “A Bruxa” (1649) do pintor barroco italiano Salvator Rosa.
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trata aqui, novamente, de um desrespeito, uma vez que nem mesmo havia informado à senhora sobre esta ocupação, quanto mais de uma dança. Mas entenda senhora, quando aqui menciono dança não me refiro a uma dança codificada, quando então posso definir que estilo é este ou aquele, mas aqui chamo dança a fluência de sua imagem em mim que, borrada, distorcida e pouco a pouco transformada, foi sendo minha, foi deixando de ser a senhora, e sendo eu. Os seus ossos não cabem em mim, a sua idade não é a minha, o seu sexo não é o meu, não tenho seus seios caídos – com todo respeito, senhora, mas a idade é ingrata! – então tive que guardá-la dentro de mim, desse tamanho que sou. E a guardei cuidadosamente, embora a revirei muitas vezes, tentando me encontrar aí. A partir de sua imagem, pude alcançar outro nível de compreensão física, já que somos tão diferentes e meu objetivo era agarrar-me a este corpo aí. Na repetição da construção da sua imagem em mim, pude sentir algumas dores que talvez a senhora tivesse sentido no momento em que Salvator à registrou. Mas, terão dores as imagens? Embora, naquele momento, eu não tivesse parado para pensar sobre uma possível dor que talvez a acometesse, eu sentia dores reais, tamanha era a forma dilacerada de sua musculatura. Mas não adiantaria também tentar “socá-la” em mim, não caberia: uma pontinha de osso se sobressaltaria aqui ou ali, um dedo seria maior que o outro, sobraria espaços onde não deveria. O que eu devia era acomodá-la em mim, aparar alguns lados, ir lapidando a cada dia, me apropriando de sua imagem, até esquecer. E foi nesse momento, no momento em que me esqueci completamente da senhora, é que me vi ali dançando outra imagem, a minha própria, apropriada; uma prazer grande. Bem, minha senhora, espero que com esse relato tenha ficado clara a forma de uso ou ocupação de sua imagem por mim, da qual nos últimos dias parti no desejo de encontrar um outro lugar onde eu pudesse dançar. Agradeço sua existência e aparição em formato A4... Assim, despeço-me.
[Carta 2]
São Paulo, 10 de abril de 2015. Ao Boi da cara vermelha. [Figura 2]
Senhor Boi, tomo licença para escrever essas ligeiras linhas a fim de lhe esclarecer sobre alguns aspectos que, de alguma forma, vez ou outra, nossos caminhos se cruzaram. A escolha de sua imagem impressa para um processo de criação vivido por mim nos últimos dias não foi aleatória. Escolhi exatamente porque sua força, vigor e risco me acompanham há muito tempo e que, embora não se recorde, já tivemos um contato físico que décadas depois ainda reverberam em mim, toca a minha memória, a minha pele. 37
Poder tocá-lo nos últimos dias foi como reavivar algumas memórias e, por isso, segue o fragmento de uma delas. Antes, adianto que não houve um final nada feliz para essa memória: Meu pai era açougueiro, mas não um açougueiro vestido de branco, como vemos hoje. Branco, em açougues dos anos 80, em pequenas cidades do interior do país, estava sempre por detrás de uma sujeira comum: fio cinza-chumbo por debaixo das unhas, poeira e sangue. Todos os dias, um gado era sacrificado, multiplicando-se em dezenas de pedaços, vísceras, pelo, couro. No único matadouro da cidade – com menos de cinco mil habitantes – não havia vigilância, e a coisa toda era realizada segundo à lei de cada dono do boi. Eu, pequeno, era sempre levado por meu pai até este local de matar. Ainda na cabine da camionete que transportava o gado, ia assistindo o bicho por um vidro sujo que nos separava dele e da carroceria. Mesmo já de alguma forma acostumado com aquela cena, ia sempre crescente em mim um pânico, dado o transtorno da fera. Chegando no matadouro, a camionete encostava no brete e despejava o gado ali. Cada vez mais aflito, como alguém que sabe seu fim, o bicho (e sua baba!) aguardava, enquanto lá dentro os instrumentos de abate eram preparados: água com sabão – para que quando lá dentro, escorregasse e caísse no chão -, marreta – para acertar sua testa -, e facas, muitas – para perfurar, tirar couro, cortar carnes nobres e partir articulações. Uma serra grande também era sempre utilizada. Devidamente paramentado, meu pai aguardava a vinda do gado por um corredor. E a sequência, sempre a mesma: marreta na testa do bicho, que escorrega no chão ensaboado e cai transtornado. Faca-fio sangra o gado, que jorra. Como em um ritual de passagem, meu pai me fazia, ainda muito pequeno, a assistir o abate. Como se não bastasse, de forma a tornar a minha presença utilitária, alçava-me para cima do gado morto, dizendo: ah, vira homem, menino! Ali em cima daquele pelo quente eu pesava de forma a colaborar com a dissecação do bicho. Dele, jorrava um fio vermelho e quase sem fim. Eu, tentava tomar coragem para não decepcionar o meu pai que parecia me ver ali como símbolo de virilidade, um troféu, uma coroação do masculino. No alto, eu ensaiava uma quase brincadeira de balançar sobre o dorso ainda quente do animal; sempre sem sucesso. E foram muitos os bois em que fui colocado em cima, naquilo em que meu pai, talvez inconscientemente, considerava como um rito de ser homem.
Desde essa época, essa imagem vez em quando retorna. Ficou adormecida durante anos, confesso, mas fortemente reavivada quando novamente tocada em alguns processos de criação. Sou ator, e sempre estamos à procura de matrizes criadoras que nos afetam. Sejam imagens, sons, cores, sabores, memórias. E insistentemente tenho escavado sua imagem. O motivo maior dessa carta é para tentar esclarecer onde, dessa vez, encontrei-o em mim. Confesso que agora aconteceu de uma maneira inusitada, eu diria que até mesmo engraçada. A imagem que tenho de você é de uma “fuçada” em um monte de terra vermelha que ganhou o ar. Uma chuva vermelha provocada por sua força. Quando, nesse processo de criação detive-me à sua imagem para criar, a ideia de 38
movimento era tão presente que só foi possível chegar a um ponto final partindo desse mesmo movimento que a foto registrava. Eu precisava realizar a ação para chegar à imagem, como se não fosse possível alcançar uma espécie de verdade se assim não fosse. Entre todas as imagens trabalhadas, essa foi sem dúvida a que mais me induziu ao movimento anterior. Assim, fiquei pensando nas infinitas portas de entrada das imagens em um processo de Mímesis corpórea, de como cada uma delas acessa diferentes modos de agir. A única ação a tomar diante delas, acredito, é permitir-se. Inicialmente há certo cuidado com a estrutura física da imagem – em seu caso o movimento da região do pescoço e um certo peso dada a robustez – até que essas estruturas deixam de ser externas e passam a percorrer diversas vias internas: fora-dentro. E é somente no fluxo, na repetição, na tentativa de desvendar, na insistência é que passa a haver esse jogo, essa outra via, aquela pela qual o trabalho do ator tende sempre a apoiar-se à procura do que chamamos “orgânico”: dentro-fora. Talvez tenha sido a primeira vez que me atentei sistematicamente à existência desse contra-fluxo, dessas vias inversas, e de como ele é o próprio disparador da dança. Ao Boi, agradeço a colaboração de novas descobertas...
[Carta 3]
São Paulo, 13 de abril de 2015. À mulher de Henri de Toulouse–Lautrec.25 [Figura 3]
Te vi de costas e por mim já bastava. Sem saber como era sua face, imaginei-a: cansada! Em meu processo de criação a partir de sua imagem, tentei rasgar o papel para imaginar possíveis faces. Mas sempre cansada. Acho que o cansaço veio do cansaço, ou seja: ao tentar desenhar sua forma em mim, uma posição aparentemente simples de uma mulher sentada de costas apresentou-se como algo difícil de sustentar. As costas em uma musculatura toda firme, feito tábua, ísquios devidamente posicionados para suportar a posição, braços apoiados nas pernas em uma angulação precisa para cansar, doer. Então, o cansaço imaginado foi fruto do cansaço real em repetir. E na sequência, questionei-me como você havia sentado ali, qual caminho teria feito para chegar até ali e, depois disso, como teria levantado. Mas esse caminho, lá por mais tarde quando o processo se findava, concluí que era o encontro com as outras imagens, uma borrando a outra pra ser outra coisa, pra ser a minha própria imagem borrada. E como nos outros casos, com as outras imagens, eu também a esqueci. E foi bom! Saudações!
25 Trata-se de “A Toilette” (1896), uma das obras mais conhecidas do pintor francês pós-impressionista Henri de Toulouse–Lautrec.
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[Carta 4]
São Paulo, 13 de abril de 2015 À Miss Universo. [Figura 4]26
Moça! Quantos lados terá você? Respondo: muitos! A resposta por mim é dada – e acredito que certeira – pela experiência. Entre as muitas imagens que percorri para criar tantas outras, a sua colocou-me em uma posição de constante desiquilíbrio. Essa sua rotação de pernas, digna de grandes misses, é uma aula de como entender a precariedade do equilíbrio e de como essa desestabilização é interessante para buscar, na criação, outro tipo de apoio para manter-se. Foi a partir da construção dessa base precária que construí todo o restante, como se a casa tivesse que ser edificada daquele jeito, porque o alicerce só a favorecia de uma única maneira. Então, me vi em meio a muitos vetores, apontando para todos os lados, tracionando para frente, trás, lado, teto, chão e diagonais. E no topo da casa, um sorriso congelado, de uma beleza congelada. Uma imagem que me fazia quase acreditar que você só teria um único braço. Não, mas nenhuma miss universo seria maneta, não permitiriam. Então o seu braço direito se escondia lá atrás, onde ninguém via. Insisti em sua imagem em mim, e ela me rotacionava. Como se abaixo de mim existisse uma plataforma que de forma automática girava, me girava. E nesse giro, eu buscava montar e desmontar a sua imagem em mim, buscando pequenas ações. E nessas idas e vindas é que eu acabava por encontrar aquilo que eu não procurava, mas me vinha este caminho “entre”, que é onde eu moro para além das matrizes. E assim, eu agradeço por atentar-me ainda mais para a infinitude de lados que temos, mais ainda dos que eu já supunha compreender.
[Carta 5]
São Paulo, 13 de abril de 2015 À Malabarista de Facas. [Figura 5]27
Habilidosa Senhorita, 26 Essa matriz refere-se a uma fotografia da americana Sylvia Hitchcock, coroada como Miss Universo em 1967. 27 Essa imagem-matriz, possivelmente realizada entre os anos de 1890 e 1910, refere-se a uma artista circense malabarista de facas.
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De você herdei certa elegância. Sim, acredito que para ter a sua habilidade só mesmo uma elegante precisão é que sustenta estas facas entre você e o ar, passando por sua boca, mãos, ar. De você herdei ainda um olhar preciso que passeava entre os lados, uma visão periférica aguçada que me colocava aceso a todo instante, passeando por cada canto sem se perder. E dessa visão que “balança” me veio ainda um outro balançar da bacia. E quando andava, era como se lançasse estas facas e as visse voando a minha frente, acima e dos lados. Confesso que, na sobreposição de imagens as quais trabalhei nos últimos dias, eu nem sabia mais onde encontrá-la. E nesse caso, diferente do que aconteceu com as outras imagens as quais eu as esquecia, em seu caso eu a perdi. Você acabou existindo, mas escondida nas frestas das outras imagens. Mas entenda: eu não desisti de sua presença, não a esqueci, não a abandonei, eu a perdi. Perder é saber que a coisa ainda existe e que em algum canto ela se encontra, mas você não sabe qual. Valeria São Longuinho! Mas insisti em perdê-la. Agradeço por certo gingado!
[Carta 6]
São Paulo, 13 de abril de 2015. Para mim aos cinco anos. [Figura 6]28
De você, moleque amarelo, eu tive esse olhar de uma quase tristeza na hora de cortar o bolo branco de glacê feito pela Tia Baiana. Talvez a tristeza vinda de um cansaço por, provavelmente, estar desde bem cedo ansioso pela hora da festinha. Uma saudade da sua meninice! P.s.: É como se, criança, eu percebesse algumas novidades: o cabelo encaracolado da Bruna, as bolinhas da blusa da Priscila, a sobrancelha suada da Fernanda. O que eu vejo e qual o tamanho das coisas que vemos todos os dias mas não percepcionamos, não temos uma escuta para esse micro que se revela em outras dezenas de micro-macros?
28 A imagem aqui referida é a fotografia de uma festa de aniversário quando eu completava cinco anos de idade.
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[Carta Final]
São Paulo, 14 de abril de 2015. À Ana Cristina Colla.29
Cris! Escrevo para tentar traçar alguns caminhos percorridos nos últimos dias, quando estivemos experienciando novos modos de criar. Antes, gostaria de tornar claro um percurso dessa escrita. Como poderá notar, escrevi outras cinco cartas e um bilhete, endereçadas a seis imagens utilizadas durante o processo criativo. Estas foram as imagens que mais se fixaram em mim durante o trajeto e, por isso, quis me aproximar delas novamente, como se tentasse no plano da escrita, ser tocado por elas. Obviamente que se trata de outro toque, diferente de quando estive olhando para elas em sala de criação. Mas tentei “fuçá-las” na escrita como uma tentativa de desdobrar esse material. Dessa forma, me coloquei novamente a contemplar em separado cada imagem. Em um primeiro momento veio a lembrança do processo: como eu havia me posicionado frente a elas, como as coisas nasciam, como desenvolviam? Mas como as imagens, em sua materialidade, em sua “coisidade”, como mencionado por Heidegger30, também poderia ser capaz de suscitar outros aspectos. Então me reposicionei frente a elas e tentei revêlas, não para julgar meu próprio processo vivido na sede do Lume, na tentativa de: “Ah, poderia ter feito desse ou daquele jeito”. Mas de como essa imagem e a memória do vivido me suscitariam novos pensares. Foi então que notei a presença de alguns espaços onde, talvez, pudessem abrigar preciosidades no momento em que eu criava. Esses espaços, assim como em algum momento comentado por você em sala de criação, é o “entre”. Esse vão entre mim e a imagem, entre os fluxos, entre o dentro-fora/ fora-dentro. Em um olhar de fora para o processo vivido, este “entre” é, a meu ver, onde mora a dança, onde mora a diluição da imagem fotográfica e a minha imagem para ser outra(o). Como em um momento de abandono, de esquecimento, mas não de vazio. Pelo contrário, é um momento pleno de criação. Conforme Eleonora Fabião: “Entre” não é lá, nem cá; não é antes, nem depois; não é isto ou aquilo; não é eu, você, nem outro.” (FABIÃO apud BONFITTO, 2013, p. XIII) Nesse processo de criação via Mímesis Corpórea pude então por alguns momentos perceber onde se encontrava este vão e de como ele existia no momento do esquecimento. Entendendo “esquecimento” como aquele momento em que já não sabemos de onde 29 Na procura de pontos evidenciados nessa experiência, reservei uma última carta à Ana Cristina Colla, professora dessa disciplina, conforme já mencionado, na tentativa de friccionar questões emergentes dessa investigação. Por trazer aspectos variados do processo por via da Mímesis Corpórea, essa carta é também endereçada a você, que agora lê, em mais uma tentativa de compartilharmos dessa artesania criativa. 30 Sobre coisidade, vale grifar que para Martin Heidegger, uma das principais características da obra de arte é a coisidade da obra. O autor assinala que há uma necessidade ontológica da obra existir encerrada numa materialidade.
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nasceu aquilo que faço agora. No penúltimo dia do processo foi quando eu comecei a esquecer as imagens e me vi nelas e elas estavam em mim. Não existia, no entanto, uma força mental programada para esquecer, mas aconteceu. A isso poderia chamar de fluência, organicidade, presença: Esta fluência vem quando arredondamos os cantos das coisas, quando eu não chego “lá”, mas passeio por lá, encontro alis, navego entre as imagens como se as diluísse e os borrões se encontrassem para formar outras tantas imagens. (Notas pessoais do diário de bordo)
A este momento da criação responsabilizo a apropriação, pelo prazer em fazer, em agir. Acredito que é nesse instante de apropriação, quando uma espécie de olhar de fora se posiciona e quando esses olhares de fora e dentro se equalizam é que passa a existir essa apropriação do feito. É como se eu me visse fazendo, me divertisse com o que vejo e, ao mesmo tempo, com esse olhar de dentro, existisse um prazer por ser. É o que tenho dito quando estou criando: “agora eu já posso brincar com tudo isso”. E aquele espaço “entre” vai sendo preenchido: Apropriar para esquecer. Esquecer o endereço mas lembrar o caminho. O endereço é o suporte ósseo, cada imagem, a voz, o andar, o gesto, a ação. O caminho é o amálgama de todos eles. Nessa liberdade da escrita, aproveito para brevemente discorrer sobre este instante que me acomete agora, neste exato momento, às 11:23 horas do dia 14 de abril de 2015. Apenas um parágrafo como se fosse um aposto para dizer apenas o quanto também é prazerosa a possibilidade de escrever nesse fluxo contínuo. A escrita então se torna parte e não um dever para se relatar o vivido. Voltemos. No dia em que Rachel Scotti Hirson31 esteve conosco, uma nova maneira de acessar processos criativos se “presentificou” para mim. Nascia ali um novo caminho para que, certamente, fosse absorvido em minha prática. Essa maneira de percepcionar por detrás das coisas, dos objetos, e a possibilidade de enxergar novas vidas e fluência nesse lugar foi um estímulo para que outras qualidades viessem a interferir na criação. Foi nesse dia que surgiu uma coragem para as vocalidades – esse lugar tão difícil! – a partir de um outro grau de escuta para o que me rodeava, para o espaço, e ao mesmo tempo para um estado permanente de vida. Não havia ali um desejo de representar, mas um turbilhão de energia que me dançava: A constatação de uma qualidade particular da presença cênica nos levou a perceber a distinção entre técnicas cotidianas, técnicas do virtuosismo e técnicas extracotidianas do corpo. Essas últimas estão relacionadas à ‘vida’ do ator e do dançarino. Elas caracterizam essa ‘vida’ antes mesmo que ela comece a representar ou expressar algo. (BARBA; SAVARESE, 2012, p. 16) 31 Rachel Scotti Hirson, atriz do Lume e professora da Pós-Graduação em Artes da Cena, do Instituto de Artes da Unicamp, foi convidada a participar da disciplina durante um encontro. Em seu trabalho, Hirson ampliou as matrizes de criação coletadas até então. Como proposta, os atores deveriam observar algum monumento, ou seja, algo inanimado que fosse encontrado no caminho até a sede do Lume: uma árvore, uma placa, um poste, ou uma casa em ruínas, como foi a minha escolha. Dessa observação microscópica caberia um exercício de imaginação sobre os elementos constituintes da matéria: que vida haveria dentro das coisas?
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Esse trabalho vivido com a Rachel, bem como em todo o processo, mais do que querer visualizar verossimilhanças com as imagens, tentar enxergar o quanto fui fiel às matrizes, o quanto a minha voz era como a do Marcão Cabeleireiro32, opto por mergulhar nas fendas. E para mim, a fenda seria a dança, o momento anterior de se dizer que aquilo era um ser ficcional, mas antes, que aquilo era um estado de ficção, que não sendo mais eu, era alguma coisa entre uma imagem e eu, uma infinitude de contra fluxos, vai e volta, que me punha a dançar. Que vida tem dentro da coisa? Arrastar as seivas do fungo. Que cor ele tem? É verde, de pontas ainda mais verdes, que mais próximas do fora foram secando. Quanto tempo leva? Pra crescer, esparramar, secar as pontas, carcomer as pontas? Onde apoiar o líquido que corre dentro? Está na carne, no osso, dentro dele, lá no fundo. Esse sinal de vida escorre e dança. Dança-me! E daí o musgo dentro da casa em ruínas dança, e a casa dança... (Notas pessoais do diário de bordo)
Agradeço por dançar junto!
Referências:
AMARAL, Ana Clara. Dança e Mimese Corpórea. Revista Conceição/Conception. Campinas, v. 4, n. 2, p.65-76. jul./dez. 2015. BARBA, Eugênio. SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator: um dicionário de Antropologia Teatral. São Paulo: É Realizações, 2012. BONFITTO, Matteo. Entre o Ator e o Performer: alteridades, presenças, ambivalências. São Paulo: Perspectiva: Fapesp, 2013. FERRACINI. Renato. Café com Queijo: Corpos em Criação. São Paulo: Editora Hucitec, 2006. 32 Em um dos trabalhos de coleta de matrizes fui até o centro de Barão Geraldo, bairro onde se encontra a sede do Lume, e pude conversar, observar e registrar certas qualidades físico/vocais do Marcão Cabeleireiro, enquanto ele cortava o meu cabelo. Essas qualidades serviram para esse processo de recriação.
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Curriculum Vitae Resumido:
Moacir Romanini Junior Ator, performer, professor e pesquisador em artes da cena. Formado em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), em 2006, fez parte do T.O.U. Teatro durante sete anos. Atualmente é mestrando em Artes da Cena pela Unicamp, sob a orientação de Matteo Bonfitto. Em sua trajetória destaca como principais vivências as participações nas oficinas com Mário Biagini (Itália), Claudio Mássimo Paternó (Itália), Matteo Bonfitto (Performa), Carlos Simioni (Lume), Naomi Silman (Lume), Ana Cristina Colla (Lume), Fernando Montes (Colômbia), Inês Marocco (UFRGS) e Thais D’Abronzo (UEL).
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SER, HACER Y PARECER: REFLEXIONES SOBRE LA INVENTIGACIÓN ARTÍSTICA33 Paula Fernández (Facultad de Arte - UNICEN)
Resumen: El objetivo de este artículo es realizar una revisión crítica de diferentes concepciones de la Investigación Artística que puede ayudarnos a entender mejor la relación compleja que se establece entre la producción de arte y conocimiento en la universidad. Palabras llaves: Investigación artística, Universidad, Escritura, Texto performativo;
Abstract: The aim this article is to make a critical review of different conceptions of artistic research that can help us better understand the complex relationship established between the production of art and knowledge at the university. Keywords: Artistic research, University, Writing, Text performative;
El propósito de este artículo es revisar nociones y presupuestos vinculados a la Investigación artística en ámbitos académicos. Mi experiencia actual como artista, docente e investigadora de una universidad pública (Facultad de Arte – UNICEN) me lleva a preguntarme qué implica investigar en las carreras universitarias de arte, y si es posible hacerlo sin traicionarse a uno/a mismo/a. La sospecha de una traición – inminente o potencial – surge a partir de observar que si bien la mayoría de las personas vinculadas a la práctica artística que empieza un 33 Nota do Editor: a revisão ortográfica e textual é da própria autora; a formatação, citações e referências foram adequadas às normas da revista.
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estudio de grado o posgrado lo hace con la idea de seguir produciendo obras y crecer como artista, rara vez los proyectos de investigación se centran en el estudio de la propia práctica. ¿Será que los estudiantes no cuentan con las herramientas necesarias para afrontar una investigación basada en su práctica artística? ¿Será que este tipo de investigación carece todavía del reconocimiento y la legitimación necesaria para ocupar un lugar “libre de sospecha” en el ámbito universitario? Por suerte son muchos los artistas – investigadores que vienen pronunciándose sobre esta problemática. La fricción entre lo posible, lo conveniente y lo deseable en relación a la investigación artística, actualmente es tema de análisis en libros, artículos, seminarios, congresos, revistas especializadas y grupos de investigación. A continuación se propone una revisión crítica de diferentes concepciones de la Investigación Artística, que puede ayudarnos a entender mejor la relación compleja que se da entre la producción de arte y conocimiento en la universidad.
Investigar arte en la universidad
El teórico español Fernando Hernández sostiene que la Investigación Artística puede definirse en pocas palabras como un proceso de indagación que se hace público, y que los criterios exigidos por la academia para el desarrollo y la evaluación de este tipo de investigación responden a tres requisitos básicos. La misma debe ser: “Accesible: una actividad pública, abierta al escrutinio de los pares. Trasparente: clara en su estructura, procesos y resultados; (y) Transferible: útil más allá del proyecto específico de la investigación, aplicable en los principios (aunque no lo sea en la especificidad) para otros investigadores y contextos de investigación” (HERNANDEZ, 2006, p. 20). Teniendo en cuenta esta definición es posible afirmar que si bien toda práctica/obra artística – en tanto resultado de una indagación – es en sí misma una investigación; para ser aceptada como tal en el contexto universitario es necesario que el artista – investigador además de presentar el resultado (la obra) de cuenta del proceso que condujo a él. En otras palabras, una práctica /obra artística será considerada por la academia como investigación siempre que pueda fundamentar, sistematizar y comunicar mediante un discurso/texto el proceso de investigación. Básicamente esto es lo que diferencia al artista que investiga y genera conocimientos en la intimidad del taller, sala de ensayos o estudio; del artistainvestigador que trabaja/genera conocimientos en contextos académicos. Como sostiene Hernández, para el investigador académico dar cuenta del proceso implica al mismo tiempo darse cuenta del proceso, es decir, implica ser/hacer consciente parte de los recorridos y saberes inherentes a la práctica artística para sistematizarlos y comunicarlos. Actualmente la Investigación artística que se realiza en la universidad responde a dos perspectivas de estudio diferentes: la investigación sobre las artes y la Investigación desde las artes.
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Investigación sobre las Artes
Este tipo de investigación es la que cuenta con mayor desarrollo y legitimación en el contexto académico. En términos generales hace referencia a los estudios teóricos que efectúan los especialistas de las Ciencias Humanas y Sociales cuando toman al arte como objeto de estudio. De acuerdo con el investigador Henk Borgdorff, la Investigación sobre las artes: Se refiere a investigaciones que se proponen extraer conclusiones válidas sobre la práctica artística desde una distancia teórica. Idealmente hablando, dicha distancia teórica implica una separación fundamental entre el investigador y el objeto de investigación. (…) La investigación de este tipo es común en las disciplinas académicas de humanidades que se han ido estableciendo, incluida la musicología, la historia del arte, los estudios teatrales, los estudios de los medios de información y los de literatura. La investigación científica social sobre las artes pertenece igualmente a esta categoría. Más allá de las diferencias entre estas disciplinas (y también dentro de las propias disciplinas), las características comunes de este tipo de investigación y del acercamiento teórico a las mismas son la ‘reflexión’ y la ‘interpretación’. (BORGDORFF, 2010, p. 9).
Este tipo de investigación cualitativa también es entendida como Investigación guiada por el problema, ya que se inicia definiendo una pregunta o problema, y los protocolos académicos exigidos para su realización/evaluación se organizan en función de varios ítems más que visan: establecer hipótesis, delimitar el campo de estudio, explicitar el marco teórico, formular objetivos generales y particulares; como así también mencionar la metodología y los posibles aportes del estudio en cuestión. En este sentido, la profesora Sonia de Vicente (2006) advierte que dado que este tipo de investigación produce conocimientos sobre el arte desde la ciencia, es necesario que los artistas que se embarquen en ella lo hagan reconociendo la distancia que media entre su formación específica y las metodologías y marcos teóricos propios de las disciplinas científicas que utilicen. De no hacerlo, existe el riesgo de que el artista-investigador se frustre por no contar con los conocimientos/herramientas necesarias para llevar a cabo la investigación, o en su defecto, necesite invertir un tiempo considerable para adquirirlas.
Investigación desde las artes
En este tipo de estudio el investigador asume una perspectiva inmanente, es decir, no existe separación entre el investigador/a y la práctica artística. En consecuencia, la práctica no es un elemento opcional: es lo que fundamenta tanto el desarrollo como los resultados de la investigación. También conocidas como “investigación guiada por la práctica” o “investigación
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performativa”, estas indagaciones no reconocen una distinción entre teoría y práctica ya que consideran que ambas son parte y están inevitablemente fusionadas en las artes. En este sentido, la práctica artística no es tomada como objeto de estudio, sino que constituye el propio método de la investigación. Claramente este tipo de estudios son realizados por artistas-investigadores “desde el interior” del proceso de creación, y se centran en la experimentación (acción) y la interpretación. En las investigaciones performativas el conocimiento está cifrado en el saber hacer del artista. La particularidad de este saber radica en lo que Maurice Merleu-Ponty llama “conocimiento plasmado”, es decir, en el vínculo íntimo que el cuerpo entabla con el mundo que lo rodea, del cual emergen las acciones, sentimientos y pensamientos. Este entramado sensible o “relación encarnada” es en sí mismo conocimiento corporal prerreflexivo. En otras palabras, es conocimiento – sensorial, práctico, tácito o experiencial – anterior al conocimiento intelectual. En la misma línea de pensamiento, el investigador español Jorge Larossa Bondia señala que el saber de la experiencia tiene que ver con la elaboración del sentido o sin sentido de lo que nos sucede: Por eso, el saber de la experiencia es un saber particular, subjetivo, relativo, contingente, personal (…) que no puede separarse del individuo concreto que lo encarna. No está como el conocimiento científico fuera de nosotros, sino que tiene sentido solamente en el modo en que configura una personalidad, un carácter, una sensibilidad, o, en definitiva una forma humana singular de estar en el mundo, que a su vez es una ética (un modo de conducirse) y una estética (un estilo). (BONDIA, 2002, p. 27) 34.
Si bien la Investigación Performativa comparte muchos de los valores y las metodologías utilizadas tradicionalmente por la investigación cualitativa, se diferencia de esta en dos aspectos fundamentales: el punto de partida y la forma en que expresa sus resultados.
Investigación guiada por la práctica
En relación al primer punto, el profesor Australiano Brad Haseman, en su “Manifiesto para la investigación performativa” dice: Muchos investigadores guiados por la práctica no inician el proyecto de investigación guiados por la consciencia de “un problema”. En realidad, ellos son llevados por lo que se puede describir mejor como ‘un entusiasmo de la práctica’: algo que es emocionante, algo que puede no tener reglas, o, de hecho, algo que puede tornarse posible conforme lo permitan nuevas tecnologías o redes (sobre las cuales ellos no pueden tener certezas) Investigadores guiados por la práctica 34 Mi traducción: “Por isso, o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal (…) que não pode separar-se do individuo concreto em quem encarna. Não está como o conhecimento científico, fora de nos, mas somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo, que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo)” (BONDIA, 2002, p. 27).
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construyen puntos de partida empíricos a partir de los cuales la práctica continúa. Ellos tienden a ‘bucear’, comienzan a practicar para ver qué es lo que emerge. (HASEMAN, 2015, p. 44)35.
Esto no quiere decir que estas investigaciones carezcan de preguntas, sino que los problemas y preguntas aparecen como consecuencia de la práctica artística. El artista no inicia la investigación con el propósito de dar respuesta a preguntas concretas o sabiendo de antemano la metodología que va a utilizar, sino que es la propia práctica la que le permite ir identificando problemas y lo pone en el desafío de encontrar o crear las herramientas necesarias para solucionarlos. Para intentar resolver estos problemas el artista - investigador se vale de métodos de trabajo propios y también adapta métodos y herramientas derivas de otras disciplinas humanísticas. En este sentido, es común que la investigación guiada por la práctica utilice versiones de, por ejemplo, la observación participante, la investigación biográfica / autobiográfica/ narrativa y la autoetnografía, entre otros recursos. Por otro lado, la reciente y paulatina consolidación de la investigación performativa, está llevando a muchos artistas a convertir sus técnicas de trabajo en métodos de investigación rigurosos que pueden ser utilizados por terceros. Entre estos métodos emergentes cabe mencionar el “CLASP” y las “Auditorias artísticas”, creadas por el educador musical Keith Swanwick36 y el denominado “Proceso de articulaciones creativas” (PAC), concebido por las investigadoras inglesas Jane Bacon y Vida Migdelow.37
Resultados
Pero el punto más cuestionado en relación a la investigación performativa, no tiene que ver con cómo comienza o se desarrolla, sino con cómo expresa sus resultados. De acuerdo con Haseman, en las últimas décadas se produjo una expansión de la investigación performativa, lo cual llevó a muchos investigadores a reclamar que se reconozca a la producción artística como una forma singular de generar conocimiento, producto de una 35 Mi traducción: “Muitos pesquisadores guiados-pela-prática não iniciam o projeto de pesquisa com a consciência de ‘um problema’. Na verdade, eles podem ser levados por aquilo que é melhor descrito como ‘um entusiasmo da prática’: algo que é emocionante, algo que pode ser desregrado, ou, de fato algo que somente ode tornar-se possível conforme novas tecnologias ou redes permitam (mas das quais eles não podem estar certos). Pesquisadores guiados-pela-prática constroem pontos de partida empíricos a partir dos quais a prática segue. Eles tendem a ‘mergulhar’, começar a praticar para ver o que emerge.” (HASEMAN, 2015, p. 44). 36 El método CLASP consiste en la sistematización de recursos creativos – pedagógicos para enseñar música. Las siglas indican la integración de actividades básicas como la Composición, la Audición y la Performance (tocar/ejecutar) entrelazadas con los estudios Literarios (literature studes) y la adquisición de habilidades (skill aquisition). Este método es reconocido en casi toda Europa y es muy utilizado en instituciones educativas de Inglaterra y Brasil. 37 El PAC, es un modelo para el desarrollo de una práxis o práctica reflexiva, y para darle “voz” a la práctica. Concebido originalmente para estudiar trabajos vinculados a la danza y la coreografía, su objetivo es enriquecer las actividades creativas a través de la elaboración de los saberes tácitos de la práctica como investigación. Todo el modelo, organizado en seis fases diferenciadas, apunta a la concientización de los procesos creativos y los saberes implícitos. Más información: www.ChoreographicLab.org.
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forma de concebir e interpretar el mundo diferente de las formas reivindicadas por los paradigmas de investigación cuantitativos y cualitativos. En este sentido, mientras que la investigación cuantitativa enuncia sus resultados en forma de números, gráficos o fórmulas; la investigación cualitativa lo hace en forma de palabras. A diferencia de estos paradigmas, la investigación performativa: “Se expresa en forma de datos simbólicos diferente de palabras de un texto discursivo. Ellos Incluyen formas materiales de la práctica, de imágenes fijas y en movimiento, de música y sonidos, de acción en vivo e código digital”. (HASEMAN, 2015, p. 47). Esto implica que el artista – investigador privilegia el lenguaje y materialidad de su propia práctica como resultado de la investigación: el poeta defiende la supremacía del poema, el bailarín la de la danza, el actor/director la de la obra de teatro, el compositor la de música, etc. Los datos simbólicos funcionan performativamente, es decir, no solo expresan la investigación, sino que son/ encarnan en sí mismos la investigación. Muchos investigadores guiados por la práctica cuestionan el énfasis puesto en la solicitud de escritos académicos como medio para evaluar sus investigaciones. Creen que el hecho de expresar los resultados en forma de palabras distorsiona la comunicación de la práctica artística y resulta insuficiente para dar cuenta de su complejidad. Por otro lado los que se manifiestan a favor de pedir textos académicos como complemento de la presentación de obras artísticas suelen argumentar que estos escritos al responder a una estructura ordenada y detallada sirven para garantizar el acceso a un entendimiento intersubjetivo de la producción artística; y que de no contar con ellos “el arte” sería muy difícil de evaluar. Otros en cambio, creen que la exigencia/necesidad de un texto escrito se debe a que los académicos no confían en sus propias capacidades para evaluar este tipo de producciones, ni en la capacidad que tiene el arte de hablar con sentido - de forma crítica y compleja - en el mismo lenguaje en que se materializa. Sostienen que esto conduce a que los investigadores sean evaluados principalmente en función de los textos que escriben, en detrimento de la valoración de las obras que producen. En este sentido la eficacia del texto académico es cuestionada por el filósofo Dieter Lesage en los siguientes términos: La evaluación de un doctorado en artes debería ceñirse a la capacidad que tenga el estudiante de doctorado para hablar en el medio de su elección. Y si ese medio es el cine, o el video, o la pintura, o la escultura, o el sonido, o si el estudiante de doctorado desea mezclar diversos medios, obviamente hará falta que el tribunal disponga de formas de leer, de interpretar y de discutir muy distintas de las que exige un texto de corte académico. Imponer un medio al artista equivale a no reconocer que el artista es un artista. Un artista que desea obtener un doctorado en artes debería recibir entera libertad académica para elegir el medio que prefiera. Incluso en tal caso sería posible que escogiera el texto tal como ordinariamente lo entendemos, por ser el medio más adecuado de cara a sus intenciones artísticas. (LESAGE, 2010, p. 77).
En vista del reciente desarrollo de las investigaciones performativas, es necesario revisar la noción de texto y la función que cumple la escritura en las investigaciones
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artísticas contemporáneas.
La práctica / obra artística como Texto
A diferencia de las investigaciones cualitativas, en las investigaciones performativas la noción de texto no se limita al uso de palabras. Como sostiene Haseman: “Cuando una forma de presentación es usada para dar cuenta de una investigación, puede ser considerada un texto, de la misma forma que cualquier objeto o discurso cuya función es comunicativa puede ser considerado un texto” (HASEMAN, 2015, p. 46). Esta forma de entender el texto, tiene al filósofo Jaques Derrida como uno de sus máximos precursores. Su filosofía supone una modificación sustancial en la forma tradicional de concebir el texto, y por consiguiente, también la escritura y la lectura. Desde la perspectiva de este autor el concepto de texto no se limita ni a lo gráfico, ni al libro, ni al discurso, ni tampoco a las esferas semántica, simbólica, representacional o ideológica. Cuando Derrida afirma que “no hay nada fuera del texto” quiere decir que texto es todo lo que significa, es decir, todo o cualquier cosa que pueda ser interpretada: “(…) todos los referentes, toda la realidad, tienen la estructura de un rasgo diferencial, y no es posible hacer referencia a esa ‘realidad’ si no es en una experiencia interpretativa. Esta última no posee sentido y tampoco lo asume, salvo en un movimiento de referencialidad diferencial”38. El texto no contiene una “verdad interna” estable y precisa; sino que su sentido depende de las diferentes lecturas/interpretaciones que se hagan de él. Leer un texto implica atender tanto al texto como al contexto al que pertenece o del que participa. Por lo tanto leer supone siempre un movimiento continuo de re-contextualización. El texto no es concebido como una base firme donde fijar el conocimiento o la experiencia vivida, sino como una invitación al diálogo, siempre inestable y frágil, ya que se renueva continuamente dando lugar a una proliferación infinita de significados. Desde esta perspectiva, los datos simbólicos, las prácticas y obras artísticas son entendidos como textos. Derrida expande la noción de escritura “(…) para designar todo aquello que da existencia a una inscripción en general, ya sea literal o no, incluso si aquello que distribuye en el espacio es ajeno al orden de la voz: la cinematografía, la coreografía, cómo no, pero también la “escritura” pictórica, musical, escultórica”. (DERRIDA apud LESAGE, 2011, p 82).
La escritura como réplica del movimiento creador
Ahora bien, como ya fue dicho, al artista - investigador no le alcanza con presentar la 38
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obra como texto, sino que tiene que poder además hacer público el proceso de investigación. En este sentido las palabras y los distintos documentos del proceso39 resultan decisivos para comprender la experiencia vivida por el investigador, ya que posibilitan tanto el registro como la reflexión y articulación de su trabajo de investigación. Históricamente los artistas han utilizado diversos formatos para registrar y reflexionar sobre sus procesos creativos. En este sentido, las cartas, diarios íntimos, bitácoras o cuadernos de ensayo, notas sueltas, dibujos, bocetos, gráficos, manifiestos, etc., son claros ejemplos de textos artísticos escritos por artistas desde el arte. Algunas muestras célebres de este tipo de escritura son las anotaciones y estudios de Leonardo da Vinci, las cartas de Van Gogh, las trascripciones de ensayos realizados por los discípulos de Stanislavski y Grotowsky, los manifiestos vanguardistas, las reflexiones de Artaud, los escritos de Paul Klee y Kandisky sobre la pintura, etc. Actualmente, el uso de tecnología aplicada al registro y análisis de la experiencia artística permite disponer de otros recursos de escritura como, por ejemplo, fotos, filmaciones, grabaciones de audio, blog, videos y páginas web, teleconferencias, etc. De esta forma, el texto que el artista-investigador compone para comunicar su indagación se va configurando como un entramado sensible en el que interviene su propia voz (en primera persona), diferentes materiales de la práctica y documentos del proceso de creación. Como señala Juan Carlos Arias, el texto no es una simple disertación teórica sobre la práctica artística: no es un texto que pueda ubicarse antes, en tanto plantee los principios de composición, o después, como una especie de crítica de la obra misma. La relación entre texto y práctica es más compleja: el movimiento de la escritura replica el movimiento constitutivo de la práctica misma. Según este autor: El texto no explica la lógica constitutiva de la obra, sino que pone en escena dicha lógica en la escritura misma y no sólo en los contenidos que articula. Así, el texto no es simplemente una producción paralela en la que se da cuenta, de una u otra manera, de la creación artística. El texto es una réplica de la lógica misma de dicha creación. Funciona como una relación de resonancia a la manera en que dos cuerdas se mueven gracias al mismo impulso por una especie de continuidad del movimiento, haciendo imposible discernir cuál mueve a cuál. En música, la noción de coloratura podría relacionarse con este tipo de relación. La coloratura se refiere a un uso de la voz distinto a una función silábica. La voz se usa como un instrumento más que como la enunciación de un texto que acompaña o es acompañado por la instrumentación. Lo interesante de esta noción es que hace de la voz una función cromática que puede llegar, en muchos casos, a confundirse con los instrumentos sin llegar a perder, sin embargo, su singularidad. La relación entre voz e instrumentos es de réplica, sin que ninguno llegue a subordinar al otro. (ARIAS, 2010, p. 7). 39 De acuerdo con Cecilia Almeida Salles la naturaleza de los documentos de proceso es amplia y variada, de modo que es posible encontrar experimentación en borradores, tachaduras, gráficos, plantas escénicas, guiones, proyectos, ensayos, correspondencias, diarios personales, registros audio-visuales, fotos, y todo material que acompañe el movimiento de producción de la obra -es decir- que no sea generado después de su realización.
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En la escritura performativa el estilo tiene importancia en sí mismo. La escritura se transforma en un recurso a través del cual se crea o re crea experiencia. El discurso artístico, como entramado de palabras, documentos y datos simbólicos (imágenes, sonidos, acciones en vivo, etc.) supone nuevas estrategias para entender la subjetividad creadora. Su objetivo no es explicar la realidad sino ofrecer elementos que permitan comprender las conexiones que existen entre la obra, el artista y el mundo. Como señala Hernández (2006), la escritura performativa no propone hablar de uno mismo, sino “a partir de uno mismo” buscando la corporeización del cuerpo que narra y la implicancia de los lectores, auditores o público en la experiencia fenomenológica de configuración de significado, en el escenario performativo de documentación. En este sentido, sus objetivos se asemejan a los objetivos del arte: busca “tocar” al espectador, evocar emociones, y proporcionar diferentes perspectivas para ver el mundo. Por lo tanto la validez de estos textos se puede determinar a partir de la capacidad que tengan para generar una experiencia transformadora en el lector/auditor, es decir, por aquello que la escritura provoca o evoca en el lector, lo cual le permite implicarse en un diálogo que considera auténtico, creíble y posible. Claramente, si la escritura es mediocre se corre el riesgo de que el lector/auditor no llegue a empatizar con la propuesta del artista – investigador y el diálogo quede trunco o resulte pobre. Así entendido, el texto performativo evita por todos los medios caer en la catarsis personal, el informe técnico/burocrático o la justificación indulgente. La escritura artística le demanda al artista-investigador un esfuerzo creativo inteligente para exteriorizar el conocimiento plasmado en su práctica y diseñar estrategias eficaces para su comunicación. Esfuerzo que bien vale la pena, ya que como advierte Vidiella: La intención de la escritura performativa (…) sería hacernos repensar sobre nuestras posiciones, localizaciones, sobre nuestros roles como creadores y/o espectadores, colapsando las fronteras entre artista - obra de arte; artistaespectador y obra- espectador. La relación entre artista, sujeto y público nos anima a pensar sobre los métodos a través de los cuales fabricamos historias e historias del arte, para repensar los modos en los que comprendemos cómo tiene lugar el significado y abriendo de ese modo la subjetividad como algo particular e implicado en redes de relación (VIDIELLA apud HERNANDEZ, 2006, p. 31).
Por último, teniendo en cuenta lo expresado hasta acá, resulta claro que la paulatina inserción de la investigación Performativa en los estudios académicos pone al artista investigador ante nuevos y exigentes desafíos narrativos. La eficacia de este discurso depende de la articulación coherente de los relatos de los sujetos que intervienen en la práctica, los datos simbólicos, las referencias con las que dialogan los artistas y el contexto desde el que se sitúan; cuidando que el estilo de escritura y el texto -como entretejidofuncione como réplica de su labor artística. Del mismo modo, esta línea de investigación para tener posibilidades de proyección y sentido, requiere que la universidad revise críticamente el lugar y la perspectiva logocentrista desde la que actualmente es concebida y encorsetada la investigación en artes.
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Bibliografía:
ALMEIDA SALLES, C.: Gesto inacabado: Processo de Criação Artística. São Paulo: Annablume, 2004. ARIAS, J. C.: La investigación en Artes: El problema de la escritura y el “método”, en Cuadernos de Música, Artes Visuales y Artes Escénicas. Bogotá. Pontificia Universidad Javeriana. Vol. 5, N°2. 2010. Pp. 5-8. BONDIA, J. L.: Notas sobre experiencia e o saber da experiencia. In: Revista Brasileira de Educação. Trad. GERALDI, W. J. n° 19. São Paulo: ANPEd, 2012. p. 20-28 BORGDORFF, H.: El debate sobre la investigación en las artes. In: Cairon: revista de ciencias de la danza. ISSN 1135-9137, nº 13, 2010. p. 25-46 DERRIDA, J.: De la gramatología. México: Siglo XXI, 1998. DE VICENTE, S.: Arte y Parte: La controvertida cuestión de la Investigación Artística. In: Gotthelf, René: La investigación desde sus protagonistas. Mendoza: EDIUNC, 2006. LASAGE, D.: Portafolio y Suplemento. In AAVV: En torno a la investigación artística. España: Universidad Autónoma de Barcelona, 2011. HASEMAN, B.: Manifesto pela Pesquisa Performativa. In: Resumos 5° SPA. Sao Paulo: USP, 2015. p. 41-51 HERNÄNDEZ, F.: Campos, Temas y Metodologías para la Investigación Relacionada con las Artes. In: Bases para un debate sobre Investigación Artística. España: Ministerio de Educación y Ciencia, 2006. p. 9-42.
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Curriculum resumido de la autora:
Paula Fernández Es directora de teatro. Se formó como Actriz, Profesora de Teatro y Licenciada en Teatro, en la Facultad de Arte de la Universidad Nacional del Centro. Es Magister em Artes cênicas, (UFBA – Salvador. Brasil). Actualmente es doctoranda de la Universidad Nacional de las Artes (UNA. Buenos Aires. Argentina) y trabaja como Profesora Asociada en las cátedras Dirección Teatral y Seminario de Investigación e integración teatral, de la carrera Licenciatura en Teatro de la Facultad de Arte (UNICEN) en la ciudad de Tandil. Argentina. paunandez@hotmail.com
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DISCURSOS MENORES: FEMINISMOS E PERFORMANCE ARTE Ludmila Castanheira (UEM - Departamento de Música, Artes Cênicas Licenciatura em Teatro, Universidade Estadual de Maringá)
Resumo: Este artigo busca por relações entre as epistemologias feministas e a performance arte. Sublinha pontos de contato entre ambos os campos e defende, como traço comum entre eles, o aspecto “menor”, característico das subjetividades tornadas marginais pela centralidade da figura masculina na construção dos saberes válidos e validados. Palavras-chave: performance arte; epistemologias; feminismos;
Abstract: This article aims to relations between the feminist epistemology and the performance art. Emphasizes contact points between both fields, and defends as common thread between them, the “minor” aspect, characteristic of marginal subjectivities made by the centrality of the male figure in the construction of valid and validated knowledge. Keywords: performance art; epistemologies; feminism;
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Marcela esteve nas neves do norte. Em Oslo, uma noite, conheceu uma mulher que canta e conta. Entre canção e canção, essa mulher conta boas histórias, e as conta espiando papeizinhos como quem lê a sorte de soslaio. Essa mulher de Oslo veste uma saia imensa, toda cheia de bolsinhos. Dos bolsos vai tirando papeizinhos, um por um, e em cada papelzinho há uma boa história para ser contada, uma história de fundação e fundamento, e em cada história há gente que quer tornar a viver por arte de bruxaria. E assim ela vai ressuscitando os esquecidos e os mortos; e das profundidades desta saia, vão brotando as andanças e os amores do bicho humano, que vai vendo, que dizendo vai. (GALEANO, 2012, p. 17). A afirmação de epistemologias – maneiras/pensar/sentir/conhecer/ver o mundo – feministas, a princípio, pode causar alguma estranheza. Como se se estivesse querendo criar categorias anteriores ainda ao conhecimento para, então, só depois, discorrer sobre os nossos modos de conhecer. Como se estivéssemos, enfim, oferecendo mais entraves que possibilidades de fruição. Para acolher a pungência e especificidade das epistemologias feministas é preciso desdenhar de alguns lugares comuns bastante arraigados, além de nos avaliar profundamente em relação às nossas condutas. Entre elas os sujeitos a quem damos autoridade para falar: Seria possível encontrar, ao redor do mundo, uma série de outras dimensões políticas não registradas pelos discursos historiográficos hegemônicos. É fato que este silenciamento das vozes e gestos subalternos tem sido, em grande medida, o responsável pela construção de versões transparentes de fatos históricos ligados aos sujeitos geográfica, racial e sexualmente não hegemônicos. (MOMBAÇA, [2015] 2016, s/p). A figura masculina ocupa proficuamente a centralidade na constituição do saber ocidental, está naturalizada nesse lugar. Assim, a insurgência de vozes advindas das regiões tornadas adjacentes – pela aceitação tácita do masculino central – tem comumente soado como problematização vazia. As críticas feministas alertam-nos sobre a artificialidade desse modelo construído e, consequentemente, manifestam a possibilidade de desarticulá-lo: Não é demais reafirmar que os principais pontos da crítica feminista à ciência incidem na denúncia de seu caráter particularista, ideológico, racista e sexista: o saber ocidental opera no interior da lógica da identidade, valendo-se de categorias reflexivas, incapazes de pensar a diferença. Em outras palavras, atacam as feministas, os conceitos com que trabalham as Ciências Humanas são identitários e, portanto, excludentes. Pensa-se a partir de um conceito universal de homem, que remete ao branco-heterossexual-civilizado-do-Primeiro-Mundo, deixandose de lado todos aqueles que escapam deste modelo de referência. Da mesma forma, as práticas masculinas são mais valorizadas e hierarquizadas em relação às femininas, o mundo privado sendo considerado de menor importância frente à esfera pública, no imaginário ocidental. (RAGO, 1998, p. 4).
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As epistemologias feministas, em suas diversas abordagens, opõem-se a um modo masculino de fazer ciência e de validar conhecimentos, revestido de suposta isenção, concebido em condições ideais e separado do mundo pelas paredes dos laboratórios, indicador de verdades estáveis e universais. Ainda que estejamos mais e mais tornando familiares as pautas das ditas “minorias” é comum que se pense no “feminismo” como uma noção unificada, cuja função é defender o empoderamento das mulheres. Há muito cientes da impossibilidade de se oferecerem enquanto abrangências universais, os feminismos proliferam em frentes de investigação sobre as diversas formas de subjugação feminina, determinações de papéis de gênero, questionamentos acerca da definição de mulher. O feminismo, homólogo aos modos de ser em performance, por sua vastidão e pluralidade, não admite discursos generalizantes, mas convida à busca por pontos de contato entre as vertentes que lhe constituem. Postos em perspectiva, os feminismos e a performance incitam, ambos, a uma determinada conduta. Inseparável da vida cotidiana e comum que impele à ação a assumir determinadas posturas: Nada de querer dizer a arte pela teoria, mas o avesso: dizer a teoria como uma forma de arte e, portanto, rastrear nos limites da forma (de pensar, de articular e de escrever teoria no marco das ditas ciências sociais) um outro pensamento, como, de certa maneira, alguns estudos (práticos e teóricos) em arte tem procurado fazer, pelo menos, desde o começo do século passado (MOMBAÇA, 2016, p. 351). Perceber a limitação dos modelos (artísticos, socioculturais) e tomar para si a incumbência de desestabilizá-los, parece ser um traço comum aos feminismos e à performance arte. A seguir, uma explanação sobre modos específicos de desmontar, debochar, dobrar as insuficiências a que nos referimos. A perspectiva culturalista professa diferenças cruciais entre homens e mulheres, que engendram modos de agir característicos, especialmente no trato com questões morais: enquanto homens se aproximariam delas segundo noções de isonomia e justiça, as mulheres, por terem historicamente sido desprovidas da participação protagonista, teriam desenvolvido maneiras de cuidar e mediar conflitos, evitando choques diretos. Esse aspecto conciliatório teria gerado uma espécie de contracultura: modos criativos, sem hierarquias e não belicosos de fluir o cotidiano: Para as culturalistas, as experiências da mulher como aquelas que cuidam, alimentam e pacificam, permitiu-lhes criar uma cultura diferente e articular diferentes epistemologias, como também, valores culturais estéticos alternativos. A diferença se torna, então, um conceito-chave para significar que as mulheres têm uma voz, psicologia, e experiências de amor diferentes. Essa ‘contra-cultura’, fundada no mundo de cooperação, participação e sensibilidade da mulher quando às necessidades dos outros influencia, por sua vez, o estilo do seu discurso ao
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fazê-lo mais pessoal, relacional e ligado ao contexto do que a linguagem do homem (COSTA, 1994, p. 153). Entre os muitos chamamentos presentes nos enunciados das epistemologias feministas, um dos mais caros, certamente, é o de que nenhum discurso é isento: todos eles estão circunscritos e são cooptados por determinados contextos que nos permitem e impedem de proferi-los. No caso das vozes de mulheres, historicamente preteridas na constituição dos saberes legitimados pela cultura ocidental, podemos reformular a demarcação do lugar de fala conforme o conhecido slogan cunhado por Hanisch (1969), em artigo de mesmo nome: “O pessoal é político”. Essa proposição, tornada lema da chamada “segunda onda” feminista (19601980), milita pela urgência de trazer a público questões que as convenções sociais cuidavam de manter em âmbito privado. Especialmente as relacionadas ao silenciamento feminino, tais como a “obrigatoriedade” do sexo matrimonial. Hanish responde ao “espírito de tempo” e põe em evidência um universo considerado menor, menos importante, restrito aos quartos e camas, para advertir sobre como o que se processa aí é determinante para a reviravolta política capaz de romper com a submissão feminina. O jargão bastante conhecido entre as feministas, transportado para a arte da performance, tem instaurado no corpo o lugar de publicização das violências e reivindicação de pautas igualitárias: O corpo de várias artistas feministas é o suporte da obra, o corpo delas se converte na matéria prima com que experimentam, exploram, questionam e transformam. A performance é um gênero que permite às artistas buscar a definição de seu corpo e sexualidade sem ter que passar pelo crivo do olhar masculino. As artistas feministas que realizam performances se apresentam, elas mesmas, em uma ação do tempo real, transmutando seus corpos em significados e significantes, em objetos e sujeitos da ação. Resinificando a relação entre corpo e arte. (PEÑA, 2015, p. 41)40. A performance feminista, ao tomar o corpo como resistência, solicita atenção às subjetividades historicamente descritas em contiguidade à figura masculina, já tão desgastada e num colapso que lhe obriga a reinventar-se. O corpo feminino, biológico ou não, em performance, requesta a autonomia tão tacitamente concedida em relação aos homens e seus corpos e que relega o feminino à sistemática inquirição pelo Estado, a Igreja, as Leis e as instituições balizadoras das socializações eminentemente masculinas. Casey Jenkins, em “Vaginal Knitting” (cf. Winter, [2013] 2016), durante vinte e oito 40 Tradução nossa para: “El cuerpo de varias artistas feministas es el soporte de la obra, su cuerpo se convierte en la materia prima con el que ellas experimentan, exploran, cuestionan y transforman. La performance es un género que permite a las artistas buscar la definición de su cuerpo y sexualidad sin tener que pasar por el tamiz de la mirada masculina. Las artistas feministas que realizan performances se presentan a ellas mismas en una acción del tiempo real, convirtiendo sus cuerpos en significados y significantes, en objetos y sujetos de acción. Resinificando, con todo, la relación entre cuerpo y arte” (PEÑA, 2015, p. 41).
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dias, sentou-se no mesmo ponto de uma galeria de arte, vestindo uma camiseta, de modo que a parte de baixo do corpo estivesse nua. Inseriu porções de fios de lã branca na vagina a cada sessão de trabalho, deixando uma ponta para fora do órgão. A partir dessa ponta, tricotou uma faixa contínua saída de dentro de corpo, na qual fez emendas nos dias subsequentes. Casey Jenkins repetiu a ação também nos dias em que esteve menstruada, permitindo que o sangue tingisse a lã e oferecesse, também, um gráfico visual de seu ciclo. Conforme a faixa de tricô tornou-se maior, ela a pendurou em cabides presos ao teto da galeria. Os vídeos da performance, disponíveis nos canais da internet, têm milhares de acessos, além de comentário invariavelmente violentos sobre o trabalho. Aparentemente, as reações se contrapõem à reivindicação de autonomia sobre o próprio corpo – algo que, para mulheres, é vetado. A requisição de Jenkins fazse por intermédio do tricô: artesanato, convite à lentidão contrária às dinâmicas industriais do tempo otimizado. A artista traz a público uma ação vista como secundária e restrita ao aspecto privado ou a pequenos círculos de mulheres: uma prática “menor” que, no contexto, adquire a característica do “tudo ou nada”, própria das falas e localidades “menores”, conforme delineado por Deleuze e Guattari (1977), referindo-se à literatura menor de Kafka, estrangeiro em seu idioma materno: A literatura menor é totalmente diferente: seu espaço exíguo faz com que cada caso individual seja imediatamente ligado à política. O caso individual se torna então o mais necessário, indispensável, aumentado ao microscópio, na medida em que uma outra história se agita nele... O que no seio das grandes literaturas ocorre em baixo e constitui como que uma cave não indispensável ao edifício, aqui ocorre em plena luz; o que lá provoca um tumulto passageiro, aqui não provoca nada menos que uma sentença de vida ou de morte. (DELEUZE E GUATARRI, 1977, p. 26). Em diferentes instâncias, os feminismos e as performances parecem falar a partir de dentro das coisas e de uma perspectiva impregnada de contato. As ações tecem-se encrustadas na carne a partir de um ponto de vista específico e não ocupado com a isenção. Não pode, contudo, retornar à perspectiva culturalista sem considerar as críticas seu caráter restritivo. Ao preconizar diferenças fundamentais entre homens e mulheres, e a fundação de uma contracultura feminina derivada das funções de cuidar, manter, mediar... A teoria culturalista estaria devolvendo a mulher aos postos designados a ela pelo patriarcado. Estaríamos de novo obedecendo à docilidade que nos afasta do protagonismo e nos impede de desempenhar papéis além daqueles convenientemente atribuídos a nós. Além de trazer, mais uma vez, a ideia obsoleta de que existem “coisas de homem” e “coisas de mulher”.
Em alguns aspectos, a série “Sangro Pero no Muero”, de Isa Sanz (2016), parece coadunar com essa perspectiva. Entre as diversas ações realizadas, a artista deita-se nua no chão durante um dia inteiro e deixa que o sangue menstrual escorra pelo piso, formando
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uma moldura ao redor do corpo enquanto registra o trabalho em vídeo. Em outras ocasiões, marca cada um dos Chakras com um ponto no corpo, feito de sangue menstrual. Pede que outras façam o mesmo e registra a própria e a ação delas em fotos. Pinta e pede a outras mulheres que pintem e/ou escrevam em superfícies brancas com sangue menstrual, e registra estas ações em fotos e vídeos. Ao tomar o sangue menstrual como mote, Sanz relaciona os ciclos femininos aos ciclos da natureza, situando uma vez mais o corpo feminino no campo daquilo que deve ser domesticado:
Nas narrativas colonialistas dominantes, as mulheres e os ‘indígenas’ que não têm acesso ou carecem de tecnologia são descritos como se fizessem parte da ‘natureza’, e se transformam, por essa razão, nos recursos que o ‘homem branco’ deve dominar e explorar. (PRECIADO, 2015, p. 148).
Seria injusto, porém, reduzir o conjunto de ações de “Sangro, pero no muero” a essa leitura possível. Como é característico da arte, o trabalho promove chamamentos a perspectivas distintas que coabitam em conflito. Do ponto de vista político, da aliança entre mulheres, tais ações são desestabilizadoras da ordem: “Isa Sanz explora o vínculo entre mulheres, um laço que até pouco tempo, quanto mais estreito e intenso, mais era considerado subversivo” (SANZ, 2016, s/p)41. As epistemologias feministas avançam em discussões que tendem tanto à radicalidade quanto à inclusão, corrigem com apêndices desviantes as teorias marxista e pós-estruturalista; opõem-se, irmanam-se, discutem as teorias queer, reivindicam, enfim, a legitimidade das sujeitas (ou anti-sujeitas) tornadas marginais enquanto produtoras de conhecimento: Que tipo de papel constitutivo na produção do conhecimento, da imaginação e da prática podem ter os novos grupos que estão fazendo ciência? De que forma esses grupos podem se aliar com os movimentos sociais e políticos progressistas? Como se pode construir alianças políticas que reúnam as mulheres ao longo das hierarquias tecnocientíficas que nos separam? Haverá formas de se desenvolver uma política feminista de ciência e tecnologia, em aliança com os grupos de ação antimilitares que advogam uma conversão dos equipamentos científicos para fins pacíficos? (HARAWAY, 2009, p. 75-76). Haraway sustenta o corpo ciborgue como caminho para o impasse residente no assujeitamento feminino. Destaca nossos aspectos pós-humanos assente em nossa simbiose cada vez mais efetiva com as máquinas e sistemas de comunicação. Para a autora, ao caminharmos para a constituição ciborgue, meio orgânica, meio silício, pouco a pouco o sexo e o gênero tornam-se desimportantes. Há críticas a esse paraíso orgânico-maquínico vindouro e elas referem-se à percepção de que nossa aproximação com as tecnologias, não soluciona, por si só, 41 Tradução nossa para: “Isa Sanz explora el vínculo mujer/mujer; un lazo que, hasta hace no mucho tiempo, se consideraba, cuanto más estrecho e intenso, más subversivo” (SANZ, 2016, s/p).
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a disparidade de direitos entre homens e mulheres. Se ainda assim, tomássemos a simbiose organismo-máquina como solução, que participação teriam nessa miríade os países em que mais do que o acesso às máquinas, a fome ainda é um impedimento à constituição de subjetividades autônomas? Embora convergentes quanto à afirmação de perspectivas não identitária – e, consequentemente, à negação de um modelo universal de homem que ditaria um modelo universal de mulher – as epistemologias feministas brevemente apresentadas aqui têm diferenças fundamentais e refletem o contexto das sociedades em que foram cunhadas. Não se trata de defender uma perspectiva excludente e ressentida quanto à hegemonia americana: celebremos que os países bem alimentados e despreocupados com questões que, para nós, são fundantes, possam nos oferecer a possibilidade de vislumbrar existências livres das determinações de gênero. Contanto que, com o mesmo empenho, falemos a partir das condições sociais características da América Latina – na qual, a despeito de nosso desconforto, se localiza o Brasil – onde a discussão e reafirmação de gênero são, ainda, mais do que pertinentes, necessárias. Do nosso ponto de vista sudaca, talvez nos reste, tanto nos feminismo quanto na performance, abraçar a noção de fracasso. Não pelo conformismo, mas pela guinada de empoderamento que toma o que dizem de nós com intuito de nos desqualificar, como dobra a partir da qual nos fortalecemos: Apresentar-se como artista fracassadx me pareceu, nesse caso, não tanto uma forma de inscrição subalterna, mas, sobretudo, uma maneira de indicar a via do fracasso como linha de fuga dos “projetos de artista bem-sucedido” (identidades prontas-para-consumir que a rede de sistemas artísticos projeta e difunde), ou seja: como via de criação (MOMBAÇA, 2016, p. 343). Longe de representar consensos, à sua maneira, cada uma das epistemologias feministas, bem como os trabalhos de performance descritos tentam, como a mulher descrita na epígrafe, retirar dos bolsinhos de sua saia os papéis nos quais pode-se ler: “as mortas e esquecidas, que só estão por arte da bruxaria”. A elas me alio na tentativa de que seu fôlego e o meu façam coro. Assim, festejo certo orgulho de pertencimento a aspectos menores, secundários, desimportantes.
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Referências:
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ORIGENS E HERANÇAS DA EXPRESSÃO DO ROSTO DOS BAILARINOS NA FORMAÇÃO DA DANÇA CONTEMPORÂNEA CARIOCA Gabriela Machado Freire Tournillon Alcofra (IA/UNICAMP); Julia Ziviani Vitiello (IA/UNICAMP)
Resumo: Este artigo investiga possíveis heranças estrangeiras, estéticas e estilísticas na expressão do rosto dos bailarinos na dança contemporânea carioca, levando em consideração o período de consolidação desse movimento no Brasil. Para isso, faz uma viagem histórica em três países de influência mundial, Estados Unidos, França e Alemanha, analisando a relação entre a expressão do rosto com seus contextos sociais e artísticos, pontuando os artistas que imigraram para o Brasil e os festivais internacionais do final do século XX, que contribuíram tanto para o intercâmbio de conhecimento quanto para a profissionalização da dança contemporânea carioca. Palavras-chave: Dança; Rosto; Expressão; Expressividade; História;
Abstract: This article investigates possible foreign, aesthetic and stylistic heritage, in the expression of the faces of the dancers in contemporary dance, taking into consideration the period of consolidation of this movement in Brazil. To do so, makes a historic journey in three countries of world influence, United States of America, France and Germany, analyzing the relationship between the expression of the face with its social and artistic contexts, punctuating the artists who immigrated to Brazil and the international festivals of the late 20th century, who contributed to the exchange of knowledge and to the professionalization of contemporary dance. Keywords: Dance; Face; Expression; Expressivity; History;
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Neste artigo, a expressão do rosto na dança contemporânea é motivo de indagação e potencializador de questionamentos. Partindo da observação simples, enquanto artistasespectadoras de espetáculos de dança contemporânea, constatou-se uma frequente intrigante sobre os rostos: estavam todos, em sua maioria, atônicos, ou melhor, monotônicos ou sem variação expressiva ao longo do espetáculo, mesmo que em espetáculos diversos, com propostas dramatúrgicas diversas, com corpos igualmente diversos. Ora, se a dança, que expõe o corpo em sua totalidade, propõe uma expressividade única para esse corpo apresentado, por que há essa constante nos rostos, causando, por causa de sua monotonia, uma dissonância visual entre corpo e rosto? Seria um traço estilístico do movimento em questão? Seria uma transformação do sujeito que dança em relação à apropriação do discurso? Ou seria uma herança herdada de propostas estrangeiras, facilmente aderidas em nosso solo de terra colonizável, onde imperavam outros contextos e transmutaram-se em nosso corpo e país? Para alargar essas questões, foi preciso fazer uma viagem histórica no tempo, na dança cênica ocidental, revendo dramaturgicamente a proposta cênica e sua relação com o bailarino e sua expressão facial, sem perder de vista os possíveis entrelaçamentos em contextos sociais. Essa viagem histórica foi importante, primeiramente, para enxergar, sob o ponto de vista macro, diferenças de perspectivas mundiais (que tenderam a seguir diferentes) e suas influências no Brasil, mas também uma mudança relacionada ao posicionamento do bailarino frente à hierarquia social dentro das companhias de dança, que mudaram, consequentemente, seus corpos, identidades, expressões. Em linhas gerais, após o balé clássico, movimento estilístico que perdurou por séculos e abarcou dentro de si inúmeras variações, no início do século XX, inicia-se, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, uma busca por novos meios de apropriação, apresentação e expressão desse corpo que dança. Em meio a guerras mundiais, o corpo lúdico, representativo, personificado e etéreo das bailarinas clássicas perde o sentido, dando lugar às emoções de um corpo que luta e sofre, que vive uma nova relação de mundo. A dança moderna inaugura, assim, uma nova proposta expressiva: se no balé clássico a expressão do rosto era uma máscara da pantomima representativa relacionada à narrativa apresentada, na dança moderna, a expressão do rosto (e do corpo) traduzem estados emocionais, ainda que relacionados, muitas vezes, a sentidos representacionais literais. É nessa virada de paradigma, no entanto, que iniciam-se movimentos diferentes pelo mundo, partindo dessa mesma tensão inicial. Não por acaso, os países que conseguiram destaque internacional em sua produção artística foram também os países mais ricos, envolvidos com as guerras, países colonizadores, com forte aderência mundial. A história (tradicional) da dança relata com veemência as produções norte-americanas, francesas e alemãs e também, não por acaso, são essas três linhas que observa-se neste artigo, trazendo à tona suas diferenças e suas possíveis influências no Brasil no período de consolidação da então dança contemporânea. Na dança norte-americana, pode-se destacar a relevância cronológica dos trabalhos dos artistas Doris Humphrey, Marta Graham, Judson Church Group e Cunningham. Partindo da expressividade do corpo no espaço – exposta por Humphrey –, passando pela dor e sofrimento, concentrados nos movimentos de coluna em expansão e recolhimento – 68
como em Graham –, a dança norte-americana culmina na negação de todos os artifícios extracorpóreos (música, narrativa, sentimento, figurino, etc.) para concentrar no papel do corpo e sua ação. A expressão da dança pós-moderna americana está justamente no caráter ordinário do corpo, buscando o corpo cotidiano como estética e meio para trazer para a arte a simplicidade e essência da linguagem: o corpo. Yvonne Rainer, integrante do Judson Church Group escreve um manifesto que traduz esse pensamento, no qual, dentre outras coisas, lê-se: Não ao espetáculo, não à virtuose, não às transformações e à mágica e ao faz-deconta, não ao glamour e à transcendência da imagem da estrela, não ao heroico, não ao anti-heroico, não ao imaginário trash, não ao envolvimento do performer ou do espectador, ao estilo, não ao exagero, não à sedução do espectador pelos desejos do ator, não à extravagância, não à emoção provocada ou sentida. (RAINER, 1974, p. 51).
Cunningham aprofunda ainda mais essa ideia da busca do cotidiano no corpo como estética ao buscar uma dança autônoma, usando o acaso e os jogos de azar como estratégias de composição coreográfica, provocando a dissociação do corpo de personagens, ordens, narrativas, declarando independência da música, do cenário, do palco e até do entendimento de coreografia como ordem de passos pré-estabelecidos. É possível observar, portanto, duas estéticas emergentes em meados dos anos 1960 nos EUA: Cunningham com a abstração e o formalismo, buscando uma autonomia do movimento, e Judson Church Group com o experimentalismo, a democratização do corpo que dança em uma reflexão da própria linguagem e sua expressividade. A expressão do rosto da dança pós-moderna norte-americana acompanha esse pluralismo estético, mas introduz aqui as sementes da inquietação desta pesquisa: um rosto neutralizado, sem caracterizações de personagem ou representações, sem variações tônicas ou deformações na expressão do rosto. No outro extremo, há a corrente alemã, da qual pode-se destacar os expoentes Mary Wigman, Kurt Jooss e Pina Bausch, considerando que esses são apenas exemplos e que há inúmeros outros grandes expoentes da dança pós-moderna nesse país. Wigman e Jooss viveram o período entre-guerras, onde o país passava por uma revolução industrial que, dentre outros aspectos, fazia emergir a ideia de um corpo baseado no controle funcional. Influenciados também pela nascente psicologia e por teóricos que dissertavam sobre o inconsciente, a cultura alemã se manifestava em crise à palavra, em busca de uma linguagem gestual que superasse o racionalismo da escrita na investigação de uma percepção interna da experiência. Observa-se uma dança, como na dança moderna norteamericana, em que prevalece a exaltação de estados emocionais intensos e viscerais, voltados, no caso alemão, à experiência e à comunicação. Uma grande particularidade do período pós-moderno na Alemanha foi a devastação do nazismo e o recolhimento alemão, concentrando forças em sua reestruturação física e coletiva, em busca de um resgate à cultura e à identidade nacional. Esse contexto provocou também uma grande diferença na dança de então, que fazia parte de um movimento artístico maior – que envolvia todas as linguagens (artes visuais, música, teatro, cinema) –, 69
de retorno à tradição, reafirmando o pensamento vanguardista expressionista, silenciado durante a Guerra. Pina Bausch, aluna da Folkwang Hochschule de Essen, fundada por Jooss, constrói sua dança como veículo de expressão da vivência das guerras e do nazismo, em metáforas de contestação social, consagrando o estilo fundado por Jooss, a Dança-Teatro (Tanztheater). A Dança-Teatro de Bausch faz caminho contrário ao movimento norte-americano. Ao invés de declarar autonomia do movimento, ela se utiliza de todos os recursos teatrais: música, drama, alegorias, cenografias, movimento, falas, objetos. Para elaborar a movimentação, Bausch mergulha no universo individual e subjetivo de seus bailarinos, buscando uma dança pessoal e autoral, utilizando a repetição como um forte elemento de composição coreográfica na intenção de repetir até transformar. Pina Bausch instaura uma cena no limite da representação e da performatividade. A movimentação emerge de um impulso interno e individual, provocando dinâmicas distintas e particulares para cada bailarino. Em meados da década de 1980, a França emerge como nova potência de criação de espetáculos. Em uma iniciativa estatal, a dança estabelece-se em recém-criados centros coreográficos nacionais, possibilitando a criação de obras e o desenvolvimento de novos coreógrafos, ao ofertar espaços e condições para os profissionais da área. Assim, a França estabelece-se como um país com uma estrutura única e extremamente favorável para o desenvolvimento da dança. Nesse cenário, destacam-se obras dos coreógrafos e criadores franceses, tais como Régine Chopinot, Dominique Bagouet, Maguy Marin, Jean Claude Gallotta, entre outros. Com a abertura das fronteiras alfandegárias mundiais no pós-guerra, a França dialoga abertamente com a produção dos EUA e da Alemanha, criando uma amálgama de referências que acaba por criar sua própria expressividade: a Nouvelle Danse Française. A Nouvelle Danse parece a forma artística mais em consonância com o fim do século. No tempo do audiovisual e da predominância do corpo, a escritura coreográfica se substitui ao texto teatral. A especificidade francesa tem uma aproximação nova da emoção, na sua capacidade de inventar um movimento que reflete um instante de um estado interior, de exprimir uma época confusa e dinâmica. Assim se desenvolve a ideia de uma dança de autoria, como falado no cinema autoral, diversificado e fortemente intelectualizado, que reflete um mundo sem perspectivas e sem crenças. Essa eclosão dos anos oitenta é rapidamente acompanhada por um desenvolvimento institucional que vai apoiar essa diversidade, empurrando às vezes as novas criações e privilegiando os modos mais espetaculares. (GINNOT E MICHEL, 1999, p. 186).
A expressividade da Nouvelle Danse Française traz um reposicionamento perante a expressão que, mesmo nos EUA, como foi visto, parecia clamar por um novo olhar. No meio do caminho entre a neutralidade e a abstração norte-americana e a teatralidade política da Alemanha, a dança na França nos anos 1980 reinventa o espetáculo sem medo da superutilização de elementos cênicos, da mistura de técnicas e linguagens. Como essas correntes mundiais chegaram até o Brasil? O que a dança contemporânea 70
brasileira carrega de influências propositais e de heranças herdadas desapercebidamente dessas referências estrangeiras tão fortes? O rosto mono-tônico observado pelas autoras é uma expressão autoral de uma dança brasileira, é uma cópia tardia de um estilo preconizado nos EUA com a Judson Church, por exemplo, ou quem sabe um movimento de contracultura que rebate a expressão demasiada dos movimentos expressionistas da dança moderna? Ainda, o que isso revela do sujeito contemporâneo? Para pensar sobre essas questões, propõe-se um estudo a partir da década de 1950 no Brasil, quando muitos artistas estrangeiros escolheram este país para se refugiar das guerras. Trazendo conhecimentos de além-mar, esses artistas estrangeiros exerceram fortes influências no país, fundando escolas e dando início a gerações de seguidores Nessa época, aportaram no Rio de Janeiro, Maria Olenewa, bailarina russa responsável pela primeira escola oficial de balé do país, a Escola do Theatro Municipal do Rio de Janeiro; Tatiana Leskova, bailarina francesa que fundou uma escola de dança e ensina a técnica de balé até hoje e Nina Verchinina, bailarina russa e professora de balé clássico e dança moderna, que forma igualmente um polo influente de formação e treinamento em balé clássico. Já em São Paulo, que cresceu em meio à modernidade e à industrialização do país, chegaram Renée Gumiel, bailarina, coreógrafa e atriz francesa e Maria Duschenes, bailarina húngara e professora, ambas artistas ligadas à dança moderna na Europa, fundando uma diferença que se acirra ao longo dos anos entre as duas capitais brasileiras: o Rio de Janeiro com uma forte influência clássica, inclusive em suas composições contemporâneas, e São Paulo fundamentado nas tradições modernas europeias. A partir de 1970, observa-se a incidência dos festivais de dança como um ótimo recorte para analisar influências e observar a produção nacional. Como coloca Pavlova e Pereira (2001), nas décadas de 1970 e 1980, os festivais foram um dos principais meios de intercâmbio entre artistas, tornando-se uma das manifestações coletivas mais producentes para a dança, não só com o incentivo da apresentação da produção local, como também com a troca promovida pelas oficinas, debates e lançamentos de livros. No Rio de Janeiro, dois festivais representativos dessa época foram o Ciclo de Dança Contemporânea e a mostra Deixa eu Dançar. Esta última incentivava a apresentação de novos criadores, o que fomentava a formação e o contorno da próxima geração de artistas da dança. Os festivais eram uma porta para se ver e mostrar tanto o que estava sendo produzido nacionalmente quanto internacionalmente, tornando-se não só uma vitrine como também um incentivo à profissionalização e ao investimento na área. Em finais dos anos 1980, o festival Carlton Dance traz para o Brasil espetáculos internacionais de artistas como Pina Bausch e Merce Cunningham, além de dar visibilidade para diversas companhias brasileiras. Nessa mesma época, com o fim da ditadura, torna-se mais viável atravessar fronteiras, o que faz com que os artistas brasileiros sejam empurrados para fora, seja para a Europa ou para os EUA, na busca por uma profissionalização, já que as instituições e os centros de formação ainda eram escassos nessa época no Brasil. Foi o que aconteceu com Lia Rodrigues, bailarina e coreógrafa, e João Saldanha, coreógrafo carioca, por exemplo. Após passagem pelo exterior, ambos voltaram ao Brasil com ímpeto
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para impulsionar a criação nacional e juntos com Alfredo Moreira criaram, em 1991, o I Olhar Contemporâneo de Dança, que seria um passo para a criação do Panorama de Dança Contemporânea no ano seguinte, um dos principais eventos da cidade, e que teria continuidade por, no mínimo, mais dez anos. João Saldanha lembra da primeira edição do Olhar Contemporâneo de Dança: A dança contemporânea até o início dos anos 1990 era meio marginalizada, ainda não estava em voga. Foi dentro desse cenário e buscando mudar a história que fizemos o Olhar, um grande sucesso de público. A diversidade e a elaboração de trabalhos surpreenderam todo mundo. A ideia era quebrar com a visão de que a dança contemporânea era aquela coisa sofrida, para baixo, intelectualoide. Eram várias companhias apresentando semanalmente espetáculos inéditos. As pessoas começaram a falar da gente, vieram convidados de São Paulo e de outros estados. Não foi um evento voltado apenas para o Rio de Janeiro. O Olhar trazia a dança contemporânea para próximo do público. (PAVLOVA E PEREIRA, 2001, p. 135).
Esse impulso deu origem ao 1º Panorama de Dança Contemporânea, em 1992, com coordenação artística de Lia Rodrigues e que, mesmo sem muitos recursos financeiros, conseguiu convidar uma grande quantidade de artistas diversos, apresentando um panorama plural do que estava sendo produzido no Rio de Janeiro naquele momento. O recém-criado festival conquistou também o público que, ao final, contabilizava 1600 pessoas, com plateias lotadas todos os dias. Assim: O primeiro Panorama tornou-se um retrato da dança carioca daquele início de década, incluindo seus pensamentos e contradições. Ainda muito distante de uma reflexão teórica, esta dança sedenta por novidades tentava romper com os ensinamentos clássicos, misturando um pouco de teatro, jazz, balé moderno e até performances em busca de algo totalmente diverso. É claro que nem todos os trabalhos eram coerentes ou funcionavam em cena. (PAVLOVA E PEREIRA, 2001, p. 137).
Sobre a expressividade da programação dessa primeira edição, podemos achar pistas ainda em Pavlova e Pereira (2001), nos fragmentos: (…) programação que misturava gente de bastante experiência, como Regina Miranda, Regina Saeur e Renato Vieira – estes dois últimos mais ligados ao jazz – com estreantes da arte de criar movimentos, incluindo Andréa Maciel, a dupla Paulo Marques e Giselda Fernandes (…). (…) Catar era uma revisão da primeira coreografia assinada por Lia – naquela época ainda em parceria com João Saldanha – na qual ela começava a trabalhar com uma ideia que viria a se repetir na sua peça seguinte, as parlendas, rimas infantis em versos de cinco ou seis sílabas. Em cena, o trabalho apresentava nítida influência da antiga mestra da coreógrafa, a francesa Maguy Marin. (…) Coreografada por Paulo, Giselda abriu a noite dançando Le Cid, uma peça
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que, de tão dramática, chegava a ser exagerada. Na última semana, mais três atrações. Primeiro, Roberto Anderson Cia. de Dança mostrou Janelas. A Rubens Barbot Companhia de Dança fez sua estreia na zona sul com Uma sombra em breve você será e a experiente Companhia Nós da Dança, de Regina Saeur, apresentou Georgia, insônia, bêbados. A coreógrafa, que se notabilizou no cenário carioca por seu trabalho voltado para a escola de Martha Graham, não voltaria a se apresentar no festival, muito provavelmente porque ateve-se ao vocabulário desta técnica de dança moderna. (PAVLOVA E PEREIRA, 2001, p. 136-139).
Por meio desses fragmentos, podemos observar claramente a influência da técnica Modern Jazz42 norte-americana, da Nouvelle Danse Française e da dança moderna norte-americana. Enquanto a produção em dança carioca caminhava no sentido da profissionalização, os artistas iam sem medo experimentando e pondo em prática a amálgama de referências que iam recebendo do mundo – seja pelos festivais, vídeos ou do intercâmbio dos artistas em trânsito. Como ressalta Snizek (2007), essa multiplicidade é resultado das efervescências de questões levantadas nos anos 1980: Referindo-se à estética e às propostas da modernidade, as transformações e solicitações ganham força e eclodem numa crise envolvendo conceitos. No meio artístico da dança, no Rio de Janeiro, na década de 1980, entre comemorações, discussões e debates, fazíamos perguntas com perfil da modernidade: O que é dança contemporânea? Que parâmetros servem para sua identificação? Existem parâmetros? Qual sua proposta? Qual escola? Que rupturas? Qual o tema? Quais as técnicas? Isto em meio a outros tantos questionamentos. (SNIZEK, 2007, p. 115).
No caminho da consolidação da dança contemporânea carioca, o Panorama de Dança aconteceu novamente em 1993, na sua segunda edição, mostrando resistência e contracultura em tempos de fragilidade política e crise financeira. O foco dessa vez estava na apresentação de pesquisas, mais do que produtos prontos das companhias, fortalecendo o papel da dança como forma de conhecimento e não apenas entretenimento. Nos anos subsequentes, o Panorama foi fortalecendo seus vínculos políticos e se estabelecendo como um dos principais eventos de dança do país, além de ser responsável pela profissionalização de muitos artistas. Tinha como preocupação oferecer espaço também para artistas reincidentes, mostrando ao público o desenvolvimento de suas pesquisas, além de oferecer apoio e espaço para esses profissionais em início de carreira. Pode-se perceber nos registros históricos dos primeiros anos desse festival – que entre mudanças de nome, direção e produção, existe até hoje –, é o quanto a dança contemporânea carioca, inicialmente carente de espaço e visibilidade, foi ganhando corpo e delineando seus profissionais a partir de experimentos, pesquisas (inicialmente carregadas de referências estrangeiras) e, ao longo dos anos e com o consolidar de suas carreiras, foram trazendo referências internas e criando sua própria originalidade. A dança 42
O Modern Jazz mistura técnica clássica com princípios da dança moderna norte-americana.
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contemporânea foi se afirmando também como campo artístico publicamente reconhecido e fonte de conhecimento. A Europa, em especial a França, foi uma das principais referências estrangeiras na construção dessa expressividade carioca, talvez por permitir o diálogo com diversas técnicas, incluindo o balé clássico, já fortemente enraizado na cidade, talvez por ser o principal destino de viagens dos que saíam do país em busca de uma profissionalização, talvez por ser uma forte influência colonizadora. Difícil dizer, dentro dessa amálgama e desse emaranhado de referências que se cruzam não só aqui, em terras brasileiras, mas também entre si, a origem e inserção de cada influência. O que se pode observar é que esse rosto mono-tônico não aparece aqui na década de 1990, período de consolidação da dança contemporânea carioca. Esse período é intenso em sua expressividade, ousando na mescla de técnicas, pesquisando limites do corpo, expondo emoções internas e coletivas, na busca pela cativação do público, que também estava em formação para a apreciação dessa nova linguagem emergente. Esse rosto mono-tônico é fruto dos anos 2000, que traz uma nova colocação do sujeito na dança. O bailarino já não é somente o bailarino da companhia, é também intérprete-criador, é coautor de sua obra, é a obra em si. Seu conteúdo versa agora sobre questões individuais, saindo do universo particular para alcançar a sensibilidade coletiva. O rosto dos anos 2000 é também a identidade do sujeito, é sua capa de entrada, sua cédula de identificação, sua foto de perfil das redes sociais. O rosto torna-se o seu principal elemento identificador em meio a proliferação dos novos mundos virtuais. E por que a monotonia? Ora, considerando que foi visto que não se trata de nenhuma influência direta das correntes colonizadoras em questão, pode-se apenas supor novas perguntas: Por que a expressão (e a emoção) dos anos 1990 era demasiada? Por que o corpo do sujeito (autoral) já estava exposto demais e, portanto, era preciso esvaziar-se na neutralidade facial? Por que o conceito ganhou força sobre a forma, e a emoção e a expressão diminuíram-se frente à ideia (conceito)? Por que o sujeito-autoral, intérpretecriador de sua própria obra, está muito preocupado com o conteúdo apresentado e não consegue imprimir variações tônicas no rosto? Por que o movimento em si passou a fazer mais sentido na expressão da identidade desse sujeito do que o rosto que já prolifera em todas as outras esferas sociais? Identidade, exposição, corpo, movimento, conceito, autoria, são palavras propostas aqui como eco para pensar sobre essas e novas reflexões que, seja pela sua extensão ou porque ainda não temos respostas claras, não caberão aqui. Que o eco emane sobre as novas formas porvir.
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Curriculum Vitae Resumido:
Gabriela Machado Freire Tournillon Alcofra Artista da Dança, Professora e Pesquisadora. Doutoranda e Mestra em Artes da Cena pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Orientada pela professora Julia Ziviani. Bacharel em Dança pela Faculdade Angel Vianna.
Julia Ziviani Vitiello Professora Titular do Departamento de Artes Corporais da UNICAMP. Dançou no Ballet Stagium e no Ballet da Cidade de São Paulo, onde foi Diretora da Companhia por dois anos. Estudou na New York University. Mestra pelo Tisch School of the Fine Arts. Doutora pela Faculdade de Educação da UNICAMP.
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O SUL CORPÓREO E A POÉTICA DOS ELEMENTOS: PRÁTICAS PARA A DESCOLONIZAÇÃO DO IMAGINÁRIO Rocio del Carmen Tisnado Vargas (PPGArC/UFRN); Robson Carlos Haderchpek (DEART/UFRN)
Resumo: Propomo-nos no presente artigo uma reflexão acerca das “epistemologias do sul” de Boaventura de Sousa Santos, inter-relacionando este conceito com a prática do trabalho do ator/bailarino do Arkhétypos Grupo de Teatro e com a “poética dos elementos” (BACHELARD, 2013). A partir de um processo de investigação e pesquisa chegamos ao sul corpóreo, terminologia que situa o corpo como um lócus epistêmico de resgate de saberes relegados e/ou marginalizados no processo de colonização das Américas, e que integra a prática artística do ator/bailarino latinoamericano. Através da hermenêutica diatópica e da “poética dos elementos” propomos uma alternativa para a descolonização do imaginário e consequentemente da Arte que busca romper com os padrões europeus e que encontra na prática intercultural uma alternativa para a trans-modernidade (DUSSEL, 1994). Palavras-chave: Poética dos Elementos; Epistemologias do Sul; Sul Corpóreo, Imaginação Material;
Abstract: We propose in this article a reflection on “the epistemology of the south” of Boaventura de Sousa Santos, interrelating this concept with the practice of the work from the actor/dancer of Arkhétypos Theater Group and with “the poetic of elements” (BACHELARD, 2013). From a research process and investigation we arrive at terminology south of the body that become the body as an epistemic locus of knowledge rescue relegated and/or marginalized in the process of colonization of the Americas, and integrating the artistic practice of the actor/dancer Latin-American. Through diatopical hermeneutics and “poetics of the elements” we propose an alternative to the decolonization of the imaginary and consequently of Art that seeks to break with European standards and found in the intercultural practice an alternative to the trans-modernity (DUSSEL, 1994). Keywords: Poetics of the Elements; Epistemology of the South; South of the Body, Material Imagination;
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A escrita deste trabalho originou-se do encontro de dois pesquisadores: uma atriz e bailarina mexicana e um diretor e ator brasileiro. Desse encontro surge uma potência de reflexão que transcende os entraves geográficos e conceituais e que se revela através de um corpo que dança, atua e ritualiza a cena num processo de reconexão com a energia do cosmos, da arte e da vida. Esse encontro ocorreu no Arkhétypos Grupo de Teatro, grupo de extensão e pesquisa formado em 2010 na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. O Grupo Arkhétypos trabalha numa perspectiva laboratorial e constrói os seus espetáculos a partir de um mergulho no universo simbólico de cada ator, estimulando o poder do imaginário e ancorando a construção cênica na energia que emana do corpo do ator/bailarino. Em 2014 o grupo debruçava-se sobre as mitologias do ar e, inspirado no conto persa “A Conferência dos Pássaros” de Farid-Ud-DinAttar, criara o espetáculo teatral “Revoada”. Dentro dos laboratórios de criação, cada ator mergulhava no seu universo imaginário para descobrir o pássaro que habitava dentro de si, assim íamos criando a dramaturgia do espetáculo. Nesse momento entrou para o grupo uma atriz e bailarina mexicana, que veio disposta a trabalhar a imagem da Phoenix, a ave mítica do fogo. Sua entrada ocorreu para substituir uma atriz que se mudaria para o Rio de Janeiro no meio da temporada de estreia; no auge de uma apresentação eis que salta aos olhos de todos não mais um pássaro, mas sim uma serpente emplumada, a figura mítica de Quetzalcoatl (Kukulkán).
Fig. 1: Quetzalcoatl na dança ritualística do fogo – Espetáculo “Revoada”. Foto de Diego Marcel.
O grupo já trabalhava, havia alguns anos, com a poética dos elementos, inspirada por Gaston Bachelard (2013) e a partir do teatro ritualístico. Assim, em meio à dança do fogo, emergiu em cena um corpo contaminado pelo imaginário da cultura Maia; um corpo que dançava, conectando-se com uma figura mítica ancestral, um ser quase esquecido, que pedia para vir à tona e romper com as correntes que o aprisionavam. Foi um momento 78
epifânico, quase mágico como diria Artaud. O diretor do espetáculo percebeu que algo havia mudado em cena e, apesar de não ser a Phoenix, a figura mágica que se apresentava diante dos nossos olhos voava como uma serpente de fogo. Dessa forma, a partir dessa chama, desse rompante de energia que se manifestou em cena, surgiu o desejo de pesquisar sobre os conhecimentos relegados e/ou marginalizados da cultura latino americana. Deparamo-nos, então, com as epistemologias do sul, propondo uma aproximação desse conceito, criado pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos, com o fazer teatral. Dentro do pensamento eurocêntrico hegemônico, atribui-se à Grécia antiga as origens da história do teatro ocidental. Contudo, como povos colonizados, convém perguntar o quanto da cultura Mesoamericana é considerada ocidental? Quantos povos e quantos modos de pensar e fazer arte foram desconsiderados nessa atribuição? As culturas antigas da AbyaYala passavam dias inteiros dançando, recriando as energias do universo junto a seus mitos e Deuses. Na episteme ameríndia nós teríamos a máxima: “Eu danço, logo existo”, não como em Descartes, pai da racionalidade: “Eu penso, logo existo”. Retomar o conhecimento do sul apresenta-se, aqui, como uma possibilidade de descolonização. Segundo Fernando Muñoz Castillo43 ([1995] 2016), a cultura Maia foi uma das primeiras culturas Mesoamericanas a desenvolver o teatro como manifestação artística independente da representação do rito religioso; eles realizavam danças com coreografias específicas, representações de histórias e personagens com figurinos muito elaborados, para além dos rituais que praticavam. A ritualidade sempre existiu em todos os povos da Mesoamérica, mas com os Maias essa situação é um pouco diferente, já que os cronistas são muito específicos ao falar da ritualidade e da teatralidade desse povo (cf. Castillo, [1995] 2016). O desdobramento que evoca essa ideia nos faz reposicionar o nosso globo ocular, as nossas pisadas, o nosso ponto cardinal e nos remete a outras possíveis formas de interpretar nosso conhecimento, permitindo-nos dar outros gritos e fazendo com que repensemos a nossa forma de criar, com isso podendo levantar novos indícios a respeito das origens da representatividade. Os europeus já escreveram sua história do teatro, da qual nós somos os principais herdeiros. Entretanto, não seria imprescindível também que nós escrevêssemos a nossa própria história do teatro? O teatro nasce não numa cultura, mas nas intuições mais profundas do ser humano, na sua infinita necessidade de conectar-se com as energias e com os tempos sagrados do universo; nasce no coração do ser e esta necessidade faz-se presente não somente no homem grego, mas em muitas outras culturas deste mundo pluridimensional, inclusive em culturas mais antigas. Assim, as epistemologias do sul surgem, antes de tudo, como uma fonte metafórica da qual podemos desdobrar reflexões híbridas e interdisciplinares de negociação entre as 43 Fernando Muñoz Castillo é dramaturgo, ensaísta, teatrista, pesquisador e crítico mexicano. Dirigiu importantes companhias de teatro mexicanas e é possuidor de diversos prêmios como dramaturgo e diretor teatral.
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artes cênicas e as ciências sociais. Procuramos conceber as “epistemologias do sul” como um ponto de convergência entre o imaginário social e o fazer teatral, e Boaventura ressalta: A epistemologia do Sul que tenho vindo a propor visa a recuperação dos saberes e práticas dos grupos sociais que, por via do capitalismo e do colonialismo, foram histórica e sociologicamente postos na posição de serem tão só objeto ou matériaprima dos saberes dominantes, considerados os únicos válidos. (SANTOS, 2008, p. 11).
O teatro, assim como os saberes populares, traz em si um vasto conhecimento que muitas vezes é colocado à margem em função de um pensamento capitalista, produtivista e neoliberal. Acabam de aprovar no Congresso Nacional a reforma do ensino médio e a área de artes passou a não ser mais obrigatória no currículo escolar. Tal comportamento é herança de um sistema político que segue os moldes da colonização. Junto com a imposição de um sistema hegemônico nas práticas dos grupos sociais, se faz presente, ainda nos dias de hoje, uma colonização epistemológica, uma colonização do imaginário. Neste sentido, o sul surge como a consciência crítica, que só será energia histórica e movimento social se encarnar na prática, na alma. A epistemologia que Boaventura nos fala retrata o grande “porque” de um pensamento ao sul, um pensamento de solidariedade de saberes, que no universo da sociologia, Boaventura chama de “o conhecimento ausente”: Uma forma de conhecimento que não reduza a realidade àquilo que existe. Uma forma de conhecimento que aspire a uma concepção alargada de realismo, que inclua realidades suprimidas, silenciadas ou marginalizadas, bem como realidades emergentes ou imaginadas. A epistemologia dos conhecimentos ausentes parte da premissa que as práticas que não assentam na ciência não são práticas ignorantes, são antes práticas de conhecimentos rivais, alternativos. Não há nenhuma razão apriorística para privilegiar uma forma de conhecimento sobre qualquer outra. O objetivo será antes a formação de constelações de conhecimento orientados para a criação de uma mais valia de solidariedade. (SANTOS, 2002, p. 246).
Neste sentido, podemos dizer que a ação/prática do teatro ou de qualquer forma prática de intervenção social pode atuar como uma bússola para o processo de descolonização. No entanto, será que os discursos artísticos têm acompanhado o discurso social nesta discussão sobre descolonização? Verônica Fabrini (2015) também se faz esta pergunta quando coloca: “Qual(is) modelo(s) epistemológico(s) nossas universidades adotam?” (FABRINI, 2015, p. 179). Durante a colonização, difundiram-se os interesses missioneiros das potencias coloniais e se fez necessária, para avançar na colonização do imaginário, a expansão da universidade europeia e seus métodos de estudo, e com eles uma produção de conhecimento imperialista. Afirma também que “grosso modo, produzimos ingenuamente uma arte colonizada e exercemos também uma crítica colonizada” (FABRINI, 2015, p. 178). Pois, o lugar das ciências sociais a partir do qual estamos tramando esta reflexão está focado nas epistemologias emergentes, num pensamento ao sul, num portal aberto à Trans-
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Modernidade44, num repensar de/sobre outros paradigmas que podem ajudar a revitalizar a prática teatral. Na última palestra que Boaventura de Sousa Santos realizou dentro do Fórum Social Mundial em janeiro de 2016 (Porto Alegre – RS) ele colocou a imaginação como fundamento da transformação social. Por isso, é preciso recriar, reinventar novas alternativas, novas soluções políticas e sociais. “Os sistemas hegemônicos estão esgotados, além disso, bloqueiam nossa imaginação utópica, temos que recuperá-la”45. Pensando nos paradigmas que podem ajudar a revitalizar a prática teatral e numa tentativa de recuperar e recriar nossa imaginação, o Grupo Arkhétypos de Teatro desenvolveu uma prática a partir da poética dos elementos; chamada assim por inspiração no trabalho de Gaston Bachelard (2013) que escreve sobre a imaginação da matéria, passando pela tetralogia dos elementos e afirmando que: Com efeito, acreditamos possível estabelecer, no reino da imaginação, uma lei dos quatro elementos, que classifica as diversas imaginações materiais conforme elas se associem ao fogo, ao ar, à água ou à terra. E, se é verdade, como acreditamos, que toda matéria deve receber componentes – por fracos que sejam – de essência material, é ainda essa classificação pelos elementos materiais fundamentais que deve aliar mais fortemente as almas poéticas. (BACHELARD, 2013, p. 3-4).
Através da essência material, própria da imaginação, buscamos potencializar os diferentes tipos de energia provenientes de um processo de criação, sempre tomando como referência um universo simbólico de dimensões arquetípicas. Nossas práticas laboratoriais aproximam-se do que Bachelard chama de devaneios, pois quando adentra num processo laboratorial o ator é guiado geralmente por um estímulo sonoro e/ou por uma imagem, improvisando ações e movimentos até encontrar a essência da imagem que está guiando o seu inconsciente. Nossos processos não seguem um viés racional, trabalhamos com a dimensão arquetípica da imagem e com as sensações físicas geradas a partir dela. Neste sentido comungamos com Bachelard quando afirma que: Para que um devaneio tenha prosseguimento com bastante constância para resultar em uma obra escrita, para que não seja simplesmente a disponibilidade de uma hora fugaz, é preciso que ele encontre a sua matéria, é preciso que um elemento material lhe dê sua própria substância, sua própria regra, sua poética específica. (BACHELARD, 2013, p. 4).
Trabalhar com a poética dos elementos é resgatar um conhecimento ancestral, pois os quatro elementos já habitavam em nós antes de qualquer processo de educação e/ ou colonização estética. Nosso imaginário é repleto de formas que podem configurar-se e redesenhar-se de acordo com o inconsciente de cada povo e de cada nação. Por isso, nós acreditamos que a conexão com a nossa imaginação material pode conduzir-nos a novos 44 Conceito proposto por Enrique Dussel que busca a superação da “modernidade” não como PósModernidade porque ela, segundo Dussel, é uma crítica última da modernidade em si mesma, mas ainda moderna e eurocêntrica. Trans-Modernidade desemboca em um novo projeto mundial de liberação político, econômico, ecológico, erótico, pedagógico, religioso, etc.. (cf. Dussel, 1994, p. 178). 45 Frase evocada por Boaventura na palestra que inaugurou o Fórum Social Mundial em Porto Alegre em janeiro de 2016.
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paradigmas, libertar-nos de um modelo apriorístico dado no processo de colonização e devolver nossa herança cultural. Segundo os pesquisadores argentinos, Patricia Bélières e Alejandro Cancela: Os quatro elementos não precisam ser adquiridos, porque eles já estão em nós; só precisamos ‘recordá-los’ para trazê-los à consciência. Não há nada de esotérico neles. [...] Como professores, então, partimos de uma realidade concreta: utilizamos uma linguagem simples (terra, fogo, água e ar são termos que todos conhecemos) e trabalhamos a partir do corpo. O aluno pode, assim, reconhecer a sua terra, o fogo, a água e ar no corpo e voz. (BÉLIÈRES E CANCELA, 2013, p. 47)46.
É isso o que fazemos no Grupo Arkhétypos: partimos de uma prática corporal e buscamos recordar a força dos elementos que habita em nós, direcionando isso para os nossos processos de criação. Foi assim que construímos todos os nossos espetáculos47 e foi assim também que desenvolvemos uma metodologia própria de trabalho e recuperamos um conhecimento adormecido que já habitava em nós. É urgente recuperar metodologias e poéticas utópicas. Assim, vale questionar sobre: quais são os cenários que abundam em América Latina? Somos dotados de espaços vibrantes de imagens que nos falam de identidades múltiplas, de mundos heterotópicos e, sobretudo, de alteridades. Nossas ruas estão repletas de teatralidade, de presenças, pobrezas e desigualdades iminentes, de outras sonoridades, de outras consciências, de mortes coletivas arrastadas pela onda de violência desde a colonização até os dias de hoje. Se no teatro representamos a presença, como representar as ausências? (cf. Diéguez, 2013). A necessidade de falar a partir de outros tempos-espaços, a partir de imaginários alternativos à epistemologia hegemônica faz-se cada vez mais latente. Emerge em nós uma profunda necessidade de fazer silêncios neste mundo tão cheio para que, a partir do vazio, possamos deixar emergir a diferença. Dessa maneira, foi num desses silêncios que nasceu a pesquisa do sul corpóreo, trabalho desenvolvido pela atriz, bailarina e pesquisadora mexicana Rocio Del Carmen Tisnado Vargas. É uma metáfora que diz respeito aos conhecimentos inerentes ao corpo do ator/bailarino. O corpo é onde a existência acontece, portanto, é no corpo-memória onde inscrevem-se as sociedades, as culturas e suas constantes transformações. Assim, o corpo se torna o espelho da história da humanidade. Somos atravessados por muitas dimensões: políticas, sociais, econômicas, culturais e espirituais, que são exatamente as fricções dessas dimensões que manifestam a grande complexidade que anuncia o corpo humano. O sul 46 Tradução nossa para: “Los cuatro elementos no precisan ser adquiridos porque ya están en nosostros; sólo necesitamos ‘recordarlos’, traerlos a la consciencia. No hay nada de esotérico en ellos. [...] En tanto maestros, partimos, entonces, de una realidad concreta: utilizamos un lenguaje simple (tierra, fuego, agua y aire son términos que todos conocemos) y trabajamos desde el cuerpo. El alumno puede, de este modo, reconocer su tierra, su fuego, su água y su aire en el cuerpo y en la voz” (BÉLIÈRES E CANCELA, 2013, p. 47). 47 Cada um dos processos de criação de criação do Grupo Arkhétypos foi guiado por um dos elementos da natureza, e a partir da “poética dos elementos” foram construídos quatro espetáculos: “Santa Cruz do Não Sei” (2011) que foi inspirado pela água, “Aboiá” (2013) que foi guiado pela terra, “Revoada” (2014) que foi conduzido pelo ar, e “Fogo de Monturo” (2015) que foi alimentado pelo fogo. Os três primeiros tiveram a direção de Robson Haderchpek e o último foi dirigido por Luciana Lyra.
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corpóreo emerge como um conceito crítico dentro da transição epistemológica da América Latina, visando essa recuperação de saberes e criando os diálogos interculturais através de suas práticas, saberes os quais não estão determinados, assim como a condição do ser humano que é indeterminada. Transportamos, nesta pesquisa, a condição invisibilizada do “sul” ao corpo do ator num sentido metafórico e o relacionamos com os fundamentos das epistemologias do sul de Boaventura de Sousa Santos, que representam todas aquelas epistemologias/saberes/ práticas que tem sido invisibilizadas a partir do processo de colonialismo, capitalismo, modernidade e patriarcado. Nesse sentido, o “norte” do corpo, seria aquele processo epistemológico que aponta seu desenvolvimento para uma única direção e não integra na sua construção outras possibilidades de interpretar o conhecimento e, por conseguinte, de praticá-lo. Trata-se de uma repetição de padrões sociais, um “norte” que só se enxerga a ele próprio como único existente para direcionar o impulso e a ação humana. Trata-se, portanto, de um modelo totalitário de observar, de pisar, de imaginar, de se relacionar, de ser, de existir, e principalmente de não existir. Este norte “se defende ostensivamente de duas formas de conhecimento não científico (e, portanto, potencialmente perturbadoras): o senso comum e as chamadas humanidades” (SANTOS, 2002, p. 60) se opondo à incerteza e se escravizando à certeza. Ele se encarrega de doutrinar a corporeidade para existir e se relacionar dentro de um imaginário globalizado, um sistema de conhecimento determinado, deixando isolada e sem sentido nossa condição criadora, sensível e crítica. Deste modo, a condição crítica e poética da arte e o sul do corpo entram em divergência, desafiam e questionam a imposição do norte. Essa condição espiritual, religiosa e mítica de nossas culturas representa também esse lado da condição humana que nos conforma como seres íntegros, mas que foi julgada e silenciada pelo exército da racionalidade. Representa o sul do corpo. O sul que dá forma à imaginação, sensibilidade e espiritualidade. O sul é a medula que engendra a matéria prima com a qual o artista cria. A arte é considerada como um movimento de contracultura porque trabalha exatamente com a condição humana que precisa ser apagada para que o sistema patriarcal, individualista e capitalista funcione e termine de exterminar as fontes da vida. Falar de espiritualidade nos trabalhos futuros se apresenta como uma forma de acionar a descolonização. Temos que deixar falar o sul, diz Boaventura: “Para se aprender a partir do sul, devemos, antes de mais nada, deixar falar o sul, pois o que melhor identifica o sul é o fato de ter sido silenciado.” (SANTOS, 2002, p. 372). Precisamos de outras formas de desenvolver as práticas de conhecimento para continuar o caminho utópico de reverter a ordem social que esmaga a nossa condição humana. Até quando, esse espírito da arte que é político e transgressor em todos os sentidos, deixará de servir como instrumento para afirmar a cultura hegemônica e o euro-centrismo, atuando a favor de oprimir e continuar invisibilizando nossas identidades heterogêneas, diversas, ancestrais e milenares? Até quando vamos negar outros legados epistemológicos e reconhecer que eles podem nos trazer um riquíssimo exemplo de dignidade, justiça e coletividade?
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Acreditamos que a poética dos elementos e o sul corpóreo resgatam um legado epistemológico deixado para trás no processo de colonização e no Grupo Arkhétypos, transformamos isso em arte, em uma prática artística coletiva que busca dar voz para às identidades heterogêneas e ancestrais. Refletindo sobre esta prática, podemos realizar um exercício de hermenêutica diatópica (SANTOS, 2010). A hermenêutica parte da ideia de estabelecer um diálogo entre diferentes culturas, gerando também uma confrontação, e dentro disso, pode-se encontrar princípios isomórficos que promovam a experimentação das diferentes respostas que este embate pode nos proporcionar. A hermenêutica diatópica parte da ideia de que todas as culturas são incompletas e, portanto, podem ser enriquecidas pelo diálogo e pela confrontação com outras culturas. Admitir a relatividade das culturas não implica adotar sem mais o relativismo como atitude filosófica. Implica sim conceber o universalismo como uma particularidade ocidental cuja supremacia não reside em si mesma, senão na supremacia dos interesses que a sustentam. A crítica do universalismo se segue da crítica da possibilidade da teoria geral. A hermenêutica diatópica pressupõe, pelo contrário, o que designo como universalismo negativo, a ideia de impossibilidade de completude cultural. [...] uma teoria geral sobre a impossibilidade de uma teoria geral. (SANTOS, 2010, p. 48)48.
Desde 2010 o Grupo Arkhétypos vem pesquisando as manifestações populares da cultura do Rio Grande do Norte, e ao longo dos últimos seis anos nos deparamos com uma série de princípios que se inter-relacionam com o trabalho de criação do ator/bailarino. Em 2014, no entanto, esse trabalho é intensificado com a chegada da atriz e bailarina mexicana Rocio del Carmen Tisnado Vargas ao grupo. Rocio é descendente da civilização Maia e traz consigo todo um universo simbólico do “sul” que vem coadunar com as pesquisas desenvolvidas no grupo, agregando saber à nossa prática. A civilização Maia, uma das culturas Mesoamericanas fascinadas pelo mistério do cosmos, sabia que o ser humano não era outra coisa senão uma projeção de energia e que sem energia não existe matéria. Eles chamaram o Corpo de Wuinclil, que tem a seguinte raiz: Wuinc – Ser, e Lil – Vibração, ou seja, para os Maias o corpo é um ser vibrante de energia, e eles definiram também que a energia universal procede do sol – Kinan (CASTILLO, 1981, p. 19). Os Maias descobriram, assim como outras culturas, que o propósito mais importante do homem deve ser elevar o nível de sua energia vital que a chamavam Puah. Podemos compará-la com a mesma energia que os hindus conhecem como Prana e os chineses denominam T’chi. É a energia que movimenta o corpo, as emoções e os pensamentos, 48 Tradução nossa para: “La hermenéutica diatópica parte de la idea de que todas las culturas son incompletas y, por tanto, pueden ser enriquecidas por el diálogo y por la confrontación con otras culturas. Admitir la relatividad de las culturas no implica adoptar sin más el relativismo como actitud filosófica. Implica, sí, concebir el universalismo como una particularidad occidental cuya supremacía como idea no reside en sí misma, sino más bien en la supremacía de los intereses que la sustentan. La crítica del universalismo se sigue de la crítica de la posibilidad de la teoría general. La hermenéutica diatópica presupone, por el contrario, lo que designo como universalismo negativo, la idea de la imposibilidad de completitud cultural. […] una teoría general sobre la imposibilidad de una teoría general” (SANTOS, 2010, p. 48).
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levando a mente a vibrar mais alto. O seguinte quadro nos mostra a interpretação que cada cultura dá a esta energia:
Cultura
Energia que circula no organismo
Interpretação
China
T’CHI
Forças psicofísicas do sangue e a respiração
Índia
PRANA
Forças infinitesimais que constituem a matéria
Maia
PUAH
Forças celestes que distribuem a torrente da vida
Fig. 2 : Quadro 1 – Culturas comparadas no domínio e manipulação de energias (CASTILLO, 1981, p. 133)
Essa energia, concebida como o movimento universal cósmico, era captada pelos Maias de forma direta. O ritual era um dos meios de comunicação, interconexão e interrelação transcendental com esta energia e a consciência do universo: Puah é o estado intermédio do tangível e intangível que transmite as ondas da energia cósmica através do espaço e do tempo, não tendo importância a distancia. [...] Propicia que o corpo solar do homem seja sensível aos estados físicos de outros e sinta simpatia imediatamente por uns e aversão por outros; também é o meio de compreender “sentir com” o sofrimento físico, necessidade ou bem-estar do outro. Também faz que se produza compreensão emocional que é muito mais rápida e penetrante. (CASTILLO, 1981, p. 93)49.
Começar a perceber o corpo como um ser vibrante de energia nos trouxe uma bússola e nos revelou uma poesia corporal que nos atravessa não apenas como sul, mas com todas as outras possibilidades de direcionamento do corpo. Essa bússola que é nosso corpo pode nos levar para muito além ou para muito perto potencializando a nossa imaginação material. A presença corporal do sul nos aponta, nos desponta, desaponta, nos avança, nos defende, nos fortalece, nos une, nos mistura e realmente nos atravessa, como quem assume a coragem de atravessar uma fronteira. O sul corpóreo nos atravessa sem nenhuma pretensão de um único lugar, mas de possibilitar os diversos caminhos ao mesmo tempo. Acreditamos, por fim, que é preciso encontrar outras poéticas que nos conectem com as geografias internas que habitam em cada um de nós, com as imaterialidades da vida que fazem vibrar nossa peculiar presença, e, acreditamos que a poética dos elementos 49 Tradução nossa para: “Puah es el estado intermedio de lo tangible e intangible que transmite las ondas de la energía cósmica a través del espacio y el tiempo, no importando la distancia. […] Propicia que el cuerpo solar de un hombre sea sensible a los estados físicos de otros y sienta simpatía de inmediato hacia uno y aversión hacia otro; también es el medio de comprender “sentir con” el sufrimiento físico o la necesidad o el bienestar del otro. Además, hace que se produzca la comprensión emocional que es mucho más rápida y penetrante” (CASTILLO, 1981, p. 93).
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e a metáfora do sul corpóreo podem nos conduzir a um processo de descolonização do nosso imaginário. Precisamos apostar nas práticas que tenham a ver com uma relação mais intrínseca com a natureza, uma prática que se faz carne, alma, sul, norte, leste e oeste. Portanto, que o nosso fazer anuncie, a partir de todas suas direções, a desconstrução e descolonização do imaginário, desvelando a esfera da alteridade, da liberdade de um corpo entregue à poesia, ao desconhecido, à dança, à sensibilidade, ao compromisso social, ao transe, à justiça social, ao aqui e agora, e à essência anárquica do teatro.
Referências:
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 2013. BÉLIÈRES, Patricia; CANCELA, Alejandro; SÁNCHEZ, Rodolfo. El cantante popular y la interpretación: Una proposta metodológica integradora de saberes. Buenos Aires: Melos, 2013. CASTILLO, Enrique. Psicotrónica de los Mayas. México: Ed. Orión, 1981. CASTILLO, Fernando Muñoz. Teatro Maya Peninsular (Precolombino y Evangelizador). [1995]. Disponível em: http://www.raco.cat/index.php/assaigteatre/ article/viewFile/145688/260912 Acesso em: 16 dez. 2015. DIÉGUEZ, Ileana. Cuerpos sin Duelo Iconografías y Teatralidades del Dolor. Córdoba: Escénica Ediciones, 2013. DUSSEL, Enrique.1492 El Encubrimiento del Otro, Hacia el Origen del “Mito de la Modernidad. La Paz: Plural Editores, 1994. FABRINI, Verônica. Arte, Ciência e Descolonização. In: BAPTISTA, Ana Maria Haddad; SEVERINO, Francisca Eleodora; ANDRÉ, Carminda Mendes (Orgs.). Artes, Ciências e Educação. São Paulo: Big Time Editora, 2015. SANTOS, Boaventura. A crítica da Razão Indolente, Contra o desperdício da Experiência. São Paulo: Cortez Editora, 2002.
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_______. A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal. In Revista Crítica de Ciências Sociais, Março de 2008, nº. 80. Coimbra: CES, 2008.p. 11-43. _______. Refundación del Estado en América Latina, Perspectivas desde una Epistemología del Sur. Lima: Instituto Internacional de Derecho y Sociedad, 2010.
Curriculum Resumido do(s) autores(s):
Rocio del Carmen Tisnado Vargas Atriz, bailarina e pesquisadora, mestranda pela UFRN com pesquisa em andamento no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Ex-integrante da companhia mexicana Teatro los Hijos de María residente do Instituto de Cultura Turismo y Arte de Mazatlán, México. Atua na linha de pesquisa Pedagogias da Cena: Corpo e Processos de Criação. Orientador: Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek. Atriz e bailarina integrante do Arkhétypos Grupo de Teatro.
Robson Carlos Haderchpek Ator, diretor e pesquisador, docente do Curso de Teatro da UFRN, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas e coordenador do Projeto de Pesquisa “A Arte do Encontro e seus Desdobramentos”. É membro do Grupo de Pesquisa CIRANDAR, do NACE, do IMÃ, e diretor do Arkhétypos Grupo de Teatro. Fez Graduação, Mestrado e Doutorado na UNICAMP e o Pós-Doutorado na Universität für Musik und Darstellende Kunst Wien – Áustria.
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O CORPO É UMA FESTA! REFLEXÕES EM TORNO DA ORALIDADE BRASILEIRA Daniel Santos Costa (ESEBA - UFU); Sayonara Pereira (ECA - USP)
Resumo: Neste texto buscamos refletir sobre o corpo no contexto da oralidade popular brasileira munidos de um referencial pós-colonial. Diante de nossa análise evidenciamos a revisão de uma postura metodológica e epistemológica de investigações que lançam olhares ao universo performativo periférico e marginal, lócus em que estão inseridas a maior parte das manifestações performativas da oralidade popular brasileira, onde O corpo é uma festa! Palavras-Chave: Corpo; Dança; Experiência; Festa; Oralidade; Performatividade;
Abstract: This paper pretends to look to the body in the context of Brazilian´s Popular orality from a post-colonial framework. We evidence, in the analisys, the review of a methodological and epistemological stance in researches which has their focus on peripheral and marginal performative universe, locus in which most of performative expressions of Brazilian’s popular orality has its place, where The body is a festivity! Keywords: Body; Dance; Experience; Festivity; Orality; Performativity;
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A Igreja diz: O corpo é uma culpa. A ciência diz: O corpo é uma máquina. A publicidade diz: O corpo é um negócio. O corpo diz: Eu sou uma festa. Eduardo Galeano50
Parafraseamos Galeano no título deste artigo pois, além de concordarmos com sua visão acerca do corpo, interseccionamos uma reflexão acerca do corpo no universo da oralidade popular brasileira, na qual percebemos possível tal disposição metafórica. No contexto de nossas pesquisas, focamos a oralidade concentrada nos efeitos da presença, do ambiente e do corpo em ação numa concepção singular de performance, segundo preceitos de Paul Zumthor (1997) e de Leda Maria Martins (2001) que apresenta o termo oralitura, definindo-o por conseguinte: O termo oralitura, da forma como o apresento, não nos remete univocamente ao repertório de formas e procedimentos culturais da tradição linguística, mas especificamente ao que em sua performance indica a presença de um traço cultural estilístico, mnemônico, significante e constitutivo, inscrito na grafia do corpo em movimento e na velocidade (MARTINS, 2001, p. 84).
Tais definições estão em acordo com a ideia de escrituras e experiências não registradas, como é o caso de grande parte da cultura tradicional brasileira e aproxima-se, de certo modo, aos processos formativos em dança e teatro aliados à poética da oralidade, daquilo que é voz, movimento, ação, ou seja, experiências orais. Neste lugar, pleiteamos uma similaridade entre oralidade e corporeidade, pois no contexto em que interseccionamos tal reflexão a oralidade envolve também o corpo, ou seja, a oralidade pode ser considerada uma “fala construída no corpo e pelo corpo” (SETENTA, 2008, p. 143). Ao adentrar nesse espaço de reflexão e diante da tentativa de compressão dos fenômenos no universo da oralidade popular brasileira, tem sido necessário despir o olhar colonizado que rege nossas categorias de pensamento. Assumindo tal postura, nos engajamos na compreensão sobre os registros e experiências advindas do projeto de doutorado “Da Oralidade Popular Brasileira a uma Dança Teatral Performativa: o corpo pós-colonial como um lugar de experiência”, na qual o sujeito-pesquisador é oriundo do universo das Folias de Reis em Minas Gerais e Goiás, espectador das performances-rituais de Umbanda, especialmente na cidade de Campinas – São Paulo, além do pertencimento ao Movimento dos Sem-Terra, em Minas Gerais durante a década de 1990 e meados dos anos 2000. Nesta investigação buscamos a associação do corpo como festa para (re) pensar a produção cênica na contemporaneidade A ideia de experiência proposta por Larossa (2014) é trazida para a presente reflexão, pois o autor aponta que “experiência” seria aquilo ou algo que nos atravessa: um acontecimento único, singular. Esse pensamento comunga com o princípio da festa, que “são fluxos de acontecimentos únicos que tem em suas tramas, seus efeitos, seus segredos e suas aberturas” (CASTRO JÚNIOR, 2014, p. 26). Nessa perspectiva, tais espaços de acontecimentos poderão ser aqui tratados como encruzilhadas, espaços simbólicos muito presentes no imaginário popular, especialmente na perspectiva das Folias de Reis e 50
GALEANO, Eduardo. As Palavras Andantes. Trad. Eric Nepomucemo. São Paulo: L&PM, 1994.
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Umbandas aqui tramadas. Com esse contorno, articulamos nosso pensamento com a crítica pós-colonial, buscando o diálogo com saberes periféricos e marginalizados frente a sociedade contemporânea, especialmente na perspectiva das Epistemologias do Sul, defendidas por Boaventura de Sousa Santos e que: Trata-se do conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam a supressão de saberes levada a cabo, ao longo do último século, pela norma epistemológica dominante, valorizam os saberes que resistiram com êxito e as reflexões que estes tem produzido e investigam as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos. A esse diálogo entre saberes chamamos ecologia dos saberes. (SANTOS E MENESES, 2010, p. 11).
Ao lado de Santos e Meneses (2010), em um entrelaçamento também de teorias contemporâneas, trazemos para esta conversa autores diversos, pois ao adentrar o terreno da oralidade popular brasileira podemos perceber que este espaço aproxima-se da noção de interdisciplinaridade, ou ainda, da transdisciplinaridade. Sendo assim, essas referências teóricas oferecem-nos possibilidade de um trânsito epistêmico que emerge de tais processos inter ou transculturais. Cumpre salientar que no interior desses processos confrontamse e dialogam, nem sempre amistosamente, registros, concepções e sistemas simbólicos diferenciados, como reflexo da complexidade da vida. A título de exemplo, apresentamos um trecho que exprime tal dinamismo: Essa percepção cósmica e filosófica entrelaça, no mesmo circuito de significância, o tempo, a ancestralidade e a morte. A primazia do movimento ancestral, fonte de inspiração, matiza as curvas de uma temporalidade espiralada, na qual os eventos, desvestidos de uma cronologia linear, estão em processo de uma perene transformação. Nascimento, maturação e morte tornam-se, pois, eventos naturais, necessários na dinâmica mutacional e regenerativa de todos os ciclos vitais e existenciais. Nas espirais do tempo, tudo vai e tudo volta (MARTINS, 2001, p. 84).
Olhar para este viés da cultura brasileira, implica vislumbrar o sincretismo, o espaço da encruzilhada – lugar simbólico no qual se processam vias diversas, operadoras de linguagens e de discursos. A encruzilhada seria um terceiro lugar, ou como definiu Bhabha (2013), um entre-lugar, geratriz de produção signica, diversificada e, portanto, um território de sentidos, de elaboração discursiva, estimulada pelos próprios discursos que ali coabitam. Para este autor tal espaço não está dentro nem fora, mas numa relação tangencial entre essa fronteira ou uma zona de negociação, entre dentro-fora, centro-periferia ou, ainda, globallocal, contribuindo para a desestabilização de categorias centralizadoras do pensamento utópico, promovendo tensões de forma complexa e híbrida. O conceito híbrido para a presente pesquisa também ancora definição em Canclini (2011), que delimitou tal ideia como encontro de práticas ou estruturas que existiam de formas separadas e combinam-se no exercício da geração de novas estruturas, objetos e práticas. Sendo a encruzilhada o território dos encontros, propomos aproximar esse lugar de conflitos e sincretismos à festa, o espaço da ação e do acontecimento no contexto da oralidade popular brasileira subsidiados por Martins (1997). O teórico em questão, 90
aborda a encruzilhada como lugar radial de centramentos, descentramentos, intersecções, influências, divergências, fusões, rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem e disseminação. Partindo de tal premissa, o acontecimento da festa permite perceber a performatividade dos corpos nesses espaços liminares, pois nos “Estudos da Performance”, tal conceito é entendido como o próprio acontecimento, ou seja, o aqui e agora das ações, no instante e na experiência, com toda sua expressividade e singularidades, lócus exponencial para desestabilização do pensamento. A festividade é definida por Bakhtin (1999) como uma forma primordial marcante da civilização humana, sendo espaço de expressão, imbricando tradição, símbolos e práticas. A festa é, contudo, uma maneira de transmitir para novas gerações práticas tradicionais e históricas a determinados processos de vida e trabalho. Nesses espaços, percebemos o universo da oralidade popular brasileira constituído não só de símbolos e gestualidade, mas de uma apropriação corporal singular dos sujeitos que habitam tais locais. Sujeitos estes que recriam através de seus arquivos corporais, contando-nos no espaço do aqui e agora da performance uma história incorporada numa integração entre passado-presentefuturo, como nos é apontado abaixo: A festa popular é o grande e fecundo momento a nos ensinar que a arte de viver e de compreender a vida que nos envolve está na perfeita integração entre o velho e o novo. Sem o novo, paramos no tempo. Mas sem o velho nos apresentamos ao presente e ao futuro de mãos vazias. (PESSOA, 2009, p. 44).
Na oralidade popular brasileira, no cotidiano e nos espaços de festividades, é possível vislumbrar uma dramaturgia corporal através dos estados do corpo. Todavia, esses limites são surpreendidos pelo fazer vivo desses acontecimentos performativos, encontrando lugar no espaço-tempo através da experiência, possibilidade distanciada de conceitos rígidos e modelos cientificistas. Nestes territórios, corpo não é apenas uma imagem cultuada, mas é o próprio acontecimento da experiência, buscando sempre estratégias adaptativas. Conforme Diana Taylor (2013) “os saberes corporificados são aqueles que foram constituídos historicamente na relação com a experiência social e que compõe nosso repertório, podendo ser imediatamente utilizados na solução de novos problemas.” Retomando Martins (1997, p. 28), o espaço da encruzilhada, ou como estamos denominando, o espaço da festa como o próprio corpo, poderá ser conceituado como “lugar radial de centramento e descentramento, intersecções e desvios, textos e tradução, confluências e alterações, influências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem e disseminação”. Nessa mesma linha de raciocínio, Lévi-Strauss (2007) afirmou que “cada um de nós é uma espécie de encruzilhada onde acontecem coisas”. Assim, reafirmamos “O corpo é uma festa!”, ao encontro do pensamento de Castro Junior: A festa é formada por experiências históricas; é fruto das movimentações e interconexões dos corpos-culturais que constituem uma das formas mais reveladoras do modo de ser de um grupo, de uma cidade e de um país e nesse espaço ‘intervalar’, que ficam suspensas algumas normas sociais, e outas são invertidas. (CASTRO JÚNIOR, 2014, p. 26-27).
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Perceber o acontecimento da festa como este espaço intervalar, ou encruzilhada, como aqui denominamos, abre frestas para pensarmos o espaço da oralidade popular brasileira como uma experiência. Ao aproximarmos dessa ideia, que de acordo com Larrosa (2014), trata-se de um modo de habitar o mundo além, a experiência não pode ser conceituada. Ela é a própria vida, transbordamento, criação, invenção, acontecimento e, nesse contexto, pronunciam crenças e modos de pensar das comunidades marginais, indicando a confluência de diversos sistemas epistêmicos. O corpo que é festa, festeja, narra saberes, torna-se visível na instabilidade entre sagrado e profano, entre luzes e trevas, entre certo e errado e tantas outras dicotomias. Trata-se de um corpo que é fé e divertimento, é vida e é arte, embevece-se de tragédias e comicidades, ou seja, um corpo em exuberante produção de vida. Ao friccionar corpo e festa no contexto da oralidade popular brasileira, permitimos também a aproximação com o “Pensamento Selvagem” de Levi-Stauss (1997), que se avizinha a um bricoleur, aquele que reorganiza o mundo em combinações, sem uma lógica utópica. Isto posto, temos que o mito vivido como uma experiência não evoca necessariamente o sentido ou a verdade que tanto postula o saber científico, mas habita a experiência sensível. Retomando o pensamento de Larrosa (2014), provocamos: A experiência não e uma realidade, uma coisa, um fato, não é fácil de definir, nem de identificar, não pode ser objetivada, não pode ser produzida. E tampouco é um conceito, uma ideia clara e distinta. A experiência é algo que (nos) acontece e que as vezes treme, ou vibra, algo que nos faz pensar, algo que nos faz sofrer ou gozar, algo que luta pela expressão. (LARROSA, 2014, p. 10).
Com tais proposições, apontamos que no momento do acontecimento da festa há a pronúncia de conhecimento incorporado, a festividade detona uma rede onde guardamos tudo que vivemos, como uma maneira de pensar não linear, acessando os recursos mnemônicos. De acordo com Taylor (2013, p. 138), ironicamente se parece com o conceito digital de redes, circuitos e interconectividade, mas é preciso atentar que: (...) o conhecimento é como o coração, escondido, batendo, brilhando imperceptivelmente, regulando canais que correm para trás e para frente para outros canais, torrentes e corretes inesperadas, controladas pela complexidade radial de ventrículos centrais muito poderosos. (TAYLOR, 2013, p. 126).
Neste momento, os apontamentos até aqui entrelaçados provocam a ideia de que o espaço-temporal da oralidade popular brasileira, como a festa, é nitidamente ancorado na presença, o que corrobora com as proposições de performatividade, ou seja, onde o discurso é o exercício do corpo em ação, onde o acontecimento é experiência ou a experiência como acontecimento. Daqui é possível reelaborar suposições metodológicas e epistemológicas que apontem para as encruzilhadas, metáfora da festa, ativadas pelo desejo, pela alegria, pela intuição, pelo instinto e pelo instante (acontecimento). Deste mesmo lugar, é necessário reavivar uma postura metafórica, pois como elucida Domenici (2009) tal proposição torna-se pistas para estudar o próprio corpo no contexto da oralidade popular brasileira. Apresentamos, diante disso, como proposta de investigação: a ideia de um corpo 92
pós-colonial como um lugar de experiência, simbolizado como um local que abriga questões epistemológicas sobre as artes da cena, tendo em vista a perspectiva do corpo como operador de pensamento. Nesse caminho, buscamos uma episteme plausível, “considerando epistemologias locais, que incluam visões de mundo e formas de conhecimentos bastante específicas” (DOMENICI, 2009, p. 9). O olhar que o sujeito-pesquisador vem tecendo para Folias de Reis e Umbandas, manifestações da oralidade popular brasileiras, demonstra a aptidão delas a um sincretismo dinâmico para sua manutenção na contemporaneidade. Desse lugar, enxergamos a dimensão dos pontos de contato51 designados por Schechner (2011) para a sustentação de seus aspectos rituais e um estado de jogo e performatividade, uma forma de organização mais íntegra que o pensamento positivista e cartesiano que domina a visão de mundo ocidental contemporâneo. Assim posto, “(...) aceitamos nossa espécie como sapiens e fabricans: aqueles que pensam e fazem. Nós estamos no processo de aprender como humanos também são ludens e performans: aqueles que jogam e performatizam” (SCHECHNER, 2011, p. 235). Precisamos, contudo, estar atentos ao conhecimento local e nos apropriarmos da dimensão extensa, densa e complexa da cultura brasileira, especialmente a popular que, por sua vez, tem muito a nos ofertar sem os fantasmas das essências românticas e colonizadoras. Entendemos, então, este momento como terreno propício a pulsão de uma transgressão metodológica (SANTOS, 2010, p. 78), intitulada pelo citado autor de paradigma emergente, no qual “a distinção hierárquica entre o conhecimento científico e o conhecimento vulgar tenderá a desaparecer e a prática será o fazer e o dizer da filosofia da prática” (SANTOS, 2010, p. 20). As Folias de Reis são manifestações performativas vinculadas ao catolicismo popular, que se baseiam na atualização do mito de nascimento do Menino Jesus. Os manifestantes buscam não somente rememorar suas narrativas fundantes, mas atualizamse performativamente por meio de toda diversidade de símbolos, ritos, gestos, cantos, músicas, ritmos, cores e do sentido mítico de cada um desses elementos no contexto local. Volta-se ao mito que sustenta a manifestação, numa encruzilhada espaço-temporal intangível. Trata-se, contudo, de uma manifestação que acontece no espaço da cidade, encruzilhando as vias urbanas, de forma processional. Este deslocamento é conhecido como giros que se movimentam, geralmente entre dezembro e janeiro cumprindo um roteiro de saída, visitações e chegada. A Folia de Reis é considerada uma das manifestações mais amplas em rituais, sendo a festa sua culminância, o acontecimento principal. Tal acontecimento marca o fim e novamente o começo, pois nas manifestações da oralidade popular brasileira há um intrínseco movimento espiralar untado à conexão passadopresente-futuro. Assim: Como modelo de vida menos dicotômico, observa-se, por exemplo que não há momentos específicos de treinamento, pautados na oralidade – não restrita à 51 Richard Schechner (2011) definiu pontos de contato entre a antropologia e o teatro, reforçando o campo de precisão dos Estudos da Performance. Aqui são apresentados os pontos até o momento definidos, mas há a clareza de que há mais pontos surgindo. São eles: 1. Transformação do Ser e/ou Consciência; 2. Intensidade da Performance; 3. Interações entre audiência e performer; 4. A Sequência total da performance; 5. A Transmissão do conhecimento performático; 6. Como as performances são geradas e avaliadas?
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fala – e na corporeidade, os processos de transmissão e de transformação vão ocorrendo sem grandes dores (COSTA E NAVARRO, 2014, p. 149).
Os corpos, no contexto da oralidade, estão à margem de alguns dos imperativos sociais no meio urbano e, por conta disso, desenvolvem modos particulares de expressão que, por sua vez, tornam-se indícios de um esforço de integridade que acompanha esses corpos tanto no momento da expressão, quanto nas festividades, momento ápice da expressão singular de cada manifestação, quanto nas atividades cotidianas. Uma das figuras mais emblemáticas de tal manifestação é o palhaço ou bastião. Diferentemente dos corpos densos, frágeis, lentos dos foliões mais velhos, os palhaços das Folias apresentam um corpo leve, ágil, mesmo quando também são pessoas idosas. Há uma dualidade muito bem apresentada, onde sagrado e o profano manifestam-se em seus corpos performativos e tais palhaços dançam, pulam, rolam no chão. São criadores excêntricos, no sentido strictu da palavra, mascarados e com vestimenta e adereços bem marcantes. São personagem enigmáticas, provocadores de controvérsias, sendo singular figura/personagem que apresentam movimentos dançantes, ágeis e de descolamentos coreográficos e declamações de chulas (versos burlescos e jocosos) que destoam da procissão que os sucedem no espaço ritual, onde vinculam-se cada vez mais a ideia cristã da manifestação, fato menos observado quando tais manifestações ainda eram de primazia rural. Contudo, nos alinhamos ao sentido da performatividade que tais manifestações, podem provocar, seja numa postura metafórica, no sentido mítico ou no fazer analógico. A capacidade de se tornar outro e o mistério do jogo manifestam-se de modo marcante no costume da mascarada. Aqui atinge o máximo da natureza “extraordinária” do jogo (cf. Huizinga, 2007, p. 16). O olhar que tecemos para as Umbandas está muito mais na mito-poética da sua manifestação do que na estrutura ritual em si. Tal manifestação “ (...) é um exemplar desse registro sincrético, fundindo em seu tecido cognitivo e ritual, elementos de outros sistemas religiosos nagô, banto, católico, tupi-guarani, kardecista, espírita numa reformulação sui generis” (MARTINS, 1997, p. 14). Como uma religião, ela vem se desenvolvendo, desde a década de 1930, no cenário brasileiro, num contexto de intensos sincretismos entre tradições religiosas, a aglutinação umbandista é uma fusão sistêmica e vem ao encontro de uma perspectiva da formação da sociedade brasileira, mestiça, híbrida, limiar. Nessa perspectiva, a Umbanda representa uma encruzilhada onde poderemos profanar estratégias para olhar, metodologias para amalgamar e uma episteme plausível para o contexto que habitamos. As encruzilhadas na Umbanda são lugares de entrecruzamentos, onde é feita a oferenda ou despacho a Exu, uma das figuras mais controversas do Universo da Umbanda. A tradução de seu nome na cultura iorubá aproxima-se de “aquele que está em toda parte” ou “aquilo que não tem nem início nem fim”. Assim, ele é tido como mensageiro, como elo de comunicação entre polos distintos, entre o céu e a terra, que rompe dicotomias entre bem e mal, entre certo e errado. Com isso, essa figura é a própria noção de encruzilhada, considerado, então, ou Rei ou Cavalheiro desse lugar. O trânsito nas umbandas nos convoca à esfera de um pensamento marginal, 94
distanciados das compreensões totêmicas da ciência moderna. Esta compreensão está mais para a perspectiva da experiência num entre-lugar onde se dá um movimento de intenso sincretismo que desafia nossos modos de pensar. Aqui há sempre espaço para o novo e podemos pensar no combate às ideias paradigmáticas dos dualismos, lócus em que a produção está para a oralidade. Ao olhar, então, para a oralidade popular brasileira, operaremos na lógica do mito, uma relação espaço-temporal ancorada no acontecimento, fato que “foi escorraçado na medida em que foi identificado com a singularidade, a contingência, o acidente, a irredutibilidade, o vivido” (MORIN, 2005, p. 181). Deslocando o olhar para tais espaços da oralidade necessitaremos romper muito mais a lógica que predomina em muitos processos artísticos contemporâneos: a imitação colonial, conceito postulado por Santos (2008). Aliado ao estudioso português, nossa investigação está enraizada em uma perspectiva pós-colonial, em práticas performativas e nos discursos que constroem as narrativas coloniais. Tal processo, requer uma aproximação da escrita do próprio colonizado que traz imbuído em sua ação (discurso performativo) um modo de organizar o pensamento artístico, as ausências que o discurso hegemônico ocidental nacionalizante e normativo postulou. Nessa caminhada, apontamos as seguintes prerrogativas: a experiência como acontecimento, a ambiguidade de referências, proposições e intervenções práticas, multiplicidade de perspectiva, criação de novos argumentos, novos posicionamentos diante do mundo, novos sentidos. Além disso, buscamos mais uma vez reivindicar a experiência, o acontecimento da experiência na cena contemporânea, não distanciada da vida, que se inscreve no próprio corpo, ancorado também na perspectiva de que: (...) o corpo em performance é, não apenas, expressão ou representação de uma ação, que nos remete simbolicamente a um sentido, mas principalmente local de inscrição de conhecimento, conhecimento este que se grafa no gesto, no movimento, na coreografia, nos solfejos da vocalidade, assim como nos adereços que performaticamente o recobrem. Nesse sentido, o que o corpo se repete não se repete apenas como hábito, mas como técnica e procedimento de inscrição, recriação, transmissão e revisão da memória do conhecimento, seja este estético, filosófico, metafísico, científico ou tecnológico, etc. (MARTINS, 2003, p. 66).
Ao assumir o risco propositivo da exclamação O corpo é uma festa! apostamos para além do diálogo com a oralidade popular brasileira, mais uma tentativa de aqui se instalar. Fugindo do olhar generalizador, no espaço intersticial da encruzilhada, estabelecemos nosso posicionamento político como prática performativa, um espaço do aqui e agora, da não representação, do não mimetismo e da possibilidade de vivenciar múltiplos caminhos. Nesta perspectiva, o processo de criação é produção de conhecimento pautada em inquietações das negociações binárias tais como singular/coletivo, eu/outro, teoria/prática, presença/representação, onde o corpo fala, diz, performa seu ponto de vista sobre o mundo.
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Currículo resumido dos autores: Daniel Santos Costa é Docente na Universidade Federal de Uberlândia – Escola de Educação Básica (ESEBA). Doutorando em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP) e Mestre em Artes da Cena pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), onde também graduou-se em dança (bacharel e licenciado). Autor do livro Encruzilhadas de uma Dança-Teatro Brasileira (Prismas, 2016), Histórias e Memórias de Folias de Reis (Egil, 2010) dentre outras publicações especializadas. Pesquisador do grupos de pesquisas (CNPq): LAPETT – USP, PINDORAMA – UNICAMP e SPIRAX – UFU. Blog: http://dancadaniel.blogspot.com.br/. E-mail: grdcosta@ufu.br
Sayonara Pereira é Professora Doutora e pesquisadora da Escola de Comunicações e Artes- Departamento de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Graduada em Pedagogia da Dança pela Hochschule Für Musik und Tanz – Köln /Alemanha, Doutora e pós Doutora pelo IA/UNICAMP, e especialista em Dança pela Folkwang Hochschule –Essen/Alemanha. Dirige o LAPETT (Laboratório de Pesquisa e Estudos em Tanz Theatralidades ) na ECA/USP. E-mail: sayopereira@usp.br
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AFINAL, COMO A CRÍTICA DECOLONIAL PODE SERVIR ÀS ARTES DA CENA? Elisa Belém52
Resumo: Visando discutir o propósito e a aplicação da perspectiva decolonial à análise de trabalhos da área de artes da cena, o artigo apresenta uma visão crítica sobre seu uso. Defende que discutir os aspectos da colonialidade não pressupõe negar as culturas estrangeiras. Apresenta possíveis abordagens analíticas ao referir-se a exemplos de espetáculos de teatro, dança e trabalhos de artes visuais. Palavras-chave: Decolonial; Colonialidade; Interculturalismo;
Abstract: Wishing to discuss the purpose and the aplication of the decolonial perspective to analyse works on the field of performing arts, the essay shows a critical gaze on its use. It defends that to discuss aspects of coloniality do not mean to negate foreing cultures. It brings possible analytical approaches in order to refer to examples of pieces of theatre, dance and visual arts. keywords: Decolonial; Coloniality; Interculturalism;
52 Doutora em Artes da Cena, Instituto de Artes da UNICAMP, com o suporte da bolsa FAPESP. Realizou residência de Pós-Doutorado no IA/UNICAMP, com o suporte da bolsa PNPD/CAPES, em 2015 e na Escola de Belas Artes da UFMG, em 2014, bolsa FAPEMIG/CAPES.
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Ao analisar a produção teatral e dramatúrgica brasileira à luz do pensamento e da teoria decolonial, o que de fato se busca? Certamente, não há como se desfazer um processo histórico e cultural relativo à colonização no país. É necessário perceber também que não se trata de negar a influência europeia na constituição cultural e artística. Não creio que se refira ainda, a ação de devorar culturas ou de promover um ato de antropofagia, como queriam os modernistas brasileiros. Conforme a perspectiva decolonial, trata-se de perceber as marcas da colonialidade ou uma ferida colonial (Mignolo, 2005). Tal ferida revela um panorama de fundo nas relações em sociedade, numa colonialidade do saber e do ser, que interfere na subjetividade. Desde o século XVI, segundo Mignolo (2005), tudo o que podemos ler ou ver em mapas sobre o lugar das Américas na ordem mundial é historicamente localizado a partir da perspectiva europeia, que é tomada como universal. Mesmo que houvesse uma consciência de que havia um mundo e pessoas fora da Europa, ambos foram apresentados como “objetos” – ausentes como sujeitos e portanto, fora da história. De acordo com Mignolo (2005), eles foram sujeitos cujas perspectivas não contaram. Nesse sentido, propõe que a “descoberta” da América e o genocídio de índios e escravos africanos são a base, a fundação da “modernidade” que constituí seu lado obscuro e sua face escondida. Os povos e sujeitos silenciados teriam incorporado o que o autor se referiu como um senso de inferioridade, revelando a existência de uma ferida colonial. Na América Latina, ainda não a teríamos curado, de acordo com Mignolo (2005). Por essa razão, Mignolo (2005) mostra a necessidade de uma decolonização do conhecimento e da subjetividade. O autor mostra que, além da exploração pela extração dos recursos naturais, pela conquista e controle de terras, pela escravidão e pela divisão de raças, houve um controle do conhecimento e da subjetividade que foram emaranhados na questão da modernidade/colonialidade, levando a uma geografia do conhecimento específica e a um controle da existência. Esse controle do conhecimento e da subjetividade atua em várias instâncias. Há diferenças epistêmicas em termos de entendimento do mundo, já que os diversos povos indígenas possuem (ou possuíam) cosmogonias específicas, assim como os africanos e afro-descendentes possuem as suas próprias narrativas e saberes. Tais cosmogonias, narrativas e saberes estão diretamente relacionados às línguas que, uma vez suprimidas, levaram com elas mitologias, memórias e subjetividades. A ideia da América Latina excluiu indígenas e africanos, submentendo todos ao predomínio das línguas de origem latina, que por sua vez, foram associadas aos princípios do Cristianismo, da ideia da vantagem do novo e da civilização, da modernidade e do capitalismo europeus. Dessa forma, para Mignolo (2005), a América não foi “descoberta”e sim, “inventada”. A colonialidade do poder e a colonialidade do saber, que gerou a colonialidade do ser, foi aumentada, já que em muitos países, após suas respectivas independências, passou a haver um colonialismo interno e outros, sofreram ou sofrem com um novo tipo de colonização por meio do neoimperialismo e da globalização. Pensar o teatro e a dramaturgia a partir dessa crítica não pressupõe procurar por uma incerta forma original que, porventura, anteceda as primeiras experiências cênicas no Brasil. Se esse fosse o propósito, teríamos que passar a conhecer mais a fundo as formas rituais e suas correspondentes cosmogonias. Ou mesmo, empreender um caminho 100
de negação denso e praticamente impossível, como se a cultura atual pudesse ser desfeita e encontrado um marco puro e originário que nem sabemos qual é. A crítica que revela a ferida colonial pretende, na verdade, que se reconheçam as relações de poder instituídas entre culturas e dentro de uma mesma nação. Por interesse de determinadas nações, em razão da soberania política e econômica, do desenvolvimento do capitalismo e da modernidade, foram legados aos países que sofreram a colonização, alguns valores e relações que corroboram com o racismo e o senso de inferioridade. No falar cotidiano, isso aparece nas famosas frases como: “isso é porque é no Brasil, se fosse lá fora não seria assim”; “brasileiro não tem jeito mesmo, quer sempre levar vantagem”. O que sempre me impressionou nessas frases, principalmente depois de viver “lá fora”, foi ouvi-las de brasileiros falando deles mesmos, mas como se não o fossem, se auto-excluindo da própria nacionalidade que criticam. E, na maioria das vezes, sem aparentemente ter tido a experiência de viver no exterior ou mesmo viajar, ou seja, projetando uma realidade construída como ideal por algum tipo de midia ou de informação. Sempre que ouço frases como essas, lembro-me das minhas experiências de morar como estudante em países estrangeiros, conviver e ver imigrantes das várias partes do mundo. Muitos desses imigrantes nunca me pareceram felizes por morar no exterior. Pelo contrário, é possível ver no rosto e nas mãos de famílias inteiras ou nos homens apartados de seus núcleos familiares, o sofrimento causado pelo deslocamento de seus países de origem, pela dificuldade financeira e relações de racismo, nas suas diversas variações. No vocabulário da língua inglesa, há uma palavra que expressa esse sentimento: displacement – a sensação de encontrar-se “fora do lugar” ou “sem lugar”. Mesmo nas belas e interessantes cidades do exterior, as vezes o que ser quer é a sua própria casa, a comida, a cor ou algum tipo de relação afetiva com a própria cultura. Do contrário, não seria necessário discutir temas como multiculturalismo, interculturalismo, intraculturalismo, identidade e diferença. Se a harmonia existisse em larga escala, não haveria guetos, nem bairros separados para cada um dos grupos culturais em cidades como Londres, Nova York e mesmo São Paulo. Um brasileiro falando dos “brasileiros”, como se não tivesse essa nacionalidade, revela a constituição de uma colonialidade bastante entranhada. Da mesma forma, são consumidos produtos da indústria cultural que contribuem para a permanência desse tipo de fala e de pensamento. Na televisão e no cinema isso é bastante explícito, já que, por meio da imagem e da palavra, privilegiam-se determinados comportamentos e formas de relação baseados naquilo que se quer como uma cultura hegemônica e globalizada. Nas artes da cena isso também ocorre em determinados modos de produção e de construção do discurso. Vale lembrar, no entanto, que temos nos países da América Latina um modo de trabalho bastante específico no âmbito das artes da cena que são os grupos de teatro. Foi desenvolvido um modus operandi particular nesses grupos e também no que se refere à autoria da cena e de textos. É claro que há importantes grupos de teatro na Europa e nos Estados Unidos que também discutiram tais relações e processos de criação como o Thèâtre du Soleil, na França e o Living Theatre, nos Estados Unidos, entre outros. Mas certamente, o trabalho em grupo é uma marca da América Latina, que contribui, inclusive, para a possibilidade e permanência da criação cênica devido à precariedade das políticas 101
públicas culturais e difíceis condições financeiras que enfrentam. Não acredito que seja um propósito da crítica pós-colonial e decolonial levar à negação de escolas e linhagens estrangeiras, no que se refere ao aprendizado e desenvolvimento da atuação ou mesmo da dramaturgia. Isso me parece uma discussão inócua. É importante e necessário conhecer os princípios desenvolvidos pelos encenadores-pedagogos das mais diversas tradições europeias, norte-americanas e dos países orientais, conforme seja possível o acesso a tais fontes ou a materiais desenvolvidos por sucessores. O que me parece relevante é perguntar como criar a partir dessas referências e como lidar de forma crítica com as condições da transmissão de seus elementos. Da mesma forma, parece extremamente importante voltar o olhar para os saberes das tradições e comunidades das mais diversas regiões do Brasil, a fim de reconhecer nelas características relativas à teatralidade e à performatividade. Mais do que isto, perceber como pensamos a cultura, como nos relacionamos em sociedade, como falamos, como agimos e como nos movemos. Há palavras, dizeres e ações, em todas as culturas, que não são passíveis de tradução. Nelas são encontradas as diferenças que levam tanto a entendimentos, quanto a visões diversas sobre os modos de existência. Essas nuances dos discursos, comportamentos e falas podem ser analisados a partir das encenações de textos teatrais estrangeiros no Brasil e também por meio da criação autoral de grupos de teatro. Para esclarecer e enfatizar que a crítica pós-colonial e decolonial não se refere a uma negação do que é estrangeiro, podemos lembrar, por exemplo, da encenação de Gabriel Vilella, com o Grupo Galpão (MG), do texto “Romeu e Julieta”, de Shakespeare. Naquela montagem, há traços que podem ser associados a forma do teatro elisabetano, mas que não pretende aproximar-se de um possível modelo para levar o texto de Shakespeare à cena. Podemos analisar a encenação, portanto, pela via do pensamento pós-colonial e decolonial, mesmo em se tratando de um texto de um autor britânico, já que revela escolhas particulares como, por exemplo, ao apresentar traços da cultura popular e do barroco mineiro. Nesse sentido, podemos nos valer dos estudos e análises que já foram feitos em larga escala, sobre a dramaturgia e o teatro pelo viés da teoria pós-colonial, principalmente no que se refere as encenações e textos sul africanos, indianos, australianos e mesmo de alguns países da Ásia. Ainda assim, parece improdutivo desinteressar-se pela cultura europeia e norte-americana ou parecer ignorá-las num esforço de valorização da cultura nacional. Trago a voz de Sontag que pergunta em seu diário, conforme relata a resenha de Klein (2016, p. 17): “ ‘Quem fica exposto ao tempo?’, pergunta Sontag em um almoço com amigos escritores (...). ‘Não eu’ (...). ‘Eu não fico exposta ao tempo. Tenho calefação central. Minha calefação central é a civilização ocidental – meus livros + fotos + discos’ ”. A calefação central, sistema de aquecimento no interior dos prédios novaiorquinos, mantém possível a vida no inverno. E na metáfora de Sontag, o aquecimento vem da literatura, das imagens e do som produzidos como formas de arte pela civilização ocidental. A arte se alimenta da arte; nós precisamos ter referências de obras de outros artistas para poder criar. A crítica pós-colonial e decolonial nos chama a atenção, no entanto, para o fato de que é preciso reconhecer e valorizar outras culturas e saberes para além dos cânones da 102
civilização ocidental. Essas revelam outros modos de existência e de entendimento do mundo que foram silenciados ou mesmo suprimidos devido à colonialidade. No caso do Brasil, esse reconhecimento pode contribuir para a mudança nas relações de racismo, para a ampliação do pertencimento cultural e para a reversão dos processos de subalternização, e logo para entender a arte, ou o que pode ser a arte, de outras maneiras. Essa atitude de reconhecimento pode conduzir a reflexões mais aprofundadas sobre a educação, os processos pedagógicos e a criação artística. Há pelo menos uma década, grupos de teatro desenvolvem treinamentos e modos de preparação para o ator a partir de práticas de dança, da capoeira, das religiões de matriz africana ou ameríndia e das festas brasileiras. As relações étnico-raciais, de opção religiosa, de sexualidade e de gênero também tem sido abordadas em diversas encenações. O mesmo caminho vem sendo percorrido na área de dança, há várias décadas. Os modos de produção e de criação cênica estão sendo amplamente discutidos, assim como a apropriação e a recriação de práticas de grupos e encenadores estrangeiros. Ainda assim, existem processos de exclusão e silenciamento que precisam ser revertidos. Em possíveis análises de espetáculos pela perspectiva pós-colonial ou decolonial, não se trata apenas de notar os traços definidores de uma identidade brasileira. Mas sim, de reconhecer aquilo que o teórico Awan Amkpa (2004, p. 10) nomeou como um “desejo pós-colonial”: “o ato de imaginar, viver e negociar uma realidade social baseada na democracia, pluralismo cultural e justiça social”53. Nesse sentido, o trabalho de Augusto Boal é estudado na Inglaterra, por exemplo, à luz do pensamento pós-colonial. Seguindo essa orientação, em minha dissertação de Mestrado54, fiz referências ao trabalho de Boal e de Antônio Nóbrega, além de desenvolver análise de algumas peças e propostas de Denise Stoklos pela lente teórica pós-colonial. A “invenção” da América foi, por exemplo, o tema de uma peça de teatro de Denise Stoklos, na ocasião das comemorações do aniversário de quinhentos anos de “descoberta” da América: Ano da celebração de descobrimento? Sim, mas o desejo de comemorar uma América, não aquela devastada, aquela nomeada pelo navegador chamado Américo Vespúcio, em que pisoteamos diariamente nossa geografia pessoal nesses limites sociais com que esfaquearam os mapas, esfolando-nos vivos, riscando sobre nós um mapa latino-americano que nos outorga por passaportes cortes na carne da nossa cidadania, furos, raspões. Pôs no avesso as velas que nos levariam e nos valeriam, nos velando à revelia nivelando para baixo, instalando esse naufrágio atual, onde nós, os sobreviventes, estamos procurando como celebrar um descobrimento. Não dessa presente América, mas o descobrimento talvez de uma Amimrrica, sim, como numa língua de índio. A-MIM-RICA. A-para, mim – eu mesma, rica – a riqueza da Terra, toda ela, que pertence por presente espontâneo da natureza, não-manipulável, desfrutável por todos, em contínua auto-alimentação, movimento gerador de riqueza, não devastador. Amimrrica. 53 Tradução minha para: “(…) the act of imagining, living, and negotiating a social reality based on democracy, cultural pluralism and social justice”. (AMKPA, 2004, p. 10). 54 Dissertação de Mestrado em Teatro (Estudos da Performance), Royal Holloway, University of London, 2005.
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(STOKLOS, 1992, p. 13-15).
A brincadeira de Stoklos com a palavra “América” transformada em “Amimrrica”, torna possível, de forma ficcional, “celebrar um descobrimento” (STOKLOS, 1992, p. 14). É interessante a desconstrução e reconstrução do nome “América” proposto por Stoklos. Mignolo mesmo esclarece que, até o início do século XVI, a “América” não estava no mapa simplesmente porque a ideia de um quarto continente ainda não havia surgido. E informa que, outros nomes eram usados para nomear as terras localizadas hoje no lugar chamado por “América”: “Tawantinsuyu nos Andes, Anáhuac onde hoje é o vale do México, e AbyaYala onde hoje é o Panamá. (...) O que é realmente confuso nessa história é que uma vez que a América foi nomeada como tal, no século XVI, e a América Latina, no século XIX, pareceu-se que ambas sempre estevivera lá” (MIGNOLO, 2005, p. 2)55. Mostra-se interessante levantar reflexões a partir das teorias e críticas pós-coloniais e decoloniais sobre espetáculos e performances criados a partir de elementos da cultura brasileira e outros, que não lidam diretamente com tais elementos, mas cujo discurso perpassa questões relativas ao país. Refletir, por exemplo, sobre problemáticas como a violência, a ética e a urgência na peça “PROJETO bRASIL”, dirigida por Marcio Abreu e realizada pela Companhia Brasileira (Curitiba, PR). Para criar a encenação, a Companhia Brasileira partiu da invenção como um pilar ao questionar “onde está o registro da história”56 e se “o que se escreve é verdade”, que associo a uma busca por um pensamento fronteiriço. Nessa procura, outras questões emergem em torno de qual “dimensão histórica existe no imaginário de um povo”, sobre “qual nosso sentido de localização e pertencimento” e, principalmente, “como, através da tentativa de pensar um país, e uma língua, pode-se ingressar nos territórios da invenção”. Outra produção que pode ser analisada pela perspectiva pós-colonial ou decolonial é o trabalho do dançarino e coreógrafo paulistano Luís Ferron. Os espetáculos performativos “Sapatos Brancos” (2009) e “Baderna” (2013) apresentam uma dança de dramaturgias que se dá por uma série de rupturas de fronteiras e a criação de um espaço de comunhão entre centro e periferia, negros e brancos, samba e dança contemporânea, performances do feminino, do masculino e queer, sagrado e profano, sonoridades e movimentos que remetem a tradições afro-brasileiras e também às escolas de dança pós-moderna europeia e norte-americana. Numa fala em “Baderna” (2013), o aviso é dado: “o samba não pede passagem”. O espetáculo se torna um acontecimento relacional com os performers dançando nos espaços livres entre os espectadores, parecendo questionar qual é a real distância entre a cultura popular e a cultura considerada erudita. Se voltarmos o olhar para outras linguagens artísticas, podemos empreender a discussão pós-colonial e decolonial pela análise de trabalhos como os Parangolés57, de 55 Tradução minha para: “(...) Tawantinsuyu in the Andes, Anáhuac in what is today the valley of Mexico, and Abya-Yala in what is today Panama. (…) What is really confusing in this story is that once America was named as such in the sixteenth century and Latin America named as such in the nineteenth, it appeared as if they had been there forever”. (MIGNOLO, 2005, p. 2). 56 Todas as citações desse parágrafo são do texto sobre o processo de criação de PROJETO Brasil, disponível no website oficial da Companhia Brasileira de Teatro - <http://www.companhiabrasileira.art.br/ pesquisa-brasil/>. 57 “Fruto das experiências de Hélio Oiticica (1937-1980) com a comunidade da Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira, no Rio de Janeiro, o Parangolé é criado no fim da década de 1960. Considerado por Hélio Oiticica a “totalidade-obra”, é o ponto culminante de toda a experiência que realiza com a cor e
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Hélio Oiticica, que propõe ao espectador uma experiência de participação, na qual esse se torna o autor da obra. Da mesma forma que Lygia Clark, Oiticica busca um espectadorautor para quem são apresentadas proposições que necessitam de uma ação no espaço. Posso analisar esse trabalho como uma proposição decolonial na medida em que rompe a fronteira entre centro e periferia na cidade; entre obra de arte e instituição; entre tela e roupa; entre cor e forma; entre arte e manifesto; entre os cânones da arte e a produção artística em países fora da Europa. É, portanto, uma proposta que questiona o que é considerado como obra de arte e, ao aproximar arte e vida, não necessita de instrumentalização para realizá-la. A dança do Parangolé não se aprende na escola ou naquela ideia de escola que docilizava corpos e que visava uma colonialidade do conhecimento, do saber e do ser. Assim, da mesma forma que artistas como Oiticica celebraram a quebra com paradigmas e normatizações, outros o fizeram em seus países e podem nos suprir com um aquecimento como aquele que Sontag se referiu. Assim, buscando desfazer processos de subalternização, da colonialidade do saber e do ser, trabalhando por um pensamento fronteiriço, frequento terreiros de umbanda, candomblé e festas do congado, consulto o Ifá e procuro conhecer comunidades indígenas. Mas também me curvo diante de Bertold Brecht com sua trajetória e obra voltada para o pensamento crítico; saúdo Stanislavski e Grotowski por suas procuras pelo trabalho do ator sobre si; devoro dramaturgos como Samuel Beckett e Edward Albee; me inspiro em Susan Sontag e ouço com escuta atenta a Nina Simone. E ainda incomoda-me o número reduzido de mulheres que entraram para o rol da escrita crítica no campo da teoria e história do teatro e da dança – penso em alguns nomes, mas ainda são poucos. Dessa maneira, se queremos realmente empreender uma crítica decolonial é necessário começar a admitir a supremacia da voz masculina regendo os mapas e os comportamentos nos domínios espaço-temporais.
Referências:
AMKPA, Awan. Theatre and Postcolonial Desires. London and New York: Routledge, 2004. BELÉM, Elisa. Por um desejo pós-colonial: uma análise do Teatro Essencial, de Denise Stoklos. URDIMENTO – Revista de Estudos em Artes Cênicas do PPGT da UDESC. Florianópolis, v. 1, n. 16, jun. 2011. p. 43-51.
o espaço. Apresenta a fusão de cores, estruturas, danças, palavras, fotografias e músicas. Estandartes, bandeiras, tendas e capas de vestir prendem-se nessas obras, elaboradas por camadas de panos coloridos, que se põem em ação na dança, fundamental para a verdadeira realização da obra: só pelo movimento é que suas estruturas se revelam”. (Enciclopédia Itaú Cultural)
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COMPANHIA BRASILEIRA DE TEATRO. (site) Companhia Brasileira de Teatro. Disponível em: http://www.companhiabrasileira.art.br/ Acesso em: 15 dez. 2016. ITAÚ CULTURAL. Enciclopédia Itaú Cultural. Disponível em: http://enciclopedia. itaucultural.org.br/ Acesso
em: 15 dez. 2016.
KLEIN, Kelvin Falcão. A progressão e o acúmulo de Susan Sontag. Pernambuco – Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado. Recife, Cepe Ed., n. 130, dez. 2016, p. 16-17. Disponível em: www.suplementopernambunco.com.br. Acesso em: 15 dez. 2016. MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais – colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. ________. Looking for the Meaning of “Decolonial Gesture”. E-Misferica (Revista do Instituto Hemisférico de Performance Y Política). Nova York, v. 11, n. 1, 2014. Disponível
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decolonial. Acesso em: 25 out. 2016. ________. The Darker Side of Western Modernity – Global Futures, Decolonial Options. Durham e Londres: Duke University Press, 2011. ________. The Idea of Latin America. Malden: Blackwell, 2005. NÚCLEO LUIS FERRON. (audiovisual) Baderna. Disponível em: https://youtu.be/ rF2DNzWSWus Acesso
em: 15 dez. 2016.
________. (audiovisual) Sapatos Brancos. Disponível em: https://youtu.be/iRqHx89OPeg Acesso em: 15 dez. 2016. ROSEVICS, Larissa. Do pós-colonial à decolonialidade. Disponível em: <http:// www.dialogosinternacionais.com.br/2014/11/do-pos-colonial-decolonialidade.html>. Acesso em: 03 nov. 2016. STOKLOS, Denise. 500 anos – um fax de Denise Stoklos para Cristóvão Colombo. São Paulo: Denise Stoklos Produções Artísticas, 1992.
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A POÉTICA DE ATUAÇÃO POLIFÔNICA EM ENCENADORES NO TEATRO DE GRUPO DO CARIRI CEARENSE Lucivania Lima (Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas - UFRN - Bolsista CAPES); Larissa Kelly de Oliveira Marques (UFRN); Robson Haderchpek (UFRN)
Resumo: A presente pesquisa analisa a poética de três encenadoras que residem no Cariri, interior do Ceará. Em comum elas exercem mais de uma função na construção cênica, o que tem desembocado num exercício teatral polifônico, já que passam contribuir na construção do espetáculo como mediadoras e proporcionam que ele seja resultado do diálogo entre os criadores envolvidos, que terão propriedade do discurso do outro. Nesse sentido, a pesquisa focaliza na reflexão da poética de três encenadoras: uma encenadora que conjuntamente exerce função de figurinista, outra que exerce a função de dramaturga e outra que executa a criação da iluminação do espetáculo. Investigar-se-á como essas artistas constroem sua poética num olhar imbricado, numa atuação polifônica. Palavras-chave: Encenadora; Polifonia; Teatro de grupo no Cariri Cearense;
Subject: This research analyzes the poetic three encenadoras residing in Cariri, the interior of Ceará. In common they perform more than one function in the scenic construction, which has desembocado a polyphonic theatrical exercise, since they spend contribute to the construction of the show as mediators and provide it to be a result of dialogue between the creators involved who have property speech of other. In this sense, the research focuses on the reflection of poetic three encenadoras: A theater director who jointly exercise costume function, another holding the playwright function and another that performs the creation of the show’s lighting. It will investigate how these artists build their poetics an imbricated look, a polyphonic performance. Keywords: Stage Director; Polyphony; Group Theatre in Cariri Cearense;
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Introdução
Exercer funções diversas na construção cênica é algo comum ao fazer teatral, especialmente se levarmos em consideração a fragilidade do mercado em assegurar profissionais destinados a exercer funções específicas na construção cênica, sobretudo quando se trata do movimento de teatro de grupo no Brasil e, consequentemente, das experiências de grupos iniciantes, já que iremos investigar nesta pesquisa a poética de encenadoras que atuam em grupos com no máximo dez anos de existência. Esses grupos, seguindo o modelo do movimento de teatro de grupo iniciado nos anos de mil novecentos e sessenta no Brasil, estabeleceram uma poética contrária ao teatro comercial (expressão coloquial utilizada no meio teatral para definir espetáculos que são construídos com o objetivo principal de atender ao mercado). Assim, em sua maioria, constroem espetáculos num viés processual, experimental, em que a pesquisa cênica estabelece-se na troca exercida dentro do processo. Essa característica processual possibilita que os envolvidos experimentem funções diferenciadas na construção cênica, o que provoca o desenvolvimento de habilidades múltiplas, que acabaram por caracterizar os sujeitos desta pesquisa. Além disso, algo ainda a ser levado em questão é perceber essa multiplicidade ligada às experiências de muitos artistas como reflexo da diversidade contemporânea e a possibilidade de acesso às informações, ou seja, o sujeito contemporâneo é formado por experiências múltiplas, o que torna cada vez mais difícil identificá-lo num campo específico de conhecimento. Nesse sentido, a presente pesquisa aborda a atuação de encenadores que exercem funções múltiplas na construção cênica e verifica como essa habilidade pode contribuir na formação de artistas polifônicos, já que esse encenador em processo de condução na sala de ensaio é tomado mais como mediador, possibilitando que as vozes ligadas às especificidades de cada integrante possam ser confrontadas, dialogadas e apropriadas num discurso mais coletivo. Assim, será considerado como objeto de estudo da pesquisa a prática de três encenadoras que pertencem a grupos distintos do Cariri Cearense, no interior do Ceará: Carla Hemanuela, que é encenadora-figurinista (grupo de teatro Trupe dos Pensantes), Cecília Raiffer, que é encenadora-dramaturga (Cia de teatro Engenharia Cênica) e a própria autora da pesquisa, que é encenadora-iluminadora (grupo de teatro Coletivo Atuantes em Cena). Diante desse enfoque será abordado, ao longo do texto, a gênese da temática da pesquisa que parte da observação de minha práxis como encenadora múltipla, passando em seguida a observar a ação múltipla de outros encenadores que também desenvolvem atividades múltiplas, verificando como vem se construindo essa poética e as possibilidades que abre para formação polifônica. Em seguida, refletiremos sobre a polifonia e suas interferências na construção de uma obra teatral horizontal. Adentra-se, pois, na abordagem do encenador como mediador, referenciando o nascimento da encenação em fins do século XIX, que se torna mais presente ao longo do século XX, e identifica o momento propulsor para construção de uma arte mais 108
colaborativa. Será referenciado também o movimento de teatro de grupo no Brasil, iniciado nos anos de mil novecentos e sessenta, que trouxe um novo paradigma para o pensamento teatral, buscando uma arte cada vez mais coletiva e tendo como necessidade a presença de todos os integrantes (atores e ficha técnica) ao longo do processo de criação, o que facilita o desenvolvimento de uma arte integrada, polifônica. Por fim, refletiremos sobre as estratégias metodológicas que serão utilizadas durante a pesquisa em campo, afim de problematizar a atuação das encenadoras múltiplas dentro de seus grupos de teatro e as possibilidades dessa práxis estar ligada ao exercício polifônico. Buscar-se-á investigar, pois, como ocorre a atuação dentro da sala de ensaio desse sujeito que exerce funções múltiplas, como ele interliga essas experiências numa práxis que parte de um ponto comum, mas que aponta caminhos distintos, como por exemplo, a montagem da cena e a criação do projeto de luz. Verificar-se-á também como essa práxis pode aproximar todos os integrantes da construção cênica para um diálogo que se efetiva ao longo do processo e resulta numa obra tecida por muitas mãos e por sujeitos polifônicos.
A gênese da problemática em questão: o encenador múltiplo do Cariri Cearense
Chamaremos encenador múltiplo àquele que exerce mais de uma função na construção cênica. Consideramos para esta pesquisa uma encenadora-figurinista, uma encenadora-dramaturga e uma encenadora-iluminadora. Essas artistas criam seus trabalhos artísticos dentro de grupos de teatro que produzem ativamente na região do Cariri, no interior do Ceará, por isso a percepção desse estudo parte da produtividade teatral desse lugar em específico, dessas artistas e de seus grupos. Partimos da percepção de uma arte teatral integrada, construída em rede, dando-se na relação de troca de conhecimentos na sala de ensaio, bem como na individualidade do próprio sujeito contemporâneo, que se constitui por meio de experiências múltiplas. Assim, ao desejar investigar a práxis de encenadoras múltiplas e sua contribuição na formação do artista polifônico, foi necessário uma autorreflexão sobre a atuação como encenadora-iluminadora, o que será abordado mais adiante, verificando a abertura que essa práxis pode dar à formação do sujeito polifônico. [...] polifonia é um termo emprestado da música e que se refere aos discursos que incorporam dialogicamente muitos pontos de vista diferentes, apropriandose deles. O autor do discurso pode fazer falar várias vozes. Em outros termos, a polifonia refere-se à qualidade de um discurso incorporar e estar tecido pelos discursos-ou pelas vozes- de outros, apropriando-se deles de forma a criar, então, um discurso polifônico. (MALETTA, 2005, p. 47-48).
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Como nos faz perceber Maletta (2005), o sujeito polifônico seria aquele capaz de desenvolver um discurso ancorado por uma percepção múltipla, que se valha de várias vozes. Apesar disso, não devemos confundir o sujeito múltiplo com o sujeito polifônico, pois consideramos múltiplo apenas a capacidade de o artista estar inserido em mais de uma função na construção cênica, enquanto que o polifônico é capaz de tecer um diálogo possível entre funções distintas. Nesse sentido, é possível que o artista múltiplo seja um artista polifônico, mas nem todo artista polifônico é múltiplo, como exemplo podemos tomar a figura do ator, que em cena não exerce outra função, mas ocupa-se em perceber os elementos constitutivos da cena teatral e consegue dialogar com todos, caracterizando-se como artista polifônico. Assim, resguardamos nos a nomear múltiplo o artista que exerce mais de uma função na construção cênica e refletir sobre como essa característica pode facilitar o exercício da polifonia, já que ao exercer funções múltiplas o encenador como mediador poderá facilitar que os demais artistas passem a lhe dar com a criação de uma forma mais integrada. Além disso, o encenador múltiplo também abre a percepção para que o trabalho em sala de ensaio seja desenvolvido com a presença de todos os integrantes (elenco e ficha técnica), o que pode ainda facilitar numa construção mais dialógica e por isso polifônica. Essa percepção, como dito anteriormente, só ocorreu ao refletirmos sobre a práxis de uma encenadora-iluminadora. Assim, na condução de espetáculos, buscavase, inconscientemente, concatenar o uso da iluminação teatral como objeto de investigação. Mesmo não tendo a luz como elemento concreto, mas como uma possibilidade acrescida à performance do ator em laboratório, o recurso da iluminação era trabalhado como elemento imagético que posteriormente configuraria a estruturação do projeto de luz. Essa especificidade é dada à práxis pela experiência com montagem e operação de luz em outros trabalhos. Desse modo, ao adentrar no processo, a percepção para o movimento de luz é latente, sendo automaticamente levada aos atores como elemento a ser percebido ao longo do processo. A práxis múltipla possibilitou que a condução de processos de criação viabilizasse a necessidade também de ter ao longo do processo a presença de toda a ficha técnica envolvida, já que era percebido que o uso da iluminação refletia significativamente no processo de criação dos atores e era desejado que os demais elementos técnicos também se efetivassem numa construção pensada por muitas mãos. O desejo era que essa escolha facilitasse o pensamento de uma construção teatral expressivamente colaborativa. Ao conhecer o trabalho de outros artistas da região do Cariri, podemos perceber que eles também executavam atividades múltiplas na construção cênica, bem como priorizavam, na medida do possível, a presença de todos os integrantes ao longo do processo de criação. Essa semelhança detonou o estopim para o projeto de desenvolvimento dessa pesquisa.
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Dessa forma, além de buscar perceber o processo de criação das encenadoras múltiplas numa perspectiva integrada, que culminaria numa reflexão de sua própria práxis, também analisaremos como essa prática múltipla pode contribuir para a formação de sujeitos polifônicos. Adiante abordaremos de forma mais abrangente o conceito de polifonia, tomado como chave para discursão de uma arte construída pelo viés horizontal, além de buscarmos perceber através da história teatral a contribuição do surgimento da encenação moderna na formação de encenadores como mediadores, bem como a formação de um pensamento da obra construída em colaboração, através do movimento de teatro de grupo no Brasil.
Formação polifônica
Ao considerarmos a polifonia como atuação do artista que através de sua expressividade faz falar várias vozes, estamos apreciando o pensamento de Ernani Maletta (2005, p. 149) ao defender a polifonia como princípio pedagógico que possibilita o envolvimento do artista de forma totalmente integrada à construção cênica. Segundo o autor o teatro é uma obra polifônica, o artista não. Assim: A polifonia cênica é intrínseca ao teatro, porque essa arte, mesmo na sua forma mais simples - ou pobre, se quisermos utilizar os termos de Grotowiski -, incorpora simultaneamente múltiplos discursos e pontos de vista que, muitas vezes, só expressam implicitamente. Assim, a corporeidade, a musicalidade e a plasticidade, podem estar invisíveis, mas plenamente presentes na constituição do discurso do ator em cena. (MALETTA, 2005, p. 50-51).
Desse modo, o artista precisa aprender a apropriar-se dos diversos discursos inerentes ao fazer teatral fazendo com que sua atuação faça falar várias vozes. A palavra “vozes” tem sua origem na música, designando “um tipo de composição musical em que várias vozes, ou várias melodias, sobrepõem-se em simultâneo” (PIRES, 2010, p. 66). Ernani Maletta (2005, p. 48) ao pensar sobre voz na formação do ator para uma atuação polifônica, considera que ela, a “voz” é sinônima de identidade, referenciando cada integrante do processo criativo. A polifonia então, pensada como composição de vozes dialoga com a ideia de criação de uma nova identidade referente ao processo como um todo. Como é possível perceber, a polifonia propõe a construção teatral pautada na capacidade de estabelecer diálogo entre determinadas ações dos integrantes ao longo do processo de criação. Por isso, acreditamos que o encenador como mediador pode facilitar na formação do sujeito polifônico, já que ele busca estabelecer uma relação interdisciplinar entre os elementos constitutivos da cena. Isso identifica cada vez mais o encenador contemporâneo, já que as práticas teatrais mais recentes, sobretudo as de teatro de grupo, descaracterizam a figura de um chefe da construção cênica teatral. Essa construção do encenador como mediador vem de uma vertente de mudança no panorama teatral iniciado em fins do século XIX, e presente ao longo do século XX,
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chamada “era da encenação” teatral (ROUBINE, 1998, p. 19), que será abordada no próximo ponto, bem como o movimento de teatro de grupo no Brasil, já que consideramos dois momentos primordiais na discussão do encenador de que tratamos na pesquisa.
Enveredando pela construção histórica do encenador como mediador
Sobre o encenador e a “era da encenação”, Bernard Dort (1977) considera que a segunda metade do século XIX foi crucial na elaboração de um pensamento diferenciado relacionado ao fazer teatral, que se desenvolveria com mais despojamento ao longo do século XX na Europa. O advento do encenador provoca no exercício do teatro o aparecimento de uma nova dimensão, a reflexão sobre a obra. Entre esta e o público, entre um texto ‘eterno’ e um público que se modifica, submetido a condições históricas e sociais determinadas, existe agora uma mediação. (DORT, 1977, p. 68).
Assim, na responsabilidade de mediar os elementos constitutivos da cena, era proposto ao encenador perceber as atualidades e mudanças de seu tempo, o que refletiria diretamente na construção de um novo teatro. As inovações tecnológicas para cenário e iluminação, por exemplo o impacto das primeiras projeções cinematográficas ainda no final do século XIX, são cruciais para a formação desse novo paradigma teatral, bem como as mudanças sociológicas. A Revolução Industrial rompeu a barreira que separava uma classe das outras. Desse modo, os teatros passaram a conviver com a presença considerável de um público heterogêneo, ruminando na diversidade estética dos espetáculos. Nesse ambiente o texto deixa de ser o único elemento propulsor da criação, pois, os espetáculos passam a ser pensados numa relação mais ligada à obra em construção do que mesmo a representação de obras dramáticas segundo legados da tradição. O encenador surge então como esse intermediador da criação cênica. Segundo Silva (2014, p. 27), o encenador também percebe a necessidade, ligada aos atores. de uma construção mais adequada aos novos paradigmas, pois os atores haviam se formado em escolas de teatro que lhe davam com personagens-tipo, que não condiziam mais com a nova realidade teatral. A ascensão do encenador que, em um primeiro momento, teria tomado para si a autoria e autoridade sobre a obra, resultou não só na renovação da cena, mas também no desenvolvimento da arte do ator. Não cabiam mais os ‘monstros sagrados’, que, por exaltarem suas ‘personalidades geniais’ foram veemente criticados pelos encenadores da época. (SILVA, 2014, p. 22).
Nesse sentido, propor uma nova reconstrução corpórea do ator passou a ser uma necessidade emergente. Assim, foram abertos centros de pesquisa chamados laboratórios em que o experimentalismo passa ser chave na reconstrução corporal do ator. O momento é crucial para a importância dada à processualidade como mecanismo de construção cênica, algo que ainda é emergente nos processos de criação contemporâneos e nos processos 112
de pesquisa teatral em que se inserem os encenadores múltiplos.
Enveredando-se pelo movimento de teatro de grupo no Brasil (processo coletivo e colaborativo)
Como apontado anteriormente, o encenador como mediador vem de uma vertente histórica iniciada em fins do século XIX, momento em que se começa pensar também a elaboração do espetáculo teatral pensada na processualidade, dois elementos indispensáveis na discussão do encenador múltiplo e sua atuação polifônica. Essa abordagem também possibilita tecer relações que serão ruminadas no teatro de grupo no Brasil a partir dos anos noventa, com a estrutura de processo colaborativo, que objetiva a criação teatral de forma horizontal, mantendo os integrantes suas funções artísticas, mas construindo o espetáculo no diálogo com os demais. Esse tipo de processo é abordado apenas por alguns grupos, mas consideramos relevante reconhecer os fundamentos do teatro colaborativo ao buscar compreender a formação e atuação dos sujeitos a ser pesquisados aqui. Entretanto, o teatro colaborativo também é reflexo de um movimento que antecede os anos oitenta e noventa do século XX no Brasil. Assim, nos anos sessenta e setenta, a livre expressão teatral é perseguida pela Ditadura Militar e os grupos se fortificam dentro de um esquema bem articulado de discurso político. Nesse momento, os grupos se pronunciam dentro de uma configuração “coletiva” para construção cênica, de modo que todos dentro do processo eram responsáveis pela criação de tudo no espetáculo. Portanto, no limite, não havia mais um único dramaturgo, mas uma dramaturgia coletiva, nem apenas um encenador, mas uma encenação coletiva, e nem mesmo um figurinista ou cenógrafo ou iluminador, mas uma criação de cenário, luz e figurinos realizada conjuntamente por todos os integrantes do grupo. (ARAÚJO, 2011, p. 132).
Mais tarde, nos anos oitenta e noventa, tendo passado os anos de chumbo, os grupos no Brasil deslocaram o “campo político para o terreno mais claramente artístico” e começaram a investigar novas possibilidades de trabalho em grupo, tendo abertura nesse momento para o trabalho puramente investigativo, construído pedagogicamente no dia a dia da sala de ensaio. A configuração coletiva também é reorganizada e abre espaço para o trabalho produzido colaborativamente, que diferente do teatro coletivo, não tem por finalidade abolir as funções dentro do fazer teatral, mas contribuir com o processo do outro e se permitir ser contaminado por ele. Todos os integrantes, apesar de comprometidos com determinado aspecto da criação, precisariam engajar-se numa discussão de caráter mais generalizante. Em outras palavras, o ator não criaria apenas a personagem nem o iluminador criaria somente o seu projeto de luz, mas todos eles, individual e conjuntamente, criariam a obra cênica total levada a público. (ARAÚJO, 2011, p. 134).
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Como podemos notar, o processo colaborativo apresenta uma especificação que abre espaço para o discurso polifônico, já que o trabalho a ser desenvolvido na sala de ensaio pressupõe, antes de tudo, uma relação consciente entre as vozes. Tendo abordado os elementos constitutivos do encenador como mediador e do processo de criação desenvolvido em laboratório, podemos supor que as encenadoras múltiplas, que são objeto de investigação da pesquisa, constituem-se a partir dessas referências, sobretudo ao reconhecermos que o ambiente de desenvolvimento de suas práxis se dá pelo viés do teatro de grupo, que tem por natureza a elaboração de um pensamento colaborativo, sendo o encenador mais um artista envolvido no processo de criação com conhecimentos específicos que lhe permitem apenas intermediar os demais saberes inerentes ao processo.
Encenadores múltiplos e sua contribuição na formação de artistas polifônicos- procedimento metodológico
A pesquisa abrange uma vertente que integra sujeito e pesquisador como um ser integrado, pois trata-se de um estudo a ser realizada “em artes”, o que sugere que o pesquisador está dentro daquilo que é investigado, tem total envolvimento com seu objeto de estudo, sendo muitas vezes ele próprio o ser sobre quem se busca refletir. Nesse caso, a experiência é a voz ativa na elaboração da escrita, que também é percebida como um elemento de criação do sujeito-pesquisador. A experiência como atitude metodológica do pesquisador EM ARTES, se configura como uma posição do sujeito-pesquisador frente ao fenômeno artístico que determina um olhar/escrita específica sobre seu objeto de estudo, no qual elementos de subjetividade estão presentes na própria estruturação da pesquisa. (TELLES, 2012, p. 53).
Eu, Larissa Marques, estando inserida no campo da experiência ao me colocar como objeto de estudo, percebo que a pesquisa ao abordar também a atuação de outras duas encenadoras me possibilita ver no seu percurso a possibilidade de afetação a partir da subjetividade dessas envolvidas, contribuindo na minha formação como sujeito e no processo de escrita da pesquisa, que como dito, também tomará o seguimento do processo, não objetivando chegar a ponto fixo, definitivo e determinante. Como dito anteriormente a práxis que tenho desenvolvido como encenadora está ancorada às experiências com iluminação teatral. O diálogo intrínseco entre essas duas instâncias na sala de ensaio provocava que esse conhecimento, principalmente relacionado à iluminação, seja compartilhado junto ao elenco, que passa a conviver com o elemento ao longo do processo, apropriando-se dele ao estabelecer sua própria performance em cena. Algumas ideias de iluminação nas práticas como encenadora surgem no período em que o encontro na sala de ensaio com os demais integrantes ainda não se efetivou. A luz compõe neste momento a essência, a primeira ideia do espetáculo. Quando o encontro 114
acontece a iluminação passa a compor os momentos diários junto à equipe de trabalho, passamos a discutir as ações que nascem ao longo do processo com um linguajar que se refere a iluminação e que passa aproximar os integrantes desse discurso. Dessa forma: A cena é pensada em sua totalidade onde todos os elementos cenográficos agem juntos construindo a cena. Mesmo que não haja cadeira, mesa ou qualquer objeto que comporá o cenário há sempre uma busca de tentar materializar nos ensaios, aquilo que será de fato a cenografia do espetáculo. Do mesmo modo se dá com o processo da iluminação. Podemos ensaiar com luz mesmo que os refletores não estejam presentes. É preciso compreender a iluminação cênica como um processo que se desenvolve concomitante a criação das cenas. (MOURA, 2014, p. 65-66).
Assim, a fim de fazer com que os integrantes pensem a iluminação como um recurso de composição era necessário compartilhar com eles as ideias, por isso propunha abertamente aos atores os momentos em que eles estariam em foco, num corredor de luz, quando a luz entraria repentinamente, quando ela inseria-se na cena lentamente, quando ela editaria espaços cênicos, quando delimitaria a multiplicidade de espaços cênicos, quando a cena teria uma luz mais fria ou mais quente, o que seria uma mudança de atmosfera na montagem teatral. A capacidade de ver a construção cênica integrada à iluminação, e verificando as interferências que essa inclusão causava na expressividade dos atores, que também passaram lhe dar com a iluminação ao longo do processo, possibilitou a inclusão de outros integrantes como o figurinista, o cenógrafo e o compositor da trilha ao longo da investigação do espetáculo em sala de ensaio. Penso que o simples exercício de projetar no outro a capacidade de que ele se atente aos elementos constitutivos da cena, pode ser um início na fundamentação do artista polifônico. Entretanto, como essa é uma pesquisa que busca refletir sobre não só minha práxis, como também a atuação de duas outras encenadoras, então é necessário, primeiramente, perceber como tem se estabelecido para essas encenadoras a relação mútua entre as ações que elas desenvolvem. Nesse sentido, a pesquisa será desenvolvida, sobretudo, através da relação dialógica entre os integrantes da mesma, que se dará por meio de entrevistas, realizadas prioritariamente a essas encenadoras, mas considerando também a percepção dos envolvidos que trabalham diretamente com elas (como será o meu caso em específico, já que me coloco como objeto de estudo). Assim, as encenadoras Carla Hemanuela (encenadora-figurinista) e Cecília Raiffer (encenadora-dramaturga) são consideradas na pesquisa pelo desenvolvimento da práxis múltipla e por colocarem-se no processo de criação como mediadoras. Carla Hemanuella, numa de suas estratégias de condução mais recorrentes, propõe que o elenco desenvolva o olhar para percepção do figurino através de desenhos ou colagens que os próprios atores desenvolvem ao longo do processo de criação. Esses desenhos e colagens devem se relacionar com os personagens que estão sendo desenvolvidos ao longo do laboratório. Além disso, propõe muitas vezes que o elenco procure vir para o ensaio com roupas dentro do que eles acreditam correlacionar ao trabalho em desenvolvimento. 115
Cecília Raiffer não trabalha com dramaturgia pré-estabelecida, esta é desenvolvida ao longo do processo de criação através de improvisações que partem de uma ideia inicial, chamada por ela imagem propulsora. É importante informar que essa imagem propulsora não corresponde a uma pintura ou uma fotografia, ou seja, não está relacionada a algo que seja pictórico bidimensionalmente ou tridimensionalmente, nos processos da Cia. Engenharia Cênica ela é um hipertexto que apresenta uma narrativa sobre a qual se definem a temática e o sentido para a construção do espetáculo. Esse texto é considerado imagem exatamente por ser ele uma projeção de como se dará o espetáculo. (MOURA, 2014, p. 28).
Assim, a imagem propulsora é revisitada ao longo dos processos de condução realizados por Cecília Raiffer, ancorada na dramaturgia que vai sendo construída ao longo do processo de improvisação pelos atores. As percepções do processo são anotadas por Cecília ao longo dos ensaios e vão constituindo aos poucos a narrativa do espetáculo. Muitas vezes se utiliza obras como inspiração, mas a dramaturgia do espetáculo, de fato parte das escolhas realizadas pelo elenco e encenadora ao longo do processo. Tendo em vista isso, a dramaturgia passa por muitas reformulações, pois segue o ritmo de acontecimentos dados ao longo da vida do espetáculo. Como podemos notar, as encenadoras Carla Hemanuella e Cecília Raiffer procuram estabelecer relações próximas no ato de construção de suas habilidades cênicas, e procuram inserir o elenco nesse processo de construção. Nesse sentido, percebemos a proximidade que elas estabelecem dentro da proposta que buscamos investigar ao longo do processo, sobretudo porque buscaremos refletir como essa prática pode contribuir na formação do sujeito polifônico. Algumas estratégias serão tomadas como procedimento metodológico no desenvolvimento da pesquisa, tais como entrevistas semiestruturadas, que serão desenvolvidas aos encenadores e sua equipe de trabalho, através de observação em campo desses encenadores em ações cotidianas dentro dos grupos que integram, e na colheita de materiais presentes ao longo da história do grupo, como diários de bordo, matérias de jornais, dentre outros. Além disso, para a pesquisa a reflexão desenvolvida durante esse texto aponta relações que serão discutidas ao longo da escrita. Assim num primeiro momento tecemos reflexões sobre a práxis do encenador que se caracteriza como mediador verificando a relação dessa práxis com o surgimento da encenação teatral. Num segundo momento, como vimos acima, consideramos o espaço de atuação desses encenadores e correlacionamos com o movimento de teatro de grupo no Brasil, assim além de considerar as características ligadas a esse movimento, discutiremos as bases que sustentam os grupos em que essas encenadoras estão inseridas. Por ultimo, discutir-se-á as ferramentas metodológicas utilizadas pelas encenadoras na abordagem de um discurso teatral polifônico. Acredito, pois, que embora delimitando algumas ações metodológicas para desenvolvimento desse trabalho, o momento em campo, também abrirá caminhos próprios de investigação ao longo da pesquisa, pois como cita Adilson Florentino (2012, p. 124) a 116
pesquisa em artes é constituída de símbolos e significados, possibilitando que o sujeito veja como ponto de partida a análise reflexiva desses símbolos que podem surgir ao longo do caminho que o sujeito escolhe tomar.
Considerações finais
A abordagem realizada ao longo desse texto referencia uma pesquisa em processo de iniciação ao considerarmos que os momentos em campo junto às encenadoras múltiplas ainda não foi aprofundado, pois o ato reflexivo da mesma se dará na relação dialógica entre os envolvidos. Entretanto ao ser delimitado a temática, estamos dotados de certa intencionalidade no que diz respeito à nossa produtividade no campo das artes. Nesse sentido, acredito no fazer teatral construído em colaboração, apesar de que o exercício colaborativo é diário. Por isso buscar exercer a polifonia é buscar simultaneamente trabalhar em colaboração, e nesse sentido a formação polifônica é uma conquista à longo prazo, já que é uma percepção que passa fazer parte da experiência do sujeito. Ao concluir essa reflexão clarifico que a pesquisa abrange uma vertente que integra sujeito e pesquisador como um ser integrado. Nesse sentido, a experiência é a voz ativa na elaboração da escrita, que também é percebida como um elemento de criação do sujeito-pesquisador. Por esse motivo a proposta dessa discussão não tem por pretensão chegar à verdades estanques, mas reflexionar sobre a práxis de encenadoras e mais uma possibilidade de construção cênica na contemporaneidade. Assim a intencionalidade é apresentar artistas que dentro de um mesmo circuito social estão produzindo seus trabalhos pensando numa arte cada vez mais dialógica, colaborativa. Nesse sentido, acredito no fazer teatral construído em colaboração, apesar de que o exercício colaborativo é diário. Por isso buscar exercer a polifonia é buscar simultaneamente trabalhar em colaboração, e nesse sentido a formação polifônica é uma conquista à longo prazo, já que é uma percepção que passa fazer parte da experiência do sujeito. E é sobre o saber da experiência que essa dissertação abordará ao longo da escrita.
Referências:
ARAÚJO, A. A gênese da Vertigem: O processo de criação de O Paraíso Perdido. São Paulo: Perspectiva, 2011. 272 p.
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DORT, B. A crítica em questão; A era da encenação. In:_____. (Org.). O teatro e sua realidade. São Paulo: Percpectiva, 1977. P. 59-123 FLORENTINO, A. A pesquisa qualitativa nas artes cênicas: romper os fios, demarcar os traumas. In: TELLES, Narciso (Org.). Pesquisa em Artes Cênicas: textos e temas. Rio de Janeiro: E-papers, 2012. p. 123-138. MALETTA, Ernani. A Formação do Ator para uma Atuação Polifônica: Princípios e Práticas. 2005. 370 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2005. MOURA, L. R. A iluminação Cênica no Trabalho do ator de Teatro. 2014. 133 f. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal. 2014. PIRES, V. L; TAMANINI-ADAMIS, F. A. Desenvolvimento do conceito bakhtiniano de polifonia. Estudos Semióticos. Vol. 6, no 2. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/ dl/semiotica/es/eSSe62/2010esse62_vlpires_fatamanini_adames.pdf Acesso
em: 20 jan. 2016.
ROUBINE, J-J. (1980). A linguagem da encenação teatral. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar. 1998. 240 p. SILVA, S. B. O processual na cena contemporânea: Práticas de criação e poéticas teatrais que enfatizam o percurso e a experiência da Cia Luna Lunera na gênese de “Prazer”. 2014. 187 f. Dissertação (Mestrado em Artes) - Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 2014. SILVA, K. F. Uma compreensão sobre o corpo no teatro pós-dramático: o corpo híbrido. Cadernos do LINCC-Linguagens da Cena Contemporânea. Disponível em: http://incubadora.ufrn.br/index.php/clincc/article/view/158
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Julho de 2016. TELLES, N. Paragens de um artista, docente, pesquisador. In: _______. (Org.). Pesquisa em Artes Cênicas: textos e temas. Rio de Janeiro: E-papers, 2012.p.4558.
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Currículum resumido dos autores:
Maria Lucivania de Lima Barbosa Mestranda do programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, com bolsa CAPES. Integrante do grupo de teatro Coletivo Atuantes em Cena, da cidade de Juazeiro do Norte-CE, desenvolvendo trabalhos como atriz, encenadora, produtora e iluminadora. Integra o grupo de pesquisa CIRANDAR/ UFRN. Foi professora substituta do Departamento de Teatro da Universidade Regional do Cariri-URCA, onde se graduou em Licenciatura em Teatro.
Larissa Kelly de Oliveira Marques Tibúrcio Doutora em Educação, com pesquisa com ênfase em dança, corpo e educação. Professora e orientadora do programa de Pós-graduação em Artes Cênicas e membro do departamento de Dança da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Integrante e organizadora do grupo de pesquisa CIRANDAR/UFRN e do grupo de dança contemporânea GAYA da UFRN.
Robson Carlos Haderchpek Professor Adjunto do Curso de Teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGArC) e desenvolve projetos de pesquisa e extensão na UFRN. É integrante e coordenador do grupo de teatro “Arkhétypos” da UFRN, e integrante e organizador do grupo de pesquisa CIRANDAR.
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TEATRALIDADES DISSIDENTES DE AGORA, DE OUTRORA E DO PORVIR NA AMÉRICA LATINA Paola Lopes Zamariola (Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas USP)
Resumo: A hipótese que fundamenta este artigo é a de que no contexto específico da América Latina formulam-se procedimentos criativos que tendem a evidenciar a crise da representação, tanto na arte quanto na política. A partir dos eixos do agora, do outrora e do porvir, analisa-se como a presença das distintas intensidades de teatralidade podem mesclar as searas artísticas e sociais.
Palavras-chave: América Latina; Cena contemporânea; Teatralidades Dissidentes;
Abstract: The hypothesis which grounds this article is that this specific context of Latin America generates creative proceedings that tend to make evident the crisis of representation, within the arts as much as in politics.Through the axis of the now, the yore and to come, it’s analyzed how the presence of distinct theatricalities intensities can cause the merging of artistic and social strands. Keywords: Latin America; Contemporary Scene; Dissident Theatricalities;
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Cena latino-americana contemporânea
Este artigo reúne as primeiras investigações da pesquisa de doutorado “Cena latinoamericana contemporânea: correspondências entre as teatralidades dissidentes de agora, de outrora e do porvir”, iniciada no ano de 2016. Durante o primeiro ano de realização desse estudo, dediquei-me à revisão das principais referências bibliográficas, que reuniu autores como o encenador colombiano Rolf Abderhalden, o pesquisador espanhol José Antonio Sánchez, a professora brasileira Sílvia Fernandes, a investigadora mexicana Ileana Diéguez Caballero, entre outros. Inicio este texto pelas reflexões de Abderhalden (2014) que, ao buscar hipóteses para as peculiaridades das práticas cênicas contemporâneas latino-americanas, no artigo “¿Artes Vivas? Abrebocas” considera que na América Latina é possível expandir o conceito de artes vivas “a qualquer forma de deslocamento vital que se tem produzido nas práticas artísticas, toda vez que os cânones vigentes têm impedido de dar corpo às forças que agitam a realidade e seu contexto” (ABDERHALDEN, 2014, p. 2)58. Explicita também que: Precisamente neste lugar do mundo atravessado por tão antigas e permanentes práticas de violência, e submetido a diversas formas de colonização, desde a língua e o corpo, até a representação, que buscamos traduzir a nossa singular experiência antropofágica em uma espécie de ‘contra-dispositivo’ artístico (Agamben), que permita a emergência do desejo e suas potências, e o conecte com as forças da vida e da criação. (ABDERHALDEN, 2014, p. 3)59.
Essa é uma perspectiva análoga a de José Antonio Sánchez que ao refletir sobre os processos de pensamento-criação latino-americanos problematiza sua singularidade e analisa as correlações entre seus modos de criação e fruição. Sánchez (2008), no texto “El campo expandido de la creación escénica” publicado pela revista “Artefacto” da Universidad Nacional de Colombia, destaca que: A América Latina tem realizado nos últimos cinquenta anos contribuições fundamentais para a definição deste campo [teatro em campo expandido], nem sempre suficientemente considerado pela historiografia canônica (em ocasiões nem sequer local), que é preciso reivindicar e potencializar, mediante a articulação de discursos críticos e artísticos próprios. (SÁNCHEZ, 2008, p. 74)60.
58 Tradução minha para: “A cualquier forma de desplazamiento vital que se ha producido en las prácticas artísticas, toda vez que los cánones vigentes han impedido dar cuerpo a las fuerzas que agitan la realidad y su contexto.” (ABDERHALDEN, 2014, p. 2). 59 Tradução minha para: “Precisamente en este lugar del mundo atravesado por tan antiguas y permanentes prácticas de violencia, y sometido a tan diversas formas de colonización, desde la lengua y el cuerpo, hasta la representación, que hemos querido traducir nuestra singular experiencia antropofágica en una suerte de ‘contra-dispositivo’ artístico (Agamben), que permita la emergencia del deseo y sus potencias, y lo conecte con las fuerzas de la vida y de la creación.” (ABDERHALDEN, 2014, p. 3). 60 Tradução minha para: “América Latina ha realizado en los últimos cincuenta años aportaciones fundamentales a la definición de ese campo, no siempre suficientemente consideradas por la historiografía canónica (en ocasiones ni siquiera por la local), que es preciso reivindicar y potenciar mediante la articulación de discursos críticos y artísticos propios.” (SÁNCHEZ, 2008, p. 74).
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Sobre a possibilidade de elaborar coletivamente significados para os modos de vida específicos da América Latina, também são fundamentais as contribuições de Ileana Diéguez Caballero. No livro “Cenários Liminares - Teatralidades, Performances e Política” (cf. Caballero, 2011) a autora recorre à perspectiva liminar proposta pelo pesquisador escocês Victor Turner em seus estudos sobre antropologia social para afirmar que as práticas cênicas liminares seriam aquelas que “cruzam a vida e a arte, a condição ética e a criação estética, como uma ação da presença num meio de práticas representacionais” (CABALLERO, 2011, p. 20). Em “Cuerpos sin duelo - Iconografías y Teatralidades del dolor” (cf. Caballero, 2013), a pesquisadora dá prosseguimento a tal investigação e aponta que nas práticas latinoamericanas a “violência transforma a vida, os modos de representação, a linguagem, as imagens” (CABALLERO, 2013, p. 43)6161. Nesse mesmo sentido, Fernandes (2010), no livro “Teatralidades Contemporâneas”, a partir da realidade da cidade de São Paulo que alija de seus espaços públicos grande parte de sua população, constata que as teatralidades contemporâneas tendem a problematizar a produção de um aniquilamento simbólico de seus cidadãos: A morte na alma é o resultado mais danoso da anestesia sensível e social que o cidadão paulistano experimenta, gota a gota, pelo simples fato de viver num espaço público que recusa sua destinação precípua, sonegando a seu habitante justamente a coisa pública. (FERNANDES, 2010, p. 71).
Inspirando-se em tais autores, esta pesquisa interessa-se pela possibilidade de analisar as experiências de teatro em campo expandido que buscam driblar a efemeridade das práticas artísticas, e que através desta forma tornam viável que suas reverberações tragam à tona memórias anestesiadas que afetam suas realidades. Ainda há um campo extenso de pesquisa a ser realizado sobre as especificidades da cena latino-americana e a evidência para tal afirmação é a escassez de estudos verticais no Brasil. Poucos são os pesquisadores brasileiros, principalmente na área das artes cênicas, que se dedicam a essa questão. Se a tradição da formação artística e acadêmica brasileira liga-se a importantes referenciais europeus, ressoam também as seguintes inquietações: Por que pouco conhecemos os teóricos e artistas da América Latina? Por que muitas vezes o brasileiro não se reconhece como latino-americano? Um dos principais objetivos deste estudo é poder aproximar as pesquisas cênicas brasileiras deste debate, uma vez que estão historicamente distantes destas reflexões. A partir de tal constatação, nota-se a necessidade de realizarem-se mais investigações que desejem se deslocar de tal lógica, como propõem a professora brasileira Cristina Freire e a investigadora argentina Ana Longoni. Tais pesquisadoras coordenam a pioneira rede Conceptualismos del Sur, que tem como motivação principal a busca por formas de descolonizar o pensamento gerado a partir de uma matriz colonial de valores e de representações. No livro “Conceitualismos do Sul/Sur” (2009) as autoras dedicam-se à reflexão sobre 61 Tradução minha para: “Violencia transforma la vida, los modos de representación, el lenguaje, las imagines.” (CABALLERO, 2013, p. 43).
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os procedimentos criativos de artistas do contexto latino-americano que almejam desviarse da voz unívoca dos cânones da história da arte: O modelo anglo-saxão, amplamente imposto na historiografia oficial e reafirmado pelas instituições artísticas, sobretudo pelos museus, não é capaz de fundamentar criticamente a emergência das práticas artísticas que podemos aproximar do conceitualismo nos países latino-americanos e em outras parte do mundo fora do centro. Muitas delas foram realizadas em conjunturas ditatoriais e como parte de movimentos sociais e culturais de enfrentamento. Na última década, em diferentes pontos da América Latina e em países como Espanha e outros do Leste Europeu, desenvolveram-se investigações que resgatam do esquecimento cenários, produções e artistas que nos obrigam a repensar os relatos inaugurais e canônicos do conceitualismo global e ainda hegemônico. (FREIRE E LONGONI, 2009, p. 9).
Revisar a historiografia e seus discursos hegemônicos, atualizar a dialética entre as presenças e as ausências na história da arte, dedicar-se às batalhas simbólicas e políticas das práticas invisibilizadas, ampliar a pesquisa de arquivos, valer-se de escritos de artistas para pensar a arte desde a prática, e arriscar uma teoria que contemple a dimensão biográfica são algumas das noções articuladas por Freire e Longoni (2009) que são premissas fundamentais desta pesquisa.
Teatralidades Dissidentes
A hipótese desta investigação, com base em pesquisas já existentes, é a de que as práticas cênicas contemporâneas da América Latina, em seus diferentes contextos, formulam estratégias relacionadas às teatralidades dissidentes. Tal suposição pode ser levada a cabo uma vez que tais experiências explicitam a crise da representação, tanto na arte quanto na política e, com isso, apresentam como potencialidade comum a criação de ações que contribuam nos processos de transformação de suas democracias restringidas. Ao longo deste estudo as práticas dissidentes são debatidas através do conceito de dissenso definido pelo filósofo franco-argelino Jacques Rancière que, almejando o entrecruzamento das dimensões ética, estética e política, elaborou este princípio como meio de viabilizar sua oposição ao consenso: O dissenso não é a diferença dos sentimentos ou das maneiras de sentir que a política deveria respeitar. É a divisão no núcleo mesmo do mundo sensível que institui a política e a sua racionalidade própria. Minha hipótese é portanto a seguinte: a racionalidade da política é a de um mundo comum instituído, tornado comum, pela própria divisão. (RANCIÈRE, 1996, p. 368).
As reflexões acerca das teatralidades dissidentes que norteiam esta pesquisa são recentes nas artes cênicas e, justamente por acreditar que tais colaborações teóricas, podem auxiliar no manejo de experiências tão específicas. Tal lente é eleita como modo de 123
viabilizar uma revisão crítica dos experimentos da cena latino-americana contemporânea que fazem uso de gestos, comportamentos e atuações teatrais no espaço social como meio de manifestar suas dissidências. Afinal o que seria específico das experiências cênicas contemporâneas latinoamericanas que as fazem distintas, não somente como um eco periférico, das de outros contextos? O que as particularizam do ponto de vista da criação e da fruição? Como o conceito de teatralidades dissidentes poderia se relacionar com os procedimentos realizados? Esse doutorado tem o propósito de buscar indícios para tais indagações através do diagnóstico de como cada um desses aspectos podem singularizar tais experiências, para assim fomentar debates como os da relação entre modernidade e colonialidade que merecem ser destacados em práticas cênicas que não se assimilam às conceituações que caracterizam as produções analisadas pela historiografia canônica. Para tanto, a presente pesquisa se inspira no artigo “Teatralidad y Disidencia”, de José Sánchez, no qual o autor aborda um aspecto particular da teatralidade que estaria presente nas relações sociais, nomeada especificamente como “teatralidade do poder”. Esta é uma das primeiras ocasiões na qual o autor cita a noção de dissidência e a relaciona com o conceito de teatralidade. Neste texto, as dissidências ligadas à teatralidade são apresentadas como sendo uma maneira de criar alternativas às hipocrisias morais presentes nas relações de poder que tendem a querer transformar as ações políticas em ações morais. É importante pontuar que o autor delimita a ação política à ideia de macropolítica, ou seja, “aquela dirigida às transformações das leis e dos mecanismos de regulação social” (SÁNCHEZ, 2015, p. 22)62, ao mesmo tempo que sublinha que, para a materialização de uma sociedade democrática, a necessidade da coexistência deste aspecto com uma ação “micropolítica, da qual se poderia aprender uma ética” (SÁNCHEZ, 2015, p. 22)63. O autor sugere que a liberdade moral constitui a contraditória base micropolítica do capitalismo, onde a responsabilidade ética, ou a falta dela, explicita as perversas formas do sistema neoliberal atual, quando diariamente temos que nos dar conta dos efeitos das nossas escolhas. Desta constatação, o autor desdobra as seguintes indagações: “Que modos de teatralidade são úteis para compreender e submeter à crítica os modos de encenação do poder e as relações humanas nas sociedades contemporâneas? Quais serão compatíveis com uma ação dissidente?” (SÁNCHEZ, 2015, 24)64. Sánchez não dará respostas para tais perguntas, mas apresentará hipóteses bastante diversas para as teatralidades de algumas práticas dissidentes, as conectando às ações que pretendem evitar a representação e a espetacularidade, e também as aproximando 62 Tradução minha para: “Aquella dirigida a la transformación de las leyes y los mecanismos de regulación social.” (SÁNCHEZ, 2015, p. 22). 63 Tradução minha para: “Micropolítica, de la que sí podría desprenderse una ética.” (SÁNCHEZ, 2015, p. 22). 64 Tradução minha para: “¿Qué modos de teatralidad serán útiles para comprender y someter a crítica los modos de escenificación del poder y de relaciones humanas en las sociedades contemporáneas? ¿Y cuáles serán compatibles con una acción disidente?” (SÁNCHEZ, 2015, p. 24).
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dos elos que sobrepõem muitas vezes as esferas privadas e públicas. A busca por experiências ligadas à dissidência são eleitas nesta pesquisa como modo de viabilizar uma revisão dos experimentos da cena latino-americana contemporânea que manifestam a possibilidade da co-existência de singularidades, como pontua Sánchez na conferência Dispositivos poéticos - Disidencia y cooperación realizada na Universidad Nacional de Colombia em março de 2016: Em contraste com os projetos modernos, que de um modo ou de outro buscavam a anulação da singularidade, seja na via do individualismo excludente (liberal) seja na via do coletivismo geral (comunismo), as novas concepções sociais se baseiam na articulação das singularidades. O objetivo de uma sociedade democrática é garantir a singularidade do indivíduo sem colocar em risco a sustentação da estrutura que torna possível a existência da singularidade. (SÁNCHEZ, 2016, p. 1)65.
Nesse estudo as especificidades de tais singularidades, particulares do contexto latino-americano, fundamentam-se nas proposições descoloniais de autores como o filósofo colombiano Santiago Castro-Gómez, o cientista político peruano Aníbal Quijano, o semiólogo argentino Walter Mignolo, oriundos de diversas universidades americanas que compuseram no final da década de 1990 o grupo denominado Modernidade/Colonialidade. Estes pesquisadores dedicaram-se à compreensão dos diferentes fatores que fizeram da modernidade uma experiência, ainda, intrinsecamente ligada ao processo de colonização, e que se refletem nas atuais relações de poder, saber e do ser. Castro-Gómez (2005) no texto “Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da ‘invenção do outro’” ao fazer uma crítica direcionada às formas padronizadas oriundas de uma matriz colonial, formada por valores e representações que o projeto de modernidade impôs à América Latina, afirma que: A aquisição da cidadania é, então, um funil pelo qual só passarão aquelas pessoas cujo perfil se ajuste ao tipo de sujeito requerido pelo projeto da modernidade: homem, branco, pai de família, católico, proprietário, letrado e heterossexual. Os indivíduos que não cumpram com estes requisitos (mulheres, empregados, loucos, analfabetos, negros, hereges, escravos, índios, homossexuais, dissidentes) ficarão de fora da “cidade letrada”, reclusos no âmbito da ilegalidade, submetidos ao castigo e à terapia por parte da mesma lei que os exclui. (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 89).
Para poder vir a investigar as forças centrípetas e centrífugas da complexa e diversificada cena latino-americana contemporânea, dada a amplitude de contextos existentes nesse território, torna-se fundamental optar por teorias e práticas que apresentem diferentes indícios de desvios com relação aos vestígios da colonialidade através de 65 Tradução minha para: “En contraste con los proyectos modernos, que de un modo u otro buscaban la anulación de la singularidad, bien en la vía del individualismo excluyente (liberal) bien en la vía del colectivismo general (comunista), las nuevas concepciones sociales se basan en la articulación de las singularidades. El objetivo de una sociedad democrática es garantizar la singularidad de cada individuo sin poner en riesgo el sostenimiento de la estructura que hace posible la existencia misma de la singularidad.” (SÁNCHEZ, 2016, p. 1).
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teatralidades que reagem através da dissidência às diversas formas nas quais a violência epistêmica apontada por Castro-Gómez (2005) é apresentada. Não seriam, portanto, as teatralidades dissidentes específicas da América Latina, aquelas que buscam desarticular narrativas e visibilizar sujeitos que, a princípio, estão invisibilizados pela história oficial? Partindo dessa primeira constatação, pretendemos nos dedicar às experiências teatrais contemporâneas que aproximam cena e história como forma de interrogar e se contrapor aos discursos oficiais.
Estudos de Caso
Os projetos desenvolvidos pelos coletivos artísticos Lagartijas Tiradas al Sol – La Democracia en Mexico (México) e Núcleo Arte, Política y Comunidad - Comisíon Ortúzar (Chile) apresentam-se como experiências relevantes que poderão contribuir para as reflexões pretendidas ao longo desse doutoramento. Desde 2003, oriundo do curso de artes cênicas da Universidad Nacional Autónoma de México, o Lagartijas Tiradas al Sol desenvolve projetos artísticos vinculados às práticas de teatro documentário como o “La Rebeldía”, que originou a obra “El Rumor del Incendio” (2010), documento cênico sobre a ex-guerrilheira, historiadora e professora Margarita Urías Hermosillo e os movimentos revolucionários no México nos anos 1960 e 1970. Esse espetáculo lançou cruciais perguntas que continuam a ecoar no trabalho do grupo, como pontuam seus artistas criadores Francisco Barreiro, Luisa Pardo e Gabino Rodríguez na publicação “El Rumor del Momento”: Pode a perspectiva crítica ao passado transformar o futuro? Como foi o mundo de nossos pais? O que herdamos? Que lutas aconteceram antes de nascermos? Onde nascemos? O que é a rebeldia no século XXI? Como se configura a dissidência hoje? Como procuramos nossas liberdades? Como politizamos nossas vidas? (BARREIRO; PARDO E RODRÍGUEZ, 2010, p. 10)66.
Criado em 2014 no Departamento de Teatro da Universidad de Chile, o Núcleo Arte, Política y Comunidad é formado por artistas de distintas áreas que se interessam por ativar ações interdisciplinares a respeito da re-construção da memória vinculada ao processo de abertura democrática do Chile através das atas da comissão que produziu os alicerces da constituição chilena, como conta o editorial da recente publicação “Comisión Ortúzar Acciones en torno al legado de una refundación/la refundación”: O encontro das atas permite compreender como o processo político levado a cabo durante 17 anos pela ditadura militar significou essencialmente uma refundação do Estado chileno com a finalidade de gerar as condições de instalação do sistema 66 Tradução nossa para: “¿Puede una mirada crítica al passado transformar el futuro? ¿Cómo fue el mundo de nuestros padres? ¿Qué heredamos? ¿Qué luchas se libraron antes de que naciéramos? ¿Donde nacimos? ¿Qué es la rebeldia en siglo XXI? ¿Cómo se configura la disidencia hoy? ¿Cómo procuramos nuestras libertades? ¿Cómo politizamos nuestras vidas?” (BARREIRO; PARDO E RODRÍGUEZ, 2010, p. 10).
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de economia social de mercado chamado comumente: neoliberalismo. (CORTÉS, 2016, p. 11)67.
Do grupo mexicano Lagartijas Tiradas al Sol será analisado o projeto La Democracia en México, inspirado no livro homônimo do escritor mexicano Pablo González Casanova, usado para pensar o exercício dos ideais democráticos mexicanos nos últimos 50 anos através de diferentes estratégias documentais. Do chileno Núcleo Arte, Política y Comunidad analisaremos o projeto “Comisión Ortúzar - Acciones en torno al legado de una refundación/la refundación” (2015) que se dedicou a revisar as ações dessa comissão que existiu entre 24 de setembro de 1973 e 05 outubro de 1978 e que tinha como missão criar a nova constituição do Chile, a qual viria a ser promulgada em 1980. As 11.000 páginas do processo e os mais de 11 tomos foram usados, literalmente, em diversas criações, entre elas diferentes intervenções urbanas e em um espetáculo teatral, como mote para problematizar as bases da recente, e suposta, democracia chilena. Com base nas experiências do grupo do Lagartijas, por exemplo, é possível desdobrar questões ligadas à violência de Estado e ao luto ainda presentes em um país como o México. Já do Núcleo Arte, Política y Comunidad destacam-se apontamentos que ajudam a pensar como as práticas comunitárias podem construir ações ético-estéticas como resposta às vidas marcadas pela tortura institucionalizada durante a ditadura militar do Chile. A partir das poéticas desses projetos, que tencionam diferentes procedimentos ligados à documentação da realidade e a produção de ficção, pretende-se formar constelações que nortearão as cartografias da presente pesquisa, que darão a ver os indícios das diversas formas de violência presentes na América Latina e que auxiliarão na visualização dos paralelos existentes entres os estudos de caso e outras experiências das teatralidades dissidentes.
Entre o agora, o outrora e o por vir
Para averiguar a hipótese pretendida, esta pesquisa é estruturada em três eixos temporais. O agora entendido como a opção em reconhecer o contemporâneo através da sobreposição de suas temporalidades; o outrora compreendido como a possibilidade de refletir sobre os processos de construção da América Latina; e o porvir destacado como a potencialidade da ficção afetar a realidade através das experiências das teatralidades dissidentes. O eixo do agora está relacionado ao conceito de “artista como etnógrafo” proposto pelo crítico e historiador norte-americano Hal Foster (1996) em “O Retorno do Real - A 67 Tradução nossa para: “El hallazgo de las actas, permite comprender como el proceso político llevado a cabo durante 17 años por la dictadura militar significó esencialmente una refundación del Estado de Chile con el fin de generar las condiciones de instalación del sistema de economía social de mercado llamado comúnmente: neoliberalismo.” (CORTÉS, 2016, p. 11).
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vanguarda no final do século XX”, quando ele constata a necessidade do artista manter seu exercício próximo ao da etnografia, uma vez que “a alterização do eu é sem dúvida fundamental para as práticas críticas na antropologia, na arte e na política” (FOSTER, 1996, p. 168). A pesquisadora brasileira Diana Klinger (2012) em seu livro “Escritas de si, escritas do outro - O retorno do autor e a virada etnográfica”, ao dar continuidade aos apontamentos de Foster, se interessa por explicitar o “paradigma no qual o artista se compromete com um outro definido não em termos socioeconômicos, mas culturais” (KLINGER, 2012, p. 64), para assim poder salientar o deslocamento em direção a outrem, que não somente os artistas, em práticas nas quais o viés da alteridade se torna fundamental. O eixo do outrora subdivide-se entre as constituições das territorialidades e as construções das subjetividades na América Latina e suas influências no campo das teatralidades. A respeito das territorialidades vale destacar a pesquisa do historiador italiano Loris Zanatta (2014) em “Historia de América Latina - De la colonia al siglo XXI”, na qual realiza importante revisão sobre a problemática da unidade latino-americana a partir das forças centrípetas e das forças centrífugas que deflagram as particularidades da formação deste território. Nesse eixo destacam-se os debates acerca das teorias pós-coloniais trabalhadas por autores como o professor argentino Walter Mignolo (2007) que no seminal livro “La Idea de América Latina - La herida colonial y la opción decolonial”, aponta que a perspectiva decolonial é uma opção a uma monocultura do saber advinda dos países economicamente mais desenvolvidos e que insiste em manter-se hegemônica no horizonte intelectual. Em relação à dimensão subjetiva, a investigadora brasileira Suely Rolnik (1997) fomenta os debates sobre a relação entre as dinâmicas do neoliberlismo na América Latina e suas interferências no campo das produções de subjetividades através das reflexões ligadas ao inconsciente antropofágico abordadas em publicações como “Inconsciente Antropofágico - Ensaios sobre as subjetividades contemporâneas”. Por fim, no eixo do porvir são problematizadas as teorias das políticas das imagens, afim de reafirmar a potencialidade da ficção afetar a realidade, e o diálogo existente com o campo dos “teatros do real”, como Didi-Huberman (2012) aborda em “Quando as imagens tocam o real”, já que nestas experiências “podemos propor esta hipótese de que a imagem arde em seu contato com o real” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 208). A partir da noção de “sobrevivência das imagens” buscamos analisar as teatralidades dissidentes através das indagações do filósofo francês Georges Didi-Huberman (2013) em “A imagem sobrevivente - História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg”, em reflexões sobre como a temporalidade da memória pode redesenhar as clássicas divisões causais e cronológicas do tempo. Ao articular os projetos La Democracia en México e Comisión Ortúzar - Acciones en torno al legado de una refundación/la refundación aos campos conceituais do agora, do outrora e do porvir, busca-se sobrepor as interfaces da macropolítica e da micropolítica para a análise desses estudos de caso. Inspirando-se nos apontamentos da ensaísta 128
argentina Josefina Ludmer (2010) em “Aquí América Latina - Una especulación”, a presente investigação leva em consideração o fato do “tempo parecer ser um dos universos simbólicos que negam a separação entre o social e o individual, e que se movem na história.” Projetase que tais camadas temporais auxiliem no debate acerca da crise das representações que as teatralidades dissidentes revelam, como possibilidade concreta de serem produzidas rupturas com a ordem estabelecida, poder cogitar e gestar novas hipóteses de futuro.
Referências:
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Curriculum resumido da autora: Paola Lopes Zamariola desenvolve pesquisa de doutorado fomentada pela Fapesp, sob orientação da Profa. Dra. Sílvia Fernandes. É mestra em Artes Cênicas pela mesma instituição e também possui especialização em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UNICAMP. Trabalha como atriz, diretora e diretora de arte, além de realizar projetos que envolvem práticas artísticas e pedagógicas. Desde 2016 é editora da Revista Aspas. Contato: paola.lopes.zamariola@gmail.com.
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CONSIDERAÇÕES SOBRE AS PRÁTICAS DESENVOLVIDAS POR ROBERT WILSON NO WATERMILL CENTER1 Raphael Vianna Coutinho (Pós-Graduação em Artes Cênicas - PPGAC UNIRIO)
Resumo: De que forma os procedimentos de criação adotados pelo encenador e artista visual Robert Wilson podem agir nas percepções e afetações sensoriais de atores, bailarinos e performers? A partir do acompanhamento, observação e análise de práticas desenvolvidas em seu laboratório de artes performativas – Watermill Center, este estudo se propõe a delinear percursos artísticos de criação, considerando as relações entre temporalidade, espacialidade e corporeidade como fatores determinantes deste processo. Palavras-chave: Robert Wilson; Processo Criativo; Tempo/Espaço; Watermill Center;
Abstract: How the creative practices adopted by the theater director and visual artist Robert Wilson can act on sensory perceptions and affectations of actors, dancers and performers? From the monitoring, observation and analysis of practices developed in his laboratory for performing arts - Watermill Center, this study aims to outline artistic paths of creation, considering the relationship between temporality, spatiality and corporeality as determinants of this process. Keywords: Robert Wilson; Creative Process; Time/Space; Watermill Center;
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O Watermill Center: Um laboratório interdisciplinar de criação artística
Fig. 1: Vista frontal do Watermill Center. Fonte - Arquivo pessoal.
Embora suas raízes estejam fincadas em solo americano, onde novas produções são constantemente discutidas e elaboradas ao longo dos quentes verões nova-iorquinos, os espetáculos de Robert Wilson ganham notoriedade justamente por transpor territorialidades, alcançando assim uma escala global de comunicação. Desde o inicio de sua incursão no circuito das artes, seus trabalhos aglutinam referências oriundas dos mais variados campos estéticos e culturais. Tal aspecto deve-se, em grande parte, ao interesse que Wilson nutre pela diversidade de iconografias, linguagens e práticas com as quais teve contato ao longo de sua trajetória, característica que afeta de maneira significativa o seu modo de pensar e produzir artisticamente. Em várias ocasiões Wilson reiterou o discurso sobre como o intercâmbio cultural que experienciou quando chegou a Nova Iorque na década de sessenta do século XX contribuiu decisivamente para sua formação enquanto artista. Naquele momento, o jovem texano de vinte e poucos anos recém-chegado da cidadezinha de Waco, revelou de imediato seu fascínio e encantamento pela efervescência da cidade grande. Era uma época de intensa produção intelectual e artística, influenciada por várias correntes de pensamento e fortes personalidades como Andy Warhol, Merce Cunningham, Robert Rauschenberg e John Cage. A cena comercial das grandes casas de espetáculos na Broadway não despertava minimamente seu interesse; preferia despender a maior parte do tempo em locais onde pintores, músicos, bailarinos, literatos e tantos outros artistas do circuito off encontravamse para trocar ideias, compartilhar experiências e apresentar trabalhos fora dos padrões vigentes até então. Espaços destinados à experimentação de movimentos e linguagens corporais, como a Judson Church, estúdios de arte pouco convencionais, como a Factory de Warhol, e grupos que tinham como prerrogativa a criação artística coletiva associada ao convívio intensificado de seus integrantes, como o Living Theater, faziam parte de seu roteiro cultural. Essas referências povoaram o imaginário de Wilson desde então, contribuindo para a elaboração de um pensamento particular sobre a formação artística.
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A perseguição desse ideal levou-o a adquirir em 1986 um edifício abandonado de uma antiga empresa de comunicação e telégrafos na localidade de Water Mill, em Long Island, com o intuito de implantar um centro de formação para jovens artistas onde o convívio e o modo de experimentação e produção coletiva seriam priorizados. Essa não foi a primeira vez que Wilson se debruçou sobre a proposta. Ainda na década de sessenta, ele próprio fundara em seu loft na baixa Manhattan a Byrd Hoffman School of Byrds, bem aos moldes da Black Mountain College68, para ministrar aulas e workshops que resultariam na criação de seus primeiros trabalhos teatrais e performativos como The King of Spain (1969) e Deafman Glance (1970). A escola encerrou suas atividades logo após as produções de Wilson ganharem destaque e circulação internacional. Em 1992, porém, ele começou a reforma do prédio abandonado que adquirira, contando com a ajuda de diversos parceiros e colaboradores. A obra foi finalizada em 2006 com uma inauguração acompanhada de instalações, performances e intervenções artísticas no local. Hoje o prédio funciona como centro de artes e laboratório permanente de criação chamado Watermill Center. A edificação apresenta arquitetura bastante formal, repleta de ângulos retos e esquadrias geometrizadas, que é contrabalanceada pela vasta vegetação que a rodeia e de onde pode-se avistar totens, estátuas de pedra e outros artefatos artísticos oriundos de diversas culturas, objetos que são parte de sua coleção pessoal69. Existem também plataformas de madeira instaladas na floresta e áreas externa que são utilizadas para ensaios, apresentações e demais práticas. O interior do Centro abriga salas para reuniões e ensaios, ambientes expositivos, escritórios, dormitórios, cozinha e dependências, uma extensa biblioteca contendo títulos variados, um grande acervo cenográfico e audiovisual contendo o registro de seus antigos trabalhos, um apartamento particular no 3º andar e um terraço. Para Wilson o Watermill Center é um lugar de retiro, mas também um atelier. Um espaço onde pode retornar todos os verões para iniciar e dar continuidade aos inúmeros trabalhos em que se encontra envolvido. Eu queria ter um lugar no qual eu pudesse convidar pessoas de outros países e onde estas criariam trabalhos em meu estúdio. Uma espécie de ‘usina de ideias’ ou um centro de estudo que um dia se tornaria um lugar onde as pessoas pudessem vir e desenvolver seus próprios trabalhos. [...] Eu acho que o Watermill Center é muito parecido com o loft dos Byrd na Spring Street. A grande diferença é a natureza. Eu sempre gostei de estar ao ar livre. Passei quase toda a minha vida em teatros e museus, portanto a ideia de trabalhar rodeado pela natureza era muito animadora. (WILSON apud OTTO-BERNSTEIN, 2009, p. 231)70.
Anualmente o Centro oferece programas de residência para artistas iniciantes e também já estabelecidos, subsidiando financeiramente e dando suporte às suas pesquisas. 68 Instituição estadunidense de ensino superior fundada em 1933, cujo foco era o ensino das artes, tendo sido influenciado também pelas propostas pedagógicas de John Dewey. 69 Os objetos de arte presentes no Centro compõem o acervo da Watermill Collection, um vasto inventário de desenhos, textos, esculturas, móveis e artefatos da coleção particular de Robert Wilson. 70 No original: “I wanted to have a place to which I could invite people from other countries and where would create work in my studio. A kind of think-tank or study center that would one day develop into a place where people could come and develop their own work. [...] I think the Watermill Center is very much like the Byrd loft on Spring Street. The big difference is the natural environment. I’ve always liked to be outdoors. I spent almost all of my life in theaters and museums, so thought of working surrounded by nature was very exciting”. (WILSON apud OTTO-BERNSTEIN, 2009, p. 231)
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Esses artistas podem utilizar os ambientes e dependências para criar site specific, realizar performances, ministrar palestras, propor imersões, empreender e participar de seminários, dentre outros projetos. No entanto, especialmente durante os meses de julho e agosto as atividades do Centro são potencializadas, com a realização do programa internacional de residência artística chamado Watermill Summer Program. Ao longo de cinco semanas, o Centro recebe aproximadamente setenta pessoas, de diferentes países e campos artísticos, para realizar trabalhos em coletivo, desenvolver seus próprios projetos e/ou participar de workshops com Wilson e sua equipe de criação. Em tal período o Centro torna-se uma espécie de colônia de férias, um laboratório comunitário de experimentação artística ou, nas palavras de Wilson, uma “usina de ideias”. Em Watermill, sinto que estou convidando pessoas para minha casa e compartilhando meu espaço com eles. O princípio fundamental é que eu manterei o espaço numa certa ordem, permitindo que outros criem interface com ele, alterem e desenvolvam seu próprio trabalho numa estética que pode ser completamente diferente da minha. Este é o modo como eu aprendo e cresço em meu próprio trabalho. (WILSON apud MARCIÁN; STOKER E WEISBRODT, 2012, p. 35)71.
O intuito principal do programa de residência é proporcionar diálogos e conexões entre os participantes, favorecendo assim o compartilhamento de experiências a partir do desenvolvimento de projetos em vários campos artísticos. Muitas vezes são espetáculos ou exposições de Wilson ainda em fase de produção. Durante os workshops que acontecem nesse período, projetos são discutidos e contam com a participação dos artistas residentes além de ajudantes e colaboradores de Watermill. Wilson os executa em seu próprio ritmo, esboçando, desenhando e pensando os trabalhos a serem desenvolvidos em diferentes estágios. Assim, as ideias tomam forma gradualmente, ao serem discutidas e elaboradas, às vezes de um ano para o outro. Foi o caso de “Garrincha”72, espetáculo sobre o jogador de futebol brasileiro, que começou a ser delineado em julho de 2014 e teve sua estreia apenas em abril de 2016 na cidade de São Paulo. Apesar de perseguir a ideia de formação interdisciplinar e trabalhar de modo constante com uma gama de artistas, Wilson não possui um sistema fechado de formação, ou seja, ele não tenta converter a sua poética em uma pedagogia objetiva. Não existe a intenção de sua parte em desenvolver exercícios especificamente wilsonianos elaborados através de meios didáticos para fins artísticos. Apesar disso, as características marcantes de sua poética, como o absoluto rigor dos movimentos, as partituras gestuais, as proposições temporais, sonoras e visuais presentes em suas encenações, exigem uma abordagem bastante específica por parte dos atores que integram seus espetáculos. 71 No original: “At Watermill, I feel I am inviting people to my home and sharing my space with them. The underlying principle is that I will maintain the space in a certain order, allowing others to interface with it, change it, and develop their own work in an aesthetic that can be completely different from my own. This is how I learn and grow in my own work.” (WILSON apud MARCIÁN, STOKER, WEISBRODT, 2012, p. 35). 72 A concepção do espetáculo teve início no Watermill Center em 2014, onde foram desenvolvidos workshops, pesquisas, imersões com os artistas residentes no centro e, posteriormente, esse material foi retomado em São Paulo. O espetáculo contou com um elenco de atores brasileiros e uma equipe de produção que aglutinava profissionais de diversas nacionalidades. A primeira fase de montagem ocorreu no Sesc Belenzinho em novembro de 2015, período que compreendeu a seleção de elenco e ensaios. Os trabalhos foram concluídos no Sesc Pinheiros, nos meses de abril e maio de 2016, nos quais ocorreram a estreia e temporada no Teatro Paulo Autran, de 23 a 29 de maio de 2016.
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Se a afirmação de que uma visão estética de teatro pressupõe certa pedagogia, onde então estaria a contribuição de Wilson para o trabalho do ator? Dado o avanço das discussões sobre abordagens pedagógicas no teatro, hoje podemos pensar a formação de atores desvinculada do ensino formal em universidades ou escolas específicas, incluindo o convívio em centros, laboratórios, atelier com os artistas como polos de ensino-aprendizagem. Esses espaços configuram-se com verdadeiras escolas onde o intercâmbio com diretores, coreógrafos e encenadores acabam por direcionar modos específicos de atuação para os artistas com os quais trabalham, conforme considera a teórica e pesquisadora Josette Féral: É evidente que encenadores como Mnouchkine, Wilson, Lepage, Lecompte têm, cada um à sua maneira, imposto novos atores em sintonia com suas visões de teatro. Foi o mesmo para Vitez, Kantor ou Streler. Todo encenador cuja estética é distintiva acaba moldando o ator à sua medida. Como mencionava acima, é a visão de teatro que impõe uma nova pedagogia e não o contrário. (FÉRAL, 2009, p. 257).
Nesse sentido, Watermil Center apresenta-se como um ambiente propício para a instauração de uma relação pedagógica a partir da convivência com pessoas de horizontes estéticos distintos e em diferentes níveis de formação profissional, que se propõem a trabalhar coletivamente visando ao desenvolvimento de uma conduta mais sensível, perceptiva e compartilhada. As atividades e projetos desenvolvidos no Centro são, de modo geral, baseados na consciência do tempo e do espaço e construídos na relação entre Wilson, sua equipe de criação e os atores residentes. Os workshops de criação permitem a assimilação de procedimentos culturais e artísticos que ganham sentido a medida em que os participantes produzem modos de perceber e interagir com Wilson e os diferentes espaços do Centro.
Os workshops no Watermill Center
Fig. 2: Workshop realizado em 2009 para a concepção do espetáculo Hakamé. Fonte - Arquivo pessoal
Os workshops iniciam sempre com uma discussão, no formato de mesa-redonda, nas quais as ideias gerais e aspectos relevantes de cada trabalho são expostos por Wilson
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e sua equipe. Essa fase é acompanhada bem de perto pelos artistas residentes, que são convidados a colaborar a partir do interesse comum sobre as práticas e pesquisas em andamento. As atividades variam entre peças teatrais, óperas, instalações e exposições de arte. Os envolvidos podem se relacionar com qualquer temática independentemente de sua afinidade ou experiência com determinado campo, acompanhando as discussões ou contribuindo na pesquisa de referências e imagens conceituais. Nesta etapa, é comum a formação de grupos com pessoas interessadas em acompanhar de forma mais assídua alguns workshops em detrimento de outros, tornando-se corresponsáveis pelo andamento e registro destas atividades. Wilson sempre acompanha de perto cada trabalho em desenvolvimento, em suas idas e vindas pelos locais onde os grupos se encontram reunidos. Alguns workshops são bastante herméticos, detendo-se de modo mais enfático nas discussões conceituais do que em atividades práticas. Isso acontece, em geral, quando se tratam de produções audiovisuais, retrospectivas ou montagem de exposições de arte. Os workshops que envolvem a criação de novos espetáculos, remontagem de peças teatrais e óperas tendem a ser mais dinâmicos e concentrar maior quantidade de pessoas, resultando, quase sempre, na elaboração de cenas. Durante esta etapa, é possível verificar como os trabalhos têm origem, em quais contextos eles se inserem e quais dispositivos envolvem sua criação. É interessante destacar um elemento que aparece de forma recorrente nas etapas iniciais dos trabalhos de Wilson, que é o visual book. Trata-se de um dispositivo de criação por meio do qual ele começa a pensar as produções a partir da elaboração de desenhos e esboços conceituais que faz sobre uma folha de papel. Tal dispositivo permite que Wilson organize graficamente suas ideias, a partir das discussões conceituais prévias, coletivizando com a equipe de criação envolvida o seu modo de pensar, a estrutura imagética de cada trabalho ou, quando se trata de uma peça teatral, o quadro geral da encenação. Sobre a elaboração do visual book Wilson comenta: Meu trabalho começa com o ‘livro visual’ de modo que é sempre um desafio para mim apresentar um trabalho que tem muito texto, com longos diálogos. (...) Eu trabalho em etapas. Preparo uma peça ao longo de um processo de tempo. Começo com um livro visual, que é como se verá o cenário: alto ou baixo, claro ou escuro, abstrato ou naturalista, muito vazio ou muito cheio ou o quer que seja. Depois de saber como é o espaço, acho que é mais fácil decidir o que fazer. (WILSON apud VALIENTE, 2005, p. 9)73.
No entanto, um olhar mais atento para esse dispositivo revela que os desenhos conceituais de Wilson não atendem apenas ao caráter funcional de transposição gráfica das discussões prévias nos workshops, mas desde já apontam para uma corporeidade em latência, uma cartografia dos movimentos da peça imanente nas linhas e traços sobre o papel. 73 No original: “Mi trabajo se conoce por su el ‘libro visual’, de manera que siempre supone un reto para mí presentar un trabajo que contiene mucho texto, con largos diálogos (...) Trabajo en etapas. Preparo una pieza a lo largo de un proceso de tiempo. Comienzo con un libro visual, que es cómo se verá el escenario: alto o bajo, oscuro o claro, abstracto o naturalista, muy vacío o muy lleno o lo que sea. Una vez que sé cómo es el espacio, me resulta más fácil decidir lo que hacer” (WILSON apud VALIENTE, 2005, p. 9).
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Fig. 3: Visual book elaborado em 2013 para a montagem do espetáculo Rhinoceros. Fonte - Arquivo pessoal
Talvez, mais importante do que pensar sobre sua funcionalidade, seja perceber a processualidade envolvida na elaboração destes desenhos, por vezes até bastante abstratos. O visual book precede as conversas com a equipe de criação e grupos envolvidos em cada trabalho. Ele ganha forma a partir de certa ruptura, inaugurada pelo lento e silencioso processo de sua feitura, que implementa outra temporalidade ao ritmo das discussões. De repente Wilson desenha, rascunha traços a lápis sobre o papel e, nesse movimento de aparente solitude e alheamento, um interesse comum é despertado. Sob determinado ponto de vista, o tempo e o silêncio despertos na feitura dos desenhos parecem antecipar a lentidão e a mudez presente nos corpos dos atores e objetos em sua cena. Com esta grafia particular, Wilson dá a ver a arquitetura silenciosa do movimento, que desliza da bidimensionalidade do papel para a tridimensionalidade do palco. Desse modo, o visual book se apresenta como zona de contato, onde as linhas que formam as imagens anunciam as linhas que irão esculpir o tempo e o espaço da cena. Por isso considero que este dispositivo diz respeito tanto a uma dimensão gráfica quanto corporal. Uma corporeidade virtualizada no papel e que será atualizada em cena. Na próxima etapa, Wilson convida os participantes interessados em atuação para iniciar o processo de marcação de cenas, partitura gestual e coreografia de movimentos dos espetáculos em processo. Geralmente atores, performers e dançarinos são os primeiros a se aventurar nessa empreitada, que demanda um longo período de tempo e dedicação, podendo se estender por semanas. Ele recorre novamente ao visual book para dar forma gestual aos movimentos e deslocamentos dos atores nesta etapa de trabalho, conforme elucida: A fase seguinte é o trabalho com atores que se baseia nos desenhos que compõem o livro visual. Eu tento não ter muitas ideias em mente quando eu vou para os ensaios durante esta fase. Não sou muito bom na hora de explicar o meu trabalho e o certo é que eu não me importo. Acho que se perde alguma coisa quando o explico. Só tenho um conceito geral, gosto de ver os atores e responder de forma espontânea frente a eles. Trabalhamos a improvisação com liberdade, intuitivamente, e assim fazemos outro esboço do trabalho: uma forma para decidir sobre o texto, movimentar-se, de se situar no espaço. (WILSON apud VALIENTE,
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2005, p. 9)74.
Durante os workshops Wilson insiste bastante na ideia de desaceleração do movimento. É comum perceber sua preocupação com a temporalidade a partir das indicações para os atores. Algumas recorrentes são: “Faça mais devagar”; “Procure levar mais tempo neste movimento”, “Mova-se sem a urgência de passar uma mensagem”75; indicações que funcionam como dispositivos para que os atores acessem outra qualidade de movimento a partir da dilatação temporal de suas ações. Não há uma técnica específica para atingir a temporalidade requerida por Wilson. Percebo que isso ocorre quando existe uma amplificação da percepção e dos sentidos, como consequência de um estado de concentração sobre passagem do tempo das ações. Assim, um novo regime de temporalidade age nas percepções e afetações sensoriais dos atores, permitindo que eles habitem outro tempo e espaço e experimentem micro-percepções e micro-afetações que permaneceriam ocultas no tempo natural das ações cotidianas. Quando acessada, essa temporalidade faz com que a cena pulse o tempo do acontecimento e do devir – não o tempo cronológico, mas um tempo aiônico76. Assim, os movimentos prolongam-se em uma sequência contínua, estendida quase infinitamente, como o movimento de um caminhar que se decompõe, então, em levantar o pé do chão, mover uma perna à frente da outra, e pousar o pé novamente no chão. O dispositivo da dilatação temporal proposto por Wilson procura reabilitar o corpo ao tempo natural, o tempo presente, similar aos efeitos de se contemplar uma paisagem que se anuncia gradativamente a cada momento. A esse respeito Marianna Kavallieratos, dançarina e colaboradora de longa data no Watermill Center e também integrante constante em diversos espetáculos de Wilson, elucida: A maior parte do movimento de Bob é LENTO... Isso foi desafiador quando eu comecei a trabalhar com ele, para entrar em sintonia com esse ritmo. No início ele me dizia: “Não, não, muito rápido”. Isso exige muita disciplina pessoal e horas de prática sozinha. A caminhada lenta em movimento é algo muito intenso, pois é preciso manter o corpo vivo e presente o tempo todo, sem perder a tensão e o poder da presença no palco. (KAVALLIERATOS, 2016, s/p)77.
Ao insistir nesse trabalho sobre a temporalidade, Wilson procura direcionar a atenção para a continuidade do movimento com um pensamento sobre a composição de “linhas” onde o tempo e o espaço entram em relação. “Para mim, o tempo é uma linha vertical que 74 No original: “La siguiente fase es el trabajo con los actores y se basa en los dibujos que componen el libro visual. Trato de no tener muchas ideas en la mente cuando acudo a los ensayos durante esta fase. No soy muy bueno a la hora de explicar mi trabajo y lo cierto es que no me importa. Creo que pierde algo si lo explico. Sólo tengo un concepto general, ya que me gusta ver a los actores y responder de forma espontánea frente a ellos. Trabajamos la improvisación con libertad, de manera intuitiva, y así realizamos otro boceto del trabajo: una forma de decidir el texto, de moverse, de situarse en el espacio. (WILSON apud VALIENTE, 2005, p. 9). 75 No original: “Take it slower”; “Try to take more time in this movement”; “Move without the urgency of passing a message” (WILSON, 2009, s/p). 76 Designa uma duração, uma temporalidade não numerável nem sucessiva, mas intensiva. 77 No original: “Most of Bob’s movement is SLOW…. it was challenging when I first started to work with him to tune in to this pace. In the beginning he would say to me: “No no no ,too fast”.It takes a lot of personal discipline and hours of practicing alone. Slow walking and moving , is very intense in order to keep the body alive and present all the time, without loosing the tension and the power of presence, on stage” (KAVALLIERATOS, 2016, s/p).
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atravessa a terra, do centro desta ao céu, e o espaço é uma linha horizontal. É essa cruz formada pelo tempo e pelo espaço que constitui a arquitetura de tudo” (WILSON, apud BUFFARD, 1997, p. 14)78. Essas linhas devem ser percebidas e afetar o corpo do ator a todo o momento. A partir da desaceleração do movimento é possível ativar as micro-percepções do tempo e espaço que permitem ao ator criar conexões entre as linhas horizontal e vertical e as linhas que seu corpo desenha em cena. Desse modo, ele toma consciência das linhas que transportam seus movimentos, que atravessam seu corpo, esculpindo o tempo e o espaço ao seu redor. Assim o corpo inaugura uma dimensão intervalar, ao considerar as linhas que têm origem antes dele e as que se prolongarão depois dele. Habitar esse “entre” e manter-se aberto à permeabilidade e ao fluxo das linhas de tempo e espaço é a tarefa do ator. Encontrar o equilíbrio entre o movimento interno e o movimento já presente na cena.
Fig. 4: Workshop ocorrido em 2009 para montagem do espetáculo Light Leaves. Fonte - Arquivo pessoal
Nos workshops é possível tomar conhecimento da geometria de movimento de Wilson, que está sempre na contramão dos gestuais executados cotidianamente, denunciando gestos pré-fabricados repetidos e combinados em um tempo ordinário. O caminhar talvez seja a atividade comum mais valorizada por ele em todas as etapas de criação. Nos breves momentos de explanação sobre o modo como compreende o trabalho do ator, ele comenta que “antes de mais nada é preciso aprender como caminhar, como mover a mão, erguer o braço, sem querer significar com esses movimentos” (WILSON, 2013, s/p)79. Muitas vezes o próprio Wilson faz os movimentos e gestos para explicitar aos atores uma determinada partitura, sem com isso dar qualquer motivação ou indicação psicológica para esse ou aquele movimento e gesto executado. Salvo raras exceções, suas indicações são formais e dizem respeito ao tempo e espaço do corpo e de como deve responder aos estímulos sonoros e visuais a cada momento. Os artistas de minhas obras não são necessariamente dançarinos e o treinamento que eu exijo tem a ver com a execução de movimentos ‘fáceis’, memorizados com base em uma contagem aritmética elementar, quase automática. O 78 No original: “Space is a horizontal line and time a vertical line that goes from the heights of the sky to the center of the earth” (WILSON, apud BUFFARD, 1997, p. 14). 79 No original: “First of all one must learn how to walk, how to move a hand, raise an arm, not to mean with these movements” (WILSON, 2013, s/p).
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comportamento que eu quero no palco é extremamente formalizado, não deve ser nada espontâneo, ele tem que ser imediatamente percebido como comportamento artificial, criado para o teatro. (WILSON apud MOREY E PARDO, 2003, p. 110)80.
Entre as suas indicações nos workshops está a seguinte: “tome consciência dos espaços do seu corpo, do espaço entre seus dedos”81. Talvez o trabalho do ator na cena de Wilson não esteja realmente ligado à criação de partituras corporais, pois isso é dado por ele de modo minucioso, mas pelo desejo de criar agenciamentos, conexões e nexos entre os materiais heterogêneos presentes na sua cena. Pôr-se em contato com diferentes corporeidades e também com a própria matéria que constitui seu corpo. Praticar o cuidado sobre si para que espaços se instaurem, operando e desarticulando modelos sensóriomotores habituais. Quando está em cena o ator de Wilson dirige a sua percepção para aquilo que está fora dele, sua exterioridade, inaugurando uma espécie de percepção atmosférica e tátil das texturas presentes no espaço. Em momentos assim a sensibilidade do corpo sobe para a superfície, estabelecendo uma “conexão íntima com a pele, tornando-se como uma espécie de parede atmosférica interior da pele” (GIL, 2002, p. 59). Em entrevista, Kavallieratos comenta suas impressões sobre como a exterioridade da cena age sobre o seu corpo: O corpo é afetado constantemente porque na maioria das vezes você não tem de pensar sobre o movimento ou qualidade, mas onde você está no espaço para estar iluminado e em relação com os outros personagens. (...) Como na música, você tem que saber as notas para poder improvisar, ou compor estruturas. O mesmo com a arquitetura do corpo. Conheça suas ‘linhas’ para quebrá-las, para quebrar as limitações do formalismo e dos limites. (KAVALLIERATOS, 2016, s/p)82.
Esse aspecto do corpo do ator na cena de Wilson encontra muitas similaridades com o do conceito de “espaço do corpo” que o filósofo e ensaísta José Gil desenvolve a partir da reflexão sobre a capacidade extensiva que a pele adquire ao criar relações sensórioespaciais com o entorno do corpo. Embora invisíveis, o espaço, o ar adquirem texturas diversas. Tornam-se densos ou tênues, tonificantes ou irrespiráveis. Como se recobrissem as coisas com um invólucro semelhante à pele: espaço do corpo é a pele que se prolonga no espaço, a pele tornada espaço. Daí a extrema proximidade das coisas e do corpo. (GIL, 2013, p. 45). A insistência na desaceleração do movimento é potencializada ainda pelo 80 No original: “The performers of my works are not necessarily dancers and the training I demand has to do with the execution of ‘easy’ movements, memorized on the basis of an elementary, arithmetic counting, almost automatic. The behavior that I want on stage is extremely formalized, there must be nothing spontaneous about it, it has to be immediately perceived as artificial behavior, created for the theater. (WILSON apud MOREY E PARDO, 2003, p. 110). 81 No original: “Be aware the spaces of your body, the space between your fingers.” (WILSON, 2013, s/p). 82 No original: “The body is affected constantly, also because most of the time you don’t just have to think of the movement or the quality, but where you are is the space to be in the light and in relation with the other characters (…) Like in music, you have to know the notes and can still improvise, or compose structures. The same with the body architecture. Know your ‘lines’ to break them, to break the limitations of formalism and boundaries.” (KAVALLIERATOS, 2016, s/p).
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dispositivo de paragem em diversos momentos. Para o pesquisador e ensaísta André Lepecki “[...] engajar-se no parado significa [...] engajar-se em novas experiências da percepção de sua própria presença” (LEPECKI, 2005, p. 14). Portanto, se um corpo mantém sua paragem, o espaço ao seu redor começa a dialogar com ele, potencializado pela contenção de seus movimentos externos. Se o ator mover-se de modo lento ou acelerado, o espaço move-se com ele também. O dispositivo de paragem praticado por Wilson faz do corpo uma imagem desviada de significado, um contorno de ausência que faz vibrar o seu entorno, tornando os movimentos do espaço mais visíveis e audíveis. Desse modo, as linhas que compõem o corpo do ator entram em consonância com o esquema formal da cena, provocando a percepção sobre a sintaxe visual deste tableau vivant que inclui os atores, a arquitetura cênica, a iluminação e os demais elementos que compõem o espaço. Sobre as potencialidades imanentes da corporeidade em cena, Kavalieratos acrescenta: O corpo do performer é único, mas ainda faz parte da imagem em movimento de Wilson. Nós somos, na maioria das vezes, parte de um quadro inteiro que cria uma atmosfera em cada cena. Portanto, não se trata apenas de um corpo, mas um corpo no espaço, na luz e no som. (KAVALLIERATOS, 2016, s/p)83.
A atriz Bete Coelho, que trabalhou com o diretor nos espetáculos “A Dama do Mar” (2013) e “Garrincha” (2016), traz alguns apontamentos sobre características de atuação e presença do ator que podem contribuir para a compreensão mais apurada das relações espaciais que se estabelecem na cena de Wilson. O ator precisa se relacionar com a luz e o espaço para saber se posicionar em relação a eles. No teatro do Bob, essas relações estão diretamente conectadas. Uma coisa não existe sem a outra. Ficar no lugar errado ou fora da luz no palco do Bob é o mesmo que não entrar em cena ou sujar um quadro meticulosamente pintado. (...) Outra recomendação é a atenção ao espaço entre os espaços do corpo, não só em função da luz, como pela qualidade da presença cênica. (COELHO, 2016, s/p).
Um procedimento bastante relevante nessa etapa de criação ocorre por meio da escuta. A marcação das partituras gestuais se dá a partir de uma contagem aritmética, onde cada número corresponde a um movimento. Os atores são assim coreografados dentro de uma partitura rítmica que os coloca em estado de prontidão para em seguida tornálos imagem movente. A partir do dispositivo de contagem o ator que escuta com atenção desenvolve um estado permanente de prontidão ao se mover, nunca antes nem depois, sempre “no tempo” dos acontecimentos. Isso faz com que adquiram maior consciência de seus movimentos e sobre como eles inauguram tempos e espaços distintos a cada momento. Por isso desenvolver a escuta é uma capacidade de extrema importância para os atores que trabalham com Wilson.
83 No original: “The body of the performer is unique, but yet is part of a moving Wilson image. We are most of the time part of a whole picture that creates an atmosphere in each scene .So it is not only about one body, but a body in space, light and sound.” (KAVALLIERATOS, 2016, s/p).
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Fig. 5: Workshop ocorrido em 2009 para montagem do espetáculo Light Leaves. Fonte - Arquivo pessoal
Um interessante exercício acontece todos os dias, antes das reuniões matinais de trabalho. Essas reuniões ocorrem sempre na grande sala de ensaio, no interior do Centro, pontualmente às dez horas da manhã. Quando Wilson adentra o recinto instaura-se um longo e profundo silêncio, antes que qualquer orientação mais especifica seja dada. Essa atmosfera permanece por um tempo indeterminado até que todos afinem a concentração para uma escuta muito especifica: a escuta do movimento. Nesse tempo é possível perceber cada detalhe da arquitetura da sala e olhar para cada pessoa ali presente. Aos poucos a escuta apura-se ainda mais e a atenção volta-se para os pequenos movimentos e também para os movimentos internos, como a ação da própria respiração agindo no corpo. Esse dispositivo permite o desenvolvimento de um estado meditativo e a conscientização de que o silêncio e a estática são convenções abstratas, uma vez que sempre haverá movimento e som a todo o momento e em toda parte. A atenção à escuta, a contagem dos movimentos, a desaceleração e repetição das ações, os efeitos de paragem e os extensos ensaios nos workshops, permitem aos atores encontrar uma forma de aprender com o corpo, cada qual ao seu tempo e à sua maneira. Apesar do trabalho intensivo que alguns workshops demandam, os participantes desse estágio de criação não serão necessariamente incluídos nos trabalhos quando finalizados, uma vez que as equipes responsáveis pelas respectivas produções podem contar com elencos pré-definidos nos países onde ocorrerão as estreias. Assim, os workshops desenvolvidos em Watermill Center funcionam como etapas de experimentação, nas quais todo o processo com os artistas residentes será considerado mais adiante, em outra fase. As partituras corporais e marcações, os modos como as palavras são ditas, as deixas musicais e os movimentos de entrada e saída de objetos e cenários, minunciosamente registrados por assistentes e integrantes da equipe de produção de Wilson, tornam-se então um importante material para que todo o trabalho tenha continuidade posteriormente. Desse modo, a experiência Watermill Center permite que as ações desenvolvidas em laboratório espraiem-se para outros lugares, afetando as equipes que terão contato com esses materiais carregados de corporeidades, temporalidades e espacialidades tão diversas e singulares. 142
Referências:
BUFFARD, Claude-Henri. Entrevista com Bob Wilson. Catálogo do espetáculo The Black Rider: The casting of the magic bullets. Rio de Janeiro, 1997. COELHO, Bete. Entrevista concedida a Raphael Vianna Coutinho. Rio de Janeiro: Arquivo Pessoal, 2016. DELEUZE, Gilles. A Dobra: Leibniz e o Barroco. Campinas: Papirus, 1991. DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997. Volume 4. FÉRAL, Josette. Formação: Teatro Performativo e Pedagogia – Entrevista com Josette Féral. Revista Sala Preta, São Paulo, v. 9, n. 1, 2009. p. 260 GALIZIA, Luiz Roberto. Os Processos Criativos de Robert Wilson. São Paulo: Perspectiva, 1986. GIL, José. Movimento total: o corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2013. KAVALLIERATOS, Marianna. Entrevista concedida a Raphael Vianna Coutinho. Rio de Janeiro: Arquivo Pessoal, 2016. LEPECKI, André. Desfazendo a Fantasia do Sujeito (dançante): “Still acts” em The Last Performance de Jérome Bel. Lições de Dança, Rio de Janeiro, UniverCidade, n. 5, p. 11-26, 2005. MARCIÁN, José Enrique; STOKER, Sue Jane; WEISBRODT, Jörn. The Watermill Center: A Laboratory for Performance. Stuttgart: Daco Verlag, 2012. MOREY, Miguel; PARDO, Carmem. Robert Wilson. Barcelona: Ediciones Polígrafa, 2003. OTTO-BERNSTEIN, Katharina. Absolute Wilson. New York: Prestel, 2009. VALIENTE, Pedro. Robert Wilson: Arte Escênico Planetário. Ciudad Real: Na que Editora, 2005. WILSON, Robert. Considerações realizadas no contexto dos workshops do Watermill Summer Program. Nova Iorque: Watermill Center, 2009.
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_______. Considerações realizadas no contexto dos workshops do Watermill Summer Program. Nova Iorque: Watermill Center, 2013.
*Parte significativa das considerações e impressões apresentadas neste texto se devem a experiência com as práticas desenvolvidas em Watermill Center, nos anos de 2009 e 2013, como participante e artista residente do Watermill Summer Program. Acrescento ainda referências à dissertação de mestrado sobre o teatro de Robert Wilson, defendida em 2010 na UNIRIO, sob a orientação da Profª Dra Lídia Kosovski.
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ESTRATÉGIAS DE CONEXÃO ENTRE CORPOS PARA UMA POÉTICA DE IMPROVISAÇÃO EM DANÇA Suzana de Sousa da Luz (UFPA - Mestrao Acadêmico em Artes)
Resumo: A presente pesquisa, realizada com integrantes do Grupo de Pesquisa Coreoepistemologias da Universidade Federal do Pará (UFPA), tem o objetivo de investigar recursos de preparação para a construção de um espetáculo de improvisação em dança contemporânea a partir dos estudos de SIQUEIRA (2006) e SILVA (2005). O conceito de improvisação aqui apresentado pauta-se em MARTINS (2003) e como conceito também pertinente destaca-se MUNIZ (2015). A metodologia aplicada lança mão de laboratórios cênicos que utilizam a improvisação em dança como resultado cênico, sendo o espetáculo criado no instante da sua execução a partir das conexões entre os corpos dançantes participantes. Palavras-chave: Criação em dança; Dança contemporânea; Improvisação; Estratégias coreográficas;
Abstract: The present research, carried out with members of the Coreoepistemologies Research Group of the Universidade Federal do Pará (UFPA), has the objective of investigating the preparation resources for the construction of an improvisation spectacle in contemporary dance, based on contemporary dance studies of SIQUEIRA (2006) and SILVA (2005). The concept of improvisation presented here is based on MARTINS (2003) and MUNIZ (2015) stands out as a relevant concept. The applied methodology makes use of scenic laboratories that use improvisation in dance as a scenic result, being the spectacle created at the moment of its execution from the connections between the participating dancing bodies. Keywords: Creation in Dance; Contemporary Dance; Improvisation; Choreographic Strategies; 145
Caminhos da pesquisa A cena é o que importa. E estamos todos em prol e a serviço dela. (Larissa Chaves)84
Ao ingressar no Mestrado Acadêmico em Artes (2015), ofertado pela Universidade Federal do Pará, minha intenção enquanto pesquisadora era propor que os sujeitos da pesquisa, os intérpretes-criadores do Grupo de Pesquisa Coreoepistemologias (GPC)85 trabalhassem com o mesmo assunto como indutor coreográfico, almejando esboçar uma observação e análise sobre as distintas abordagens, estruturações e estratégias coreográficas que cada intérprete valia-se para sua criação em dança. No entanto, no transcorrer dos encontros com o Grupo Coreoepistemologias, vivenciei um momento decisivo no I Encontro de Bricolagem Coreográfica e Improvisação, coordenado pela Prof.ª Drª Waldete Brito, na Escola de Teatro e Dança da UFPA, o qual tinha como tema central: Poéticas Cênicas em Tempo Real. Nesse encontro estive em contato com o que foi essencial para o redirecionamento de minha pesquisa. Entre os convidados ao evento, estava a Prof.ª Drª Ana Mundim, que entre outros estudos e aprofundamentos, possui pesquisas que visam o desenvolvimento de investigações teórico-práticas acerca da improvisação em dança contemporânea. Era eu, então, apresentada mais diretamente ao que a autora chama de “composição em tempo real”, conforme esclareço a seguir: A composição em tempo real em dança está ligada a noção do presente, do imediato, do imprevisto. Algumas terminologias como coreografia aberta, coreografia estruturada, improvisação dançada, coreografia instantânea parecem estar sob o mesmo envelope conceitual. Apesar de seu caráter imediato e efêmero, a composição instantânea exige dos ,bailarinos ou performers experiência de procedimentos, de técnicas para compor no instante. (MEYER; MUNDIM E WEBER, 2010, p. 1).
Composição em tempo real? Um espetáculo criado sob os olhos do público? Como delimitar, então, seu início e fim? Até que ponto é todo improvisado? Qual o papel do coreógrafo/diretor em um espetáculo de dança improvisado? Como dirigir algo do tipo? Essas foram as primeiras de muitas outras perguntas que foram surgindo. Fascineime pela possibilidade de desenvolver algo neste cunho com a minha pesquisa. Traçamos conexões e vimos que os objetivos não se diferenciavam profundamente. Ainda tenho como intenção observar o processo de criação dos intérpretes criadores. No entanto, isto será feito dentro de um processo de construção de um espetáculo de dança composto em tempo real. Assim, é a partir dessa perspectiva de criação que me proponho pesquisar 84 Acadêmica do curso de Licenciatura Plena em Dança da Universidade Federal do Pará, intérpretecriadora do Grupo de Dança Moderno em Cena e integrante do Grupo de Pesquisa Coreoepistemologias, em entrevista concedida em 21/09/2016. 85 Criado em 2015, o Grupo de Pesquisa Coreoepistemologias é coordenado pela Prof.ª Drª Ana Flávia Mendes Sapucahy e tem por objetivo o estudo da potência teórica de práticas criativas em dança na cidade de Belém – PA.
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sobre o movimento de seleção, decisão e composição que vai desde a emergência do afeto original, passando pela sua formulação, até à sua execução. Não compreendendo a improvisação como sendo possível se “fazer qualquer coisa”, mas como um local fértil de possibilidades. Um local de percepções, ações, posicionamentos, escuta de si e do coletivo, generosidade, altruísmo, dentre outros fatores. Compreendamos a improvisação para além da errônea e pejorativa percepção de dentro dela que se pode fazer qualquer coisa, “de qualquer jeito”, um vez que, não há diretrizes diretas sobre o que se deve fazer. Criar livremente não significa poder fazer tudo e qualquer coisa de qualquer maneira. Ser livre é uma condição estruturada e altamente seletiva, sempre vinculada a uma intencionalidade presente, embora talvez inconsciente, e a valores (individuais e sociais) de uma época. Nada é feito ao acaso, as criações são orientadas pelas opções possíveis a um indivíduo em um determinado momento. (PASSOS E ZIMMERMAN, 2011, p. 3).
É neste lugar de escolhas e modos de pensar que seguimos experimentando a cada encontro como realizar um espetáculo que é construído e dirigido em tempo real. No qual o processo de criação é simultâneo ao processo de contemplação. Abordando a improvisação, que é uma das diversas formas de composição em dança, em configurações criativas para o espetáculo. No qual a pesquisa, produção e apresentação se configuram entre replicações de regras transitórias e princípios de conectividades nas tomadas de decisões em ‘tempo real’. A improvisação em dança tem sido um recurso usado na criação de produções artísticas e/ou na preparação de dançarinos para o palco. De modo geral, há uma proximidade nos processos de experimentação para criação em dança e a improvisação. Inúmeros jogos e laboratórios de experimentação artística poderiam ser citados. Há muito a improvisação vêm sendo, ainda que não sob consenso geral dos autores, utilizada no ramo teatral. Há inúmeros estudos e possíveis conceituações sobre o que seria o improviso, suas definições, etc. Patrice Pavis em Dicionário de Teatro estabelece referências para uma possível definição de improvisação no teatro, na qual a improvisação é a: técnica do ator que interpreta algo imprevisto, não preparado antecipadamente e ‘inventado’ no calor da ação. Há muitos graus na improvisação: a invenção de um texto a partir de um caneva conhecido e muito preciso (assim, na Commedia Dell’Arte), o jogo dramático a partir de um tema ou de uma senha, a invenção gestual e verbal sem modelo na expressão corporal, desconstrução verbal e a pesquisa de uma nova ‘linguagem física’. (PAVIS, 2008, p. 205).
Nota-se, então, o uso da improvisação como meio para determinado fim e, ainda, como parte constituinte do processo de criação. Em frente as diversas definições do termo, acrescento, ainda, a definição de Portillo e Casado em Abecedário del Teatro, apresentada por Muniz, no qual os autores determinam a improvisação como 147
a) Atuação que não se atém a um texto decorado. É uma técnica comumente empregada como exercício de aprendizagem para o ator e como um passo inicial na montagem de uma obra. [...] b) recurso do ator quando esquece momentaneamente seu papel. (MUNIZ, 2015, p. 21).
Como pode se notar, tal definição traz uma reafirmação da improvisação como ferramenta para a formação do ator e como mais um elemento para o treinamento da habilidade de atuação no que tange o processo de criação de personagem ou mesmo estágio de produção da cena. Todavia, ater-se aos estudos do improviso no teatro não é o objetivo desta pesquisa, porém, é válido grifar como a improvisação e as artes estão conectadas de diversas maneiras. Poderia-se aqui abrir um apanhado sobre a improvisação em diversas vertentes, como por exemplo, a pintura. Assim: Keith Sawyer em seu estudo sobre o improviso e o processo criativo intitulado Improvisation and Creative Process fala sobre o treinamento de Picasso durante a criação de suas obras. Ela relata que Pablo Picasso quando em seu estúdio, costumava fazer experimentos com as cores, em uma tela branca, começava a pintar e o ato de observar as imagens que ele havia gerado, o levava para outra imagem mesmo que a anterior fosse descartada. Muitas vezes, depois de cerca de cinco horas de trabalho, Picasso não ficava satisfeito com o trabalho e descartava o quadro feito. Pode parecer uma perda de tempo, mas a cada quadro não utilizado que ele pintava ele tinha novas ideias que poderiam ser usadas em um novo quadro. Isso fazia parte de seu processo criativo. (PORTELA, 2016 p. 20).
Esta descoberta de modo a utilizar, reutilizar, significar, re-significar e todo este processo que parte da improvisação é uma característica muito forte. Logo, a proposição de minha pesquisa é observar a utilização da improvisação em dança como o próprio resultado cênico e não apenas como um recurso, mas como a própria dança realizada no instante da sua execução. Para os bailarinos, o encanto está na liberdade e espontaneidade de ação e composição, tendo como primícias as respostas imprevistas e bem encadeadas, haja vista que há constante necessidade de estar aberto ao aparecimento do inusitado com o seu próprio corpo e com os demais corpos envolvidos no processo. Encentra. Enquanto pesquisadora e diretora artística do espetáculo, meu desafio é descobrir e redescobrir maneiras de atuar como diretora de um espetáculo composto em tempo real a partir da improvisação em dança. Qual o meu papel antes e durante o espetáculo? Outro ponto a ser grifado no que tange a esta pesquisa é a improvisação como mudança de hábitos, e por mudança de hábitos, entenda-se estratégias de movimentação e composição da dança com objetivos de experimentar outras formas de organização. Pode-se dizer que a improvisação, em algum grau, tem como objetivo rever padrões e formatos, desenhos conhecidos e habituais da dança. Para tal objetivo são propostas experimentações que desestabilizam a criação habitual. É o império de liberdade dos gestos dos intérpretes. Ao não interpretar um personagem, eles integralmente se revelam. 148
São começo, meio e o fim da dança. Vale salientar que não existe uma obra ideal pré-elaborada, o que existe é uma composição organizada por possibilidades durante a própria ocorrência da cena; são indicativos que são por diversas vezes alterados, a depender do dia e estado de corpo dos bailarinos. Grandes indicativos da imprevisibilidade e diversidade na qual se constitui a improvisação em dança. Assim: É recorrente o incômodo sobre riscos da improvisação composta em tempo real, e com o propósito de garantir alguma eficiência sobre composição da dança, diversos improvisadores, como Dunn, Paxton, Nelson, Hagendoorn, Zambrano, entre outros, formularam treinamentos para improvisação. Para tais improvisadores exercer autonomia sobre parâmetros convencionados por treinamentos pode garantir alguma coerência compositiva. Ou seja, não há acordos específicos sobre cada apresentação, mas há parâmetros sobre composição que são treinados, definindo noções de eficiência como tendências de desenvolvimento da improvisação. As formulações de treinamentos têm como propósito ampliar: repertório de movimento, atenção, percepção e entendimento sobre composição; exige repetição, método, pré-estabelece movimentos, focos de atenção e objetivos sobre composição. (GUERRERO, 2011, p. 2).
Sobre esta coerência compositiva citada pela autora, o grupo de pesquisa Coreoepistemologias tem experimentado e se aventurado a encontrá-la. O que é um trabalho contínuo e longínquo. Compreender a cena que está se formando e compô-la. Organizar seus anseios e, por vezes, abrir mão deles em detrimento da cena coletiva. Como destaca Gleydyson Rodrigo86, “ ‘será que eu tenho que estar em cena a todo o momento?’; ‘será que agora é oportuno eu estar?’; ‘será que a minha presença vai acrescentar algo ou não à cena?’ ”. Pois como sublinhado na fala de Larissa Chaves, “temos que pensar que o mais importante é a cena. A cena é o que importa”87. Sempre se colocando em estado de prontidão criativa e aberto a todas as possibilidades. Para o integrante do GPC, Ercy Souza88, esta é uma busca constante sobre buscar novas formas, novas conexões, novas saídas, propostas, movimentos, etc. Eu me sinto muito diferente. Se eu não estou na vibe de conjunto, de contato, como manter a ordem de conjunto independente de como meu corpo está hoje. Como você, bem ou mal, resolve a cena. Todos precisam trabalhar para isso. E se isso não acontecer, qual a estratégia para alterar isso?
Partindo das indagações presentes na fala dos intérpretes e participantes da pesquisa, é importante dizer que compreendo este corpo como transitável em inúmeras e 86 Aluno do Curso Técnico em Dança da Universidade Federal do Pará, intérprete-criador da Companhia Moderno de Dança e integrante do Grupo de Pesquisa Coreoepistemologias, em entrevista concedida em 26/10/2016. 87 Em entrevista concedida para a construção desta pesquisa em 26/10/2016. 88 Doutorando em Artes pelo Programa de Pós Graduação da Universidade Federal do Pará, intérpretecriador da Companhia Moderno de Dança e integrante do Grupo de Pesquisa Coreoepistemologias, em entrevista concedida em 26/10/2016.
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infindáveis possibilidades de criações. Um meio de construção de formas de expressão e comunicação, através de manifestações estéticas e artísticas, para a formação não apenas artística, mas, sobretudo, global do indivíduo. Assim, adentrar nos terrenos da criação é sempre caminhar por vias que são atravessadas pelo eterno aventurar e descobrir. Porém, é necessário tornar-se disponível e reconhecer este inúmero conjunto de caminhos e vias que nos levam aos mais distintos destinos, uma vez que o processo criativo não apresenta uma única via de tráfego, e é neste ponto de aventuras e descobertas que me coloco. É válido dizer que os terrenos de criação coreográfica sempre instigaram-me enquanto pesquisadora. E embebida no pensamento da pós modernidade na dança, destaco a pluralidade e a multiplicidade propostas pelo movimento pós-moderno em dança que tornam-se estratégias para proposições metodológicas que permitem aos bailarinos produzirem movimentos singulares, a partir de estímulos diversos e experimentações que vão além da própria linguagem da dança, utilizando-se das mais diversas metodologias a fim de que se constitua uma dança a partir de movimentos não estabelecidos previamente. Atualmente, estamos a observar as delimitações de direção e atuação em cena. Uma vez que, todos integrantes da composição atuam como autores dela, com certo grau de autonomia sobre seu processo e instauram um processo de co-autoria ainda no momento de atuação em cena.
Estratégias de conexões entre corpos Eu penso sempre na riqueza de possibilidades da dança. Eu não estruturo a improvisação antes de entrar, então, todas as vezes é uma nova vez, uma nova chance. Juan Silva89
No decorrer da pesquisa temos buscado estratégias criativas e coreográficas que permitam uma conexão entre os intérpretes criadores no transcorrer da cena. Maneiras de estabelecer atrelamento entre os intérpretes por meio de sinais corporais, verbais e visuais a fim de esquadrinhar em cena a coerência compositiva, já citada. Abaixo, para que se compreenda como tem se desenvolvido esta busca, trago um exemplo de um processo criativo realizado com o Grupo Coreoepistemologias no dia 17/10/2016.
89 Pedagogo, intérprete-criador da Companhia Moderno de Dança e integrante do Grupo de Pesquisa Coreoepistemologias, em entrevista concedida em 07/09/2016.
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Belém, 17 de outubro de 2016 DIÁRIO DE PROCESSO CRIATIVO LEITURA DO ROTEIRO DO ESPETÁCULO 19h30 - 19h40 Iniciamos por explicar o que mais tarde seria feito. Este momento antecede o aquecimento por acreditar que a leitura posterior do roteiro faz com que os intérpretes criadores tenham uma quebra, tanto no processo tanto criativo quanto no estado de corpo no que diz respeito ao aquecimento corporal. O espetáculo do dia é que segue abaixo.
Akai Ito: O Fio Vermelho Do Destino Akai Ito ou fio vermelho do destino é uma lenda de origem oriental, no qual, de acordo com o mito, os deuses amarram uma corda vermelha invisível, no momento do nascimento, nos tornozelos ou dedos mindinhos dos homens e mulheres que estão predestinados a se encontrar. Conforme a lenda, tal fio pode unir o amor em todas as instâncias: paternal, parental, amorosa, etc. Em síntese, os unidos pelo fio posto pelos deuses ão de encontrase inevitavelmente.
AQUECIMENTO CÊNICO 19h40 - 20h00 Para além de aumentar a temperatura ou a circulação sanguínea, o momento de aquecimento busca iniciar a preparação cênica dos bailarinos. Neste momento, busca-se que os bailarinos alcancem este aquecimento e alongamento de maneira cênica e criativa. Para que este momento seja uma extensão do que se segue.
Caminha e (Re) Inventa Neste exercício, os bailarinos caminham pela sala espalhando-se pela mesma em constante deslocamento. Ao som de uma palma, eles reinventam uma ação, que previamente é comunicada, como: andar, falar, correr, abraçar, etc. A partir do comando, os bailarinos reinventam a ação e mantém-se em deslocamento pela sala até que outra ação seja sugerida.
Corre e Pega Define-se quem inicia o jogo. Feito isto, tal bailarino aponta para alguém dizendo 151
eu nome. Feito isto, ele inicia uma corrida atrás de quem apontou e chamou. A corrida permanece até que o bailarino seja pego. O bailarino que foi pego, recomeça.
Duplas de percepção: Durante cerca de 1 minuto, as duplas observam-se atentamente a fim de guardar o máximo de informações sobre o bailarino que está à sua frente. Após este período de observação, a dupla fica de costa e cada um modifica em si algo para que seu parceiro identifique. Novamente de frente um para o outro, a dupla volta a se observar no intuito de identificar as mudanças realizadas por cada um.
ESTÍMULOS CRIATIVOS 20h00 - 20h40 Uma vez que o aquecimento tenha acabado, iniciam-se outros jogos para buscar a prontidão cênica e conexão criativa entre os bailarinos participantes da pesquisa. Como os que seguem abaixo.
Monte o quadro Apenas 1 bailarino é comunicado sobre o quadro que deve montar. O objetivo do bailarino é criar em cena o retrato que se pede, porém, sem se valer do uso da voz ou mimica para realizar a ação. Em contrapartida, os bailarinos colocam-se em plena entrega para efetivar a cena proposta pelo único bailarino que conhece do que a cena se trata. Após cerca de 3 minutos, o quadro é revelado e, a partir da proposta do bailarino que montou o quadro, todos movimentam-se agora sabedores do que o quadro trata-se. Os temas para os quadros são diversos, como: - Guerra - Incêndio - Filmes do cinema - Biblioteca - Vulcão - Passeata - Quadrilha - Mar
Roda de composição Dispostos em uma roda, um de cada vez, os bailarinos se põem no meio da roda e iniciam sua experimentação com a seguinte fala: EU SOU... 152
A frase deve ser completada por algo que o bailarino gostaria de representar. Em seguida, os demais bailarinos entram na roda com o objetivo de compor a cena proposta.
ESPETÁCULO 20h40 - 21h10 AKAI ITO: O fio vermelho do destino
Nesse momento, explica-se qual a configuração geral da cena. Conforme abaixo. 1a cena: Os Deuses e Akai Ito - 2 Deuses que farão a união dos interpretes - Conjunto
2a cena: Ryokoo - Viagem Momento de distanciamento das duplas; - Solos - Passagens do conjunto
3a cena: Jiàn miàn - Encontro Momento de encontro com novas duplas. - Encontro e desencontros
4a cena: Kaeri - Volta - Duos - 1 solo
Uma vez finalizado, há uma roda de conversa para considerarmos todas as impressões do espetáculo realizado no dia, diante de um gravador de voz que registra em áudio todas as colocações dos bailarinos . Para além disto há o registro das notas em diários individuais. Neste diário é posto todo tipo de consideração e não apenas registros com escritos ocidentais convencionais. 153
São feitos rabiscos, desenhos, dobraduras, etc. Tudo que os bailarinos julgam necessários o registro é posto no diário individual do processo. Em entrevista após a finalização do espetáculo, Luiza Braga destaca: Acho importante as dinâmicas do início, principalmente as de percepção ao outro. [...] Olhar o outro sem ter vergonha de olhar em todas as partes. A da criação das cenas (Monte o quadro), é interessante ver como ele se desenrola, especialmente, quando as pessoas já sabem do que se trata. E eu me achei mais disponível na hora da improvisação, na hora do espetáculo. Por conta de tudo que já havia sido trabalhado antes.
Assertivamente destacado pela intérprete, todas as dinâmicas e jogos propostos pela pesquisa anteriormente ao momento de produção e criação do espetáculo, têm como finalidade culminar em experimentações mais profundas e criativas. Embora não tenhamos como mensurar ou prever o resultado cênico e final do espetáculo, acredito que na improvisação o caminho percorrido é indissociável do mesmo e são indispensáveis para a vivência momentânea.
Considerações
Estamos ainda em um lugar de descoberta na pesquisa. A cada dia realizamos um espetáculo novo, pois a intenção primeira da pesquisa não é desenvolver um espetáculo de dança, a partir do improviso, em específico. Não é para a criação de apenas um espetáculo que estamos caminhando. Almejo enquanto pesquisadora, realizar diversos espetáculos, com variadas temáticas para, pretensiosamente, levar o corpo à um lugar de entrega e conexão à cena e aos demais corpos que dela participam. Experimentar aquele corpo algodãozado ao qual ICLE (2012) refere-se. Este que se entrega, que se amplia, que se esgarça até descobrir qual seu ponto de limites, se é que há. Esse algodão que se questiona onde começa e onde termina o movimento, e mantém-se sempre neste limite de percepção. O corpo algodãozado faz pensar em corpos imersos no espaço, misturando-se com o espaço como algodão que vai sendo esgarçado, tornando-se menos denso e se espalhando em todas as dimensões, para dentro e para fora do meu corpo, em relação. Nesse espaço, meu ponto de vista imerge e é esgarçado junto, se multiplicando. (ICLE, 2012, p. 21).
Essa é mais uma noção de corpo contínuo que emerge da busca pela experimentação do corpo com o espaço, com outros indivíduos e, sobre tudo, de si mesmo através do processo de escuta. Ao deparar-me com o pensamento da autora Sonia Rangel, no qual a mesma propõe três imagens (a casa, o quintal e o jardim) como operadoras de criação em sua prática didática na Universidade Federal da Bahia – UFBA, percebo que minha pesquisa, cabe 154
confortavelmente neste lugar. Para Rangel (2006, p. 4), a casa “organiza a experiência sensível de um modo único para cada um”. Já o quintal é o local onde estão as incertezas e possibilidades já acessadas ou não, no decorrer da criação. “Para lidar com a criação, necessário se faz provocar e suportar as incertezas, não se livrar delas, produzir experiências de múltiplas tentativas, chegar aos limites, lidar com a sobra e com a sombra, com o lixo e com as perdas”. No que tange o jardim, podemos vê-lo como um fértil terreno no qual são plantados os princípios, o que se reconhece ou se escolhe para cultivar. A partir desta proposição localizo minha pesquisa sobre um processo de criação de um espetáculo de dança contemporânea, ainda em fase de construção e acabamentos. Confesso que já estive muito preocupada com como seria minha casa da pesquisa. Que cores teria, se haveriam janelas, de que seria feito seu piso, se gostaria de pintar o telhado, etc. Hoje percebo que passo muito mais tempo no jardim. Onde brisas diárias me atravessam. Onde nascem flores no mesmo momento em que podo algumas plantas. Onde sinto que tenho companhia e posso falar com vizinhança. Meu jardim ainda está bagunçado e cheio de trabalho, sinto que já plantei diversas coisas que não cabiam aqui e foram levadas para o quintal. Não me arrependo. Sigo ainda pensando na casa, mas de maneira mais calma e tranquila. Aqui no jardim há muita dança. Em especial, aquela não sistematizada, aquela que vem da improvisação, do contato, da entrega mútua. Há criação nascendo por todo lado! Daquela como Salles (2006) pensa, que nasce e se espalha sem linearidade ou lugar fixo. Pelo contrário, nasce em movimento pelo movimento ao movimento. Está sempre em construção. Um processo de criação que se mantem em contínuo processo.
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ICLE, Gilberto. Teatro e construção de conhecimento. Porto Alegre: Mercado aberto, 2002. MARTINS, Cleide. A improvisação em dança: um processo sistêmico e evolutivo. Dissertação. Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica. São Paulo: PUC, 1999. MENDES, Ana Flávia de Melo. Dança Imanente: uma dissecação artística do corpo no processo de criação do espetáculo Avesso. In: Cadernos do GIPE-CIT. no 22. Salvador: PPGAC/UFBA, , 2009. P. 05. ________; Dança Imanente: uma dissecação artística do corpo no processo de criação do espetáculo Avesso. Vol. 2. São Paulo: Escrituras, 2010. (Coleção Processos Criativos em Companhia; v. 2) MEYER, Sandra; MUNDIM, Ana Carolina da Rocha; WEBER, Suzi. A Composição em Tempo Real como possibilidade criativa. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010. MUNDIM, Ana Carolina (Org.). Dramaturgia do Corpo-Espaço e Territorialidade: uma experiência de pesquisa em dança contemporânea. Uberlândia: Composer, 2012. MUNIZ, M. L. Improvisação como espetáculo – Processo de criação e metodologias de treinamento do ator-improvisador. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015. PASSOS, Juliana Cunha; ZIMMERMANN, Elisabeth Bauch. A importância da improvisação para os processos criativos e a arte de improvisar de Rolf Gelewski. Campinas: UNICAMP; 2011. PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. PORTELLA, Cintia Chagas. E se eu falasse do improviso no filme-teatro O Ouro o Ladrão e sua Família. Departamento de Artes Cênicas. Brasília, 2016. RANGEL, Sonia. Processos de criação: atividades de fronteira. In: TFC, Edição 01 – Ano 03. Bahia, 2006. SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. 3. ed. São Paulo: Annablume, 2007. _______. Redes da criação: construção da obra de arte. Vinhedo/São Paulo: Horizonte, 2008.
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Currículum resumido do autor:
SUZANA DE SOUSA DA LUZ Mestranda em Artes pela Universidade Federal do Pará sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Ana Flávia Mendes. Licenciada em Dança pela Universidade Federal do Pará (2012). Atua como bailarina na Companhia Moderno de Dança. Possui experiência na área de Artes Cênicas, atuando principalmente no campo da dança (ensino, criação, pesquisa, direção e produção). Endereço eletrônico: suzana_luz@yahoo.com.
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DOCUMENTO ARTÍSTICO
PROCESSO-LACUNA
Autor.
Resumo Resumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumoresumo. Palavras-chave: Corpo, MicroBioPolĂtica, Yanomamis.
Subject Subjectsubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubjectubjectsubjectsubject. Keywords: Body, MicroBioPolitics, Yanomamis.
Acima de tudo precisamos viver e acreditar no que nos faz viver e em que alguma coisa nos faz viver. O que falta, certamente, não são sistemas de pensamento; sua quantidade e suas contradições caracterizam nossa velha cultura européia e francesa; mas quando foi que a vida, a nossa vida, foi afetada por esses sistemas? Protesto contra a idéia separada que se faz da cultura, como se de um lado estivesse a cultura e do outro a vida; e como se a verdadeira cultura não fosse um meio refinado de compreender e de exercer a vida. ... Mas o verdadeiro teatro, porque se mexe e porque se serve de instrumentos vivos, continua a agitar sombras nas quais a vida nunca deixou de fremir. O ator que não refaz duas vezes o mesmo gesto, mas que faz gestos, se mexe, e sem dúvida brutaliza formas, mas por trás dessas formas, e através de sua destruição, ele alcança o que sobrevive às formas e produz a continuação delas. O teatro que não está em nada mas que se serve de todas as linguagens – gestos, sons, palavras, fogo, gritos - encontra-se exatamente no ponto em que o espírito precisa de uma linguagem para produzir suas manifestações. E a fixação do teatro numa linguagem – palavras escritas, música, luzes, sons – indica sua perdição, sendo que a escolha de uma determinada linguagem demonstra o gosto que se tem pelas facilidades dessa linguagem; e o ressecamento da linguagem acompanha sua limitação. Romper a linguagem para tocar na vida é fazer ou refazer o teatro. Isto leva a rejeitar as limitações habituais do homem e os poderes do homem e a tornar infinitas as fronteiras do que chamamos realidade. É preciso acreditar num sentido da vida renovado pelo teatro, onde o homem impavidamente torna-se o senhor daquilo que não é, e o faz nascer. Do mesmo modo, quando pronunciamos a palavra vida, deve-se entender que não se trata da vida reconhecida pelo exterior dos fatos, mas dessa espécie de centro frágil e turbulento que as formas não alcançam... (ARTAUD, 2006, p.8)
Não é o corpo do ater-bailarine-performer que se manifesta nesta perspectiva. Mas um corpo de ater-bailarine-performer, o que procura subverter qualquer noção generalizante, da ex is tên cia. E é/está/devir um corpo que não se encerra em alguma caixa definitória, inclusive. Através de diferentes práticas, m(eu)[?] corpo se pensa num sentido de “ser dançado”. O controle voluntário dos movimentos é abdicado e se sustenta uma espécie de observador do corpo que se move, acessando estados de criação em contato com forças que atravessam (um) corpo e sensações de estados90 em contato, em alguns momentos, 90 estado - relação corpomentealmaespírito (digo assim mas entendo que tudo é corpo) em devir que se relaciona com passado, presente e futuro num environment específico e que se instaura pela relação
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com o que poder-se-ia chamar deus. Se chama deus porque é a palavra que mais se assemelha a uma relação incognoscível de experiência para além de nomes, pra mim. E, além disso, parece totalmente revolucionário pensar (sentir) deus fora do dogma e depois dele ter morrido e ter sido enterrado por tantos pensadores que estão aqui comigo, como Niet, Del, Guat, e outros. deus não é uma boa palavra, enfim. Vamos usar Caos de Luz (BERGSON, 2006).
Esse observador sou eu[?], mas é outra parte de mim. que parte é essa? Se o todo do corpo está pesquisante em sensações do estômago e com o ritmo cardíaco pulsante, e o sangue como rios por dentro, tubos, dendritos, não posso resumir-me à ideia de mim. Esse observador, eu digo, também pode interferir, tensionar e dançar com as forças que o atravessam. Como isso se processa é importante para a pesquisa, porém, já existe no maquinário consciente do artista-base eu[?]performer; assim a pesquisar como me dá a ver a questão: que forças são essas que atravessam um corpo de bailarine-ater-performer? E que tocam mais no inconsciente incandescente maquinário existencial...? Tudo se passa como se, nesse conjunto de imagens que chamo universo, nada se pudesse produzir de realmente novo a não ser por intermédio de certas imagens particulares, cujo modelo me é fornecido por meu corpo. (BERGSON, 2006, p. 10)
O estudo passa então pelo corpo mas propõe-se ao estudo do invisível-sensível e da arte insensível (insensível no sentido de José Gil, que quererá dizer tudo aquilo que toca o corpo sem este ser capaz de racionalizar a respeito no momento em que é tocadoATRAVESSADO; quem sabe depois disso, mas sempre num movimento atrasado em relação ao todo complexo de absorção dos estímulos pelo/com/do corpo), passa então também por derivas de inconsciente não-recipiente. Quando a identidade se dissolve, já não se contemplará o eu que dança, mas um plano de consistência, tangenciando só Milhões de Platôs, vide Deleuze e Guatarri (1995) num diálogo de membrana, um CSO91. Assim, na tatuagem do corpo do espaço com o espaço do corpo, chegamos em Derivas92, como uma posição (microbio)política93. [Ou seria micróbiopolítica?] imbricada e sinestésica entre pensamento, intuições, sentimento, sensações, consciente e inconsciente na sobreposição de campos e esferas sociais, ambientais, físicas, mentais, psíquicas, espirituais, emocionais, arquitetônicas, vinculadas à existência de seres vivos (aparentemente vivos, porque não podemos delimitar o que seja a morte ou a ausência de vida ou relacionar a vida com a ausência da morte ou a morte com a ausência da vida) ; Environment por sua vez pode ser visto como um complexo de fatores ambientais, sociais, culturais, políticos, emocionais, arquitetônicos, sensoriais, imagéticos, intuitivos, energéticos, físicos e químicos de um local ou região assemelhada . (Em resumo, teremos espaço e tempo e corpos) 91 Corpo Sem Órgãos, conceito extenuadamente usado por muitos pensadores e artistas e pensado originalmente pelos autores referidos. A partir deste e do plano teremos nomadismos, rizoma, afectos intensivos e; e; e; e... 92 Proposta advinda do Movimento Sitaucionista, onde Guy Debord(2000) estabelece uma crítica ferina e radical a todo e qualquer tipo de imagem que leve à passividade e à aceitação dos valores preestabelecidos pelo capitalismo. Podendo-se, assim, ao criar uma desfuncionalidade de um trajeto, por exemplo, estabelecer uma espécie de pirataria dos comandos preestabelecidos no nível social de comportamento. 93 Assumindo aqui a conjunção das proposições de ROLNIK(1986), quando em seu livro Cartografias do Desejo nos fala de micropolítica e FOUCAULT(2008), quando abrange a complexa relação sociocultural com
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Dentro de uma cultura anímica, a noção de objeto inerte e “morto” é relativizada, pulsando a noção de vida, morte, movimento e wabi-sabi94; pensar objeto como algo estanque não cabe, pois a perspectiva temporal contempla, por exemplo, o movimento subatômico das partículas, sempre em movimento. Entonces, assim estamos cá com a desafixação identitária quando falamos de movimento e de corpo, a saber que movimento e paragem95 andam juntos, e quando falamos de corpo e de arte, falamos de vida, e quando falamos de vida, falamos de morte e de vida. Falamos digo para língua-garganta-peito vide ZUMTHOR(2014), e o plural se dá nessa perspectiva de que a esquizofrenia controlada vide CASTAÑEDA(1981) E a produção de subjetividade vide ROLNIK(1986) são producentes de um texto-nós-Nossa-SenhoraDesatadora-Dos-Nós. Assim que, eu gostaria muito que tu assumisse a responsalbilidade de criar, fazer links e (des) entender este texto, ou esta texta não-linear ou narrativão ou só racional aqui. Se der, o plano seria ler com as tripa. Voltemos ao Caos de Luz... [não há morte para uns índios, nem pra umas tradições orientais, nem pra uns cientistas ferrenhos; o que ocorre é uma inevitável transformação]96 As rugas e as veias saltadas também são tidas, aqui, como conhecimento. Para entrar na zona não-identitária que permite e ou facilita o acesso e contato com as forças, talvez seja preciso quebrar a perspectiva do paradigma que separa o eu(sujeito) do objeto e que entende o objeto como estanque, somente morto, inerte. O (outro nome ou outro entendimento para objeto -ou subjeto- da pesquisa) são as forças invisíveis que atravessam m(eu)[?] corpo quando sou dançado. Amalgamadas97 práticas Xamânicas, Butokas, Afrobrasileiras, de Contato Improvisação numa perspectiva radical, de Capoeira Angola98, Educação Somática, Teatro Físico, estudos e práticas da Performanceaarte e performatividades, da antropologia da Performance e da escrita, assim como técnicas de meditação e Respiração Holotrópica vide GROF(2000), crio algumas das chaves de acesso que hoje permitem essas questões serem vividas e pesquisadas. os poderes em seu conceito de Biopolítica. Assim, me refiro a microbiopolítica, uma relação de singularidades com os poderes que nos atravessam. 94 Conceito oriental que reflete a impermanência e a incompletude, onde a imperfeição tem mais valor do que a adequação a um ideal preestabelecido. Do livro Wabi-Sabi: for Artists, Designers, Poets & Philosophers, de Leonard Koren, Imperfect publishing, Point Reyes, California(2008). 95 Paragem assemelha-se à pausa, se olhada com pouco cuidado, mas, diferente, é oriunda de um estado onde a percepção do que já está “movendo” é mais importante que a produção do movimento, não há pausa, a pausa é uma ilusão. É um wu-wei (não-fazer) habitado, cheio de vida, dando ênfase aos movimentos involuntários e as micro-respostas à força da gravidade; circulação do sangue, batimento cardíaco, inflar e desinflar de pulmões, etc. Além de referir-se como possibilidade de ação (social e política) contundente, na relação que estabelece Lepeck i(2005 – Still Acts), trazendo à tona percepção e atitude. 96 Yanomamis vide KOPENAWA(2015), Sioux vide SAMS(2003), Butohkas Undergrounds vide histórias orais, Mauro Pozatti vide POZATTI(2003) e outros muitos outros. 97 Amalgamado digo porque não tem retorno, desfazimento, diálogo não mas sim antropofagia, não há uma separatividade envolvida, mas uma recriação a partir de tudo junto processado e vomitado, e ruminado, e bueno, aqui. 98 No grupo Mocambo de Capoeira Angola em Porto Alegre/RS, no ginásio Tesourinha, guiados por mestre João Baptista.
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A cultura existente numa ação ou jeito de escrever, de falar. Escrever nos modelos representa seguir a colonização. Criar modos honestos de escrever vai trazer uma posição política importante. Estou concentrado na li100berdade e na alegria, na festa e na diferença para manifestação política no mundo. Pensando no desaparecimento do espectador, se torna outra coisa o fenômeno teatral, as ações no espaço público fazem o espaço modificar, sua organização e os modos de controle do mesmo.101
Que lugar queremos para a arte? A qualificação deste mestrado será uma festa na rua. [e foi]
A produção de um trabalho acadêmico por um indígena gera questões sobre a passagem, percepção e relação do tempo na produção de conhecimento e na forma do conhecimento ser gerado, entendido e processado. Os Yanomamis falam de pele de imagem, por onde os brancos conseguem acreditar nas coisas(os livros, os textos, a escrita), e os Yanomamis por sua vez vivem sua atualização cosmogônica diretamente, pele com pele, garganta com garganta, sombra com sombra, ou sombra com garganta, pele com sombra, garganta com pele... Dança-se para se comunicar com os mundos invisíveis. Dança-se para estabelecer uma ponte entre o céu e a terra. A floresta, para os yanomamis é o antigo céu que caiu. O céu que temos agora está para cair, porque a fumaça produzida pelo fato de o homem branco estar arrancando os ossos da terra(ferro, estanho, ouro, etc.) está para criar um buraco por 99 Parte de um canto de Capoeira Angola, Aidê, conta-se, foi uma negra que se libertou ao fugir para o Quilombo de Camunjerê, segundo tradição oral referida nas rodas do grpo Mocambo. 100 ‘Li’ – Termo oriental referenciado no livro TAO: O Curso do Rio(1975) é a ordem assimétrica, nãorepetitiva e não-organizada que encontramos nos padrões da água em movimento, na forma das árvores e das nuvens, dos cristais de gelo na vidraça ou dos seixos dispersos na areia da praia 101 Excerto retirado da fala de Yannik Butel em Ciclo de palestras no Seminário Olhar Crítico sobre a Cena Contemporânea, realizado pelo P rograma de pós Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2016, no Instituto Goethe, Porto Alegre, RS. o Prof. Yannick Butel é crítico e dramaturgo‚ professor e pesquisador de estética e estudos teatrais da Université de Provence Aix-MarseilleFrança.
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onde o céu pode cair. O que quero dizer é que quando imprimimos um papel ou seguimos construindo computadores estamos tirando os ossos da terra para isso, produzindo então que tipo de conhecimento e para que?. Os xamãs Yanomamis rezam bravamente para manter o céu no lugar. DaviKopenawa usou de pele de imagem para ajudar o céu. Rezar e dançar são mesmas manifestações.
Por isso estamos aqui. Bueno, Caos de Luz e Plano de Consistência.
Usando o conceito de Pele de Imagem dos Yanomamis, eu farei uma Imagem na pele, uma tatuagem como marca ritual da passagem do tempo em mim, ao mesmo tempo, uma fissura naquilo que é o contato mais profundo possível: o interstício do dentro e do fora (dentro e fora sempre num sentido aparente e como alegoria). Uma moldura ambulante serei. O ajuntamento é um modo de encontro da perspectiva de festa para qualificação do mestrado e convivência de produção de conhecimento na linha direta, porque não há sincronia ideológica possível senão agenciamentos de potências plurais dentro da especificidade de cada grupo presente. (uma pessoa é um grupo). Estabelecendo uma relação de atravessamento que não está como um teatro de comunicação, mas de uma resistência no sentido elétrico, está para uma alegria fora do entretenimento. A alegria como posição (microbio)política e estética, não como entretenimento, como já disse. Diferentes camadas, a esfera MCpolítica do ajuntamento na rua, a esfera ritual da festa, o encontro do sagrado com o profano, a teatralidade do cotidiano e do cotidiano sendo performatizado, ou descoreografado. Uma ética relacional desieraarquizada. A dança estará lá porque vamos dançar bastante, ipsis litteris. O ritual estará lá porque será uma fenda no espaço e no tempo. A performatividade estará porque somos humanos. Uma ruptura em relação ao princípio separativo. O seu papel é devir você. O papel se ajustará a você. Não haverão papéis. Estaremos juntos lá, vai ter churrasco, dança, música, roda de capoeira et al. [e teve] Bju.
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Durante todo o tempo em que o meio artístico está numa relação dialógica em linguagem (primeiro modo de controle – a linguagem), enquanto se está dentro disto, o teatro estará privado de muitas de suas possibilidades. Quando não se utiliza mais a linguagem utilitária ele está fora do controle. A produção se dá baseada na questão da linguagem a ser renovada o tempo todo. 7
Neste caso faz sentido a recriação de formas de potência. Gaguejar a linguagem, criar outro uso, que não o comunicacional.
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(se a pesquisa se dá no processo irracional ou insconsciente da criação e em como podemos atingir êxtases e formatos consequentes de uma não-significação e racionalização, este viés apresenta-se como um contra-senso muito peculiar) O fato de eu utilizar esta forma clássica de explicação e descrição, onde, de um lado, uma pessoa escreve referenciando teoricamente o conhecimento do qual se utiliza e faz da forma que se seguirá e a outra, de outro lado, lê com uma possibilidade muito clara e possível de entendimento racional, aparece apenas para estabelecer o corte, ou a margem, de onde se partirá para outros opostos, a fim de não mais enterrar a potência. Como suspiro moribundo, aqui vamos nós: Uma descrição acadêmica, em nível analítico, esgotará o “o quê”, “o por quê”, “o como”, “o onde”. Também buscará, em muitas de suas formas, representar e atuar a partir de uma visão “de fora”, para que a neutralidade traga as respostas para quaisquer problemas em questão. Obviamente, tudo será amparado por referenciais teóricos que fazem parte da minoria intelectual branca da França ou de suas colônias intelectuais, como aqui mesmo referenciada várias vezes. E como tal, persigo, amparado, por minha vez, pelo que bem escutei, após eu ter performado ao invés de apresentar um powerpoint: “Você não precisa provar pra nós que é um grande artista, nós já sabemos disso, nós queremos que você faça uma pesquisa científica.˜ ˜Eu não vou falar nada sobre teu trabalho, porque eu não entendi.” Assim refiro-me a vós, leitor, a partir do livro de Pirsig: O Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas(1984), a fim de elucidar da melhor 8
forma os por quês do meu o quê se dar no como e no onde vai se dar dali pra diante, diferentemente de como procuro expor-te agora: Em primeiro lugar, as coisas descritas da forma analítica e clássica (como convém ao viés aca), não poderá nunca dar a entender o que seria qualquer pesquisa em si, ou seja, uma descrição não permite entendimento a menos que já se conheça o funcionamento do objeto descrito de antemão. Do contrário sempre serão peças soltas. Essa busca acaba se tornando algo que se dá a partir de uma parte de mente que não funciona isolada das outras partes, no entanto, assim se pretende, trucidando a complexidade. Exemplo: Saber o nome e localização do amontoado de ossos, músculos e vísceras, sua descrição e entendimento funcional, ou como bate o coração e do que é feito, não nos explicará ou nos fará sentir o milagre da vida. Em segundo lugar, uma descrição analítica procura anular o observador. Pois este não poderá atuar mais livremente sobre o conhecimento, porque, por exemplo, ele poderá não reconhecer que é necessário respirar primeiro para sentir depois, ou terá de esforçarse para entender que o que ele lê é ele mesmo quem cria enquanto lê, não haverá muito espaço para sua co-criação, atuação, envolvimento, performance ou subjetividade; no modelo clássico, se torna muito mais difícil que haja este espaço. Em outras palavras, procura-se que os objetos sejam independentes do observador, e isto o afasta ou anula. Em terceiro lugar, não se pode emitir opinião ou pensar por si mesmo num pensamento assim. Bom ou Mau não fazem parte do jogo, busca-se a neutralidade, ou ainda, os fatos. A expressão é anulada. É preciso amparar-se nas ˜rainhas”(referenciais teóricos), o que ademais é um jogo de poderes. E claro, a partir de um corte, haverá um posicionamento subliminar a partir da representação de poderes dos autores escolhidos para assumir a voz que poderia ser do autor a partir de sua própria experiência de vida e conhecimento oral e sinestésico, caso não estivesse ele sofrendo a chibata do senhor AbstratumNotoriumTrocadocapacauste. Então, sem querer referenciar a criação artística e a área das arts como simples terrenos que por si só abarcariam reconhecimento e liberdade pesquisante ou mesmo experimental, ou ainda embandeirar o manifesto pela pesquisa performativa, explico somente que: Em suma, trocarei o ato de contar os grãos de areia de uma praia, sabendo que minha consciência e percepção serão, igualmente, apenas um punhadinho do todo, e que não irei crer que a partir da descrição do punhado se possa inferir sobre a experiência complexa de transitar pela praia.
ASSIM, chego a uma incursão de outra ordem que se segue adiante, ou se cegue, adiante, se adiante.
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Ospoderesemergemnãodorecipientemasdoasacordostácitosquetemosaonão percebermososskatistascomoescultoresdearentãoprapreencheraasagentereolveaproiveitaroscantossemespaçopporqueagentescolheunãodarespaçoagenteescolheuaculturamatriarcalinseridanopatriarcalismocapitalísticodeprecisardealguémnosdaandoasbordasquenãoconseguimoscriarnósmesmospratransitarnalinhafinadoentre.AgeneéumjeitoruimdefalarporquequalquergeneralizaçãoéumacagadaporquecadapotênciatemsuaexpressãoeumabalizaparatodaséinutilmentefacismoazeitadoSUORpelospanopticonesdosreconditosdenossocomportamentoporquenãopodemosnósmesmonospuxarmosprasermosdesafiadoresdesnossasfacilidadeseíndolesetodoomovimentoACOPLADOdasrebarbassinestésicadetudoquenospegapelavialateraldaslimalhasficasubjugadoquandoassimseguimossemdarESPAÇOprascoisasaconteceremesemtantovalorproconehcimentoquenãoéescritoeudigoqueosanalfabetostemumpoderdecptaçãodomundoeacriançatambémesealinguagemescritanãoforumdesdobramentodapotenciaouaprópriapotênciajánãotemporqueseguircomelenãopodeservirpracolocarumcachimbonafrentedochachimbosabercomalínguacomonacremosiadaBANANAeparaalémdosdiscursosquesemprequeremdizeralgumacoisaquegeralmentegeramsignificadosequegeralmenteenquadramarealidadeequeissosejaentãonãopelomedodovaziooudosiL~enciom aspelanecessidadepungentedealgumacoisaquenãoteSALADETRABALHOmaispraondeeprecisaganharmundoentãoviraalgumarticulaçãonovaocomobabaporraverboletrasomenteporqueocorpodesdobrouopçãodoarial12comespaçamentoumvírgulacincotrazumamalgamentodepoderessubmissõesomissõesoujogadasintelectuaisoumesmoaquelepedidodeajudaobrigadoporqueobrigadoobrigadoobrigadoaestabeleceropadrãoproducentedomercadointernacionaleeaalegriadefazerascoisascomtesãoecomgostoeavalroziaçãodecortaraunhadopéSUORaoinvésdelernietzcshenumdeterminadomomentoquerodizerquesemhierarquiasintelectuaisascoisasiriambemmelhoreocognitvismointrínsecodocachorroquentecomKASTRUPemostradamostardamaistardaratédiaXteremosqueentregarporqueháumprazoumalusãodetempoumacodoquefizemosdedeixaroscabosdosrelógisonosestupraremeocorpocurvar-separaescreversemsuaprópriavontadeénomínimoumretornoàsenzalaquandooscorposeviravambemagachadinhosporqueotétoerabaixoeseguimo sassimsemrefer~enciasdenegrosepoucasmulheresetaltaltalnosrecôncavosacad~emico squesepensamcontemporâneosnoseupsiquismoforjadodeimperalismoinerentemandaumafotopramimdascontasdeluzporquenaestantepodedeixareupegodepoisnãodeutempodeolharnoolhodizerbomdiaapombafezacurvadoestacionamentoeporqueosábiosnãopoderiamcutucarnossacapacidadedefazeraquiloqueémaiscoerenteinternamentequepossasermesmoamissãomíssilfoguetedastripasoudacordocorpodocopodeáguadabicado bicodocaxinguel~epraqueavidavolteaserpotênciaemsimesmaeoqueseriasenãoocapitalgerandomedodeváriascoisasauiaquiloquevaivoufoigeradoeembaladoávacuonasexplosõesdasrochasgerandofumçãoquecorrompeocéuenóscomnossasfolhinhasimpressasafumaçaquecorrompeocéuenóscomnossasfolhinhasimpressasnaverdadeoquemaistemmeincomodadonesseprocessotodoénãopermitiraausênciadapalvrapraentenderomundoporqueevoluçãoouqualquerpalavraquesequirapraumavançoouprocessoessascoisasdesucessoecapitalismoaindaissoserialagoimportantemesmonahoraqueparassedefalarefalassecomapresençahojeosolsaiuagramaestavasecanósficamosnaulafalandodeformageneralizadaporissoeusigoaquinopluralretóricopradianteporcimaedoavessodomeusingularsubjacentedastripasecérebroecerebelocabeloportempoSUORvendomeu-
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