O morro desce à avenida: a favela e as escolas de samba do Rio de Janeiro | Artur T. P. Paschoa

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O MORRO DESCE À AVENIDA A FAVELA E AS ESCOLAS DE SAMBA DO RIO DE JANEIRO ARTUR TADEU PAULANI PASCHOA



Universidade de São Paulo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

ARTUR TADEU PAULANI PASCHOA

O MORRO DESCE À AVENIDA: A FAVELA E AS ESCOLAS DE SAMBA DO RIO DE JANEIRO Monografia apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Arquitetura e Urbanismo em março de 2021.

Orientadora: Prof ª. Drª. Karina Oliveira Leitão

São Paulo 2021


Todas as músicas e sambas de enredo mencionados neste trabalho estão reunidos em uma lista de reprodução no Spotify que pode ser acessada através deste QRcode ou do link: https://spoti.fi/3pzdiDe

Capa: Nininha Xoxoba com Parangolé P8 - Capa 05, do artista plástico Hélio Oiticica. Os parangolés nasceram do contato do artista com o morro de Mangueira e sua escola de samba. Todas as informações referentes às imagens apresentadas neste trabalho podem ser encontradas no índice de imagens ao fim do caderno.


RESUMO abstract

Este trabalho se debruça sobre a representação das favelas nos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, analisando os discursos verbais e não-verbais construídos acerca da vida nas favelas cariocas e como esse imaginário se materializa figurativamente na avenida. Para isso, propõe um panorama geral do surgimento e desenvolvimento das escolas de samba no Rio de Janeiro dos séculos XX e XXI, enfocando sua vinculação com os territórios das favelas. Em seguida, mergulha nos desfiles do Grupo Especial entre 2007 e 2020, buscando entender de que maneira a temática é apresentada pelas escolas no período através da análise das sinopses dos enredos, da letra dos sambas-enredo e das soluções plásticas adotadas e suas justificativas. Palavras-chave: favela; escola de samba; discurso. From the hilltop to the avenue: the favela and the Rio de Janeiro samba schools This work is centered around the portrayal of favelas (slums) in the Rio de Janeiro samba schools parade, analyzing verbal and non-verbal discourses built about life in the favelas and how they appear artistically on the parades. In order to subsidize that analysis, it offers a wide outlook of the development of the samba schools in 20th and 21st century Rio de Janeiro, focusing on their link with these territories. Then, it focuses on the parades between 2007 and 2020, seeking to understand in what way that theme is presented by the samba schools, through the analysis of parade synopsis, samba lyrics, artistic elements and their explanations. Keywords: favela; samba school; discourse.

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ROTEIRO DO DESFILE sumário

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COMISSÃO DE FRENTE

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agradecimentos

ABRE-ALAS

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introdução

SETOR 1

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um país que não tá no retrato

SETOR 2

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é nas vielas que nasce o mais puro samba

APOTEOSE

147

conclusão

GLOSSÁRIO

151 Jovelina Silva dos Reis, a Dona Jovem, baiana da Estação Primeira, desce o morro de Mangueira para ensaiar na quadra da Estação Primeira.

BIBLIOGRAFIA

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ÍNDICE DE IMAGENS

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ANEXO

sinopses e sambas



COMISSÃO DE FRENTE agradecimentos

À professora, orientadora e amiga Karina Leitão, pelas conversas, sempre uma injeção de ânimo, não só ao longo deste trabalho mas de toda minha trajetória na FAU; ao colegas do Observatório de Carnaval da UFRJ, por abrirem meus horizontes quanto às possibilidades de pesquisa em um campo tão rico quanto o Carnaval; ao Gabriel Haddad, pela parceria na transformação de parte desta pesquisa em artigo publicado na Revista Policromias do Labedis/MN/UFRJ; à minha família, pelo amor demais de grande, de enorme, de imenso, de marzão, de tudo e de infinito; às amigas e aos amigos da FAU, por serem o que de melhor vou levar da etapa que este trabalho encerra; e às trabalhadoras e trabalhadores do Carnaval, sambistas por profissão ou paixão, que todos os anos transformam por breves instantes sonhos em realidade, meu muito obrigado. 9



ALVORADA Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio de Carvalho 1976 Alvorada lá no morro, que beleza Ninguém chora, não há tristeza Ninguém sente dissabor O sol colorindo É tão lindo, é tão lindo E a natureza sorrindo Tingindo, tingindo Cartola em frente a uma viatura, após a tentativa de interrupção de um ensaio da Estação Primeira no morro da Mangueira, na década de 70.

Você também me lembra a alvorada Quando chega iluminando Meus caminhos tão sem vida E o que me resta é bem pouco, quase nada De que ir assim, vagando Numa estrada perdida



ABRE-ALAS introdução

O desenvolvimento deste trabalho final de graduação uniu dois interesses que, embora de natureza distinta, possuem conexão profunda e incontornável: favelas e escolas de samba. Ao desafio de mergulhar nessa relação, somou-se a complicação da quarentena, necessária resposta a uma pandemia mundial. O isolamento social é o oposto da abertura, da troca e da proximidade que caracterizam o Carnaval. Minha trajetória na graduação explica a opção por tratar de favela, temática da qual me aproximei através de disciplinas cursadas e, especialmente, de atividades extracurriculares. Pude trabalhar o tema com abordagens distintas: teórica, através de disciplinas e participações em cursos e seminários, como o II UrbFavelas1, no Rio de Janeiro; projetual, por meio de exercício de desenho urbano e paisagístico no Jardim Paraná, na zona norte de São Paulo, realizado com colegas no âmbito das disciplinas Projeto da Paisagem e Desenho Urbano e Projeto dos Espaços da Cidade; e prática, mediante contribuição a um trabalho de levantamento socioespacial realizado pela assessoria técnica Peabiru na ocupação Anchieta, no extremo sul do município, entre 2019 e 2020. Essa aproximação partiu de um lugar de exterioridade e, portanto, integrou o processo a necessidade de examinar e repensar concepções 1 O II Seminário Nacional sobre Urbanização de Favelas aconteceu entre os dias 23 e 26 de novembro de 2016 no Rio de Janeiro, sediado coletivamente pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bandeiras estampadas com as faces de Cartola e Marielle Franco — vereadora carioca, originária de uma favela do complexo da Maré, assassinada em 2018 — são agitadas no encerramento do desfile campeão da Estação Primeira de Mangueira em 2019.

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sobre a favela formadas pelo consumo de notícias e produtos culturais que conformam certo discurso hegemônico sobre ela e, por consequência, sobre os favelados. Tal abordagem me levou a analisar a elaboração dos discursos em torno da favela e especialmente a contribuição da cultura na construção ou desconstrução dos estereótipos neles vigentes. Importante também frisar que a favela aqui tratada reúne territórios com características históricas, morfológicas e sociais distintas. Espaços complexos e diferentes entre si, mas que são regularmente compreendidos dentro de uma categoria única, muitas vezes em oposição à ideia de cidade: Favela, vila, quebrada, gueto, comunidade, mocambo, maloca, barraco, morro, alagado, núcleo, complexo, aglomerado, assentamento. São muitos os nomes para designar um conjunto nada homogêneo de espaços urbanos, de lugares de moradia popular no Brasil e na América Latina. Não raro, são acompanhados por adjetivos como informal, ilegal, irregular, subnormal, precário... particularmente quando se associam àqueles lugares intervenções urbanas que, de algum modo, carregam um status de “não cidade” (...). Não tem jeito: o país que está entre os mais desiguais do mundo tem a maior parte de sua população vivendo nesses espaços e a maior parte dos territórios urbanos com carências de infraestrutura, precariedades e inadequações habitacionais de toda a ordem (...). É, portanto, no mínimo estranho que se trate esses lugares como excepcionais (LEITÃO; SANTO AMORE, 2019, p. 17).

Por sua vez, minha aproximação ao universo do carnaval de avenida, ainda que partindo da mesma posição de exterioridade, se deu de maneira mais orgânica, por assim dizer, a partir de encantamento, desde os dez anos, com as imagens dos desfiles das escolas de samba transmitidos pela televisão. Ao longo do tempo, esse encantamento infantil evoluiu para um 14


interesse mais concreto por toda a complexidade que envolve a atuação das escolas de samba, não só durante o Carnaval mas ao longo de todo o ano. As escolas de samba são instituições que, embora não integrem diretamente políticas públicas, formam uma rede de equipamentos culturais, além de educacionais e assistenciais, intensamente territorializados, cuja vinculação com o bairro ou região é, na maioria dos casos, o motivo fundamental da identificação de torcedores e frequentadores. Sua atuação no decurso do ano se configura como uma das poucas opções de lazer e cultura disponíveis a parte expressiva da população, especialmente nos bairros periféricos de metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo. As escolas de samba têm sua origem e desenvolvimento intimamente relacionados aos territórios populares e periféricos em geral, especialmente às favelas. Surgidas no Rio de Janeiro, muitas das primeiras agremiações eram e seguem vinculadas a determinadas favelas, que constituem suas chamadas comunidades. Algumas, como a Estação Primeira de Mangueira, o Acadêmicos do Salgueiro e o Império Serrano (do morro da Serrinha), trazem no próprio nome a vinculação com a favela; outras, portam nomes que aludem a uma região mais ampla, possuindo porém sua identidade sediada nas favelas, como a Estácio de Sá (do morro de São Carlos) ou a Unidos da Tijuca (do morro do Borel). Por terem surgido na zona central e em parte da zona norte da cidade, região de geografia acidentada e onde as favelas se concentram nos morros, a expressão morro passou, dentro do universo do samba, a designá-las, mesmo que algumas escolas em outras partes da cidade estejam vinculadas a favelas em áreas predominantemente horizontais, como a favela de Vila Vintém, na zona Oeste, comunidade de Mocidade Independente de Padre Miguel e Unidos de Padre Miguel. Falar de escolas de samba também implica reconhecer que tanto o gênero musical samba quanto o fenômeno cultural escola de samba 15


se originam de manifestações culturais diaspóricas africanas. Isto é, se originam da cultura e dos saberes trazidos por pessoas negras raptadas de regiões do continente africano e escravizadas em terras brasileiras. Essa cultura se reorganiza no Brasil e dá origem a manifestações que entendemos como “tipicamente brasileiras”. O professor e pensador da cultura popular Luiz Antonio Simas, referência para o desenvolvimento do trabalho, classifica as escolas de samba como parte fundamental dessa cultura diaspórica, espaços de reconstrução e reorganização de laços de sociabilidade quebrados no processo da diáspora africana: As culturas africanas, aparentemente destroçadas pela fragmentação trazida pela experiência do cativeiro, se redefiniram a partir da criação, no Brasil, e mais especificamente no Rio de Janeiro, de instituições associativas (zungus, terreiros de santo, agremiações carnavalescas etc.) de invenção, construção, manutenção e dinamização de identidades comunitárias. Escolas de samba se inscrevem nessa perspectiva (SIMAS, 2020, p. 46).

O trabalho parte, ainda, do pressuposto de que as escolas de samba, enquanto entidades culturais, emitem e propagam discursos, conformando visões de mundo, por meio de seus diversos campos de atuação no decorrer do ano e, para um público mais amplo, mediante aquilo que é apresentado nos desfiles a cada Carnaval. Assim, a relação das escolas com as comunidades configura uma encruzilhada entre um discurso que fala sobre a favela e que vem da própria favela, uma vez que, enquanto entidades territorializadas de reconstrução de sociabilidades diaspóricas e construção de identidades, é imprescindível que falem sobre si mesmas e sobre seus lugares. No entanto, construídas por indivíduos que são também atores sociais sujeitos constantemente ao discurso hegemônico a respeito 16


de si próprios e de onde vivem, não necessariamente conseguem, nos desfiles, escapar de concepções e estereótipos dominantes. Encruzilhadas, como esta e outras, ao invés de limitação constituem potência e têm tudo a ver com o samba: (...) a perspectiva da encruzilhada como potência de mundo está diretamente ligada ao que podemos chamar de cultura de síncope. Elas só são possíveis onde a vida seja percebida a partir da ideia dos cruzamentos de caminhos. A base rítmica do samba urbano carioca é africana e o seu fundamento é a síncope. Sem cair nos meandros da teoria musical, basta dizer que a síncope é uma alteração inesperada no ritmo, causada pelo prolongamento de uma nota emitida em tempo fraco sobre um tempo forte. Na prática, a síncope rompe com a constância, quebra a sequência do previsível e proporciona uma sensação de vazio que logo é preenchida de forma inesperada (RUFINO; SIMAS, 2018, p. 18).

Ao abordar as apresentações das escolas de samba, também é inescapável a discussão acerca do conceito de autoria dentro do desfile. É um debate complexo, uma vez que, levando em conta apenas os elementos plásticos, está ali envolvido o trabalho de ferreiros, marceneiros, escultores, pintores de arte, figurinistas, aderecistas, costureiros. Isso sem contar os pesquisadores, enredistas, compositores, cantores, ritmistas, diretores de harmonia e evolução, passistas etc., sem os quais tampouco haveria desfile. É impossível, portanto, falar em autoria absoluta dos desfiles apresentados pelas escolas ou dos discursos que neles estão presentes, envolvendo uma pluralidade de ideias e trabalhos imprescindível ao resultado. No entanto, o trabalho de concepção do enredo e dos elementos plásticos tende a ser centralizado na figura de carnavalescas e carnavalescos, trabalhando isoladamente ou em comissões de carnaval. Ainda assim, a 17


concepção de uma obra que envolve o trabalho de tantas pessoas e, mais do que isso, representa uma comunidade ainda mais ampla, não vive isolada em bolha, sujeita que está a influências variadas e constantes que têm impacto inegável no resultado obtido. Mesmo que a maioria das carnavalescas e carnavalescos não sejam originários das comunidades das escolas de samba em que trabalham, passando por formação acadêmica na maioria dos casos, ainda considero os discursos das escolas originários da favela, por seu caráter coletivo e popular. São as comunidades das escolas, incluindo seus trabalhadores, componentes e torcedores, que dão forma aos desfiles apresentados. O trabalho dos melhores carnavalescos é, de alguma maneira, espelho que reflete na avenida os anseios da comunidade que constitui a agremiação. De modo a permitir aprofundamento maior na discussão da relação entre escolas e favelas, optou-se por focar o trabalho nas agremiações do carnaval carioca. Tal decisão se deu não só por ter sido o Rio o berço das escolas, mas por entender que é lá a mais intensa vinculação e identificação simbólica com a favela, e por consequência sua presença nos discursos propostos nos desfiles. Assim, o primeiro “setor”2 deste trabalho se dedica a esboçar um panorama do surgimento e desenvolvimento das escolas de samba no Rio de Janeiro do século XX ao início do século XXI, atentando-se especialmente à ligação entre as agremiações e as favelas que formam suas comunidades. Busca também traçar um breve perfil de tais comunidades e das escolas das duas primeiras divisões3 do carnaval carioca com elas identificadas.

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2 Tal qual um desfile de escola de samba, este trabalho está dividido em “setores”, isso é, pedaços da história que desejo contar. Este e outros termos particulares do universo das escolas de samba podem ter suas definições encontradas no glossário ao fim do caderno. 3 Como a maioria dos esportes, as escolas de samba do Rio são dividias em divisões para organizar o julgamento. A “primeira divisão”, que reúne as principais escolas, é chamada de Grupo Especial, enquanto o segundo grupo, hoje, é chamado Série Ouro.


O segundo setor mergulha nos desfiles apresentados pelas agremiações do Grupo Especial do Rio de Janeiro desde 2007, buscando entender como essa temática é tratada pelas escolas ao longo deste período e analisando mais detidamente alguns desfiles selecionados. O recorte temporal decorre, assim como em muitas outras manifestações culturais de caráter popular, da escassez de registro, especialmente de desfiles mais antigos. Entendendo que o discurso emitido por uma agremiação envolve mais do que é captado pelas transmissões televisivas, optou-se por focar as análises nos desfiles realizados a partir do ano em que a Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro), entidade organizadora do Grupo Especial, disponibiliza em seu portal na internet os livros Abre-alas, documentos oferecidos pelas escolas aos jurados a título de apresentar e justificar os elementos presentes nos desfiles.

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CRAVO E FERRADURA Cristóvão Bastos, Clarisse Grova e Aldir Blanc 1997 Primeiro, foi o som leve de peneira peneirando Um mar de ideias de um louco, a água dentro do coco Foi crescendo entre palmeiras e tambores batucando Um balbucio, um rugido Um som de tragédia e circo Um som de linha de pesca Som de torno e maçarico Era um som de escavadeira Bate-estaca, britadeira Um som que machuca e lanha Um som de lata de banha Som de caco, som de tralha Era um som de mutilados, quebrando gesso e muleta Um som de festa e batalha Ai, era um som que me orgulhava Som de ralé e gentalha Era o som dos prisioneiros, som dos exús catimbeiros Ai, era o som da canalha Trovão, forja, baticum Som de cravo e ferradura, dez mil cavalos de Ogum Abertura de Ratos e Urubus, larguem minha fantasia, desfile do carnavalesco Joãosinho Trinta na BeijaFlor de Nilópolis em 1989, marcado pelo "Cristo mendigo", censurado pela Igreja Católica.

Esse é o som da minha terra Som de andaimes despencando De encostas desmoronando De rios violentando as margens do meu limite Samba, samba, samba Pulsas em tudo que existe Vazas se meu sangue escorre Nasces de tudo que morre



SETOR 1

um país que não tá no retrato

A abolição da escravidão e a proclamação da República, no fim do século XIX, alteraram radicalmente o cenário político e social do Brasil e impactaram com intensidade ainda maior o panorama urbano da então capital do país, a cidade do Rio de Janeiro. O declínio da atividade cafeeira no vale do Paraíba e a libertação de milhões de pessoas negras sem qualquer perspectiva de inserção na sociedade levaram à capital um grande número de migrantes que, aliado à chegada de europeus — patrocinada pelo Estado brasileiro, que objetivava um branqueamento da população no pós-abolição (SIMAS, 2020) —, constituiu um acelerado crescimento demográfico. As dinâmicas territoriais internas do município também se modificaram. O centro da cidade passou a abrigar não apenas a maioria dos comércios e serviços como também grande parte das indústrias, ocupando os espaços deixados pelas elites que se transferiam para a Zona Sul. Foi no Centro também, adensando cortiços e casas de cômodo1, que se instalou a população majoritariamente pobre recém-chegada ao Rio. Esses locais eram, no entanto, alvos de uma verdadeira guerra empreendida pela administração do Distrito Federal, que procurava livrar a região central de usos considerados anti-higiênicos, como aponta Licia Valladares (2005) em sua “sociologia da sociologia” das favelas cariocas: Considerado o locus da pobreza, no século XIX era o local de moradia tanto para trabalhadores quanto para vagabundos e malandros, todos pertencentes à chamada “classe perigosa”. 1 Espécie de cortiço estabelecido em grandes sobrados em que cada família ocupa um cômodo ou subdivisão, compartilhando espaços comuns como cozinha e área de serviço. Cortiço Cabeça de Porco, o mais conhecido do Rio no fim do século XIX.

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Definido como um verdadeiro “inferno social”, o cortiço carioca era visto como antro da vagabundagem e do crime, além de lugar propício às epidemias, constituindo ameaça à ordem social e moral (VALLADARES, 2005, p. 24).

O Cabeça de Porco, então maior e mais famoso cortiço da cidade e que teria inspirado a obra O Cortiço (1890) de Aluísio de Azevedo, foi um dos alvos desse processo. Pouco tempo depois de sua destruição em 1893, construções de madeira semelhantes àquelas encontradas no cortiço foram registradas na encosta do morro da Providência, também no Centro. A sanha higienista da administração pública carioca também se voltava contra as manifestações carnavalescas da camada mais pobre, que agitavam as ruas do Centro na virada do século. A principal e mais reprimida brincadeira momesca era também a mais antiga delas. O entrudo, originário de Portugal e praticado desde o século XVII, tinha como objetivo principal molhar os outros foliões com líquidos diversos — de água de cheiro a urina — e foi perseguido durante a maior parte da história brasileira, mas persistiu até o início do século XX. Além do entrudo, blocos e cordões formavam o que ficou conhecido como “Pequeno Carnaval”, praticado pela grande maioria da população, em oposição ao “Grande Carnaval”, promovido pelas grandes sociedades, que eram, junto aos bailes e corsos2, as manifestações carnavalescas características das elites. As grandes sociedades, existentes desde a metade do século XIX, atuavam ao longo de todo ano como entidades da sociedade civil, se engajando inclusive em movimentos abertamente políticos, a 2 Os corsos envolviam o desfile de pessoas fantasiadas em automóveis decorados. A exigência de um carro no início do século XX o tornava uma brincadeira exclusiva dos abastados. Acima, alegoria dos Democráticos, uma das grandes sociedades mais conhecidas do Rio de Janeiro; abaixo, desfile do rancho carnavalesco Decididos de Quintino.

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exemplo da abolição e da proclamação da República, traço que viria a ser partilhado pelas escolas de samba. Os desfiles promovidos pelas grandes sociedades também apresentavam alguns elementos que influenciariam o carnaval das escolas de samba, como temáticas únicas para cada desfile e pequenos carros alegóricos. Não foram as grandes sociedades, no entanto, as principais precursoras das escolas. Os ranchos carnavalescos, surgidos na virada do século a partir dos ranchos de celebração do Dia de Reis, rapidamente se tornaram a manifestação predominante da folia carioca e introduziram uma estrutura que serviria de base para as escolas de samba nascidas poucas décadas depois, com abre-alas, orquestra, grupo de “tenores”, etc.

* * *

O início do século XX é marcado por uma atuação ainda mais intensa do poder público na formação do espaço da Capital. A Reforma Passos, popularmente conhecida como “bota-abaixo”, realizada na administração do engenheiro Francisco Pereira Passos (1902-1906), buscava criar uma nova capital, um espaço que simbolizasse concretamente a importância do país como principal produtor de café do mundo, que expressasse os valores e os modos vivendi cosmopolitas e modernos das elites econômica e política nacionais. Nesse sentido, o rápido crescimento da cidade em direção à zona sul (...) e a importância cada vez maior da cidade no contexto internacional não condiziam com a existência de uma área central ainda com características coloniais, com ruas 26


estreitas e sombrias, e onde se misturavam as sedes dos poderes político e econômico com carroças, animais e cortiços (ABREU, 2006, p. 60).

O andamento das reformas, e especialmente a abertura de novas avenidas como a Avenida Central (hoje Avenida Rio Branco), passava pela demolição de cortiços e bairros operários inteiros do centro da cidade. Maurício de Almeida Abreu (2006) aponta, em seu estudo do processo de urbanização do Rio, esse contexto de escassez de moradias para a população pobre enquanto catalisador da até então incipiente ocupação dos morros da zona central: É a partir daí que os morros situados no centro da cidade (Providência, São Carlos, Santo Antônio e outros), até então pouco habitados, passam a ser rapidamente ocupados, dando origem a uma forma de habitação popular que marcaria profundamente a feição da cidade neste século — a favela (...). A destruição de grande número de cortiços fez, pois, da favela a única alternativa que restou a uma população pobre que precisava residir próximo ao local de emprego. E essa população, paradoxalmente, não cessava de crescer, atraída que era à cidade pelo desenvolvimento industrial e pelos empregos na construção civil (ABREU, 2006, p. 66).

A intervenção direta do Estado no desenvolvimento urbano carioca, representada mas não restrita à Reforma Passos, acelerou o processo de estratificação social da metrópole e ajudou a consolidar um modelo núcleoperiferia (ABREU, 2006). A ocupação dos morros do Centro e da Zona Sul, no entanto, representa rara exceção a esse modelo, territórios habitados em sua maioria por famílias de baixa renda inseridos nas regiões mais valorizadas da cidade. 27


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Como relatado por Sérgio Cabral (1996) em seu livro seminal sobre o surgimento das escolas de samba, um decreto da época mostra que a administração Pereira Passos não estava alheia à ocupação dos morros: O mesmo Pereira Passos assinou, em 1903, um decreto que pode ser considerado o primeiro plano diretor da cidade e que se caracterizou pela disciplina rigorosa adotada para a construção de prédios, com várias medidas desestimulando a instalação de cortiços. Mas o decreto abriu uma curiosa exceção: “Os barracões toscos não serão permitidos, seja qual for o pretexto de que se lance mão para obtenção de licença, salvo nos morros que ainda não tiveram habitações e mediante licença”. A propósito, Jaime Larry Benchimol observou em seu livro Pereira Passos: um Haussmann tropical: “A pergunta parece absurda, mas teria esse artigo a intenção de legitimar a utilização dos morros — pouco valorizados — para a construção de favelas?” (CABRAL, 1996, p. 31).

O início da ocupação de alguns morros do centro do Rio desde os últimos anos do século XIX não impediu, no entanto, o surgimento do que é classificado por Valladares (2005) como “mito de origem da favela carioca”: o suposto pioneirismo da ocupação do morro da Providência. Conta a história que, retornados do massacre ao povoado de Canudos no sertão baiano, encerrado em 1897, soldados do exército se instalaram na encosta do morro à espera de habitações no Rio prometidas pelo governo. A história ganhou mais adesão a partir do sucesso de Os Sertões, relato do conflito publicado por Euclides da Cunha em 1902. Aos olhos do público carioca, o contraste entre o litoral civilizado e o sertão bárbaro presente na obra se refletia, em escala local, na oposição entre a cidade e o morro (VALLADARES, 2005).

Ocupação do morro da Providência, que passou a ser chamado de morro da Favella, no centro do Rio, em foto da década de 60.

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Embora a Providência não possa ser efetivamente considerada a primeira favela carioca, foi a partir de sua denominação como morro da Favella que o nome se popularizaria na década de 1920. As possíveis explicações para a denominação passam pelo imaginário do conflito de Canudos: a presença da planta homônima que também era encontrada ao redor do povoado e a ocupação do morro por barracos semelhantes aos de um outro morro, também chamado Favella, no sertão baiano. Em meio ao intenso fluxo migratório que caracterizou a virada do século na capital da República, uma comunidade de pessoas provindas da Bahia, em sua grande maioria negras, se estabelece em uma área da cidade atualmente englobada pela região portuária e pelos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, já de forte tradição negra. Organizada em torno dos terreiros de Candomblé das “tias baianas” — Tia Ciata3 a mais famosa delas —, a região é batizada pelo compositor Heitor dos Prazeres como “África em miniatura”, se tornando a “Pequena África no Rio de Janeiro” popularizada pelo livro de Roberto Moura (1983). Lira Neto (2017), no primeiro volume de sua biografia do samba, contesta a ideia de uma Pequena África exclusiva: A exemplo do ocorrido nos morros próximos às áreas centrais da cidade, os distantes subúrbios não paravam de receber contingentes de negros, mestiços e ex-escravos, muitos deles oriundos da decadente zona cafeeira do Vale do Paraíba. Assim, em vez de se falar de uma Pequena África, única, idealizada e resumida à área próxima à zona portuária da cidade, talvez fosse mais apropriado se imaginar uma miríade de outras pequenas áfricas, todas já disseminadas na acidentada geografia do Rio de Janeiro (NETO, 2017, p. 38).

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3 Para Luiz Antonio Simas, a figura de Hilária Batista de Almeida (1854-1924), a Tia Ciata, passou a ser construída no imaginário carioca, a partir do resgate feito pelo radialista Almirante, como uma figura mítica, amalgamando traços e fatos relativos a outras tias da Pequena África (SIMAS, 2020).


Do contato entre os ritmos rurais, como o jongo, a embolada, o tambor de crioula e o coco cearense — todos acompanhados da dança da umbigada —, e as danças e estilos musicais de influência europeia presentes nas áreas urbanas, nascem dois dos principais ritmos precursores do samba. Junto com o lundu, em que a música era tocada pela própria roda de dança, mediante instrumentos e palmas, surge também o maxixe, que, alternativamente, era dançado em pares com a música proporcionada por aqueles que não estavam na dança. Das interações e do desenvolvimento desses ritmos nos terreiros das tias baianas cariocas nas duas primeiras décadas do século XX emerge a primeira variante do samba — em roda e ainda distante do rádio, da fama e do Carnaval. Cada maneira de brincar o Carnaval tinha seu acompanhamento musical, marchinhas e maxixes eram muito comuns e as Grandes Sociedades, por exemplo, desfilavam ao som de valsas e árias de óperas. Esse cenário começa a se alterar com a gravação por Donga4, em 1916, de Pelo Telefone, samba que, ainda que não tenha sido necessariamente o primeiro a ser gravado, foi pioneiro ao se tornar um sucesso de Carnaval, tendo inegável papel na aproximação que tais manifestações testemunhariam nas décadas seguintes. Além de oferecer o contexto cultural que permitiu o surgimento do samba no Rio de Janeiro, a comunidade de terreiros das tias baianas também servia como proteção social fundamental a seus compositores. Mesmo que o samba nunca tenha sido explicitamente proibido, foi duramente perseguido na primeira metade do século, assim como a grande maioria das manifestações culturais e religiosas de origem africana praticadas pelas comunidades negras. Introduzida no código penal de 1890, a criminalização do ócio — que viria a ser conhecida após a Lei de Contravenções Penais de 4 Ernesto Joaquim Maria dos Santos (1890-1974).

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1941 como “lei da vadiagem” — apontava os batuques, as “macumbarias” e as “capoeiragens” como indícios de delito. Em caso célebre, João da Baiana5, filho de Tia Perciliana6 e um dos principais sambistas da origem do ritmo, foi abordado por um policial que buscava enquadrá-lo na lei da vadiagem. Seu pandeiro, a prova: Em um desses domingos de outubro, a caminho da Festa da Penha, João da Baiana se viu abordado por um policial de maus bofes. O código penal em vigor, datado de 1890, trazia um capítulo inteiro, com seis detalhados artigos, destinado a coibir o chamado “crime de vadiagem”. Segundo a letra da lei, seria declarado vadio todo aquele sem “profissão, ofício ou qualquer mister em que ganhe a vida”. A nova legislação entrara em vigor apenas dois anos após a abolição, quando milhares de negros, recém-libertos de seus senhores, não possuíam a devida qualificação profissional e, por isso, estavam à margem do mercado de trabalho. Os implicados na “Lei da Vadiagem” ficavam sujeitos à prisão por um mês e, findo o prazo, ao sair da cadeia, eram obrigados a firmar o compromisso “de tomar ocupação dentro de quinze dias”. A simples posse de um instrumento de percussão podia ser interpretada como um indício de vagabundagem. Como provou possuir emprego fixo, João da Baiana não foi recolhido à delegacia. Mas, para seu desconsolo, teve apreendido o pandeiro de estimação (NETO, 2017, p. 70).

Desejosos de desfilar com seu grupo carnavalesco ao som do samba, mas percebendo que a variante criada pelo grupo da Pequena África — que era formado por sambistas como João da Baiana, Donga, Sinhô7 e

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5 João Machado Guedes (1887-1974). 6 Perciliana Maria Constança. 7 José Barbosa da Silva (1888-1930).


Pixinguinha8 — só se adequava ao canto e à dança em roda, um grupo de compositores do bairro do Estácio de Sá — Mano Rubem9, Bide10, Ismael Silva11, Brancura12 etc. — desenvolveu um novo tipo de samba, pensado para o desfile em cortejo. Em 1928, criaram uma escola pra ensinar o novo tipo de samba: a Escola de Samba Deixa Falar. Apesar de ter introduzido mudanças duradouras — como o uso de surdos e cuícas na bateria — e cunhado o nome, a Deixa Falar não foi efetivamente uma escola de samba, desfilando enquanto rancho, inclusive em concursos oficiais (CABRAL, 1996). Com a extinção precoce da Deixa Falar em 1933, o bloco-rancho se uniu a outro grupo, formando o bloco carnavalesco União do Estácio de Sá. Ao longo das duas décadas seguintes, a configuração das agremiações carnavalescas do morro de São Carlos foi se modificando até que, em 1955, é fundada, da união de três escolas então existentes na região, a Unidos de São Carlos, que em 1983 passa a se chamar Grêmio Recreativo Escola de Samba Estácio de Sá. Até hoje a Estácio se reivindica herdeira da Deixa Falar e escola mais antiga do Brasil, adotando a partir de 1965 o mesmo vermelho e branco da antiga agremiação. Apesar de detentora de apenas um título do Grupo Especial — conquistado em 1992 com o enredo Pauliceia Desvairada, 70 anos de Modernismo13 —, a Estácio é considerada uma das escolas mais tradicionais 8 Alfredo da Rocha Vianna Filho (1897-1973). 9 Rubem Barcelos (1904-1927). 10 Alcebíades Maia Barcelos (1902-1975). 11 Milton de Oliveira Ismael Silva (1905-1978). 12 Silvio Fernandes (1908-1935). 13 Carnavalescos Mário Monteiro e Chico Spinosa e samba de Caruso, Déo, Djalma Branco e Maneco.

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do Rio, ainda que hoje pouco figure na elite do carnaval carioca. Comunidade da escola, o morro de São Carlos é uma favela de cerca de 8,5 mil habitantes14, que começou a ser ocupada na década de 20, majoritariamente por pessoas negras, a partir do processo de demolição dos cortiços para a construção da Avenida Central. A Estácio contou por duas vezes na avenida a história da escola de samba Deixa Falar e de si própria. A primeira15, em 1980, focava na agremiação antiga, enquanto a mais recente16, trinta anos depois, procurou contar toda a história da escola, dando grande destaque para a relação da agremiação com o morro de São Carlos. Como apresentado no mapa das páginas seguintes, o morro de São Carlos é a favela mais próxima ao Sambódromo da Marquês de Sapucaí, palco oficial dos desfiles dos dois primeiros grupos de escolas de samba do Rio de Janeiro. O mapa mostra a localização atual das quadras sociais de 13 escolas de samba do Grupo Especial e da Série Ouro17, e as favelas que constituem suas comunidades de origem. Comunidades de origem porque ao longo dos anos as escolas foram ampliando suas bases, contando hoje com componentes e torcida que vão muito além dos territórios onde 14 Todos os dados populacionais de favelas aqui apresentados foram retirados da sistematização realizada pelo Instituto Pereira Passos (IPP) em cima dos dados do Censo de 2010 do IBGE e disponibilizados na plataforma Data Rio. 15 G.R.E.S. Estácio de Sá, 1980: Deixa Falar. Carnavalesco Francisco Fabian e samba de Elinto Pires e Sidney da Conceição. 16 G.R.E.S. Estácio de Sá, 2010: Deixa Falar, a Estácio é isso aí! Eu visto esse manto e vou por aí. Carnavalescos Chico Spinosa e Gebran Smera e samba de Gustavo Clarão, Thiago Daniel, Da Latinha, Igor Ferreira e Claudinho Vagareza. 17 Considerando a conformação dos grupos para o Carnaval de 2022. Série Ouro é a nova denominação da segunda divisão de escolas do carnaval carioca, anteriormente chamada de “Série A”. O G.R.E.S. Acadêmicos da Rocinha, rebaixado em 2020 para a Série Prata (terceira divisão), também foi incluída no mapa por sua vinculação com a maior favela do Rio. Acima, vista do morro de São Carlos, comunidade da Estácio de Sá. Abaixo, quadra da escola, na Avenida Salvador de Sá, próxima ao morro.

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surgiram. No entanto, a relação com as comunidades originárias continua permeando o imaginário das escolas, de seus nomes aos temas que abordam e sambas que apresentam. A despeito do afastamento de algumas quadras, em busca de terrenos melhores e espaços maiores para o desenvolvimento das atividades das agremiações — caso de Mocidade Independente, Império Serrano, Paraíso do Tuiuti, Salgueiro e, em grau muito maior, Unidos da Tijuca e São Clemente — não se rompeu o vínculo com os territórios de origem. Algumas agremiações, como Mocidade, Salgueiro e Tijuca, ainda preservam espaços culturais e sociais dentro das favelas onde nasceram. Não muito distante do São Carlos, em um morro conhecido pelas árvores frutíferas que ocupavam sua grande extensão e cuja ocupação se acelerou a partir da demolição do morro do Castelo na década de 20, era apresentado um novo tipo de samba: Carlos Cachaça não se lembrava da época exata em que o samba foi introduzido na Mangueira por Mano Elói, mas o fato é que, no carnaval de 1926 (antes, portanto, da fundação do Deixa Falar), o morro já era conhecido como reduto de sambistas, como demonstrava o samba Morro de Mangueira, de Manuel Dias (...). A Mangueira era um canteiro de manifestações da cultura popular. Com uma população formada, principalmente, por pessoas vindas do interior dos estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, a cantoria e a dança do jongo faziam parte da rotina de seus moradores. Entre o Natal e o Dia de Reis, conjuntos de pastorinhas percorriam o morro. Carlos Cachaça, privilegiada testemunha da ocupação do local, apontou o rancho Pérolas do Egito como principal grupo carnavalesco da Mangueira, vindo a seguir outros ranchos (...) (CABRAL, 1996, p. 61).

Em 1927, um grupo de jovens do morro, impedidos de desfilar nos blocos já existentes por indisciplina, decidiu criar seu próprio grupo, Quadra do G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira, ao pé do morro, na zona norte do Rio.

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nomeado de acordo: o Bloco dos Arengueiros. Entre os jovens estavam Zé Espinguela18, Saturnino Gonçalves19, Carlos Cachaça20 e Angenor de Oliveira21 — que por portar sempre um chapéu-coco de pedreiro recebeu a alcunha de Cartola. Após descer o morro rumo à Praça Onze durante três carnavais, recebendo cada vez mais atenção pelos sambas que compunham, o bloco se funde ao rancho Príncipe da Floresta em 1929, dando origem ao Bloco Carnavalesco Estação Primeira. O nome vinha da proximidade do morro de Mangueira de uma estação da linha férrea, a primeira saindo da Central do Brasil (antiga estação Dom Pedro II) em direção aos subúrbios. A relação do morro, localizado na zona norte do município, perto do estádio do Maracanã e hoje com cerca de 14 mil pessoas, com sua escola de samba, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, é talvez a mais intensa dentre as principais agremiações cariocas. Mesmo se convertendo em escola das mais populares do país — as cores verde e rosa escolhidas por Cartola se tornaram os signos mais reconhecidos de uma escola de samba —, a permanência da quadra ao pé do morro manteve forte a conexão com a comunidade. Ao longo de sua história, a Mangueira conquistou 20 títulos do Grupo Especial do carnaval carioca — ficando atrás apenas dos 22 títulos conquistados pela Portela —, incluindo o supercampeonato22 de 1984, primeiro ano de desfiles no Sambódromo da Marquês de Sapucaí.

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18 José Gomes da Costa (1890-1945). 19 Saturnino Gonçalves (1897-1935). 20 Carlos Moreira de Castro (1902-1999). 21 Angenor de Oliveira (1908-1980). 22 Em comemoração à construção do Sambódromo da Marquês de Sapucaí, os desfiles de 1984 se deram de maneira diferente da habitual. Cada um dos dois dias de desfiles do Grupo Especial foi considerado um campeonato, e as melhores escolas de cada dia desfilaram novamente na semana seguinte. A Portela foi a campeã do primeiro dia de


São recorrentes, nos enredos e sambas apresentados pela Mangueira, independentemente do tema retratado, as menções ao morro, encarado como extensão da própria agremiação. A simbiose entre o território e a escola é sintetizada pelo próprio Cartola: De lá pra cá, é irresistível fazer uma indagação: o que seria da Mangueira sem a escola de samba? Certa feita, Cartola foi indagado sobre de onde vinha. Em se tratando da parte africana da família, era impossível dizer. Teriam sido os antepassados de Cartola moçambiques, umbundos, nagôs, axantis, fons? Falavam quicongo, quimbundo, iorubá? O fato é que Cartola recebeu a indagação e respondeu de imediato: venho da Estação Primeira de Mangueira. Nesta simples resposta percebemos que a Mangueira ocupava para ele, e para tantos, o espaço de fundamento da identidade, do pertencimento, da rede de proteção social e da construção de sociabilidades (SIMAS, 2020, p. 48).

Não obstante, diversas vezes a Mangueira teve como tema central de fato a própria história do morro, de si mesma e de seus baluartes: em 1978 com Dos carroceiros do imperador ao palácio do samba23; em 1983, com Verde que te quero rosa, semente viva do samba24; em 1999, a história do ritmo com O século do samba25; em 2011, a história de Nelson Cavaquinho com O filho fiel,

desfiles, enquanto a Mangueira se sagrou campeã no segundo dia e supercampeã na semana seguinte, com enredo em homenagem a Braguinha — o João de Barro. 23 Carnavalescos Júlio Mattos e Kalma Murtinho e samba de Rubem da Mangueira e Jurandir. 24 Carnavalesco Max Lopes e samba de Flavinho Machado, Geraldo Neves e Heraldo Faria. 25 Carnavalesco Alexandre Louzada e samba de Adalberto, Jerônimo e Jocelino.

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sempre Mangueira26; e em 2015, com Agora chegou a vez, vou cantar: mulher de Mangueira, mulher brasileira em primeiro lugar!27 O morro do Borel, favela de cerca de dez mil habitantes na Tijuca, é a comunidade original de uma escola em situação oposta à da Mangueira, tendo sua quadra agora muito distante do morro: o Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos da Tijuca. A partir da fusão de quatro blocos de morros da região, a escola que adotou o pavão como símbolo foi fundada em 1931, sendo campeã já em 1936 — só voltaria a conquistar títulos, no entanto, na década de 2010. Originalmente no Borel, a quadra da escola foi transferida para a região portuária em 1988. Em 2006, a antiga quadra da escola no morro voltou a ser utilizada com a instalação da ONG Instituto Cidadania. Ainda que faça menção ao Borel em diversos de seus sambas, a Tijuca jamais fez um enredo inteiro sobre o morro ou sobre si própria, com um único desfile contando a história do bairro: Tijuca sempre jovem28, de 1969. * * *

Valladares (2005) destaca a transformação da favela em problema ao longo das três primeiras décadas do século XX, calcada principalmente em “diagnósticos” de médicos e engenheiros desses espaços como patologias, fontes diretas dos males “físicos e morais” dos seres humanos. O processo 26 Carnavalescos Mauro Quintaes e Wagner Gonçalves e samba de Aílton Nunes, Alemão do Cavaco, Cesinha Maluco, Pê Santana, Baianinho, José Rifai e Xavier. 27 Carnavalesco Cid Carvalho e samba de Alemão do Cavaco, Almyr, Cadu, Lacyr d’Mangueira, Paulinho Bandolim e Renan Brandão. 28 Samba de Luís Carlos. Acima, morro do Borel e, em azul e amarelo, a antiga quadra da Unidos da Tijuca, na zona norte do Rio. Abaixo, a quadra atual, na Avenida Francisco Bicalho, zona portuária.

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ficou marcado pela campanha contra as favelas empreendida nos jornais do Rio pelo médico Augusto de Mattos Pimenta, no fim da década de 20, em que deixa clara a ideia de que o ambiente da favela influiria negativamente sobre o comportamento de seus habitantes: (...) é mister se ponha um paradeiro immediato, se levante uma barreira prophilactica contra a infestação avassaladora das lindas montanhas do Rio de Janeiro pelo flagelo das “favellas” — lepra da esthetica (...) [que] foi se derramando por toda a parte, enchendo de sujeira e de miséria preferentemente os bairros mais novos e onde a natureza foi mais pródiga de belleza (...). Desprovidas de qualquer espécie de policiamento, construídas livremente de latas e frangalhos em terrenos gratuitos do Patrimônio Nacional, libertadas de todos os impostos, alheias a toda ação fiscal, são excellente estímulo à indolência, attraente chamariz de vagabundos, reducto de capoeiras, valhacoito de larapios que levam a insegurança e a intranquilidade aos quatro cantos da cidade pela multiplicação dos assaltos e dos furtos (PIMENTA, 1926 apud VALLADARES, 2005, p. 42).

À época no comando da prefeitura, o engenheiro Carlos Sampaio preparava a capital para as celebrações do centenário da Independência. Dentre as obras urbanas empreendidas pela gestão entre 1920 e 1922, a de maior porte foi a demolição do morro do Castelo, famoso acidente geográfico do centro do Rio e um dos pontos de fundação da cidade, ocupado então por uma população predominantemente pobre atraída pelos baixos aluguéis dos velhos casarões. A demolição do morro descortinou para o Centro uma das áreas mais pobres da cidade, antes escondido entre a encosta e o mar, o bairro da Misericórdia. A prefeitura ordena a demolição do bairro, que ameaçava a valorização imobiliária da região da Avenida Rio Branco, e, em seu lugar, a construção da exposição universal que também faria parte das celebrações da Independência (ABREU, 2006). Processo de demolição do morro do Castelo, em fotografia de 1922.

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A remoção de uma favela pra sediar um evento de porte internacional remete aos acontecimentos na mesma cidade quase um século depois: sede dos Jogos Panamericanos de 2007 e do Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, a administração do Rio realizou diversas ações semelhantes neste século, a mais famosa delas a remoção da maior parte da Vila Autódromo, favela localizada na Barra da Tijuca, Zona Oeste, para instalação do Parque Olímpico e de um complexo hoteleiro em 2016 (SASTRE, 2016). Sobre a gestão Carlos Sampaio como um todo: (...) nada mais é que uma outra etapa do processo de depuração da área nobre da cidade de usos e populações não desejadas. Representa, ademais, a época em que as preocupações com o valor de troca do solo urbano passam a figurar explicitamente nos planos municipais. Isto porque as sucessivas ondas de melhoramentos empreendidas pelo poder público detonaram um processo de valorização crescente de terrenos, que a Prefeitura pretendia agora capturar para si (ABREU, 2006, p. 78).

No fim da década de 20, um grupo de técnicos franceses liderados pelo engenheiro Alfred Agache elaborou um abrangente plano para o desenvolvimento da cidade nas décadas seguintes. Concluído apenas após a revolução de 30, o Plano Agache nunca foi executado completamente, rechaçado enquanto símbolo da República Velha. Incluía enormes obras, muito além das possibilidades do governo municipal ou federal naquele momento, envolvendo a separação por uso de grandes áreas do Centro e da Zona Sul e a remoção de alguns bairros pobres que haviam resistido às reformas do início do século.

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Primeiro a tratar explicitamente da favela, o plano não apresentava nenhuma medida concreta para esses territórios, mas preconizava sua erradicação ao longo do tempo:


O plano não pode conceber, entretanto, a permanência da favela nas áreas nobres da cidade. As contradições por ela engendradas negavam toda tentativa de controle abrangente do espaço que se pretendia implantar. Em primeiro lugar, porque aproximavam classes sociais opostas, cidadãos de primeira e segunda classe, por assim dizer. (...) Em segundo lugar, porque essa aproximação resultava na imposição de externalidades negativas às classes dominantes, tanto no que diz respeito à sua segurança e qualidade de vida quanto à manutenção da ordem social estabelecida. (...) Em terceiro lugar, porque os “nômades” da favela vinham se “sedentarizando” demais, isto é, vinham tomando posse efetiva dos morros da cidade, reproduzindo inclusive padrões de comportamento social e econômico bastante aceitáveis para o restante da cidade, mas intoleráveis nas favelas (ABREU, 2006, p. 89).

Com a revolução de 30 e a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, o governo federal passou a designar diretamente a administração do município, alocando na prefeitura para o período de 1931 a 1936 o médico Pedro Ernesto. A política de caráter populista do governo Vargas também se reflete na escala municipal e, especificamente, na maneira como a administração lidou com as favelas: A perspectiva higienista que havia acompanhado os discursos anteriores permanece, mas com uma nova inflexão: o reconhecimento, de fato, da existência das favelas e da necessidade de melhorar as condições de vida dos favelados, contrariando a solução única de sua destruição anteriormente proposta (VALLADARES, 2005, p. 52).

Acima, Praça Onze, palco dos primeiros desfiles das escolas de samba, demolida para a construção da Avenida Presidente Vargas. Abaixo, desfile da Depois Eu Digo do morro do Salgueiro, em 1948, já na Avenida Rio Branco.

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O código de obras de 1937, ao mesmo tempo que sugere a destruição das favelas, só prevê concretamente a interdição de novas construções em morros já ocupados, abrindo implicitamente a possibilidade de permanência das áreas de favela já estabelecidas. Assim, o código inaugurou “(...) juridicamente, assim como Pedro Ernesto havia inaugurado politicamente, um novo período, em que pouco a pouco se impõe a necessidade de administrar a favela e seus habitantes” (VALLADARES, 2005, p. 54). O estabelecimento, ainda que de caráter clientelista, de laços mais próximos entre a administração municipal e as camadas populares levou ao reconhecimento por parte da prefeitura da pluralidade de manifestações carnavalescas já encontrada no Rio, incluindo a destinação de verba pública, antes reservada às grandes sociedades, pra subsidiar os desfiles das escolas de samba, que passavam a se apresentar de maneira conjunta e não mais isolada. O primeiro concurso entre as escolas de samba do Rio de Janeiro foi organizado em 1932 na Praça Onze, Centro, pelo jornal Mundo Sportivo, do jornalista Mário Filho, que buscava com o que preencher suas páginas durante o recesso do calendário esportivo. Com a extinção do jornal, os concursos a partir do ano seguinte já passaram a ser organizados pelo jornal O Globo, e eram muito diferentes dos atuais. As escolas podiam apresentar mais de um samba — no primeiro concurso, o limite era de três — e não havia obrigatoriedade de relação entre a letra dos sambas e o tema apresentado, nem tampouco precisavam estar encaixadas no enredo todas as fantasias. Em 1934 foi criada a primeira entidade organizadora das escolas de samba, que já contava então 28 agremiações. Os concursos da década de 30, sempre na Praça Onze, foram dominados pela Mangueira, enquanto o Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela, fundado em 1923, foi a grande Acima, morro da Formiga, na Zona Norte e, abaixo, quadra do Império da Tijuca, no começo da subida do morro.

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campeã da década de 40, conquistando consecutivamente os títulos de 1941 a 1947. A partir de 1943, os desfiles deixaram a Praça Onze, já parcialmente demolida para a abertura da Avenida Presidente Vargas, passando a acontecer na Avenida Rio Branco, até então destinada aos desfiles das grandes sociedades. A partir de 1963 os desfiles aconteceriam na própria Avenida Presidente Vargas, até a inauguração do Sambódromo da Marquês de Sapucaí, em 1984. Algumas das escolas nascidas nesse período e vinculadas a favelas se mantêm fortes até hoje. O Grêmio Recreativo Escola de Samba Educativa Império da Tijuca, fundado em 1940, é o primeiro a adotar o nome de Império, que rapidamente se popularizou. O “Educativa” trazido no nome faz referência a uma escola de alfabetização estabelecida por um grupo de escoteiros no morro da Formiga, favela de cerca de cinco mil habitantes na Tijuca em que se encontra até hoje a quadra da escola. Em 1972, o enredo O samba do morro à sociedade29 apontou o ritmo como conexão entre o morro e a alta sociedade e, em 1986, o enredo Tijuca, cantos, recantos e encantos30, também reeditado vinte anos depois, contou a história do bairro, dando destaque aos morros do Salgueiro, do Borel e da Formiga e suas escolas de samba. Em 1946, é fundado o Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos de Vila Isabel no bairro de mesmo nome, tornado famoso pelo grande sambista Noel Rosa31. Ainda que muito identificada com o bairro como um todo, a Vila foi fundada no morro dos Macacos, favela de quase 20 mil moradores, onde 29 Carnavalescos Arnaldo Pederneiras e Mario Barcelos e samba de Vicente e Djalma do Cavaco. 30 Carnavalesco José Félix e samba de Pedrinho da Flor, Baster, Belandi e Marinho da Muda. 31 Noel de Medeiros Rosa (1910-1937). Acima, morro dos Macacos e, abaixo, quadra da Unidos de Vila Isabel no bairro de Noel, no Boulevard 28 de Setembro.

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a casa de Seu China32, um dos fundadores, serviu até 1958 como primeira quadra da escola. Principal figura da história da agremiação, Martinho da Vila33 morou em favelas do Rio desde que chegou à cidade em 1942, ainda que não no morro dos Macacos. A Vila já tratou diversas vezes da história do samba e do Carnaval em seus desfiles: em 1948, com Tia Ciata, a mãe do samba34; em 1953, com O berço do samba — África o Baobá da vida35; em 1984 com Pra tudo se acabar na quarta-feira36; em 1997, com Não deixe o samba morrer37. Em 1988, conquistou seu primeiro título do Grupo Especial com Kizomba, a festa da raça38. A história do bairro e da escola, já destacando o morro, foi contada em Muito prazer! Isabel de Bragança e Drummond Rosa da Silva, mas pode me chamar de Vila39, de 1994. A história de Noel Rosa, grande sambista do bairro, foi o enredo de 2010: Noël, a presença do poeta da Vila40. A sequência de sete conquistas consecutivas da Portela na década de 40 foi interrompida por uma campeã improvável em 1948. Uma escola de samba fundada apenas no ano anterior e vinda da mesma Madureira que a atual campeã, mas lá do morro da Serrinha:

32 Antônio Fernandes da Silveira. 33 Martinho José Ferreira (1938-). 34 Carnavalesco Miguel Moura e samba de Paulo Brazão. Desfile não aconteceu. 35 Carnavalesco Miguel Moura. Desfile também não aconteceu. 36 Carnavalesco Fernando Costa e samba de Martinho da Vila. 37 Carnavalesco Jorge Freitas e samba de J. C. Couto. 38 Carnavalescos Milton Siqueira, Paulo César Cardoso e Ilvamar Magalhães e samba de Rodolpho, Jonas e Luiz Carlos da Vila. 39 Carnavalesco Oswaldo Jardim e samba de André Diniz, Evandro Bocão e Vilane Silva. 40 Carnavalesco Alex de Souza e samba de Martinho da Vila.

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A localidade, na vertente oeste da serra da Misericórdia, entre Vaz Lobo e Madureira, na zona norte carioca, começou a ser povoada provavelmente nas duas primeiras décadas do século XX. Seus ocupantes à época eram gente muito pobre, expulsa dos logradouros mais valorizados do centro da cidade do Rio de Janeiro, incluindo aí os morros mais bem situados em relação àquele centro, como os de Santo Antônio, Favela, Castelo, São Carlos e Mangueira (VALENÇA; VALENÇA, 2017, p. 32).

O morro da Serrinha é uma favela pequena, de apenas mil habitantes, conhecida por forte tradição negra, especialmente de culto de religiões de matrizes africanas — o candomblé e a umbanda — e prática do jongo ou caxambu, canto e dança em roda com um par ao centro: Após a abertura do terreiro, o manda-roda cantava um jongo e tirava um par para a dança, dando a umbigada. Todos à volta do par cantavam o jongo entoada pelo manda-roda, enquanto dançavam em seus lugares. Depois de ter dançado, o casal voltava ao manda-roda, devolvendo-lhe a umbigada, que o mandaroda dava no próximo par e assim sucessivamente até fechar a roda, isto é, até todos terem dançado (...). Rufino [da Portela, famoso jongueiro de Madureira] dizia haver duas modalidades de cantigas de jongo, sendo que ambas fazem uso da linguagem figurada: gurumenta (também chamada porfia ou demanda) e visaria (também conhecida como bizarria). A primeira é um desafio de jongueiros (...). A segunda, a visaria, serve para distrair e alegrar a roda. Muitas vezes, quando a gurumenta está acirrada demais, um dos jongueiros desafiantes manda parar o tambor e entoa uma bizarria para evitar o impasse desagradável (VALENÇA; VALENÇA, 2017, p. 45).

Hoje, a Casa do Jongo da Serrinha promove a prática dessa manifestação cultural, protegendo o legado de Rufino, Nascimento, Seu 55 Acima, morro da Serrinha e, abaixo, atual quadra do Império Serrano, em Madureira.


Antenor, Tia Marta do Império, Vovó Maria Joana Rezadeira, Mestre Darcy do Jongo e tantas outras jongadeiras e jongadeiros do morro. Nas décadas de 30 e 40, aos quatro blocos que desfilavam pelas ruas do morro no Carnaval, somou-se a escola de samba Prazer da Serrinha, que nunca obteve resultado favorável nas competições oficiais e era administrada de maneira autoritária por seu presidente Alfredo Costa, que tomava decisões inusitadas que acabavam prejudicando a escola. Uma das decisões foi a substituição, com a escola prestes a se apresentar na Praça Onze em 1946 — primeiro Carnaval após o fim da segunda guerra mundial e que teve temática única em homenagem à vitória dos aliados —, do samba escolhido, composição de Mano Décio da Viola41 e Silas de Oliveira42, por um samba de quadra. A decisão foi o estopim para a criação de uma nova agremiação, mais democrática, que pudesse representar melhor o morro, mas que só naceu após o Carnaval do ano seguinte: o Grêmio Recreativo Escola de Samba Império Serrano43. O início da escola, identificada por grandes compositores como Mano Décio da Viola, Silas de Oliveira (considerado por muitos o maior compositor de sambas de enredo de todos os tempos), Dona Ivone Lara44 (primeira mulher a assinar um samba de enredo cantado na avenida com Os Cinco Bailes da História do Rio, de 1965) e, mais recentemente, Arlindo

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41 Décio Antônio Carlos (1909-1904). 42 Silas Oliveira de Assumpção (1916-1972). 43 A grande maioria das informações aqui apresentadas sobre o Império Serrano foram retiradas do livro Serra, Serrinha, Serrano: o império do samba, de Rachel e Suetônio Valença. 44 Yvonne Lara da Costa (1922-2018).


Cruz45, foi avassalador, com a conquista do campeonato em seus quatro primeiros anos de desfile46. Em 1958, temporais que se abateram sobre a região de Madureira derrubaram a estrutura da quadra, até então incrustada no morro, deixando a escola sem local fixo pra ensaiar, levando-a a usar casas de componentes e espaços de clubes esportivos de Madureira até 1964. Nesse ano, um espaço próximo à atual estação Mercadão de Madureira da SuperVia foi cedido pela administração da região, estabelecendo-se lá a quadra social até hoje utilizada pela escola. Nascido em resposta a uma gestão autoritária, o Império estabeleceu forte conexão com um sindicato de trabalhadores portuários, inicialmente através da figura do famoso sambista e líder sindical Mano Elói47: Ele foi o elo entre a escola que nascia e a lendária Resistência, como é conhecida a Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, entidade sindical fundada em 15 de abril de 1905, provavelmente a primeira organização de classe a congregar majoritariamente negros em seus quadros e sua liderança. Seus associados pertencem à categoria dos arrumadores, que não se confunde com a dos trabalhadores da estiva. A tradicional rivalidade entre os portuários da estiva e os da Resistência tem origem justamente no fato de ser esta, ainda hoje, uma associação de base étnica. Era forte no núcleo fundador do Império Serrano a presença de trabalhadores 45 Arlindo Domingos da Cruz (1958-). 46 O desfile de 1948, o primeiro vencido pelo Império, foi realizado de maneira única, colocando a escola na frente das supercampeãs Mangueira e Portela. No entanto, nos carnavais de 49, 50 e 51 mais de uma entidade organizou os desfiles, vencidos pelo Império nos que participou, mas vencidos também por Portela e Mangueira em outras instâncias. 47 Elói Antero Dias (1888-1971).

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portuários, que assumiam o compromisso de repassar à escola parte do salário recebido (VALENÇA; VALENÇA, 2017, p. 85).

A identificação com o sindicalismo, o movimento negro e a defesa dos valores democráticos passaram a permear a atuação da escola não só em sua comunidade mas também nos enredos apresentados em seus desfiles. Heróis da Liberdade48, por exemplo, é uma nem tão velada defesa da democracia apresentada pela escola em 1969, no Carnaval seguinte à promulgação do Ato Institucional n.º 5, que intensificou a repressão e a suspensão de direitos promovida pela ditadura civil-militar entre 1964 e 1985. O samba escolhido pra embalar o desfile do ano seguinte ao fim do regime, com o enredo Eu quero49, também deixou claro o posicionamento da escola: (...) Quero nosso povo bem nutrido O país desenvolvido Quero paz e moradia Chega de ganhar tão pouco Chega de sufoco e de covardia Me dá, me dá, me dá o que é meu Foram 20 anos que alguém comeu

48 Carnavalescos Acir Pimentel e Swayne Moreira e samba de Mano Décio da Viola, Silas de Oliveira e Manoel Ferreira. 49 Carnavalescos Renato Lage e Lilian Rabelo e samba de Aluízio Machado, Jorge Nóbrega e Luís Carlos do Cavaco. Acima, Heróis da Liberdade, desfile de 1969 do Império Serrano, no primeiro Carnaval após a promulgação do AI-5. Abaixo, Eu quero, desfile de 1986, ano seguinte ao fim da ditadura civil-militar.

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(...) Cessou a tempestade É tempo de bonança Dona Liberdade Chegou junto com a esperança

Além da defesa contundente dos princípios que norteiam a escola, foram vários os anos em que o Império se dedicou a cantar sobre a cultura negra do jongo e do samba, sobre o Carnaval, sobre si mesmo e sobre o morro da Serrinha. Entre eles estão: a defesa de um carnaval que valorizasse o samba em oposição ao carnaval-espetáculo com Bum Bum Paticumbum Prugurundum50, que conquistou o último campeonato da escola em 1982; a homenagem ao morro com Fala Serrinha, a voz do samba sou eu mesmo, sim senhor!51 em 1992 e à própria escola com Império Serrano, um ato de amor52 no ano seguinte; a homenagem à sua baluarte com Dona Ivone Lara: o enredo do meu samba53, de 2012; e uma nova homenagem ao morro da Serrinha em 2015 com Silas canta Serrinha54.

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50 Carnavalescas Rosa Magalhães e Lícia Lacerda e samba de Aluízio Machado e Beto Sem Braço. 51 Carnavalescos Luiz Rangel, Paulo Resende e Wanderley Silva e samba de Beto Sem Braço, Jangada e Maurição. 52 Carnavalescos Cid Camilo e Sanclair Boiron e samba de Aluízio Machado, Arlindo Cruz, Bicalho e Acyr Marques. 53 Carnavalesco Mauro Quintaes e samba de Arlindo Cruz, Arlindo Neto e Tico do Império. 54 Carnavalesco Severo Luzardo e samba de Aluízio Machado, Arlindo Cruz, Arlindo Neto, Lucas Donato, Andinho Samara e Zé Glória.


Se durante o governo Vargas se estabeleceu uma proximidade entre o poder público e as favelas do Rio de Janeiro, com o desenvolvimento de laços clientelistas — nas palavras de Valladares (2005), “a luta contra a favela tinha como primeiro objetivo melhorar a sorte de seus habitantes, com a finalidade de obter o apoio popular indispensável à manutenção do regime” (VALLADARES, 2005, p. 62) —, os governos democráticos entre 1945 e 1964, por mais que tenham retomado a retórica antifavela, tampouco agiram por sua erradicação, identificando nelas bolsões de votos indispensáveis. A proteção às favelas visando ganhos políticos, partilhada tanto pelo regime varguista quanto pelos governos posteriores, explica (...) por que, de uma fase caracterizada pela estratificação social crescente, a forma urbana do Rio de Janeiro passa a apresentar, no período 1930-1964, características menos segregadoras ou, segundo alguns, mais “democráticas” (ABREU, 2006, p. 95).

O dito período democrático também se definiu pela busca de informações mais precisas, realizando-se um recenseamento de favelas do Rio em 1947 e as incluindo no Censo de 1950. A inclusão veio acompanhada de critérios para a identificação de favelas: número mínimo de 50 habitações; construções predominantemente de tábuas de madeira, folhas de flandres, chapas de zinco e assemelhados; propriedades dos terrenos de terceiros ou desconhecidas; ausência total ou parcial de redes infraestruturais (água, esgoto e energia elétrica); e ausência de “urbanização” (arruamento, numeração e emplacamento) (GUIMARÃES, 1953 apud VALLADARES, 2005). A pesquisa a respeito da ocupação dos moradores das favelas também passou a ser utilizada a fim de combater as noções de preguiça, ociosidade e marginalidade comuns nas análises, inclusive governamentais, sobre tais territórios. Como frisado pelo próprio diretor técnico do Instituto Brasileiro

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de Geografia e Estatística (IBGE) responsável pela organização do censo, Alberto Passos Guimarães, as favelas apresentavam: uma população ativa, predominantemente trabalhadora, ligada através de ocupações diversas aos principais ramos de atividade econômica desenvolvidos no Distrito Federal. (...) não se trata pois de uma população composta de marginais, mas de aglomerados urbanos integrados regularmente na vida social (GUIMARÃES, 1953 apud VALLADARES, 2005, p. 70).

O combate a essas concepções também foi encampado pelas organizações próprias das favelas, geralmente associações de moradores, de modo a dar mais legitimidade às lutas pela permanência nos territórios ocupados e pela instalação de serviços básicos, desde as primeiras décadas do século. A organização se dava mesmo antes do surgimento oficial das associações de moradores: Também no início do ano [de 1934], uma outra crise atingia pelo menos três escolas de samba: os sete mil moradores do Morro do Salgueiro estavam ameaçados de despejo pela ação de um italiano chamado Emílio Turano, dono de outros morros cariocas, que alegava ter comprado o Salgueiro por 20 contos de réis. A resistência dos salgueirenses foi liderada pelo sambista Antenor Gargalhada, que fez da Escola de Samba Azul e Branco, naquela oportunidade, a primeira associação de moradores de que se tem notícia no Rio de Janeiro. A escola contratou o advogado João Luís Regadas para defender os salgueirenses e, no dia 8 de janeiro, o juiz da Terceira Pretoria Cível, Nélson Hungria, deu ganho de causa ao pessoal do morro (CABRAL, 1996, p. 87).

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As três escolas mencionadas por Sérgio Cabral eram, além da Azul e Branco de Antenor Gargalhada55, a Depois Eu Digo e a Unidos do Salgueiro, que batalhavam pela preferência dos moradores do morro no bairro da Tijuca, hoje com uma população de pouco mais de três mil pessoas. Incapazes de fazer frente ao domínio estabelecido no fim da década de 40 e início da década de 50 pelas então “três grandes” — Portela, Estação Primeira de Mangueira e Império Serrano —, as escolas optaram por uma fusão, fundando em 1953 uma escola que pudesse representar todo o morro: o Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro. Inicialmente rejeitando a união, a Unidos do Salgueiro foi extinta pouco tempo depois e seus membros passaram a figurar nos quadros da nova escola. Em 1954, seu primeiro desfile, a escola já conseguiu um excelente terceiro lugar, atrás de Mangueira e Império, mas à frente da Portela. Seria, no entanto, na década seguinte que o Salgueiro realmente faria história. A segunda colocação de 195956 da agremiação chamou atenção por tratar o desenvolvimento plástico do enredo, encabeçado pelo casal Dirceu e Maire Louise Nery, de maneira diferenciada, deixando de lado os carros alegóricos em favor de adereços de mão e adotando figurinos mais cenográficos, em vez de “inspirados na pompa das peças de revista” (PIRES, 2020). Mas é a partir do convite de Nelson de Andrade, importante comerciante do bairro da Tijuca, envolvido financeiramente e administrativamente com o Salgueiro, a Fernando Pamplona57, cenógrafo do Teatro Municipal, pra assumir o Carnaval da escola a partir do ano seguinte, que se iniciou a chamada “revolução salgueirense”. 55 Antenor Santíssimo de Araújo (1909-1941). 56 G.R.E.S. Salgueiro, 1959: Viagem Pitoresca através do Brasil – Debret. Carnavalescos Dirceu e Marie Louise Nery e samba de Djalma Sabiá e Duduca. 57 Fernando Pamplona (1926-2013).

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A revolução começou já em 196058 pela escolha do enredo a ser retratado pelo Salgueiro: Trazer o “Quilombo dos Palmares” era trocar a lente pela qual se observa o Carnaval, com outros corpos como protagonistas e personagens principais da festa na sua discursividade. Era deixar de adotar a visão de uma figura branca europeia sobre o Brasil e entender o Salgueiro como um templo negro, passando pelo olhar daqueles que, de fato, construíram o país (SILVEIRA, 2020).

Era uma revolução porque, se as escolas sempre trouxeram consigo em sua musicalidade e corporeidade a origem negra, durantes as primeiras décadas de existência, como forma de buscar uma aceitação social mais ampla tanto pelo público quanto pelos governos, os enredos retratados eram quase que exclusivamente de caráter nacionalista, exaltando figuras e acontecimentos da história oficial brasileira: Certos eventos também parecem ter seduzido com mais constância as agremiações. A proclamação da Independência, a Inconfidência Mineira, a chegada da corte de Dom João, a fundação do Rio de Janeiro, o descobrimento do Brasil e as batalhas da Guerra do Paraguai aparecem com muito mais constância do que qualquer evocação, por exemplo, aos morros cariocas, redutos de sambistas (FABATO; SIMAS, 2015, p. 27).

Mas a inovação que marcou o desfile salgueirense de 1960 não ficou restrita ao desenvolvimento do enredo. A parte plástica do desfile, 58 Carnavalesco Fernando Pamplona e samba de Anescar Rodrigues e Noel Rosa de Oliveira. Acima, morro dos Salgueiro no bairro da Tijuca, Zona Norte. Abaixo, quadra dos Acadêmicos do Salgueiro, na rua Silva Teles.

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capitaneada por Pamplona mas desenvolvida também pelo casal Nery, que permaneceu na escola, por Arlindo Rodrigues, figurinista e auxiliar de Pamplona no Municipal, e pelo aderecista Nilton Sá, também rompeu com o lugar-comum das apresentações das escolas. Figurinos geométricos, com estampas de forte inspiração africana, e reproduções de vestes de escravos e quilombolas deram o tom da apresentação. Não foi, no entanto, uma virada fácil: Um dos primeiros e principais obstáculos que Pamplona e seus companheiros encontraram: quase ninguém queria sair de “negro”. Se não tivesse chapéu emplumado, capa de cetim com bordados de arminho, roupa de dama antiga com peruca de Maria Antonieta, camisa de seda pura, terno panamá ou de linho S-120, ou sapato de verniz, não servia. Pé no chão e túnica de algodãozinho pintada com desenhos africanos, nem pensar. Foi dureza. Ninguém queria sair fantasiado de pobre, pois já bastavam os outros dias, quando esta é a realidade obrigatória (COSTA, 1984, p. 93).

Dentro desse processo de renovação temática e estética encampada pela escola do morro do Salgueiro, destacam-se ainda os desfiles de: 1963, que insere de vez no imaginário popular a figura de Xica da Silva59; 1964, com a história de Chico Rei60; 1969, em homenagem à Bahia de todos os deuses61; e 1971, com Festa para um rei negro62. Ficaria a cargo do Salgueiro também 59 Carnavalesco Arlindo Rodrigues e samba de Anescar Rodrigues e Noel Rosa de Oliveira. 60 Carnavalesco Arlindo Rodrigues e samba de Binha, Djalma Sabiá e Geraldo Babão. 61 Carnavalescos Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues e samba de Bala e Manuel Rosa. 62 Carnavalescos Fernando Pamplona, Arlindo Rodrigues, Joãosinho Trinta e Maria Augusta e samba de Zuzuca. Acima, cena de Quilombo dos Palmares, desfile de 1960 do Salgueiro que marca o início de um processo de renovação temática e estética encabeçado pela escola tijucana. Abaixo, ala do minueto, coreografada por Mercedes Batista, no desfile de 1963, Xica da Silva.

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introduzir, no início da década de 70, um dos artistas mais consagrados da festa: o carnavalesco Joãosinho Trinta63. Durante esse período, o Salgueiro também abordou a história do próprio Carnaval nos desfiles de 1965, com História do carnaval carioca — Eneida64, e 1970, com Praça Onze, carioca da gema65. Em 1972, um enredo curioso e jamais repetido: a homenagem de uma das grandes escolas cariocas a outra e seu morro, em Nossa madrinha, Mangueira querida66. Já em 1986 a escola conta a história da revolução salgueirense em Tem que se tirar da cabeça aquilo que não se tem no bolso — Tributo a Fernando Pamplona67. Em 1989, uma retrospectiva dos enredos negros da escola com Templo negro em tempo de consciência negra68 e, em 2003, de toda a história da agremiação com Salgueiro, minha paixão, minha raiz — 50 anos de glórias69. Ao mesmo tempo que surgia a vermelho e branca do Salgueiro, outro morro da Zona Norte, hoje com quase seis mil habitantes, vizinho do morro de Mangueira e do bairro de São Cristóvão, se unia em uma só agremiação: o Grêmio Recreativo Escola de Samba Paraíso do Tuiuti, fundado em 1954. 63 João Jorge Clemente Trinta (1933-2011). 64 Carnavalescos Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues e samba de Geraldo Babão e Valdelino Rosa. 65 Carnavalescos Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues e samba de Duduca, Omildo, Miro e Silvio. 66 Carnavalesco Fernando Pamplona e samba de Zuzuca. 67 Carnavalescos Mário Monteiro, Ney Ayam e Yarema Ostrower e samba de Jorge Melodia, Paulo Emílio, Bicho de Pena e Marcelo Lessa. 68 Carnavalescos Flávio Tavares e Luiz Fernando Reis e samba de Alaor Macedo, Arizão, Demá Chagas, Helinho do Salgueiro e Rubinho do Afro. 69 Carnavalescos Renato e Márcia Lage e samba de Claudinho, Leonel, Luizinho Professor, Serginho 20 e Sidney Sã. Acima, o morro do Tuiuti, vizinho ao morro de Mangueira. Abaixo, quadra da escola de samba Paraíso do Tuiuti, sob um viaduto em São Cristóvão, zona norte do Rio.

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A escola narrou a história do carnaval carioca em 1971, com Rio, carnaval e batucada70, e 1978, com Carnaval de ontem e de hoje. A história do bairro de São Cristóvão foi contada em duas oportunidades pela agremiação: em 1968, com São Cristóvão, bairro imperial71, e em 2006, com O Imperador morava ali, do outro lado do Tuiuti72.

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O crescimento dos subúrbios73 cariocas e da baixada fluminense a partir da década de 30, seguindo os eixos das linhas de trem, levou à instalação de indústrias e à formação de favelas em toda a Grande Rio. Na maioria dos casos, a instalação das indústrias, e portanto a concentração de empregos, levou à formação de favelas nas proximidades, mas a concentração de mão de obra barata nesses territórios também era fator de atração às indústrias: Daí, se o espaço formal (legalizado, oficial, sob controle burocrático) oferecia apenas uma localização física, oferecia, por outro lado, uma série de opções próximas, ou seja, terrenos ainda não ocupados, seja por apresentarem dificuldades à promoção imobiliária organizada (morros íngremes, mangues,

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70 Carnavalesco Júlio Mattos e samba de Noca da Portela e Poliba. 71 Carnavalesco Júlio Mattos. 72 Carnavalescos Marcos Januário e Marcelo Andrade e samba de Du Pagode, Fabio Malafaia, J. Junior e Marcelo Pagodeiro. 73 No Rio, o termo “subúrbio” é geralmente utilizado para descrever os bairros afastados do centro da cidade, na maioria das vezes carentes de infraestrutura urbana e serviços básicos. Comparável a “periferia” em São Paulo.


margens inundáveis de rios), seja por decisão deliberada de seus proprietários (reserva de valor). A decisão de ocupar ilegalmente (invadir) esses terrenos já havia sido tomada nas décadas anteriores. Este processo restringia-se, entretanto, às áreas centrais e suas proximidades, já que aí estava quase todo o emprego. O deslocamento das indústrias em direção aos subúrbios e o desenvolvimento da zona sul descentralizaram, entretanto, as fontes de emprego e, com elas, também as favelas (...). A localização de favelas nas proximidades das áreas industriais já era uma regra bastante comum, sendo que, em alguns casos, como o Jacarezinho, era mesmo um dos fatores determinantes da localização de algumas indústrias, que buscavam mão de obra farta, barata e espacialmente concentrada (ABREU, 2006, p. 95).

Uma das regiões para a qual se expandiu o tecido urbano, com suas indústrias e favelas, foi o bairro de Padre Miguel, na zona Oeste, onde se formou, em uma área alagadiça, terreno que “não valia um vintém”, a favela de Vila Vintém, comunidade hoje com mais de 15 mil habitantes. Ali passaram a morar trabalhadores da estrada de ferro — o terreno era próximo à estação de Moça Bonita — e operários da construção civil de obras próximas. Em rápida sucessão, emergem duas escolas na favela: em 1955, a partir do time de várzea Independente Futebol Clube, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel, a estrela-guia da zona Oeste; e, dois anos depois, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos de Padre Miguel, o boi vermelho da Vila Vintém. A Unidos de Padre Miguel ainda tem sua quadra social funcionando dentro da comunidade, enquanto a Mocidade, que tinha sua quadra oficial lá até 2012, inaugurou a maior quadra dentre as escolas de samba do Rio, na Avenida Brasil, fora mas ainda próxima à favela. O local antigo foi transformado em espaço para o desenvolvimento de projetos sociais e culturais. 71


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Nos anos 70, apadrinhada pelo famoso bicheiro Castor de Andrade — até hoje representado pela silhueta de um castor ao lado do escudo da escola — a Mocidade ingressou definitivamente no grupo das grandes escolas cariocas, conquistando seis vezes o título de campeã. Já a Unidos de Padre Miguel transitou por toda a sua história nos grupos inferiores do carnaval carioca. Já em 1958, seu segundo ano de desfile oficial, a Mocidade narrou a história do samba e do Carnaval com Apoteose do samba74, como faria também nos carnavais de 1961, com Carnaval carioca75; 1973, com Rio Zé Pereira76; 1977, com Samba, marca registrada77; e 1981, com Abram alas para a folia, aí vem a Mocidade78. A Unidos de Padre Miguel, por sua vez, contou a história da festa em 1985, com Folia, amor e fantasia79, e 2005, com Abram alas que eu quero passar: sou carnaval carioca, sou Unidos de Padre Miguel80. Na década seguinte, mais duas escolas de samba conectadas a favelas nascem no Rio. Na Zona Sul, em Botafogo, é fundado em 1961 o Grêmio Recreativo Escola de Samba São Clemente. Apesar da identificação com toda a Zona Sul, por ser uma das poucas escolas da região, a agremiação de Botafogo considera parte de sua comunidade o morro do Dona Marta, 74 Carnavalesco Ari de Lima e samba de Cleber e Toco. 75 Carnavalesco Ari de Lima e samba de Aloísio e Tio Dengo. 76 Carnavalesco Clóvis Bornay e samba de Edu e Tião da Roça. 77 Carnavalesco Augusto Henrique e samba de Dico da Viola e Jurandir Pacheco. 78 Carnavalescos Ecila Cirne, Edmundo Braga e Paulino Espírito Santo e samba de Ney Vianna e Zezinho. 79 Carnavalesco Valdir Madureira e samba de Jorge Andorinha e Carlinhos Caldeira. 80 Carnavalesco André Cezari e samba de Fernando Mansinho, Marquinho do Cavaco, Fernando Piá, Paulo Henrique e Toninho do Trayller. Acima, quadra da Unidos de Padre Miguel, dentro da favela de Vila Vintém, na zona oeste do Rio de Janeiro. Abaixo, a quadra da Mocidade Independente, conhecida como Maracanã do Samba por ser a maior dentre as escolas cariocas, na Avenida Brasil.

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ou Santa Marta81, favela de quatro mil habitantes. Conhecida por enredos críticos e irreverentes, especialmente nas décadas de 80 e 90, a São Clemente retratou, em 1997, a história do bairro, com A São Clemente Botafogo na Sapucaí82. Já na Zona Norte, no bairro de Lins de Vasconcelos, fruto da fusão das escolas Filhos do Deserto e Flor de Lins, nasce em 1963 a Sociedade Recreativa Escola de Samba Lins Imperial. A comunidade da escola é formada pelas favelas do Complexo do Lins, de mais de 13 mil habitantes. A escola cantou a história do Carnaval em 1980, com Guarda velha, velha guarda83, e, em 2011, desenvolveu um enredo sobre as favelas: Um lugar chamado favela84. Durante as décadas de 70 e 80, o espetáculo proporcionado pelas escolas de samba foi se agigantando, culminando com a construção, em 1984, do Sambódromo da Marquês de Sapucaí. O local escolhido para a Passarela Professor Darcy Ribeiro — nome oficial da pista, em homenagem ao antropólogo e então vice-prefeito do Rio que encampou o projeto de construção e cunhou o termo “sambódromo” — foi, simbolicamente, o bairro do Estácio, berço do samba praticado pelas escolas, perto da Praça Onze e da Avenida Presidente Vargas, históricos locais de desfile das agremiações. O projeto, a cargo do arquiteto Oscar Niemeyer, contemplou a construção 81 Ainda assim, a favela possui sua própria escola de samba, com sede no morro, o G.R.E.S. Mocidade Unida do Santa Marta. 82 Carnavalesco Jaime Cezário e samba de Ricardo Góes, Ronaldo Soares, Chocolate, Fernando de Lima e Nivaldo. 83 Carnavalesco José Félix e samba de Valdir e Guiné. 84 Carnavalesco Eduardo Minucci e samba de João Banana, Charles Braga, Torres de Pilares, Tião Pinheiro, Iuri Cruz e Wallace. Acima à esq., morro do Dona Marta, no bairro de Botafogo, Zona Sul. Acima à dir., quadra da São Clemente na Avenida Presidente Vargas, zona central do Rio. Abaixo à esq., complexo de favelas do Lins, na Zona Norte. Abaixo à dir., quadra da Lins Imperial.

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do que se tornou o símbolo máximo do espaço, o arco da Praça da Apoteose, mas não foi integralmente concretizado, tendo sido construídas apenas as arquibancadas de um dos lados da pista de desfiles. Apenas no ano de 2011 foram edificadas as demais arquibancadas, completando o projeto original. Só na chamada “era Sambódromo” a maior favela do Rio finalmente ganhou sua própria escola de samba: em 1988, nascia o Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos da Rocinha. A Rocinha, na Zona Sul, entre os bairros da Gávea e São Gonçalo, é uma das maiores favelas do país, contando atualmente quase 70 mil habitantes. A escola de samba, fruto da união de três blocos do morro, esteve no Grupo Especial apenas em duas ocasiões, sem conseguir permanecer na elite.

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Se os enredos apresentados pelas escolas de samba do Rio a partir da década de 60 deixaram de lado as homenagens nacionalistas aos acontecimentos e personagens da história oficial brasileira em favor de um olhar mais voltado para si — para as próprias escolas, para as favelas e para a população majoritariamente negra que as compõe e que deu origem a toda essa manifestação —, o início do século XXI se configurou como um retrocesso. Não pelo retorno a enredos de cunho nacionalista, mas pelo abandono dessas raízes em prol do lado espetacular da festa. O crescimento dos desfiles enquanto negócio e enquanto espetáculo tornou necessários grandes investimentos, maiores do que o orçamento Acima, a Rocinha, maior favela do Rio, com cerca de 70 mil habitantes. Abaixo, muito próxima à entrada da comunidade, a quadra da Acadêmicos da Rocinha, escola fundada já na “era Sambódromo”.

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disponível às escolas mediante subvenção da prefeitura e venda de ingressos e direitos de transmissão, para a produção de desfiles que se mostrassem competitivos. A busca por novas fontes de renda levou muitas escolas à venda de seus enredos. Essa mudança se deu tanto diretamente, através dos chamados enredos patrocinados, em que escolas desenvolvem enredos voltados à publicidade de algum produto — de destinações turísticas a iogurte, como no desfile Da seiva materna ao equilíbrio da vida85, da Unidos do Porto da Pedra em 2012 —, ou indiretamente, tornando os enredos mais palatáveis, ou seja, menos contestatórios ou politicamente abertos, para o investimento de empresas privadas. A partir de meados da década de 2010, no entanto, a crise financeira do país, aliada à gestão do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), que progressivamente diminuiu os repasses financeiros às escolas, inviabilizou o carnaval “do luxo”, cortando os custos dos desfiles e promovendo uma renovação nos enredos apresentados. Voltaram a se tornar mais comuns os chamados enredos autorais, criados e desenvolvidos pelas escolas e seus carnavalescos sem amarras de investimentos privados. Em 2019, a Estação Primeira de Mangueira produziu o ponto alto, até aqui, desse processo de renovação. O enredo História pra ninar gente grande, do jovem carnavalesco Leandro Vieira, propôs justamente uma revisão da história oficial do Brasil, revelando outros lados dos “heróis emoldurados”, ao mesmo tempo que trazia à tona os heróis, anônimos ou não, da “história que a história não conta”. O samba, obra-prima composta por Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mama, Márcio Bola, Ronie Oliveira, Danilo Firmino, Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo, evidencia o “país 85 Carnavalesco Roberto Szaniecki e samba de Vadinho, Fernando Macaco, Tião Califórnia, Cici Maravilha, Bento, Denil e Oscar Bessa. Segunda alegoria da Mangueira em 2019 critica o genocídio indígena promovido pelos exaltados bandeirantes através de reprodução pichada do Monumento às Bandeiras de São Paulo, em desfile que contestou figuras glorificadas da história brasileira.

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que não tá no retrato”, o Brasil real, construído pelos “heróis de barracões”, que trabalham nos barracões das escolas de samba e moram nos barracões das encostas de morro: Brasil, meu nego, deixa eu te contar A história que a história não conta O avesso do mesmo lugar Na luta é que a gente se encontra Brasil, meu dengo, a Mangueira chegou Com versos que o livro apagou Desde 1500, tem mais invasão do que descobrimento Tem sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado Mulheres, tamoios, mulatos Eu quero um país que não tá no retrato Brasil, o teu nome é Dandara E a tua cara é de Cariri Não veio do céu nem das mão de Isabel A liberdade é um dragão no mar de Aracati Salve os caboclos de julho Quem foi de aço nos anos de chumbo Brasil, chegou a vez De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês Mangueira, Tira a poeira dos porões Ô abre-alas, Pros seus heróis de barracões Dos brasis que se faz um país De Lecis, Jamelões São verde e rosa as multidões Indígenas e negros, apagados da história brasileira, ocupam retratos emoldurados, na comissão de frente de História pra ninar gente grande, desfile da Estação Primeira de Mangueira em 2019.

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QUEM TE VIU, QUEM TE VÊ Chico Buarque de Hollanda 1967 Você era a mais bonita das cabrochas dessa ala Você era a favorita, onde eu era mestre-sala Hoje a gente nem se fala, mas a festa continua Suas noites são de gala, nosso samba ainda é na rua Quando o samba começava, você era a mais brilhante Se a gente se cansava, você só seguia adiante Hoje a gente anda distante do calor do seu gingado Você só dá chá dançante, onde eu não sou convidado O meu samba se marcava na cadência dos seus passos O meu sono se embalava no carinho dos seus braços Hoje de teimoso eu passo bem em frente ao seu portão Pra lembrar que sobra espaço no barraco e no cordão Todo ano eu lhe fazia uma cabrocha de alta classe De dourado lhe vestia pra que o povo admirasse Eu não sei bem com certeza, por que foi que um belo dia Quem brincava de princesa acostumou na fantasia Hoje eu vou sambar na pista, você vai de galeria Quero que você assista na mais fina companhia Se você sentir saudade, por favor não dê na vista Bate palmas com vontade, faz de conta que é turista Arco da Apoteose, símbolo do Sambódromo da Marquês de Sapucaí, com o morro da Mineira ao fundo.

Hoje o samba saiu, procurando você Quem te viu, quem te vê Quem não a conhece não pode mais ver pra crer Quem jamais a esquece não pode reconhecer



SETOR 2

é nas vielas que nasce o mais puro samba

Quando o Grêmio Recreativo Escola de Samba União da Ilha do Governador pisou a Marquês de Sapucaí para seu desfile de 20201, os relógios da avenida marcavam três horas e 52 minutos da madrugada de segunda-feira de Carnaval. Acabara de deixar a passarela a Acadêmicos do Grande Rio, com um arrebatador desfile para Joãozinho da Gomeia, histórico pai de santo de Caxias, cujos problemas em evolução fizeram com que a escola perdesse o título, no desempate, para a Unidos do Viradouro e sua homenagem ao grupo musical Ganhadeiras de Itapuã. A escola insulana atraiu certa atenção no período pré-carnavalesco por ter adotado um modelo de escolha de samba-enredo pouco usual. Em lugar da tradicional sinopse descritiva como subsídio para a produção dos sambas, a escola optou por divulgar apenas o título do enredo e sediar uma conversa dos compositores com o homem por trás da ideia. Laíla2, cria do morro do Salgueiro, construiu grande história como diretor de carnaval e harmonia na vermelho e branco tijucana e na Beija-Flor de Nilópolis, e chegava à Ilha com o objetivo de torná-la competitiva e conquistar o primeiro título da história da agremiação. 1 A parte deste capítulo que se refere aos desfiles de 2020 foi transformada, junto com Gabriel Haddad, em artigo publicado no dossiê especial de Carnaval de dezembro de 2020 da Policromias — Revista de estudos do discurso, imagem e som, do Laboratório de Estudos do Discurso, Imagem e Som do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Labedis/MN/UFRJ). Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/policromias/article/ view/38442/21784. 2 Luiz Fernando Ribeiro do Carmo (1943-). O mestre-sala Phelipe Lemos e a porta-bandeira Dandara Ventapane, com uma favela estilizada em sua saia, representam o malandro e a cabrocha no desfile de 2020 da União da Ilha do Governador.

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O enredo Nas encruzilhadas da vida, entre becos, ruas e vielas; a sorte está lançada: salve-se quem puder! era baseado na experiência de Laíla crescendo em uma favela da cidade do Rio de Janeiro, e a ausência de sinopse era uma estratégia do diretor pra deixar os compositores livres para criarem com base em sua própria vivência de moradores das comunidades. Apesar da ideia que a princípio daria aos compositores um papel mais ativo na construção do enredo da escola, a inovação acabou não rendendo os frutos esperados e o samba escolhido foi dos mais criticados do Grupo Especial por público e imprensa especializada3. Estreitamente vinculada desde sua origem com as escolas de samba, a favela não foi tema tratado exclusivamente pela União da Ilha no Grupo Especial do Carnaval de 2020. Além de referências pontuais, como no samba da Estácio de Sá4, na comissão de frente da Paraíso do Tuiuti5 ou no último carro da Portela6, a favela também foi elemento central 3 Júri formado pelo site Carnavalesco, um dos principais veículos de cobertura do Carnaval, colocou o samba dos compositores Márcio André, Márcio André Filho, Rafael Prates, J. Alves, Daniel e Marinho na última colocação dentre as escolas do Grupo Especial. 4 O samba da escola, assinado por Edson Marinho, Jorge Xavier, Júlio Alves, Jailton Russo, Ivan Ribeiro e Dudu Miller, se refere ao morro de São Carlos, no enredo Pedra da carnavalesca Rosa Magalhães, como “pedra fundamental do samba”, lembrando a importância da comunidade para o surgimento e desenvolvimento do samba urbano carioca. 5 No enredo O Santo e o Rei: encantarias de Sebastião do carnavalesco João Vítor Araújo e do jornalista João Gustavo Melo, que relaciona São Sebastião ao rei de Portugal Dom Sebastião, a escola do morro do Tuiuti representa, na comissão de frente coreografada por Márcio Moura, um altar ao santo no alto do morro. 6 No enredo indígena Guajupiá: terra sem males sobre a história do Rio de Janeiro dos carnavalescos Renato e Márcia Lage, a Portela apresenta no último carro uma favela sob grandes edifícios espelhados, figurando “(...) sepultados sob os concretos e asfaltos, pontes e viadutos, aqueles que um dia reinaram absolutos nesse paraíso perdido”. Dom Sebastião, em sua aparição como o touro negro da Praia dos Lençóis, sobe o Morro do Tuiuti para saudar São Sebastião, na comissão de frente do Paraíso do Tuiuti em 2020.

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das narrativas propostas por Estação Primeira de Mangueira, Mocidade Independente de Padre Miguel e Unidos da Tijuca. Na Mangueira, como território da aproximação biográfica de Jesus Cristo à contemporaneidade brasileira; na Mocidade, como pano de fundo da juventude e elemento definidor da biografia de Elza Soares; e na Tijuca, como objeto de estudo e possibilidade de futuro dentro do enredo sobre Arquitetura e Urbanismo. A despeito da recorrência do tema, as propostas discursivas e estéticas das escolas tiveram grande variação, proporcionando ao público da Sapucaí um mosaico de entendimentos sobre a favela. Na União da Ilha, o desfile foi estruturado por Laíla a partir do samba escolhido, cantado do ponto de vista de uma mulher negra moradora da favela que se pergunta em que mundo viverá a criança que é gestada em seu ventre. Sem ignorar as carências da vida em uma favela, a sinopse se debruça sobre diversos aspectos positivos da comunidade: a relação de fraternidade desenvolvida pelos moradores a partir dos problemas em comum e da busca de soluções; a felicidade, em que pesem as barreiras impostas; a valentia pra enfrentar a dura vida cotidiana; a fé como instrumento dessa luta; e a gambiarra, o jeitinho, a habilidade pra encontrar soluções inusitadas e criativas. O texto aponta também a crença inabalável e o trabalho dos favelados em prol de um Brasil melhor, tributando à injustiça social e à desigualdade de renda a origem dos problemas nas favelas e lembrando as promessas vazias feitas por políticos a cada ciclo eleitoral. No entanto, o desenvolvimento plástico do desfile, encabeçado pelos experientes carnavalescos Cahê Rodrigues e Fran Sérgio, junto a Laíla, não se adaptou ao proposto pela sinopse e pelo samba. À guisa de um realismo exacerbado — levado ao limite no segundo carro alegórico que nada era além de um ônibus municipal —, a favela retratada no abre-alas da escola acaba por dar maior destaque aos problemas que estão presentes nas comunidades, reforçando estereótipos negativos que associam a favela 88


exclusivamente à pobreza e à violência. Quase não há uso de cores e brilho, elementos fundamentais da estética carnavalesca e associados à alegria característica da festa, e o cenário construído é intencionalmente escuro, sujo e mal-acabado. O resultado, excessivamente sombrio, não alcança o próprio objetivo de apresentar um retrato fiel das favelas em que vivem milhões de pessoas pela cidade do Rio de Janeiro e pelo país. O abre-alas é também ladeado por alguns helicópteros7 que, apesar da tentativa de crítica a partir de sua ressignificação como “da paz”, não deixam de remeter insensivelmente à brutalidade policial a que muitos favelados estão sujeitos quase que diariamente. Não custa lembrar aqui a reiterada defesa do governador afastado do Estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), do uso de metralhadoras e franco-atiradores em helicópteros da polícia militar e civil, incluindo um em que esteve a bordo em Angra dos Reis que “acidentalmente” metralhou uma tenda de fiéis evangélicos8. O então governador chegou a dizer que, se autorizado, gostaria de “mandar um míssil naquele local e explodir aquelas pessoas”9, se referindo à Cidade de Deus, favela da zona oeste da capital carioca imortalizada pelo livro homônimo de Paulo Lins. As opções estéticas presentes no primeiro carro dão o tom do resto do desfile da Ilha, que apresenta os mesmos problemas. A maioria das alas tem parte de seus figurinos constituídos por tecidos rasgados, pouco uso de cor, com predominância de beges e marrons, pintando um quadro estereotipado e datado da suposta aparência dos moradores das favelas. Exceção e ponto alto do desfile, a terceira alegoria destaca o 7 Visível na imagem das próximas páginas, logo abaixo da lua de São Jorge. 8 Como publicado pelo jornal O Globo em reportagem intitulada Helicóptero com Witzel a bordo metralhou tenda de orações em Angra dos Reis, de 8 de maio de 2019. 9 Conforme matéria publicada pelo mesmo jornal intitulada Witzel causa polêmica ao falar em ‘mandar míssil’ para explodir traficantes na Cidade de Deus, de 14 de junho de 2019.

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trabalho fundamental dos favelados para o funcionamento e crescimento do país, estabelecendo contraste com a estética predominante através da fantasia azul brilhante dos operários da construção civil e da escultura que representa o próprio país, elemento central do carro. A última alegoria volta a representar uma favela, desta vez destacando as festas e celebrações que acontecem nas comunidades, instaurando certo contraste com a estética dominante no resto do desfile, mas com pouca clareza na identificação dos espaços como pertencentes a uma favela. A identificação da favela enquanto problema, isto é, situação a ser solucionada ou erradicada, que se destacou na abordagem do tema pelo desfile da Ilha, já se apresenta nas primeiras décadas do século XX por parte de uma camada influente da sociedade carioca, como relatado por Valladares (2005): A descoberta da favela foi logo seguida por sua designação como problema a ser resolvido. Aos escritos de jornalistas vêm juntar-se vozes de médicos e engenheiros, preocupados com o futuro da cidade e sua população. O que fazer da favela? Debate estabelecido a partir do início do século, que já nos anos 1920 desencadeia a primeira grande campanha de denúncia contra a “lepra da esthetica” (...). Engenheiros e médicos, considerando o meio ambiente como fonte direta dos males físicos e morais dos seres humanos, estabeleceram propostas técnicas para o tratamento desses males urbanos (...). Dentro dessa lógica particular, as favelas seriam elementos que tanto se opunham à racionalidade técnica quanto à regulação do conjunto da cidade. Acabar com elas seria, então, uma consequência “natural” (VALLADARES, 2005, p. 36).

Nas páginas anteriores, representação da favela no carro abre-alas da União da Ilha do Governador em 2020. Na página ao lado, a favela representada na última alegoria da escola.

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Importante apontar que as considerações a respeito da favela, que se baseavam à época na concepção determinista e elitista de que a favela influiria negativamente sobre as ações dos indivíduos que viviam nesse ambiente, foram se modificando ao longo do tempo: E, desde que as favelas não podiam ser ignoradas como fato social, como questão sociológica, como demanda para a política pública, o debate entre aceitar e melhorar esses espaços ou eliminá-los se faz presente no Brasil. Em 1981, Machado da Silva apontava que esse debate já corria há duas décadas (sobretudo no Rio de Janeiro) e que, a despeito das variadas iniciativas do Estado, era importante reconhecer “um processo de urbanização de fato empreendido pelos moradores segundo suas conveniências”: humanas, financeiras, materiais, espaciais, políticas. Uma urbanização que é “não apenas uma estratégia de sobrevivência, mas principalmente uma forma de resistência a um contexto político-econômico excludente” (LEITÃO; SANTO AMORE, 2019, p. 18).

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Horas antes do desfile da União da Ilha, atravessara a avenida a escola do morro de Mangueira, defendendo o campeonato do ano anterior, novamente através do trabalho de Leandro Vieira, carnavalesco com quem a escola conquistou dois títulos em cinco carnavais. O enredo A verdade vos fará livre10 havia sido amplamente debatido no período pré-carnavalesco 10 Samba dos compositores Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo.


por pretender representar na avenida a biografia de Jesus Cristo de maneira a contestar sua imagem tradicional: branco, longos cabelos loiros e olhos azuis, em suma, de fisionomia europeia. A sinopse apresentada pela Mangueira critica a figuração tradicional de Jesus não apenas por ser pouco condizente com a de um homem nascido no Oriente Médio há dois mil anos11, mas também por ser utilizada como instrumento retórico para a manutenção de um modelo de sociedade racista, que teve a imagem de uma de suas personagens mais potentes embranquecida pela iconografia canônica. A sinopse se debruça então sobre o Cristo da Mangueira, que difere da visão moralista que acompanha a imagem clássica. Associa os valores representados por Jesus com a defesa dos oprimidos, assim como foi ele oprimido pelo poder vigente à época. Na relação mais relevante oferecida pela sinopse, propõe que, voltasse a nascer hoje, mas no Brasil, Jesus cresceria em uma favela, território dos oprimidos no país. E nasceria com a cara e a cor negra daqueles que são não apenas a grande maioria dos moradores das favelas, mas a maioria dos brasileiros12. Imagens poderosas continuam sendo oferecidas pela sinopse, como a do Cristo Redentor, representação mais famosa de Jesus no Brasil, que do topo de seu próprio morro, o Corcovado, abraça o Centro e as praias da zona sul carioca, dando as costas para os territórios periféricos a norte e oeste. O Carnaval aparece, então, como o momento em que as cruzes cotidianamente carregadas pelo povo pobre do país são abandonadas, liberando os corpos para um breve período de celebração. 11 Um dos estudos que contestam a representação tradicional de Cristo é apontado pela matéria da BBC Brasil O que os historiadores dizem sobre a real aparência de Jesus, de 28 de março de 2018. 12 Segundo dados do Censo de 2010 do IBGE, autodeclarados pardos e pretos somam mais de 50% da população brasileira. Cristo surge sobre o morro de Mangueira, no encerramento da encenação proposta pela comissão de frente da escola.

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A forte associação fomentada pela escola entre Cristo e as favelas brasileiras é destacada por Rennan Carmo (2019) em sua análise do enredo: O local do morro da Mangueira é cenário pensado como parte essencial nesta nova passagem de Cristo pela terra. Um Cristo brasilizado, que sobe o morro, vê a bala perdida, vê os poderes paralelos, vê o descaso governamental e vê sua própria escultura de costas pros que estão marginalizados. Estão, de fato, à margem da imagem de Cristo. Mas, com toda certeza, este mesmo Jesus consegue ver outras nuances de Mangueira, cujos tons nem sempre são valorizados. Afinal, é ele quem tem o poder de ressignificar a mazela em sorriso, dando força aos fracos (CARMO, 2019, p. 19).

A execução do desfile na avenida diverge um pouco do apresentado pela sinopse, adotando em grande medida linha mais biográfica. Assim, a primeira metade do desfile apresenta episódios decisivos da vida de Cristo inserindo representações contestatórias — corpos negros, indígenas e femininos — mas dentro do contexto histórico e iconográfico da época em que teria vivido. A comissão de frente, como preâmbulo da parte biográfica do desfile, apresenta uma inversão: um Cristo ainda branco, próximo da representação canônica, mas em trajes que misturam elementos históricos com uma estética urbana contemporânea. Na coreografia criada por Priscilla Mota e Rodrigo Negri, Jesus e seu grupo de amigos, ou apóstolos, portam a identidade visual de jovens periféricos, que sofrem com a violência dos “enquadros” da polícia militar a que estão sujeitos diariamente. A apresentação se encerra com a figura desse Cristo renascendo sobre a própria favela do morro de Mangueira.

O Calvário, quarta alegoria do desfile da Mangueira, representa um jovem negro crucificado no lugar de Jesus Cristo.

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Ainda dentro da seção biográfica do desfile, a rainha Evelyn Bastos vem representando uma face possível de Jesus — mulher, negra e moradora da favela da Mangueira — enquanto lidera os ritmistas da verde e rosa, cuja fantasia em preto e dourado e máscara de caveira, apesar de no enredo fazer referência explícita apenas à brutalidade romana que se abateu sobre os primeiros cristãos, evoca esteticamente as tropas do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da Polícia Militar do Estado Rio de Janeiro. Alcançado o momento da crucificação, o desfile abandona o desenvolvimento estritamente biográfico e, a partir da cruz como signo do martírio de Cristo, apresenta aqueles que são os marginalizados e martirizados da sociedade brasileira atual. Os figurinos adquirem contornos contemporâneos, com a cruz como elemento uniformizador das alas que representam as mães de santo perseguidas, as mulheres vítimas de violência doméstica e de feminicídio, e aqueles que, acusados e mesmo que não condenados, sofrem com a lógica punitivista do “bandido bom é bandido morto”. A cruz é também o elemento central do carro que encerra o setor, desta vez em tamanho monumental, trazendo, na figuração de cristo, o corpo de um jovem negro, com traços que o identificam com alguns jovens das favelas cariocas: cabelo platinado, bigode fino, brinco de ouro e uma tatuagem de cruz no pescoço. A escola chegou a ser criticada por ter colocado um “bandido”13 crucificado no lugar de Jesus. A alegoria que encerra o desfile representa, dentro do enredo biográfico, a ascensão de Cristo ao céu após a ressurreição, trazendo de 13 Deputado federal pelo PSL/RJ, Daniel Silveira assim classificou a representação de um jovem negro crucificado pela Mangueira, segundo noticiado pela Band em Mangueira pôs bandido no lugar de Jesus, diz deputado de ato que quebrou placa de Marielle, de 24 de fevereiro de 2020. Desenho de concepção do carnavalesco Leandro Vieira para a alegoria Jesus ascende ao céu, que encerra o desfile da Mangueira de 2020.

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maneira lúdica o morro da Mangueira, mas que poderia ser qualquer das muitas favelas do Rio, com casas coloridas de telhados de zinco, botecos com mesinhas nas calçadas apertadas, fios elétricos se entrecruzando, antenas parabólicas, roupas secando no varal e pipas multicoloridas. Na parte frontal, o corpo negro de Jesus, já fora da cruz, ascende, levado por dois balões em forma de coração, verde e rosa. O encerramento — fechando o ciclo iniciado pela comissão de frente com a segunda representação concreta do espaço de uma favela no desfile — adota estética mais leve, em tons pastéis. O espaço retém elementos que permitem facilmente identificálo como favela, mas retratada sob luz positiva, contestando a associação exclusiva e automática desses territórios com a pobreza e a criminalidade, sem glamorizar a precariedade.

* * * A minha felicidade mora nesse lugar Eu sou favela! O samba no compasso é mutirão de amor Dignidade não é luxo nem favor14

O refrão principal do samba encomendado pra embalar o desfile da Unidos da Tijuca no Carnaval de 2020 reflete a centralidade atribuída pela escola à favela no contexto urbano e arquitetônico do Rio de Janeiro. O enredo foi concebido como homenagem à arquitetura e ao urbanismo, 14 Samba oficial da Unidos da Tijuca para o Carnaval 2020, composto por Jorge Aragão, Dudu Nobre, André Diniz, Fadico e Totonho. A minha felicidade mora nesse lugar, alegoria que encerrou a passagem da Unidos da Tijuca pela Sapucaí em 2020 com uma favela “urbanizada”.

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com apoio institucional e inclusive financeiro do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR), no ano que o Rio sediaria o Congresso Mundial de Arquitetos e o Fórum Mundial das Cidades15. A justificativa produzida pela escola se aprofunda nas origens da agremiação do morro do Borel, resgatando a luta pelo espaço que ocuparam e pela dignidade da moradia e ressaltando importantes iniciativas, como a criação da União dos Trabalhadores Favelados (UTF) que a partir do morro reuniu lideranças de muitas favelas da zona central da cidade entre 1954 e 1964. No entanto, a sinopse proposta pelo carnavalesco Paulo Barros e por consequência a estrutura e o desenvolvimento plástico do desfile optaram por uma abordagem histórica e universalista, resgatando ala a ala construções e estilos importantes da história da arquitetura brasileira e mundial. No setor dedicado aos problemas enfrentados pelas cidades hoje, o foco é colocado sobre as mudanças climáticas do planeta, com uma única menção aos problemas habitacionais por meio de uma ala representando pessoas em situação de rua, desperdiçando assim a sensibilidade da escola no resgate de suas origens e de seu vínculo com o movimento de moradia. A favela é então relegada a segundo plano, aparecendo explicitamente apenas na última alegoria. Buscando figurar o que seria um possível futuro utópico para as favelas cariocas, com saneamento, educação, saúde, cultura etc., a concepção do carro acaba por cair em uma imagem pasteurizada, com cubos coloridos, as casas, dispostos ortogonalmente, alguns com palavras que identificam tipos de comércio e serviços, e placas solares no lugar de telhados. A homogeneização é tanta que dificulta a identificação daquele espaço como favela, isto é, sua distinção dos espaços da chamada cidade formal.

15 Ambos os eventos foram adiados para 2021 em virtude da pandemia da Covid-19.

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Em contraste com o apresentando plasticamente, o samba da escola coloca a favela em posição de destaque, por narrar o enredo do ponto de vista de um morador do morro do Borel que, apesar dos problemas, exalta o seu “cantinho”: Vem, é lindo o anoitecer Vai, eu morro de saudade Todo mundo um dia sonha ter Seu cantinho na cidade Como é linda a vista lá do meu Borel Luzes na colina, meu arranha-céu

Em análise da representação das favelas na Música Popular Brasileira, Jane Oliveira e Maria Hortense Marcier (1998) apontam para a beleza que é, de forma lírica, encontrada pelos compositores nas precariedades presentes nesses territórios e particularmente, como fizeram os autores do samba tijucano, na geografia dos morros, de lindas vistas e luzes na colina: Se, na voz de Geraldo Queiroz e Nélson Cavaquinho, mesmo os barracos de zinco adquirem beleza própria e passam a ser “castelos em nossa imaginação”, com mais razão ainda se poderia pensar que a particular situação geográfica das favelas, sobretudo no caso do Rio de Janeiro — sua localização em morros de onde se descortina uma vista privilegiada da cidade —, dificilmente deixaria de ser captada e enaltecida pela lente dos compositores. De fato, esse é um traço bastante explorado nas letras musicais que remetem à proximidade com o céu, à imponência dos morros e à beleza da paisagem como forma de exaltação do lugar (OLIVEIRA; MARCIER, 1998, p. 72).


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Enquanto a última alegoria da Tijuca cruzava o portão que marca o final do desfile, o rufar dos atabaques na concentração do outro lado da passarela anunciava a entrada na pista da Mocidade Independente de Padre Miguel. Escola popular da zona oeste da capital carioca, a história da Mocidade está profundamente conectada à favela de Vila Vintém. Favela em que, 90 anos antes, nascera a homenageada do desfile: Elza Gomes da Conceição, a Elza Soares. A vinculação da agremiação e da cantora com o mesmo território e a relevância da favela na trajetória de ambas é o ponto de partida do desfile. Desejo de longa data dos torcedores independentes, dado o estreito relacionamento de Elza com a escola, o enredo foi confiado a Jack Vasconcelos, carnavalesco que, apesar de assinar desfiles desde 2004, ganhou grande reconhecimento pelo vice-campeonato obtido em 2018 na Paraíso do Tuiuti. A sinopse do enredo Elza Deusa Soares16, escrita por Fábio Fabato parte do momento em que Elza é “descoberta” no show de talentos de Ary Barroso e, ao ser indagada pelo apresentador de onde teria saído, por sua miudez e roupas rotas, afirma vir do planeta fome. Embora biográfico, o enredo parte da vida de Elza pra falar sobre o Brasil, suas desigualdades e preconceitos. Nesse sentido, Elza é apontada como a voz de um Brasil amordaçado, mulher negra oriunda da Vila Vintém que representa milhões de mulheres e homens que formam as favelas espalhadas pelo país.

16 O samba escolhido para traduzir o enredo é de Sandra de Sá, Igor Vianna, Dr. Márcio, Solano Santos, Renan Diniz, Jefferson Oliveira, Professor Laranjo e Telmo Augusto. 105



Certas imagens oferecidas pela sinopse e que depois se materializariam no desfile são fundamentais pra entender a proposta da escola, como a lata d’água na cabeça, que era síntese da vida de Elza na favela, já que buscar água é a primeira atividade da rotina da menina, pautada pelo trabalho doméstico: água pra lavar roupa, água pra limpar a casa, água pra cozinhar. O uso da lata d'água enquanto símbolo lembra a obra fotográfica do antropólogo Anthony Leeds, que registrou a recorrência desse elemento na paisagem popular carioca do começo do século XX. A mesma lata que carrega a água é também instrumento de batuque improvisado mas fundamental para aquele que foi, durante décadas, o ritmo mais identificado com as favelas cariocas: o samba. Da mesma maneira, a fome que passa Elza não é apenas fome de comida, mas de tudo aquilo que é negado às populações de baixa renda do país: fome de educação, fome de saúde, fome de cultura, fome de justiça, fome de igualdade. A boca da menina que reclama das fomes é a mesma boca da mulher, cuja voz visceral projeta os anseios daqueles que estão ou já estiveram na mesma situação. A vida da menina Elza na favela17 é encenada pela comissão de frente, coreografada por Jorge Teixeira e Saulo Finelon, em espaço da pista ladeado por elementos cenográficos representando barracos de madeira. As latas d’água na cabeça carregadas por Elza e outras mulheres da favela são transformadas, após se unirem pra defender a menina do assédio de alguns homens, em cabelos black power, simbolizando a força de cada uma e, principalmente, a força coletiva das mulheres negras.

17 Nascida na favela de Vila Vintém, Elza se muda com a família, ainda pequena, pra outra favela, no Bairro de Água Santa, na zona Norte do Rio. Elza Soares, a homenageada do desfile de 2020 da Mocidade Independente de Padre Miguel, em frente aos elementos cenográficos da comissão de frente, que representam a favela de Vila Vintém, onde nasceu e passou parte da infância.



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O carro abre-alas da Mocidade traz, no segundo chassi, uma representação da favela, atrás de tripés em forma de louva-a-deus e do palco do show de Ary na primeira parte, coroada por uma lua formada por pratos vazios, evocando novamente a fome. Estilizada em tons de verde da escola, a favela de barracos de madeira é ao mesmo tempo um palco em que cada componente, em figurinos cujas formas remetem a roupas simples mas em tecidos brilhantes, tem no lugar do apoio para as mãos um microfone, lembrando que, assim como Elza se fez porta-voz, todos os favelados têm vozes que precisam ser escutadas. Apesar de na realidade se tratar de uma favela construída em terreno majoritariamente plano e horizontal, a Vila Vintém é retratada no abrealas da Mocidade com barracos empilhados como se em encosta de morro. Ainda que isso possa ser atribuído ao formato do carro alegórico, que propicia esse tipo de construção, parece interessante notar a associação imediata de favela com morro no imaginário carioca. Feita esta ressalva, chama atenção que o desfile opte por uma imagem estereotípica do que deve ser uma favela. Uma explicação possível é a predominância de representações na mídia de favelas das zona sul e central da capital que, com os terrenos planos ocupados pela cidade formal, se concentram nos morros. Fenômeno esse que não se configura na mesma medida nas zonas Norte e Oeste, periféricas da cidade, em que as favelas estão inseridas em tecido urbano majoritariamente plano. Importante ressaltar também que essa representação única da favela enquanto morro é, em si própria, mercadoria, vendida enquanto imagem e enquanto produto turístico. O desfile segue de maneira biográfica, referenciando diversos acontecimentos da vida e facetas da obra da homenageada. O último setor, que se debruça sobre os trabalhos mais recentes de Elza e seu engajamento político explícito, traz a ala Canto que reverbera: a carne mais barata não Nas páginas anteriores, Nasce uma estrela, abre-alas da Mocidade que retrata a juventude de Elza na favela. Ao lado, crianças carregam latas d'água na cabeça na favela Macedo Sobrinho, na década de 60, em fotografia de Anthony Leeds.

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está mais de graça cujo figurino apresenta uma favela multicolorida, caixas de som, black power e um punho cerrado — a resistência da favela negra através da voz e da música. Desenhos em cores cítricas da favela compõem o último carro da escola que, carregando a homenageada, oferece um banquete pra saciar as fomes múltiplas e bocas pra gritar as injustiças. Recorrente em anos recentes, a temática da favela tem se provado importante ponto de identificação entre os enredos propostos pelas agremiações carnavalescas do Rio de Janeiro e as comunidades que tornam os desfiles realidade, compostas frequentemente por moradores das favelas cariocas. Os desfiles do ano de 2020 parecem representar, ao menos no Grupo Especial, um ponto importante desse processo, apresentando uma gama de representações que exemplificam as diferentes abordagens e visões a respeito do tema que podem ser oferecidos por uma escola. Ainda que seja protagonista do samba da Unidos da Tijuca, a favela é, de certa maneira, evitada pelo desenvolvimento do enredo sobre arquitetura e urbanismo, que opta por abordagem mais histórica e universal do tema. Relegado a segundo plano, o tema da favela não é aprofundado, o que se reflete nas soluções estéticas pouco criativas em sua representação no último carro da escola. Nesse sentido, a proposta da escola do Borel, mesmo promissora em sua justificativa e samba, pouco oferece à discussão dos discursos construídos em torno da favela pelas escolas de samba. Na contramão, a União da Ilha, em virtude de apresentar a favela como objeto central do desfile, desdobra diferentes aspectos da vida nas favelas. Ainda que a sinopse rompa com alguns conceitos comumente associados à favela, a realização estética do desfile acaba por reforçar para o público esses mesmos estereótipos. Os desfiles de Mangueira e Mocidade estabelecem forte oposição com essas duas representações da favela. No desfile da Estação Primeira, 112


a favela é identificada como o território daqueles que são oprimidos por uma sociedade injusta. Associando tal opressão àquela sofrida e combatida por Cristo, exalta as populações faveladas através de uma representação leve e despojada. Na homenagem a Elza Soares realizada pela agremiação de Padre Miguel, a favela — e especificamente a favela de Vila Vintém — aparece como o elo de conexão entre a agremiação e a artista. Elza então porta a voz daqueles que são calados, é a boca que ao mesmo tempo que grita pelas injustiças, saúda a resiliência e a cultura dos marginalizados. A estética empregada pela Mocidade reflete esse discurso mediante o uso de cores vibrantes e uma abordagem caricata.

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Para Jack Vasconcelos, carnavalesco da Mocidade em 2020, o tema da favela não é estranho, comparecendo recorrentemente em sua obra, em maior ou menor grau. Assinando trabalhos individuais como carnavalesco no Grupo Especial desde 2017, depois de conquistar o título da Série Ouro do ano anterior com a Paraíso do Tuiuti, escola em que permanece até 2019, Jack oferece diversas visões sobre o assunto ao longo dos anos. Recém-alçada ao Grupo Especial, a Paraíso do Tuiuti abre os desfiles de 2017 com Carnavaleidoscópio Tropifágico18, uma homenagem ao tropicalismo fortemente calcada no conceito de antropofagia dos modernistas Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral e sua releitura na década de 60, a Neoantropofagia. O nome do movimento cultural inaugurado em 1968 18 Samba de Carlinhos Chirrinha, Rafael Bernini, Luis Caxias, Wellington Onirê, Fernandão, Alexandre Cabeça, Felipe Cardoso e Caramujo.

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pelo álbum de Caetano, Gal, Gil, Nara, Mutantes e Tom Zé, vem da obra Tropicália de Hélio Oiticica. A sinopse do carnavalesco Jack Vasconcelos proclama sobre os Parangolés — mais famosa obra de Oiticica, criada a partir de experimentos do artista com a Estação Primeira de Mangueira: No coração balança um samba de tamborim. Em Mangueira é onde o samba é mais puro e os parangolés incorporam a revolta. Eu me sinto melhor colorido. Quem não dança não fala. Faz do morro marginal Tropicália.

Em texto sobre Oiticica para coleção da Folha, Paula Braga (2013) ressalta a importância do contato com a Estação Primeira, da qual o artista chegou a ser passista, e com o morro de Mangueira em seu percurso: (...) essa experiência na Mangueira, parte marginalizada da sociedade brasileira, foi uma vivência que incluiu amizades duradouras, mergulho no aprendizado do samba, da moral do marginal, da arquitetura flexível dos barracos e, consequência desse ambiente cotidiano, aprendizado da ginga do caminhar nas quebradas da favela e do “pisar a terra de novo”, expressão que o artista usa para descrever o descondicionamento social da experiência no morro (BRAGA, 2013, p. 22).

Na visão de Vasconcelos, a favela é por essência antropofágica, deglutindo influências múltiplas — indígenas, africanas, europeias — e regurgitando um dos maiores símbolos da cultura brasileira, por excelência: o samba. Assim, em Brasil Canibal: Neoantropofagismo, alegoria que encerra o setor sobre as origens da tropicália, um morro em verde e rosa traz dentro de sua gigantesca boca dentada a figura do Abaporu (“o homem que come”, do tupi: aba — homem, poru — comer) de Tarsila do Amaral. Há aí uma tripla Brasil Canibal: Neoantropofagismo, alegoria do desfile da Paraíso do Tuiuti em 2017 representa uma favela que simbolicamente deglute as referências culturais do modernismo.

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antropofagia: o Abaporu, que devora a carne de seus inimigos pra adquirir sua força, é devorado pelo movimento antropofágico de Oswald e Tarsila, que é novamente devorado pelo morro, resultando na “neoantropofagia”, pela tropicália de Oiticica, Gil e Caetano. Em ensaio sobre a obra de Vasconcelos, que caracteriza como “esteta do absurdo”, Daniela Name (2020) frisa a importância do poder deglutidor da cultura periférica no pensamento do carnavalesco: Na espinha dorsal do que Vasconcelos deseja ‘continuar falando’ está o entendimento do carnaval como um delicioso delírio antropófago, que afirma a cultura nascida nas periferias — a favela, Elza — como grande canibal, como grande fonte de digestão, transformação e alimento (NAME, 2020).

Para o ano seguinte, Jack Vasconcelos prepara Meu deus, meu deus, está extinta a escravidão?, enredo que resgata a história da escravidão e aponta seu legado nas relações sociais contemporâneas, questionando a suposta extinção. Um samba de rara força19, uma comissão de frente arrebatadora20 e o diálogo íntimo com a atualidade, em ano de reforma trabalhista e eleições presidenciais, converteram em histórico o desfile e resultaram em um inédito vice-campeonato para o Tuiuti. Na sinopse e justificativa do enredo, Jack apresenta a ideia de cativeiro social pra explicar a situação a que é submetida a população mais pobre e majoritariamente negra do país e compará-la ao tratamento destinado aos africanos escravizados e seus descendentes. As favelas se enquadram dentro do conceito como senzalas modernas, símbolos da pobreza imposta pelo “cativeiro social”, nome da 19 Dos compositores Moacyr Luz, Cláudio Russo, Dona Zezé, Aníbal e Jurandir. 20 Coreografada por Patrick Carvalho. Componentes da ala Cativeiro Social, que cria uma associação entre a senzala da época da escravidão e as favelas contemporâneas, no desfile de 2018 da Paraíso do Tuiuti.

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ala que representa a ideia e traz os componentes encerrados em pequenas casas de alvenaria sem reboco. O enredo ainda apresenta as escolas de samba como quilombos contemporâneos, centros de cultura e resistência negra. De maneira lírica, os compositores do samba associam a escola à favela, indicando que o morro pode ser cativeiro, mas também é quilombo: Não sou escravo de nenhum senhor Meu Paraíso é meu bastião Meu Tuiuti, o quilombo da favela É sentinela da libertação

Novamente antenado com as questões do momento, Jack propõe para o desfile de 2019 da Paraíso do Tuiuti O Salvador da Pátria21, enredo sobre o bode Ioiô, que teria fugido da seca no agreste cearense pra chegar em Fortaleza e ser eleito vereador como forma de protesto e desafio ao voto de cabresto em voga na década de 20. No enredo, a favela comparece de maneira menos explícita, como território da população marginalizada que não “ornava” com o projeto de modernização à francesa pretendida pelas elites de Fortaleza, assim como de tantas outras capitais brasileiras, no início do século XX: Um Dândi sertanejo tão incômodo como as camadas pobres e marginalizadas, as quais o poder desejava esconder por debaixo dos tapetes chiques para não atrapalharem o savoir-vivre nas avenidas, confeitarias, jardins, clubes e salões. Assim, velhos hábitos considerados de gente subdesenvolvida deveriam ser substituídos por novos costumes, os bons modos. Tanto cidade

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21 Novamente o samba foi composto por Moacyr Luz, Cláudio Russo, Dona Zezé, Aníbal e Jurandir.


quanto população careciam ser modificadas, remodeladas num choque de aformoseamento. Afinal, para a elite, as maravilhas do mundo moderno não harmonizavam com a matutice do povo.

A favela aparece de maneira sutil no desenvolvimento plástico da escola, mas a descrição do carro que retrata o contraste entre a Fortaleza moderna e o povo que constituía a maior parte de sua população, realça sua importância: Enquanto isso, a grande massa de habitantes da cidade, muitos fugitivos da seca, era cada vez mais escondida para os bairros e regiões periféricas da cidade. Se o Centro apresentava os ornamentos orgânicos típicos da art nouveau, a periferia se vestia de chita e se equilibrava nos casebres improvisados. A parte traseira da alegoria traz o povaréu com suas manifestações populares, reprimidas nos logradouros remodelados, com muito colorido e diversidade cultural.

Respondendo a uma pergunta do autor deste trabalho22, o carnavalesco associa diretamente a favela à população marginalizada do país, apontando como natural a recorrência do território em sua obra recente: Eu acho que [a favela] acaba sendo um símbolo muito forte disso que eu vejo como o brasileiro, desse nosso jeito de sobreviver, desse malabarismo que a gente faz pra poder ficar no mundo, pra se situar, a palavra da moda, pra resistir (...). Então eu acredito muito nessa visceralidade que a imagem da favela traz. Isso é uma coisa engraçada, eu não persigo a favela, é ela que me persegue. Na verdade, ela se faz necessária e se faz presente nos meus enredos de forma natural, eu não busco isso (...). Então, 22 Em debate com o carnavalesco Luiz Fernando Reis promovido pela Revista Caju e pelo Carnavalize como parte do evento Mergulho de Carnaval, em 6 de dezembro de 2020.

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ela acaba sendo necessária e faz muito sentido, porque no fundo eu tô sempre falando desse nosso histórico brasileiro de povo, da história do povo, de como o povo trabalha, de como o povo é o agente de tudo. E onde é que a gente encontra mais povo reunido? Não é na favela?

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A opção da União da Ilha do Governador em 2020 de apresentar a favela como tema central do desfile não foi única dentro do período estudado. Com o enredo Favela23 de 2014, a São Clemente já tratara do tema, mas com abordagem discursiva e estética bastante distinta. O uso da palavra favela no título — e nada mais — já permite uma análise sobre o que pretendia a escola. Estigmatizado em muitas partes do país, o termo é muitas vezes intencionalmente omitido, buscando-se alternativas, como a recorrente comunidade. No Rio de Janeiro, no entanto, favela aparece mais explicitamente nos discursos, indicando uma resistência à estigmatização inclusive no campo lexical. A opção da escola em não fugir do termo ganha especial significado quando comparada ao enredo da União da Ilha, que não utiliza a favela no título ou sequer no samba-enredo — preferindo os termos morro e comunidade. Como relatado por Natália El-Khouri (2015) na dissertação Favela dá Samba? Um estudo sobre as representações da favela no carnaval carioca, o desenvolvimento do desfile pela agremiação vinculada ao morro do Santa Marta foi bastante conturbado. A autora evidencia a intenção por parte da 120

23 Samba de Anderson, Flavinho Segal, FM, Grey, Ricardo Góes e Serginho Machado.


direção da escola em representar na avenida uma favela que fugisse aos estereótipos encontrados nos noticiários policialescos, buscando centrar o desenvolvimento do desfile em torno dos conceitos de pluralidade — de identidades, de estilos musicais, de modos de vida — e positividade, visando romper com a representação de uma favela única e definida por suas carências. Para atuar enquanto carnavalesca, no desenvolvimento do enredo e criação dos elementos plásticos, a escola convidou a atriz e diretora Bia Lessa. No entanto o conflito de visões entre a direção da escola e a artista se fez logo aparente: Quando o enredo ficou pronto, o diretor de carnaval da escola se deparou com uma favela “agressiva”, para usar suas palavras, apresentada por Bia Lessa. A artista plástica queria impressionar e causar grande impacto, e dessa forma imaginou representar a favela através da força de quem sobrevive à desigualdade, à violência e às faltas atribuídas a esses espaços da cidade (ELKHOURI, 2015, p. 48).

Alegando que o trabalho da artista seguia em ritmo muito lento para finalizar a tempo o desfile, a escola rompeu com Bia Lessa, formando uma comissão de carnaval24 pra desenvolver o desfile, ficando a redação final da sinopse a cargo de André Diniz e Wladimir Corrêa. O texto ressalta o aspecto complexo e contraditório almejado pela escola: No Carnaval de 2014, rimar São Clemente com irreverente vai continuar fazendo sentido, mas vou subir a favela com a audácia de mostrar toda a dimensão de sua complexidade. Mostrarei tendinhas, vielas, barracos e becos para entender melhor a 24 Composta por Max Lopes, Tiago Martins, João Vítor e Bruno César.

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origem, os costumes, problemas, utopias e suas saídas para a convivência harmônica das tantas contradições da humanidade. Hoje, Clementianos, favelados ou não, se misturam a esse corpo tão único e ao mesmo tempo tão heterogêneo, tão real e abstrato, tão ingênuo e malicioso, tão fora da lei e ordeiro, tão sofrido e feliz…

A comissão de frente da escola apresenta dois momentos distintos que de alguma maneira marcam a ruptura proposta pela escola. No curso da evolução da comissão pela pista da Marquês de Sapucaí, os componentes se apresentam em trajes que remetem às classes trabalhadoras do início do século XX, com um tripé de casebres de madeira. Entretanto, na apresentação aos jurados, as paredes do tripé se invertem, revelando paredes de alvenaria — a “cara” das favelas contemporâneas mais consolidadas — e um grupo heterogêneo, trajando cores vibrantes, de “tipos” da favela na concepção da escola: vendedores ambulantes, mototáxis, pastores, jogadores de futebol, funkeiros etc., e o malandro e a cabrocha, casal típico do universo carnavalesco. Após a comissão, o desfile se estrutura em sete setores, iniciando por uma das possíveis gêneses da favela, aquela chamada por Valladares (2005) de “mito de origem da favela carioca”: a ocupação do morro da Providência no centro do Rio de Janeiro por combatentes do exército brasileiro retornados do combate a Canudos. Assim, a ala inicial retrata os combatentes do conflito, o abre-alas traz uma grande escultura de Antônio Conselheiro em meio ao cenário da batalha e é seguido pela ala das baianas da escola que vem representando a própria planta Favella. As alas do segundo setor fazem um passeio por algumas das favelas mais conhecidas do Rio de Janeiro, que, segundo El-Khouri (2015), foram Em primeiro plano, ala representa o Morro do Salgueiro utilizando as cores da escola de samba, no desfile de 2014 da São Clemente. Atrás, carro alegórico é o morro da Providência, suposta primeira favela do Rio de Janeiro.

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escolhidas por permitirem uma fácil leitura a partir de sua transformação em fantasias: morro da Babilônia, Rocinha, Complexo do Alemão, morro do Santa Marta, morro da Mangueira e morro do Salgueiro. O carro que fecha o segundo setor retrata o próprio morro da Providência, suposta favela originária, mas, ao representá-lo como se encontraria no início da ocupação, com casebres de madeira e pau-a-pique e tonalidade amarronzada, dialoga mais com a abertura da escola, contrastando com os figurinos mais coloridos e contemporâneas das alas que o precedem. O terceiro setor retoma a ideia já proposta pela comissão de frente de alguns “tipos” que ficaram associados à favela ao longo de sua história, com alas representando os malandros e cabrochas, e as donas de casa que carregam latas d’água na cabeça e trouxas de roupas a lavar. Um dos principais traços a identificar a favela, a autoconstrução das moradias é referenciada pela última ala do setor e pelo carro alegórico, que apresentam a ideia de que todo morador de favela é um construtor, cuja criatividade “desafia a gravidade”. A figuração plástica das construções dribla as precariedades através de cenário e figurinos coloridos, com uso de azulejos e estampas. A variedade do cenário musical produzido pela favela é o tema sobre o qual se debruça o quarto setor, apresentando, além dos dois símbolos mais identificados com a favela ao longo de sua história — o samba no séc. XX e o funk no séc. XXI — outros gêneros, como o samba de roda, o jongo e o rap. Na alegoria de encerramento aparecem os paredões de caixas de som característicos dos bailes funk das comunidades. Já o setor cinco traz o “jeito favelado de viver”, aludindo à prática de esportes e às diversões presentes no território — muito relacionadas ao espaço da rua —, às religiões cristã e de matrizes africanas, e à alimentação, mostrando a feijoada e as tias quituteiras. A respectiva alegoria simula um “churrasquinho na laje”, considerado dos eventos sociais mais comuns nas favelas, com direito a roda de pagode e piscina inflável. A Criatividade desafiando a gravidade e a razão — a construção da favela, alegoria que faz referência direta ao processo de autoconstrução das favelas nos morros cariocas.

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O sexto setor, no entanto, fica completamente deslocado da realidade e do discurso apresentado pela escola ao longo do desfile. À guisa de mostrar que as favelas não seriam exclusivas ao desenvolvimento urbano brasileiro, o setor agrupa territórios em situações muito distintas, representando o bairro de Sulukule (Istambul, Turquia), a favela de Jacarta (Indonésia), o bairro segregado pelo apartheid de Soweto (Johanesburgo, África do Sul), a favela do Cairo (Egito) e a favela de Villa 31 (Buenos Aires, Argentina) por meio de fantasias que retratam de maneira superficial os países onde se encontram esses assentamentos. A última ala e o carro trazem supostamente a favela de Dharavi (Mumbai, Índia), novamente através de representação genérica do país asiático. El-Khouri (2015) nos conta que o setor foi incluído pela comissão artística com o objetivo de contemplar o luxo, atributo que estaria faltando no resto do desfile. A decisão teria sido (...) provocada pelo paradoxo real, explícito nesse desfile, da favela ser, segundo muitas representações, visualmente simples demais para ser evidenciada em um desfile de escola de samba, do qual se espera — e se exige, pois se trata de um campeonato — luxo e glamour (EL-KHOURI, 2015, p. 76).

Pra encerrar o desfile a escola passa a apresentar projetos sociais — ainda que alguns de cunho empreendedorista — realizados nas favelas cariocas: Projeto Afroreggae, Projeto Nós no Morro, Central Única das Favelas (Cufa), Projeto Vozes da Comunidade e Projeto Favela Ativa. A alegoria de encerramento, portando como componentes os trabalhadores do barracão da escola, busca exaltar os projetos sociais e as transformações possíveis, mediante representação de uma favela dita urbanizada, com casinhas coloridas, e a escultura de dois grandes anjos.

Carro A vez do morro — o poder da transformação, que encerra o desfile de 2014 da São Clemente com a representação de uma favela dita “urbanizada”.

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Executada de maneira plasticamente muito simples, a apresentação da São Clemente chamou pouca atenção e rendeu à escola apenas o penúltimo lugar na classificação geral, escapando por pouco do descenso ao segundo grupo. Em seu trabalho, El-Khouri (2015) se pergunta a respeito dos motivos do resultado: (...) teria a decisão dos dirigentes da escola de não explorar o tema da violência e não produzir o desfile “agressivo”, como ficou claro em função da dispensa da artista plástica Bia Lessa, gerado um desfile pouco impactante? Seria a representação da favela como espaço violento a única maneira de produzir um espetáculo que causaria comoção? Teria sido a escolha por exaltar o lado “positivo” da vida nas favelas a causa da simplicidade visual do desfile? (EL-KHOURI, 2015, p. 76).

O questionamento permite explicitar o potencial não realizado do desfile da São Clemente. Se a complexidade era um dos aspectos centrais que a escola tinha por objetivo transmitir, algumas reflexões que dariam conta de equilibrar uma representação insuficientemente crítica acabaram relegadas ao campo teórico, explícitas nos textos apresentados pela agremiação mas ausentes em sua realização. Ao optar pela representação da origem das favelas através da história de Canudos, apaga-se a pluralidade do momento, apontada pelo próprio texto da escola, em que não apenas os soldados se estabeleceram nos morros da cidade mas também os negros teoricamente libertos mas excluídos da sociedade, os moradores dos cortiços das áreas centrais despejados nas reformas haussmanianas do prefeito Pereira Passos, os migrantes nordestinos e os imigrantes europeus. Abole-se também a aparente contradição da batalha entre o roto e o esfarrapado, já que os soldados da 128


República eram, tal como consta da sinopse, “uma gente tão necessitada quanto aqueles que iriam destruir”. O desafio à gravidade aparece no desfile como criatividade, sem sua contrapartida, a falta de segurança, já que não se enfrenta apenas a gravidade mas as “águas de março, nem sempre promessa de vida”. Outra reflexão importante apresentada mas que não se explicita no desfile é acerca da proximidade entre os favelados e os abastados, especialmente na Zona Sul, de onde vem a escola: Para a elite, estar próximo dos pobres é a própria contradição… Acusá-los das mazelas e desprezá-los como vizinhos, mas usá-los como serviçais. Sendo assim, pela cidade inteira, se misturaram os executivos e madames de salto alto aos meninos de pés no chão, pedreiros, malandros, motoristas, domésticas, mucamas modernas, ou carreteiros da feira, sobre ferraris de tábuas e rodas de bilha, carregando bolsas recheadas do que não tinham. Aqueles que entravam nas casas dos patrões pela área de serviço, com a permissão de seguranças tão carentes quanto eles. Pessoas que sobem e descem sem hora, sob a rotina de não ter rotina, porque, pra este corpo chamado favela, estar perto dos ricos é a oportunidade do emprego e de usar o descarte dos abastados na construção de uma nova vida.

Tampouco é aproveitada a capacidade de resistência a tanta adversidade aportada pela sinopse, “o povo pobre tem a força e a potência transformadora de um átomo (...). Derrubam um barraco aqui, surgem cem ali”. Os ritmos musicais comparecem no desfile, mas não fica clara a importância dessa expressão para uma população que é cotidianamente silenciada e invisibilizada, tal como apenas aponta o título da comissão de frente Transformação das favelas e suas pessoas invisíveis: 129


Esse indesejável vizinho é espaçoso. E só não vê quem não quer... Com o passar do tempo foi ficando maravilhosamente abusado, transformando o jeito da cidade se vestir, se expressar, cantar e dançar. Riqueza cultural que nasce da necessidade e da pluralidade, descendo o morro, ganhou as ruas.

A simplicidade visual da representação da favela apresentada pela São Clemente aparece então enquanto consequência não da opção por um enfoque positivo, que priorizasse outros elementos além da violência e da carência, mas da não concretização do potencial de uma abordagem complexa e multifacetada.

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Nos 14 carnavais entre 2007 e 2020, foram apresentados na Marquês de Sapucaí 174 desfiles de 19 agremiações que passaram pelo Grupo Especial das escolas de samba do Rio de Janeiro. Pouco mais de um quarto dos enredos — 44 desfiles — abordam as favelas como elemento da narrativa. Ademais, 18 desfiles têm, em seus sambas, menções particulares a favelas, geralmente em referência à comunidade da escola. O exemplo mais claro é o da Unidos da Tijuca, agremiação que menciona o morro do Borel em nove de seus sambas oficiais para os carnavais do período. Dentre os 44 desfiles, as abordagens são bastante distintas, mas é possível identificar algumas linhas de pensamento que conformam as apresentações. Para alguns enredos, a favela é símbolo da brutal desigualdade social brasileira, destacando-se as carências e problemas. É 130


o caso de A Imperatriz adverte: sambar faz bem à saúde25, desfile de 2011 da Imperatriz Leopoldinense que, ao se debruçar sobre a história da medicina, representa na última alegoria uma favela, remetendo àqueles que têm mais dificuldade de acesso aos avanços no campo da saúde. Abordagem semelhante é a do desfile de 2018 da Beija-Flor de Nilópolis, Monstro é aquele que não sabe amar: os filhos abandonados da pátria que os pariu26, que retrata a favela como território daqueles que foram abandonados. Apontando a corrupção como uma das causas do abandono, constrói uma alegoria em que o prédio sede da Petrobrás no Rio de Janeiro se transforma em uma favela. Ações governamentais e sociais nas favelas também já foram representadas, como no desfile de 2010 da Portela, Derrubando fronteiras, conquistando liberdade... Rio de paz em estado de graça!27, enredo sobre inclusão digital que aponta o uso da tecnologia na implementação de UPPs28 como possível solução para a violência nas favelas cariocas. O Carnaval de 2012 da Acadêmicos do Grande Rio, Eu acredito em você, e você?29, apresentou brevemente o projeto cultural AfroReaggae, assim como o desfile de 2007 da 25 Carnavalesco Max Lopes e samba de Drummond, Flavinho, Gil Branco, Me Leva e Tião Pinheiro. 26 Carnavalescos Laíla, Marcelo Misailidis, Cid Carvalho, Victor Santos, Bianca Behrends, Rodrigo Pacheco e Léo Mídia e samba de Di Menor BF, Kiraizinho, Diego Oliveira, Bakaninha Beija-Flor, J.J. Santos, Júlio Assim e Diogo Rosa. 27 Carnavalescos Amauri Santos e Alex de Oliveira e samba de Ciraninho, Diogo Nougueira, Júnior Scafura, Naldo e Wanderley Monteiro. 28 As Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) são parte de um programa estadual de instalação de unidades de policiamento comunitário em favelas, buscando a diminuição da violência, iniciado em 2008. Segundo reportagem de 2018 do jornal El País, “(...) após a instalação de 38 UPPs, o modelo que representou nos últimos anos a esperança de um Rio mais seguro se mostra esgotado, após colecionar uma série de fracassos e escândalos”. 29 Carnavalesco Cahê Rodrigues e samba de Edispuma, Licinho Jr., Marcelinho Santos e Foca.

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Unidos do Porto da Pedra, Preto e branco a cores30, sobre a África do Sul, que evoca o Museu da Favela Vermelha, na Cidade do Cabo, para estabelecer certa relação com projetos sociais em favelas brasileiras. A religiosidade nas favelas também foi abordada na mencionada comissão de frente da Paraíso do Tuiuti em 2020 — um altar a São Sebastião no topo do morro — e no desfile de 2017 da Estação Primeira de Mangueira — Só com a ajuda do santo — que traz o “morro em oração”31. A cultura das favelas também foi enfocada em diversas apresentações, geralmente destacando-se o lado musical, como no desfile da Mangueira de 2010 — Mangueira é música do Brasil32 — que a coloca como espaço por excelência dos gêneros brasileiros mais populares, como o samba e o funk. O desfile de 2018 do Salgueiro — Senhoras do ventre mundo33 — destaca grandes mulheres negras da história brasileira, incluindo a escritora Carolina Maria de Jesus, autora do livro Quarto de Despejo, sobre sua vida na favela do Canindé, em São Paulo. Diversas escolas também já retrataram a favela dentro do contexto da peça Orfeu da Conceição, escrita por Vinícius de Moraes em 1954. O texto, transformado em filme por Marcel Camus em 1959 e Cacá Diegues em 1999, faz uma releitura do mito grego de Orfeu e Eurídice, transportando-o para 30 Carnavalesco Milton Cunha e samba de David Souza, Fábio Costa, Francisco, William e Wagner. 31 Trecho do samba de Lequinho, Jr. Fionda, Flavinho Horta, Gabriel Martins e Igor Leal para o desfile do carnavalesco Leandro Vieira. 32 Carnavalescos Jaime Cezário e Jorge Caribé e samba de Machado, Paulinho Bandolim, Renan Brandão e Rordrigo Carioca. 33 Carnavalesco Alex de Souza e samba de Demá Chagas, Dudu Botelho, Xande de Pilares, Renato Galante, Jassa, Leonardo Galo, Betinho de Pilares, Vanderley Sena, Ralfe Ribeiro e W. Corrêa. A favela da peça Orfeu da Conceição, representada em carro alegórico no desfile Salgueiro apresenta: o Rio no cinema, de 2011.

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a realidade das favelas cariocas. Os desfiles Salgueiro apresenta: o Rio no cinema34, de 2011, e Vinícius no plural: Paixão, Poesia e Carnaval35 — desfile da União da Ilha do Governador em 2013 — trazem setores inteiros dedicados à obra. A relação das favelas cariocas com o samba e o próprio Carnaval também é das abordagens prediletas das escolas, como nos desfiles de 2010 da Unidos de Vila Isabel — Noël: a presença do poeta da Vila — e de 2011 da Mangueira — O filho fiel, sempre Mangueira — que ao recontarem a vida de seus baluartes Noel Rosa e Nelson Cavaquinho destacam a importância do contato com os sambistas do morro. Em 2014, a Império da Tijuca apresentou Batuk36, desfile sobre a evolução dos batuques entre o continente africano e o Brasil, que em seu encerramento evoca o samba através do próprio morro da Formiga, comunidade da escola. Em 2016, o Salgueiro evidencia um aspecto marcante dessa relação: a malandragem, presente no enredo A Ópera dos Malandros37. Mais além do que a relação com o Carnaval, as favelas são lembradas como síntese das próprias escolas, como no enredo Cuiabá: um paraíso no centro da América38, de 2013, construído em torno de uma viagem de trem à cidade mato-grossense que sairia da Estação Primeira, presente no abre-

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34 Carnavalescos Renato e Márcia Lage e samba de Anderson Benson, Dudu Botelho, Luiz Pião e Miudinho. 35 Carnavalesco Alex de Souza e samba de Ginho, Júnior, Vinícius do Cavaco, Eduardo Conti, Professor Hugo e Jair Turra. 36 Carnavalesco Júnior Pernambucano e samba de Alexandre Alegria, Karine Santos, Marcão, Márcio André, Rono Maia e Vaguinho. 37 Carnavalescos Renato e Márcia Lage e samba de Francisco Aquino, Fred Camacho, Getúlio Coelho, Guinga do Salgueiro, Marcelo Motta e Ricardo Fernandes. 38 Carnavalesco Cid Carvalho e samba de Igor Leal, Jr. Fionda, Lequinho e Paulinho Carvalho.


alas por meio do próprio morro de Mangueira. Também em 2013, em enredo sobre seu bairro — Madureira... onde meu coração se deixou levar39 —, a Portela expõe o morro da Serrinha pra falar de sua agremiação vizinha, o Império Serrano. Por fim, as escolas também apresentam as favelas como símbolo do “jeito carioca de ser” e da alegria que o caracterizaria, como nos desfiles de 2012 da Renascer de Jacarepaguá — O artista da alegria dá o tom na folia!40 — que apresentou vida e obra do artista comercial pernambucano Romero Britto, e de 2016 da União da Ilha, que apresenta a favela como o Olimpo carioca, ao qual nem os deuses podem resistir, no enredo Olímpico por natureza, todo mundo se encontra no Rio41.

39 Carnavalesco Paulo Menezes e samba de André do Posto 7, Luiz Carlos Máximo, Toninho Nascimento e Wanderley Monteiro. 40 Carnavalesco Edson Pereira e samba de Cláudio Russo, Adriano Cesário, Fábio Costa e Isaac. 41 Carnavalescos Paulo Menezes e Jack Vasconcelos e samba de Marquinho do Banjo, Cap. Barreto, Miguel, Roger Linhares, Paulo Guimarães, Dr. Robson, Jamiro Faria e Gugu das Cadongas.

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PRA TUDO SE ACABAR NA QUARTA-FEIRA Martinho da Vila Vila Isabel, 1984 A grande paixão que foi inspiração de um poeta é o enredo que emociona a Velha Guarda lá na Comissão de Frente, como a diretoria Glória a quem trabalha o ano inteiro em mutirão são escultores, são pintores, bordadeiras são carpinteiros, vidraceiros, costureiras figurinista, desenhista e artesão gente empenhada em construir a ilusão E que tem sonhos, como a velha baiana que foi passista, brincou em ala dizem que foi o grande amor de um mestre-sala

Baianas do Salgueiro na Avenida Presidente Vargas decorada para o Carnaval de 1964, com a Igreja da Candelária ao fundo.

O sambista é um artista e o nosso tom é o diretor de harmonia Os foliões são embalados pelo pessoal da bateria Sonho de reis, de pirata e jardineira pra tudo se acabar na quarta-feira Mas a quaresma lá no morro é colorida com fantasias já usadas na avenida que são cortinas, que são bandeiras razões pra vida tão real da quarta-feira



APOTEOSE conclusão

Pela primeira vez em quase um século de atividade, as escolas de samba do Rio de Janeiro não desfilarão em 2021. O Carnaval, inicialmente adiado para o meio do ano, foi cancelado pelo descontrole da pandemia de coronavírus — agravada pelo negacionismo do governo federal e pela desorganização e ineficácia das escassas políticas de combate ao vírus nos demais níveis. Assim como milhões de pessoas em todo o país, os trabalhadores do Carnaval se viram lamentando a perda de entes queridos, sem renda pra sobreviver e desamparados pelo Estado. A crise humanitária, no entanto, evidenciou por que as escolas de samba, nas palavras de Luiz Antonio Simas, “não existem para desfilar, mas desfilam porque existem”1. De iniciativas pontuais de distribuição de cestas básicas ao oferecimento das quadras sociais como locais de vacinação, passando pela organização de movimentos de ajuda aos trabalhadores do carnaval2, as agremiações mostraram mais uma vez serem centros fundamentais de cultura, organização e amparo de populações marginalizadas.

1 A frase é repetida pelo historiador em diversas de suas entrevistas e manifestações, inclusive de maneira crítica às escolas que restringem sua atuação à preparação e execução dos desfiles, abdicando da existência mais ampla. 2 Não é só folia, Barracão solidário, Ritmo solidário, Bailado solidário e Vozes do samba, são alguns exemplos de projetos que promoveram lives e campanhas de arrecadação para subsistência dos trabalhadores do carnaval. João Jorge Clemente Trinta, carnavalesco conhecido como Joãosinho Trinta, fantasiado de gari no encerramento do desfile Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia, carnaval de 1989 da Beija-Flor de Nilópolis.

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Nascidas nos morros, as escolas de samba dificilmente teriam se desenvolvido fosse outro o contexto social brasileiro. Foi o amálgama entre culturas vindas da África, diretamente ou através da migração nordestina e principalmente baiana, e da Europa, já também mesclada com as indígenas, que ensejou o surgimento dessa manifestação nas favelas e periferias do Rio de Janeiro. Longe de uma suposta democracia racial, o processo foi tenso e cheio de conflitos, que perduram até hoje mas que conformaram o samba e as escolas como as conhecemos. A conexão essencial entre escolas de samba e territórios populares não poderia ser menosprezada nas apresentações das agremiações, mas retratar a complexidade de territórios como as favelas não é tarefa fácil. São múltiplas as possibilidades de abordagem e delicado o equilíbrio de um discurso que não reitere estereótipos nem glamorize precariedades. Entretanto, a própria ideia de levar à avenida a favela, ou qualquer outro território periférico produzido pela desigualdade social característica do país, esbarra inevitavelmente em uma contradição. O Carnaval é a festa da inversão, momento em que se é liberado pra ser o que não é, em que se pode assumir posições, inclusive sociais, inalcançáveis no resto do ano. Ainda que essa potência seja constantemente podada e cooptada pela lógica mercantilista, na reflexão proposta por Roberto DaMatta (1997): No carnaval, deixamos de lado nossa sociedade hierarquizada e repressiva, e ensaiamos viver com mais liberdade e individualidade. Essa é, para mim, a dramatização que permite englobar numa só teoria, não só os conflitos de classe (que são compensados e abrandados no carnaval), como também a invenção de um momento especial que guarda com o cotidiano brasileiro uma relação altamente significativa e politicamente carregada. Pois o fato alarmante é refletir como uma nação de milhões de habitantes, um país industrializado, capitalista e na 140


virada do século, permite que os “pobres” virem “ricos” durante quatro dias no ano. Será esse, como querem alguns observadores superficiais da cena brasileira, um fato banal? Ou será que isso ajuda a fazer o brasil, Brasil? (DAMATTA, 1997, p. 40)

Como, então, se fantasiar daquilo que já se é? Como refletir em um desfile de carnaval a realidade, sem perder a essência carnavalesca? Fernando Pamplona topou com esse dilema, na década de 60, ao encarar a resistência dos moradores do morro do Salgueiro a saírem como escravizados, “fantasia” não muito distante de sua própria realidade social (COSTA, 1984). Assim como a quase rebaixada São Clemente e a degolada União da Ilha, já na segunda década do século XXI, que encontraram nos resultados ingratos outra barreira ao tentarem transpor para a avenida a favela. A resposta mais contundente de Joãosinho Trinta aos críticos do carnaval do luxo não foi “povo gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual”, frase que, embora não possa ter a autoria comprovada, entrou para os anais do Carnaval atribuída ao maranhense. Foi provar na avenida que, na festa da inversão, o lixo também é luxo. Ratos e Urubus, larguem minha fantasia3, desfile da Beija-Flor de 1989 que lavou a alma de Joãosinho frente a seus críticos ao convidar o “povo de rua” a tomar a passarela4 e se tornou para muitos o maior de todos os tempos, também trombou com o julgamento oficial5: 3 Samba de Betinho, Glyvaldo, Osmar e Zé Maria. 4 “Atenção mendigos, desocupados, pivetes, meretrizes, loucos, profetas, esfomeados e povo de rua: tirem dos lixos deste imenso país restos de luxos... façam suas fantasias e venham participar deste grandioso Bal Masqué”, proclamava o segundo carro da escola. 5 No Carnaval daquele ano, a Imperatriz Leopoldinense saiu vitoriosa com o enredo Liberdade, liberdade, abra as asas sobre nós! sobre a abolição da escravidão e a proclamação da República, do carnavalesco Max Lopes com samba de Jurandir, Niltinho Tristeza, Preto Jóia e Vicentinho.

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O lixo superou o luxo como fato histórico em 1989 e painel perene do país. Mas o luxo superou o lixo na realidade bruta dos números. Não deixou de ser desfecho adequado para um espetáculo sobre o Brasil (VIANNA, 2019).

O sucesso ainda que não oficializado do desfile aponta que escancarar na avenida as desigualdades e contradições do Brasil, expressas tão claramente em sua organização territorial, não só dá carnaval como oferece potência difícil de ser igualada. A força que essas representações ainda hoje carregam fica evidente pelas visões de Brasil — contraditórias e mutuamente exclusivas, mas igualmente potentes — que levaram às vitórias consecutivas de Beija-Flor de Nilópolis em 2018, com Monstro é aquele que não sabe amar: os filhos abandonados da pátria que os pariu, e Estação Primeira de Mangueira no ano seguinte, com História pra ninar gente grande. Mesmo sem Carnaval neste ano, as escolas de samba já se organizam para a próxima vez que pisarem na avenida. E o rol de enredos que passarão pela Sapucaí atesta que a favela permanece muito relevante para o que as escolas querem e precisam dizer. Exu, o “som que vem das favelas”6 de Caxias; Oxóssi que baixou na Vila Vintém7; negro Martinho que reina nos Macacos8; Angenor, José e Laurindo, poesia, voz e corpo de Mangueira9: as favelas falam através das escolas e as escolas seguirão falando das favelas.

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6 O enredo Fala, Majeté! Sete chaves de Exu dos carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora relaciona o Orixá a Estamira, lendária figura do lixão de Gramacho. 7 Batuque ao caçador, enredo escrito por Fábio Fabato, é homenagem a Oxóssi e à própria Mocidade Independente de Padre Miguel. 8 A Vila Isabel cantará na avenida seu maior baluarte com o enredo Canta, canta, minha gente! A Vila é de Martinho!, desenvolvido por Clark Mangabeira, Victor Marques e pelo carnavalesco Edson Pereira. 9 Cartola, Jamelão e Delegado, três negros do morro de Mangueira e figuras fundamentais para a Estação Primeira, são o enredo Angenor, José e Laurindo, do carnavalesco Leandro Vieira.


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O DIA EM QUE O MORRO DESCER E NÃO FOR CARNAVAL Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro 1996 O dia em que o morro descer e não for carnaval Ninguém vai ficar pra assistir o desfie final Na entrada, a rajada de fogos, pra quem nunca viu Vai ser de escopeta, metralha, granada e fuzil Guerra civil O dia em que o morro descer e não for carnaval Não vai nem dar tempo de ter o ensaio geral E cada uma ala da escola será uma quadrilha A evolução já vai ser de guerrilha E a alegoria é um tremendo arsenal O tema do enredo vai ser a cidade partida No dia em que o couro comer na avenida Se o morro descer e não for carnaval

Bandeira brasileira reinventada pelo carnavalesco Leandro Vieira para o encerramento do desfile de 2019 da Mangueira é preparada para exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio).

O povo virá de cortiço, alagado e favela Mostrando a miséria sobre a passarela Sem a fantasia que sai no jornal Vai ser uma única escola, uma só bateria Quem vai ser jurado? Ninguém gostaria Que desfile assim não vai ter nada igual Não tem órgão oficial, nem governo, nem liga Nem autoridade que compre essa briga Ninguém sabe a força desse pessoal Melhor é o poder devolver pra esse povo alegria Se não todo mundo vai sambar No dia em que o morro descer e não for carnaval



GLOSSÁRIO ALA é o principal elemento que compõe o desfile de uma escola, um grupo de componentes trajados com a mesma fantasia que deve representar algo dentro do enredo proposto. O conjunto das fantasias da escola é um dos quesitos avaliados pelas comissões julgadoras para definir a campeã do carnaval. ALEGORIA OU CARROS ALEGÓRICO é o principal elemento cenográfico dos desfiles. Costuma trazer esculturas e componentes fantasiados, e muitas vezes serve para encerrar um setor da escola. A primeira alegoria da escola (há um número mínimo e máximo desses elementos estabelecido pelo regulamento) é conhecida como carro abre-alas. O conjunto de alegorias também é quesito de avaliação da escola. BARRACÃO é o espaço destinado ao desenvolvimento dos elementos plásticos (fantasias e alegorias) para os desfiles. No Rio de Janeiro, a Cidade do Samba Joãosinho Trinta, inaugurada em 2006, reúne em um único local os barracões de todas as escolas de samba do Grupo Especial. Em São Paulo, o mesmo acontece com a Fábrica do Samba, ainda em obras mas parcialmente inaugurada em 2016. CARNAVALESCA(O) é a pessoa responsável pelo desenvolvimento do enredo a ser apresentado pela escola, discursiva e plasticamente, escrevendo a sinopse e concebendo as fantasias e alegorias. O trabalho também pode ser descentralizado em uma comissão de carnaval, muitas vezes ocorrendo uma divisão de tarefas. CHASSI se refere à base de um carro alegórico, geralmente contruída a partir de partes de caminhões ou ônibus. Também é usada para fazer referência a uma das partes de um carro alegórico acoplado.

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COMISSÃO DE FRENTE é o primeiro elemento de um desfile de escola de samba. É constituído de um grupo de bailarinos, podendo contar com um tripé, que através de uma apresentação teatral e coreográfica deve apresentar a escola e o enredo desenvolvido. Constitui quesito de avaliação. ENREDO de uma escola de samba é a história que a agremiação escolhe contar na avenida através de sua parte plástica (fantasias e alegorias) e musical (samba de enredo). Não é apenas a temática abordada pela escola mas a maneira como é desenvolvida. É um dos nove quesitos atualmente avaliados pela comissão julgadora para definir a campeã dos desfiles oficiais das escolas de samba, tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro. GRUPO ESPECIAL é o nome dado à “primeira divisão”, grupo de elite das escolas de samba tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro. JUSTIFICATIVA é um texto presente no livro abre-alas utilizado para apresentar de maneira mais direta como será o desenvolvimento do enredo explicado de maneira poética pela sinopse, através da setorização do desfile e muitas vezes contando como foi o processo que levou a escola a escolher sua temática. LIESA (Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro) é a entidade responsável pela organização e avaliação dos desfiles oficiais das Escolas de Samba do Grupo Especial no Rio de Janeiro. LIVRO ABRE-ALAS é um conjunto de documentos disponibilizados pela LIESA aos julgadores que contêm toda a explicação fornecida por cada escola sobre seu desfile. Inclui sinopse, bibliografia, organização da escola em suas alas e alegorias, e textos explicativos ( justificativas) do samba e de todos os elementos plásticos apresentados. Nos dias de desfile também é divulgado ao grande público através do site oficial da Liesa. 148


QUADRA SOCIAL é o espaço principal de atuação de uma escola de samba junto à comunidade ao longo do ano. Lá são realizados os ensaios antes dos desfiles, feijoadas, shows, disputas de samba-enredo etc. SAMBA-ENREDO (ou samba de enredo) é a trilha sonora do desfile de uma escola de samba e deve refletir em sua letra e variações melódicas o enredo apresentado pela agremiação. Geralmente são realizados, no período précarnavalesco, concursos para definir o samba de cada uma das escolas, compostos com base em um texto descritivo do enredo divulgado pela(o) carnavalesca(o) ou comissão de carnaval. Alternativamente, o samba pode ser encomendado a um grupo de compositores já determinado. SÉRIE OURO é o grupo de acesso, isto é, a “segunda divisão”, das escolas de samba do Rio de Janeiro. A campeã passa a compor o Grupo Especial no ano seguinte. Até o Carnaval de 2020 era nomeada Série A. As demais divisões são nomeadas de acordo: Série Prata (terceira divisão), Série Bronze (quarta divisão) etc. Em São Paulo, o grupo inferior ao Especial é denominado Grupo de Acesso. SETOR é uma das partes que compõem a estrutura do desfile de uma escola. Define, através de alas e alegorias, um pedaço do que se pretende dizer com o enredo. A setorização do desfile, apesar de não ser obrigatória, é regularmente adotada pra ajudar a organizar uma representação coerente em fantasias e alegorias. SINOPSE DO ENREDO é um texto preparado pela(o) carnavalesca(o) ou comissão de carnaval, com o auxílio de enredistas, que explica o enredo a ser desenvolvido, muitas vezes de forma poética, e serve como base para a composição dos sambas pela ala de compositores da escola.

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CURSOS E SEMINÁRIOS SIMAS, Luiz Antonio. Uma história social do samba. Curso ministrado virtualmente em três encontros, nos dias 9, 16 e 23 de junho de 2020. Revista Caju. Mergulho de Carnaval. Seminário virtual em dois encontros, nos dias 5 e 6 de dezembro de 2020.

LIVROS ABRE-ALAS DA LIESA LIESA (org.). Livro Abre-Alas 2007: Domingo. Disponível em: https://liesa. globo.com/2019/por/18-outroscarnavais/carnaval07/abrealas.html LIESA (org.). Livro Abre-Alas 2007: Segunda. Disponível em: https://liesa. globo.com/2019/por/18-outroscarnavais/carnaval07/abrealas.html LIESA (org.). Livro Abre-Alas 2008: Domingo. Disponível em: https://liesa. globo.com/2019/por/18-outroscarnavais/carnaval08/abrealas.html LIESA (org.). Livro Abre-Alas 2008: Segunda. Disponível em: https://liesa. globo.com/2019/por/18-outroscarnavais/carnaval08/abrealas.html LIESA (org.). Livro Abre-Alas 2009: Domingo. Disponível em: https://liesa. globo.com/2019/por/18-outroscarnavais/carnaval09/abrealas.html LIESA (org.). Livro Abre-Alas 2009: Segunda. Disponível em: https://liesa. globo.com/2019/por/18-outroscarnavais/carnaval09/abrealas.html 155


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ÍNDICES DE IMAGENS Capa Nininha Xoxoba com Parangolé P8 - Capa 05, do artista plástico Hélio Oiticica. Foto: Andreas Valentin, 1965. Retirada de: https://www.researchgate.net/figure/ Nininha-Xoxoba-com-o-Parangole-P8-Capa-05-Mangueira-1965-foto-AndreasValentin_fig5_32071350 6

Dona Jovem descendo o morro da Mangueira. Foto: Daniel Marenco/O Globo, 2016. Retirada de: https://oglobo.globo.com/rio/carnaval/2016/quando-morrerdescanso-quero-viver-cansada-18591150

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Chegada do desfile de 2019 da Mangueira à praça da Apoteose. Foto: Rodrigo Gorosito/G1, 2019. Retirada de: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/ carnaval/2019/noticia/2019/03/05/desfile-da-mangueira-2019-veja-fotos.ghtml

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Cartola sentado em frente a uma viatura policial no morro de Mangueira. Foto: Eurico Dantas, 1976. Retirada de: https://www.facebook.com/GRESEPMangueira/ photos/a.526582800737183/1220384364690353

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Bandeiras estampadas com as faces de Marielle Franco e Cartola são agitadas no encerramento do desfile campeão da Mangueira. Foto: Leandro Milton/SRzd, 2019. Retirada de: https://www.srzd.com/carnaval/rio-de-janeiro/mangueira-2019galeria-de-fotos-do-desfile

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Desfile de 1989 da Beija-Flor. Foto: Ricardo Leoni/O Globo, 1989. Retirada de: https://oglobo.globo.com/cultura/ha-30-anos-beija-flor-revolucionava-carnavalcom-ratos-urubus-23434100

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Cortiço Cabeça de Porco. Foto: Marc Ferrez, s.d. Retirada de: http://g1.globo.com/ rio-de-janeiro/rio-450-anos/noticia/2015/01/conheca-historia-da-1-favela-do-riocriada-ha-quase-120-anos.html 159


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Acima, desfile da grande sociedade Democráticos. Foto: Arquivo O Globo, s.d. Retirada de: https://acervo.oglobo.globo.com/fotogalerias/os-carnavais-deantigamente-9433878. Abaixo, desfile do rancho Decididos de Quintino. Foto: Arquivo O Globo, s.d. Retirada de: https://acervo.oglobo.globo.com/incoming/ primeiros-desfiles-das-escolas-do-rio-22405479

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Morro da Providência ou da Favella em meados da década de 60. Foto: Arquivo O Globo, 1966. Retirada de: https://oglobo.globo.com/rio/primeira-favela-do-brasilmorro-da-providencia-completa-120-anos-21378057

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Acima, vista do morro do São Carlos. Foto: Prefeitura do Rio, s.d. Retirada de: https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/208884/pm-realiza-operacao-nacomunidade-de-sao-carlos-e-.htm. Abaixo, fachada da quadra da Estácio de Sá. Imagem retirada do Google Maps.

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Mapa das escolas de samba do Grupo Especial e Série Ouro e favelas a que estão vinculadas. Elaborado pelo autor a partir de dados do Instituto Pereira Passos (IPP).

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Quadra da Mangueira, ao pé do morro. Foto: Fabiano Rocha/O Globo, 2019. Retirada de: https://oglobo.globo.com/rio/alvorada-la-no-morro-que-belezamoradores-amanhecem-em-festa-pelo-20-titulo-da-mangueira-23504677

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Acima, antiga quadra da Unidos da Tijuca no morro do Borel. Foto: Claudio Lara, 2012. Retirada de: https://www.flickr.com/photos/claudiolara/7798479474/. Abaixo, atual quadra da escola na zona portuária. Imagem retirada do Google Maps.

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Demolição do morro do Castelo. Foto: Augusto Malta, 1922. Retirada de: http:// brasilianafotografica.bn.br/?p=14030.

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Acima, Praça Onze, na década de 40. Foto: desconhecido. Abaixo, desfile da Depois Eu Digo em 1948. Foto: O Globo, 1948. Retiradas de: https://acervo.oglobo.globo. com/incoming/samba-da-praca-onze-candelaria-20927001

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Acima, morro da Formiga. Autoria desconhecida. Retirada de: https://mapio.net/ pic/p-121887138/. Abaixo, quadra do Império da Tijuca. Foto: Mateus Breyer, 2021.


Retirada do Google Maps. 52

Acima, morro dos Macacos. Foto: @xandowvisk, s.d. Retirada de: https://odia. ig.com.br/rio-de-janeiro/2020/11/6019045-morro-dos-macacos-tem-historia-coma-musica-e-a-vila-isabel.html. Abaixo, quadra da Unidos de Vila Isabel. Foto: Alexandre de Oliveira Silva, 2018. Retirada do Google Maps.

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Acima, morro da Serrinha. Foto: Carlos Ivan/O Globo, 2011. Retirada de: https:// oglobo.globo.com/rio/morador-morre-ao-ser-atingido-por-bala-perdida-nomorro-da-serrinha-em-madureira-16877064. Abaixo, atual quadra do Império Serrano. Imagem retirada do Google Maps.

58

Acima, desfile Heróis da Liberdade do Império Serrano. Autor desconhecido, 1969. Retirada de: https://twitter.com/Carnavalize/status/1245153171195990018/ photo/1. Abaixo, desfile Eu quero, de 1986. Foto: Ricardo Leoni, 1986. Retirada de: https://extra.globo.com/noticias/carnaval/carnaval-historico/imperio-serranocantou-um-dos-hinos-da-abertura-politica-11383406.html

64

Acima, morro do Salgueiro, na Tijuca. Foto: Tasso Marcelo/Estadão, 2017. Retirada de: https://brasil.estadao.com.br/noticias/rio-de-janeiro,operacao-no-morrodo-salgueiro-deixa-pm-e-suspeito-baleados,70001761548. Abaixo, quadra da agremiação. Imagem retirada do Google Maps.

66

Acima, cena do desfile Quilombo dos Palmares. Foto: Arquivo O Globo, 1960. Retirada de: https://acervo.oglobo.globo.com/incoming/salgueiro-titulos-daescola-da-tijuca-22659853. Abaixo, ala do minueto no desfile Xica da Silva. Foto: Arquivo O Globo, 1963. Retirada de: https://acervo.oglobo.globo.com/incoming/ samba-da-praca-onze-candelaria-20927001.

68

Acima, morro do Tuiuti. Foto: @nay_dias. Retirada de: https://www.facebook.com/ SaoCristovaoRJ/photos/a.241949362557302/2359809214104629/. Abaixo, quadra da Paraíso do Tuiuti. Imagem retirada do Google Maps.

72

Acima, quadra da Unidos de Padre Miguel e favela de Vila Vintém. Imagem de transmissão da TV Globo, 2020, retirada de: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/ carnaval/2020/noticia/2020/02/17/onde-nasce-a-serie-a-ex-presidente-comanda161


point-da-unidos-de-padre-miguel.ghtml. Abaixo, fachada da quadra da Mocidade Independente. Imagem retirada do Google Maps.

162

74

Acima à esq., morro Dona Marta. Foto: Fabiano Rocha/O Globo, 2018. Retirada de: https://oglobo.globo.com/rio/morro-dona-marta-tem-manha-de-intenso-tiroteiodesespero-23881294. Acima à dir., quadra da escola São Clemente. Imagem retirada do Google Maps. Abaixo à esq., Complexo do Lins. Imagem de transmissão da TV Globo, 2019, retirada de: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/12/16/ policia-faz-operacao-no-complexo-do-lins-zona-norte-do-rio.ghtml. Abaixo à dir., quadra da Lins Imperial. Foto: Domingos Marinho Pinto, 2020. Retirada do Google Maps.

76

Acima, favela da Rocinha. Foto: Felipe Dana/AP, 2018. Retirada de: https:// g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/faccao-paulista-se-une-a-quadrilhas-do-rjque-tentam-tomar-trafico-na-rocinha.ghtml. Abaixo, quadra da Acadêmicos da Rocinha. Imagem retirada do Google Maps.

78

Segunda alegoria da Mangueira em 2019. Foto: Rodrigo Gorosito/G1, 2019. Retirada de: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/carnaval/2019/noticia/2019/03/05/desfileda-mangueira-2019-veja-fotos.ghtml

80

Negros e indígenas emoldurados na comissão de frente da Mangueira em 2019. Foto: Rodrigo Gorosito/G1, 2019. Retirada de: https://g1.globo.com/rj/rio-dejaneiro/carnaval/2019/noticia/2019/03/05/desfile-da-mangueira-2019-veja-fotos. ghtml

82

Arco da apoteose com o morro da Mineira ao fundo. Foto: Paulo Nicolella/O Globo, 2018. Retirada de: https://blogs.oglobo.globo.com/repinique/post/riotur-mantempreco-nos-setores-turisticos-da-sapucai-confira-os-valores.html

84

Casal de mestre-sala e porta-bandeira da União da Ilha do Governador em 2020. Foto: Alexandre Durão/G1. Retirada de: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/ carnaval/2020/noticia/2020/02/24/desfila-da-uniao-da-ilha-veja-fotos.ghtml

86

Cena da comissão de frente da Paraíso do Tuiuti em seu desfile de 2020. Foto: Allan Duffes, Isabel Scorza e Magaiver Fernades/Carnavalesco, 2020. Retirado de: https://


www.carnavalesco.com.br/fotos-desfile-do-paraiso-do-tuiuti-no-carnaval-2020/ 90-1

Carro abre-alas da União da Ilha do Governador no carnaval 2020. Imagem capturada de vídeo filmado da arquibancada, disponível no canal do youtube “Carnaval do mundo”. Disponível em: https://youtu.be/-Q4OR1yOIZQ

92

Última alegoria da União da Ilha em 2020. Imagem capturada de vídeo filmado da arquibancada, disponível no canal do youtube “Carnaval do mundo”. Disponível em: https://youtu.be/-Q4OR1yOIZQ

96

Cristo na comissão de frente da Mangueira em 2020. Foto: Júlio César Guimarães/ UOL, 2020. Retirada de: https://www.uol.com.br/carnaval/2020/album/2020/02/23/ mangueira.htm

98

Quarta alegoria do desfile da Mangueira de 2020. Foto: André Melo Andrade/ Estadão, 2020. Retirada de: https://entretenimento.band.uol.com.br/bandfolia/ noticias/100000983835/mangueira-pos-bandido-no-lugar-de-jesus-diz-deputado. html

100

Última alegoria do desfile da Mangueira em 2020. Desenho de concepção de Leandro Vieira, retirado do Livro Abre-Alas 2020, Domingo.

102

Última alegoria do desfile da Unidos da Tijuca em 2020. Foto: Júlio César Guimarães/ UOL, 2020. Retirada de: https://www.uol.com.br/carnaval/2020/album/2020/02/25/ unidos-da-tijuca.htm

106

Elza Soares em frente aos elementos cenográficos do desfile de 2020 da Mocidade Independente. Foto: Lucas Landau/UOL, 2020. Retirada de: https://www.uol.com. br/carnaval/2020/album/2020/02/25/mocidade-independente.htm

108-9 Abre-alas da Mocidade Independente de Padre Miguel no carnaval 2020. Imagem capturada de vídeo filmado da arquibancada, disponível no canal do youtube “Carnaval do mundo”. Disponível em: https://youtu.be/gGbXoWejUJ8 110

Crianças carregando latas d'agua na favela. Foto: Anthony Leeds, 1964. Retirada de: http://g1.globo.com/pop-arte/blog/yvonne-maggie/post/anthony-leeds-e163


antropologia-no-brasil-um-encontro-improvavel.html

164

114

Alegoria do desfile da Paraíso do Tuiuti em 2017. Foto: Rodrigo Gorosito/G1, 2017. Retirada de: https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/carnaval/2017/noticia/desfile-daparaiso-do-tuiuti-fotos.ghtml

116

Ala do desfile de 2018 da Paraíso do Tuiuti. Foto: Bruna Prado/UOL, 2018. Retirada de: https://www.uol.com.br/carnaval/2018/album/2018/02/12/paraiso-do-tuiuti. htm

122

Ala representando o morro do Salgueiro e segundo carro alegórico do desfile da São Clemente em 2014. Foto: Alexandre Durão/G1, 2014. Retirada de: http:// g1.globo.com/rio-de-janeiro/carnaval/2014/fotos/2014/03/fotos-desfile-da-escolasao-clemente.html

124

Terceira alegoria da São Clemente em 2014. Foto: Rodrigo Gorosito/G1, 2014. Retirada de: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/carnaval/2014/fotos/2014/03/fotosdesfile-da-escola-sao-clemente.html

126

Último carro alegórico da São Clemente em 2014. Foto: Rodrigo Gorosito/G1, 2014. Retirada de: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/carnaval/2014/fotos/2014/03/fotosdesfile-da-escola-sao-clemente.html

132

Carro alegórico do Salgueiro no desfile de 2011. Foto: Jussara Razzé, 2011. Retirada de: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Detalhe_de_alegoria_do_ Salgueiro,_2011_(01).jpg

136

Baianas do Salgueiro no Carnaval de 1964. Autoria desconhecida. Retirada de: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/almanaque/historia-comogetulio-vargas-enquadrou-samba.phtml

138

João Clemente Jorge Trinta, carnavalesco conhecido como Joãosinho Trinta, no encerramento de seu desfile Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia para o carnaval da Beija-Flor de Nilópolis. Foto: Estadão Conteúdo, 1989. Retirada de: https://setor1.band.uol.com.br/jamais-uma-homenagem-pode-ser-paga-dizpresidente-da-dragoes-sobre-enredo-para-joaosinho-trinta/


144

Bandeira brasileira reinventada por Leandro Vieira no MAM-Rio. Foto: Fabio Souza/ MAM, 2021. Retirada de: https://oglobo.globo.com/cultura/indios-negros-pobresbandeira-de-desfile-campeao-da-mangueira-vira-peca-de-museu-24857486

167

Cartaz do enredo Favela da São Clemente em 2014. Retirada do Livro Abre-Alas.

175

Cartaz do enredo A verdade vos fará livre da Mangueira em 2020. Retirada do Livro Abre-Alas.

180

Cartaz do enredo Nas encruzilhadas da vida, entre becos, ruas e vielas; a sorte está lançada: salve-se quem puder! da União da Ilha do Governador em 2020. Retirada do Livro Abre-Alas.

188

Cartaz do enredo Onde moram os sonhos da Unidos da Tijuca em 2020. Retirada do Livro Abre-Alas.

193

Cartaz do enredo Elza Deusa Soares da Mocidade Independente de Padre Miguel em 2020. Retirada do Livro Abre-Alas.

165


166


ANEXO

íntegra das sinopses e sambas

G.R.E.S. SÃO CLEMENTE, 2014

167


Sinopse do enredo Favela

168

Sou a São Clemente, a Escola da irreverência. Quando o couro estremece com a pancada da fiel bateria, o folião já sabe que é hora de brincar o carnaval na essência do que verdadeiramente é esta festa, a alegria. Mas não foi sempre assim, ou tão assim... No fim da década de 80, já era a Agremiação da espontaneidade, mas junto comigo, vinha o grito: “olha a crítica” !!!! E foi dessa forma que alertei o Brasil para o drama do menor abandonado, da violência e o perigo do samba sambar. No Carnaval de 2014, rimar São Clemente com irreverente vai continuar fazendo sentido, mas vou subir a favela com a audácia de mostrar toda a dimensão de sua complexidade. Mostrarei tendinhas, vielas, barracos e becos para entender melhor a origem, os costumes, problemas, utopias e suas saídas para a convivência harmônica das tantas contradições da humanidade. Hoje, Clementianos, favelados ou não, se misturam a esse corpo tão único e ao mesmo tempo tão heterogêneo, tão real e abstrato, tão ingênuo e malicioso, tão fora da lei e ordeiro, tão sofrido e feliz... Portanto, seja bem-vindo à favela da São Clemente, e cada comunidade está convidada para mostrar ao mundo toda a dimensão da audácia humana. Quem sou eu? Herança do olhar de esperança dos negros enfim livres A fé dos pobres soldados que foram a Canudos vencer o próprio espelho Dos sem cortiço, excluídos da cidade que “limpava-se” deles próprios... Quem sou eu? Bisneto dos imigrantes que fugiram da guerra Neto da seca do sertão Filho da miscigenação A pluralidade na origem, a uniformidade da carência Sou a pobreza que apareceu em cada canto da cidade maravilhosa utopia, carente de verdade Como fiz? Da necessidade! Erguendo formas estranhas, audaciosas Tão perigosas quanto geniais. Como fiz? Desafiando a lógica e a gravidade Arquiteto e engenheiro Sem régua, sem esquadro Sem segurança, nem dinheiro Como fiz? Com desejo em forma tijolo !!!


Coragem em prego e concreto !!! Como malabarista do dia a dia, equilibrado na necessidade Como fiz? Caixote virando madeira, fazendo de esteira, colchão E vela sobre a prateleira, garantindo iluminação Sou sinistro !!! Porque quebrei o muro invisível da cidade partida sob marteladas de ritmo... Criação desenfreada... “Gente simples e tão pobre, que só tem o sol que a todos cobre” Mas que faz arte como nenhum outro “Som de preto, de favelado, mas quando toca ninguém fica parado” Sou Sinistro !!! Porque levei pra cidade minhas manias e trouxe de volta ainda mais ricas No improviso, na parceria, no sofrimento, na festa, na religiosidade Muito sinistro !!! Porque vão falando como nós, dançando como nós, grafitando como nós Nem adianta O povo pobre tem a força e a potência transformadora de um átomo E não é só aqui, é no mundo inteiro A massa, independentemente da cor da pele, da língua que fala ou do continente que vive É cimento e sentimento É concreto e abstrato Nem adianta Derrubam um barraco aqui, surgem cem ali Renasce favela! Sai dos labirintos, dança um afroreggae Pinta a arte de nossos poetas Exige mudança, refaz a esperança E protagoniza teu próprio destino Renasce Favela! Em uma central única, desata os nós Se antena no mundo Ergue nossa voz Tudo misturado, junto, conectado Pobres, gays, louco ou burguês Sem cor, sem religião Toda cor, toda religião Quem diria? O futuro vindo da contramão

169


Tudo misturado Quem um dia foi humilhado Hoje é estrela que brilha pelo mundo mostrando O orgulho de ser daqui Tudo misturado Porque a cidade está em festa A gelada está no bar e Dona Marta já fez o feijão São Clemente hoje é nossa família, nossa favela, nossa paixão

Justificativa do enredo Meu nome é Favela... O cheiro de pólvora estava no ar. Soldados de todo o país desbravavam o sertão para destruir Canudos, a terra de Antônio Conselheiro, uma espécie de fonte no Oásis dos excluídos, desbravado no deserto da exploração ao sertanejo. E lá se foram as tropas sob a promessa republicana de “terras no Rio de Janeiro”, uma gente tão necessitada quanto aqueles que iriam destruir. Em meio às explosões na caatinga e às espadas manchadas de sangue, destacavam-se alguns cenários. O sol abrasador, o chão rachado, o mandacaru e a favela, uma leguminosa espinhenta e resistente como aquela gente do povoado. E aquela gente vai estar na São Clemente !!!! Cidade maravilha da beleza e do caos... A “vitória” foi conquistada, um sonho destruído, e na busca pela “terra prometida” pelos governantes, os veteranos dos combates no Belo Monte desembarcaram aqui. Sem a promessa e o soldo, os ex-combatentes subiram o morro próximo ao centro, de onde a coincidência brotava na mesma planta encontrada na área dos tais combates. Era o morro da favela e o povo que por lá ia se arrumando em meio à tal vegetação foi sendo chamado de favelado! Como o Rio daqueles tempos era a capital da república e das oportunidades, também chegaram por aqui no fim do século XIX e ao longo de todo o seguinte, o dinheiro, os artistas, os bancos e o luxo, mas também os negros libertos, imigrantes fugidos das guerras mundiais e mais retirantes sedentos com as secas nordestinas. Se por um lado recebíamos todo tipo de gente, por outro, necessitava-se de uma imagem menos agressiva para os olhos dos investimentos e da soberba. Os pobres viram os cortiços caírem, e a solução encontrada pelos humildes foi tão horizontal (na direção dos subúrbios) quanto vertical, 170


emoldurando nos morros com a dura realidade, a cidade da ilusão desejada pelos ricos. Seja no centro (Providencia, Santo Cristo), zona norte (Macacos, Salgueiro, Mangueira, Borel), na zona sul (Vidigal, Pavão, Pavãozinho, Dona Marta, Babilônia), Zona da Leopoldina (alemão, vila cruzeiro) e mais tarde a caminho da zona oeste (Rocinha, Cidade de Deus, Rio das Pedras), lá estavam elas, as favelas e eles, os favelados. E essa gente já sabe da homenagem e vai estar na São Clemente !!!! Lata d’agua na cabeça, La vem Marias, Joãos, Lourdes, Zés... Para a elite, estar próximo dos pobres é a própria contradição... Acusá-los das mazelas e desprezálos como vizinhos, mas usá-los como serviçais. Sendo assim, pela cidade inteira, se misturaram os executivos e madames de salto alto, aos meninos de pés no chão, pedreiros, malandros, motoristas, domésticas mucamas-modernas, ou carreteiros da feira, sobre ferraris de tábuas e rodas de bilha, carregando bolsas recheadas do que não tinham. Aqueles que entravam nas casas dos patrões pela área de serviço, com a permissão de seguranças tão carentes quanto eles. Pessoas que sobem e descem sem hora, sob a rotina de não ter rotina, porque pra este corpo chamado favela, estar perto dos ricos é a oportunidade do emprego e de usar o descarte dos abastados na construção de uma nova vida. Chance de vender o almoço pra jantar... Facilmente reconhecidos, lá vão eles, arquitetos sem régua, sem regra e sem dinheiro, que desafiam e nem sempre vencem a gravidade, vivendo a mercê das águas de março, nem sempre promessa de vida. E não tenha dúvidas, que foi essa gente que costurou, limpou, colou, bordou, serrou, soldou... e vai sim, desfilar na São Clemente As vozes do morro... A favela é babado, confusão, gritaria. Motos frenéticas aceleram em zig-zag pelas ladeiras e vielas, e kombis lotadas que sobem e descem vinte e quatro horas por dia. Pra espantar a dor, música e diversidade à todo vapor. Na palma da mão, a batucada é garantida com o melhor samba de roda, o jongo, pagode, rap, funk, soul... A lei do silêncio e qualquer censura naturalmente flexibilizam-se com a explosão do baile, onde a diversão caminha lado a lado com a perdição. O pancadão invade a madruga e as minas pira de copo na mão, roupa colada, dançando até o chão. Tchutchucas, leks, nens e piriguetes, exibem as habilidades em sensuais batalhas de passinhos e quadrados de números variados, gaiolas enlouquecidas de tigrões e popozudas. Esse indesejável vizinho é espaçoso. E só não vê quem não quer... Com o passar do tempo foi ficando maravilhosamente abusado, transformando o jeito da cidade se vestir, se expressar, cantar e dançar. Riqueza cultural que nasce da necessidade e da pluralidade, descendo o morro, 171


ganhou as ruas. E não tenha dúvida, o DJ já anuncia que a homenagem é pra geral, e geral vem dançar com a gente, e luzes brilham na São Clemente.

Eu só quero é ser feliz, o jeito favelado de viver... Já ecoa na cidade que o bagulho vai ficar neurótico com a São Clemente. Na pelada, queimado, sinuca, totó e rodas de dominó, não se fala de outra coisa. Enquanto as crianças se divertem no pique, bola de gude, pipa, pião ou na lan-house, pulam valão, tomam banho de mangueira ou na piscina de plástico, achando graça de tudo; no boteco ou na lage, regado a cachaça e cervejinha, os mais velhos assam a carne na churrasqueira improvisada com tijolos e a grelha surrupiada da geladeira. Bem no jeito favelado de se divertir, comentam sobre a “festa da favela” na Sapucaí. O samba cantando seu habitat mais natural... As tias quituteiras e doceiras de mão cheia, arrasam na cozinha, nos bolinhos, na feijoada, na maionese e, no salpicão e na sopa de entulho, o jeito favelado de não perder sustento e ganhar mais sabor. Garantem que não vai faltar nada na festa. Os hinos de louvor se misturam aos tambores do candomblé, e os que disputam fiéis pelos becos, hoje entoam: “eu quero mais é ser feliz, a minha estrela vai brilhar”, pois a homenagem é como a favela, pra todos, sem distinção, na mais perfeita harmonia. E a alegria dessa gente vai estar na São Clemente O sol da manhã vem e nos desafia e traz o sonho pro mundo... E a notícia já corre o mundo inteiro e favelados de todas as partes começam a chegar. A homenagem também é pra eles! Cada um com sua música, cada um com seus trajes e peculiaridades, mas com as mesmas dificuldades. É gente que independente de que lado venha, dribla as gangorras da vida dia a dia. Favelados brancos, negros, pardos, amarelos, de olhos arregalados ou puxados, que sobrevivem sobre “palafitas, trapiches, barracos, filhos da mesma agonia”, rogando a Cristo, Buda, Alá, Zambi ou Oxalá, por dias melhores. E todo mundo, desse jeito sofrido e contente, vem sambar na São Clemente! Desatando nós... Mas os tempos estão mudando. Atualmente, diversos projetos sociais focam na questão da integração, da socialização, da capacitação. Independente de ser uma atividade de entretenimento ou especialização, os cursos atuam em diversas áreas, tais como música, dança, esportes, 172


artesanato, culinária e tecnologia. São movimentos socioculturais que corroboram com a ideia de que, apesar de todas as dificuldades, é fácil observar a questão da identidade, o orgulho de se pertencer a esse lugar; a garra, a raça, a capacidade de superação em meio à certeza de que, na dor, todos são iguais, e que a periferia te dá resistência. Moral da história... Conhecer a favela e seus moradores, que vivem à margem da chamada sociedade, e sua realidade invisível, é um convite bacana a uma viagem imperdível, tá ligado? A real, é que a galera da favela é uma gente simples, solidária, de riso fácil; que transforma o amor em poesia e a tristeza em canção. Quem sobe o morro fica mais perto do céu e mora mais perto de Deus. E nós, Clementianos, vamos mostrar, na Marquês de Sapucaí, que o morro é bamba, que favela dá samba, e como é brava, guerreira e valente essa gente que compõe a Favela São Clemente!

173


Letra do samba-enredo Em busca da felicidade Trago a esperança no olhar Sou bisneto de imigrantes À miscigenação eu vou brindar Sem régua, sem esquadro Arquiteto da ilusão Com muita luta construí o nosso chão... Pobre...Mas rico de emoção Livre...Mas preso na paixão Favela...Te emoldurei em aquarela Linda nesta passarela A força da fé...Sou eu Se o bem vence o mal... Valeu O amanhã, vou conquistar É preciso acreditar Gangorra da vida De que lado está? A fome de amor faz meu sonho sonhar Na minha lida desço o morro pra vencer Quero justiça pra poder viver Devemos dar as mãos e juntos caminhar Minha favela coisa mais bela não há É nas vielas que nasce o mais puro samba Se tem batucada nos guetos tem bamba É o coração quem manda... Eu quero mais é ser feliz A minha estrela vai brilhar Oh! São Clemente, eternamente Vou te amar... 174


G.R.E.S. ESTAÇÃO PRIMEIRA DE MANGUEIRA, 2020

175


Sinopse do enredo A verdade vos fará livre Ao vislumbrar uma face para Jesus Cristo, a Estação Primeira de Mangueira olha para a sua gente com a intenção de evidenciar que a experiência de vida de Cristo está muito mais associada com as angústias dos oprimidos do que com a imagem embranquecida, eurocêntrica, machista e patriarcal que foi pintada em um retrato secular. Ao fazer tal ato, dando-lhe contornos artísticos próprios, a verde e rosa realiza escolhas visuais. Compreender que o Jesus caucasiano - de olhos claros e madeixas alouradas - é uma invenção de uma iconografia cristã orquestrada é condição tão importante para a compreensão do enredo quanto o entendimento da ressignificação morfológica da figura central da biografia que apresentamos ao longo do desfile. É importante considerar que a ideia de um Jesus de pele clara surgiu na Idade Média. É unanimidade entre historiadores que o avanço do Cristianismo pela Europa contribuiu para a difusão de um modelo que não levou em consideração que um homem Galileu - queimado há mais de dois mil anos pelo sol do oriente médio - estava longe de ter a aparência das imagens maciçamente disseminadas pelas correntes artísticas advindas da Europa. É portanto inverossímil que Jesus tenha o tom de pele e as semelhanças físicas resguardadas por sua imagem mais bem difundida no imaginário coletivo. Não há indícios bíblicos ou documentais que comprovem ou refutem a afirmação, mas já é sabido que, levando-se em consideração a origem geográfica, é muito provável que a figura central do cristianismo tivesse um biotipo distinto daquele que se tornou convencional, a pele num tom mais escuro, assim como os cabelos e os olhos. Religiosamente, há quem pergunte que diferença faz a cor ou a imagem de Jesus pintada nos retratos, enfatizando que os ensinamentos fraternais e igualitários do homem que é a base do cristianismo sobrepõem a sua própria imagem. Para questões associadas à prática religiosa, enquanto uma experiência individual, a questão talvez encontre sentido. Para o entendimento de aspectos socioculturais não. Já é sabido - e não é de hoje – o poder das imagens e das representações de modelos, já que é uma inclinação humana atrair-se por pessoas que se pareçam consigo. Apresentar a biografia de Jesus como enredo, acrescentando ao tema uma possibilidade de diversidade de contornos físicos no Brasil do “Deus acima de tudo”, é disputar narrativa com aqueles que se apropriaram dos ensinamentos do Jesus histórico, domesticaram seu conteúdo e passaram a usá-lo para seus interesses. A figura de Jesus, no Brasil do vigésimo ano do século XXI, tornou-se uma espécie de fiadora de uma lógica conservadora que reafirma os mais antigos valores de um país fundado à luz da exploração indígena, do racismo difundido com a prática da escravidão negra, do machismo baseado no patriarcado e na desigualdade social desmedida que segue “sacrificando” e “crucificando”. É interessante pensar que os conservadores atuais fazem uso da célebre figura 176


que apresentamos como enredo colocando-o como uma espécie de colaborador de um posicionamento muitas vezes anticristão. A verdade é que a figura de Jesus foi domesticada para atender a interesses políticos e religiosos e é sobre isso que o enredo proposto se debruça para apresentar sua narrativa, ou, melhor, sua contra narrativa. Para apresentar a ideia de um Jesus de várias faces, dando-lhe os possíveis contornos estéticos próximos ao morro da Mangueira e aos grupos minoritários do Brasil do século XX, segue a sinopse do enredo batizado de A VERDADE VOS FARÁ LIVRE: “Nasceu pobre e sua pele nunca foi tão branca quanto sugere sua imagem mais popular. Sem posses e mais retinto do que lhe foi apresentado, andou ao lado daqueles que a sociedade virou as costas oferecendo-lhes sua face mais amorosa e desprovida de intolerância. Sábio, separou o joio do trigo, semeou terrenos férteis e jamais deixou uma ovelha sequer para trás. Exaltou os humildes e condenou o acúmulo de riqueza. Insurgiu-se contra o comércio da fé e desafiou a hipocrisia dos líderes religiosos de seu tempo. Questionou o poder do império romano e condenou a opressão. Seu comportamento pacifista e suas ideias revolucionárias inflamaram o discurso dos algozes que passaram a excitar o estado a decretar sua sentença. O fim todos sabemos: Foi torturado, padeceu e morreu. Séculos depois, sua trajetória ainda anda na boca dos homens e em seu nome, para o mal dito “de bem” – e com rígido contorno de moralidade – muito já foi realizado de forma estanque ao sentido mais completo do AMOR por ele difundido. O amor incondicional, irrestrito e ágape. Por isso, quando preso à cruz, ele não pode ser apresentado como um. Ser um, exclui os demais. Preso à cruz, ele é a extensão de tantos, inclusive daqueles que a escolha pelo modelo “oficial” quis esconder. Sendo assim, sua imagem humana não pode ser apenas branca e masculina. Na cruz, ele é homem e é também mulher. Ele é o corpo indígena nu que a igreja viu tanto pecado e nenhuma humanidade. Ele é a Ialorixá que professa a fé apedrejada e vilipendiada. Ele é corpo franzino e sujo do menor que você teme no momento em que ele lhe estende a mão nas calçadas. Na cruz, ele é também a pele preta de cabelo crespo. Queiram ou não queiram, o corpo andrógino que te causa estranheza, também é a extensão de seu corpo. Sem anunciar o inferno, ele prometeu que voltaria. Acredito que, se ele voltasse à terra por uma encosta que toca o céu – para nascer da mesma forma: pobre e mais retinto, criado por pai e mãe humilde, para viver ao lado dos oprimidos e dar-lhes acolhimento – ele desceria pela parte mais íngreme de uma favela qualquer dessa cidade. Talvez na Vila Miséria*, região mais alta e habitada do Morro de Mangueira. Ali, uma estrela iluminaria a sala sem emboço onde ele nasceria menino outra vez. Então, ele cresceria entre os becos da Travessa Saião Lobato*, correria junto das crianças da Candelária*, espalharia suas palavras no Chalé* e no “Pindura” Saia*. Impediria que atirassem pedras contra os que vivem nas quebradas e nos becos do Buraco

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Quente*. Estaria do lado dos sem eira e nem beira estranhando ver sua imagem erguida para a foto postal tão distante, dando as costas para aqueles onde seu abraço é tão necessário. Se sobrevivesse às estatísticas destinadas aos pobres que nascem em comunidades, chegaria aos 33 anos para morrer da mesma forma. Teria a morte incentivada pelas velhas ideias que ainda habitam os homens. O amor irrestrito ainda assusta. A diferença jamais foi entendida. Estender a mão ao oprimido ainda causa estranheza. Seria torturado com base nas mesmas ideias. Morto, ressuscitaria mais uma vez e, por ter voltado em Mangueira, saudaríamos a possibilidade de vermos seu sorriso amoroso novamente com o que aqui fazemos de melhor. Louvaríamos sua presença afetuosa com samba e batucada. Vestiríamos todos nossa roupa mais cara. Aquela de paetês e purpurina. De cetim com joias falsas. Desfilaríamos diante dele e, em seu louvor, instauraríamos a lei que rege nossos três dias de folia. Sem pecado, irmanados e em pleno estado de graça. Explicaríamos nessa ocasião que a cruz pesada que carregamos como fardo ao longo do ano nos é tirada das costas no carnaval. Por ter vencido a morte e sem ter o peso de sua cruz nas costas, ele sorri para a baiana que desce para se apresentar. Ele acena com a mão direita para a passista que amarra a sandália, enquanto a mão esquerda dá a benção para o ritmista que rompe o silencio com a levada de seu tamborim. Fitando o céu, ele parece ver algo ou alguém acima da linha do horizonte. Sorri, como se pego em meio à brincadeira e se soubesse humano também. Entendendo que ali ele é rebento e que todos, sem exceção, são seu rebanho; ciente de que o pecado, por vezes, é invenção para garantir medo e servidão, ele pede para que toda essa gente que brinca anuncie enquanto canta sorrindo: A VERDADE VOS FARÁ LIVRE.” Vila Miséria* Travessa Saião Lobato* Candelária* Chalé* Pindura Saia* Buraco Quente* – Todos os nomes referem-se a localidades ocupadas pela comunidade do Morro da Mangueira.

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Letra do samba-enredo Eu sou a Estação Primeira de Nazaré Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher Moleque pelintra no Buraco Quente Meu nome é Jesus da Gente Nasci de peito aberto, de punho cerrado Meu pai carpinteiro desempregado Minha mãe é Maria das Dores Brasil Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira Me encontro no amor que não encontra fronteira Procura por mim nas fileiras contra a opressão E no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão Eu tô que tô dependurado Em cordéis e corcovados Mas será que todo o povo entendeu o meu recado? Porque de novo cravejaram o meu corpo Os profetas da intolerância Sem saber que a esperança Brilha mais na escuridão Favela, pega a visão Não tem futuro sem partilha Nem messias de arma na mão Favela, pega a visão Eu faço fé na minha gente Que é semente do seu chão Do céu deu pra ouvir O desabafo sincopado da cidade Quarei tambor, da cruz fiz esplendor E ressurgi no cordão da liberdade Mangueira Samba, teu samba é uma reza Pela força que ele tem Mangueira, vão te inventar mil pecados Mas eu estou do seu lado E do lado do samba também

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G.R.E.S. UNIÃO DA ILHA DO GOVERNADOR, 2020

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Sinopse do enredo Nas encruzilhadas da vida, entre becos, ruas e vielas. A sorte está lançada: salve-se quem puder! Introdução O enredo nasce da experiência de Luiz Fernando Ribeiro do Carmo, o Laíla, 76 anos, como morador do Morro do Salgueiro, onde nasceu e passou boa parte de sua vida, desde a década de 1940. Ganha contornos especiais quando, tempos atrás, Laíla – atual Diretor Geral de Carnaval da União da Ilha do Governador - tornou-se o principal defensor do retorno dos sambistas das comunidades à Avenida, como elementos fundamentais para o trabalho de suas respectivas Agremiações; e, principalmente, como guardiões dos fundamentos e tradições da maior festa popular do País: o desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Através de sua luta e dos resultados alcançados pela Escola que dirigia, as coirmãs entenderam que era tempo de destinar parte do orçamento para vestir as alas de suas comunidades. Desde então, o espetáculo ganhou um novo alento. Um novo processo de criação Ao desembarcar na Ilha, Laíla trouxe novas ideias. Acreditava que, em vez de uma sinopse com palavras grifadas, ou versos pré-fabricados, os compositores teriam maior liberdade para produzir se tomassem a própria experiência de vida como linha condutora de sua obra. Foi de uma troca de ideias com os integrantes da Comissão de Carnaval sobre o cotidiano das comunidades que nasceu o embrião do argumento. O resumo do encontro foi transformado num roteiro básico e transmitido aos compositores, com uma recomendação expressa: “Escrevam com o sentimento, ouçam o coração” – esta prática, aliás, remonta aos grandes carnavais da União da Ilha. Escolhido na quadra pela voz da comunidade, o samba-enredo passou a ser matriz para a criação de alegorias, fantasias e situações cênicas, que terão a favela como pano de fundo. Desde então, a experiência de diretores, componentes e torcedores em suas respectivas comunidades tornou-se matéria-prima para os arremates de um trabalho cada vez mais coletivo. Estas pessoas acabaram se acostumando a doar móveis, utensílios, roupas e acessórios descartados que, depois de um tratamento artístico, passaram a compor os mais diversos cenários desta opereta carioca. 181


Nas encruzilhadas da Vida, entre becos, ruas e vielas; A sorte está lançada: Salve-se quem puder! Para contar essa história, elegemos uma jovem mãe, negra, pobre, que pensa no futuro que poderá oferecer ao bebê que está sendo gerado em seu ventre. É uma brasileira como milhões de outras mulheres que vivem em situação semelhante. Ela acredita que a Escola de Samba também tem compromisso com a cidadania e que o Samba, com a sua magia, é capaz de operar verdadeiros milagres. Torcemos para que este desfile desperte a nossa atenção para a necessidade de sermos mais amigos, solidários e que tenhamos mais respeito e amor aos nossos semelhantes. Sejam eles brasileiros ou não. Ouçamos o que ela tem a dizer. Nas encruzilhadas da vida “Daqui de cima me encanto com as luzes da cidade. São pequenas contas que enfeitam ruas e avenidas, formando linhas retas e curvas, contornando um espaço que não é nosso. Às vezes me pergunto: será que, lá de baixo, eles também se encantam com as luzes aqui do morro? Ou será que ainda não repararam nas coisas bonitas que também existem do lado de cá? Quando era pequena, meu pai costumava dizer que aqui em cima, nessa lua redonda que ilumina a todos nós, mora São Jorge, o nosso padroeiro. É ele quem nos protege das injustiças, da indiferença e que, com a sua lança, espeta o dragão do mal, para que os pequenos possam dormir sem medo e tenham paz para sonhar com o dia de amanhã. Ai, Senhor, mas é esse tal dia de amanhã que me deixa angustiada! Quando penso na criança que está em meu ventre, tento imaginar o que o destino reservou para ela. Haverá uma escola para ensinar a ela a acreditar em si mesma e lutar para, um dia, ser alguém? Será que haverá um médico para cuidar dela no dia em que ficar doente? Será que conseguirá um bom lugar no mercado de trabalho? Será que poderá constituir uma família com dignidade? Ou será que uma bala perdida vai atravessar o caminho dela? Não, meu Senhor! São Jorge há de protegê-la e com a Sua bênção ela há de crescer sadia, inteligente, honesta e trabalhadora. Há de ser outra guerreira, como tantas que aqui nasceram e hoje, de alguma forma, são felizes - mas continuam lutando contra tantas desigualdades! Senhor, protegei minha criança, e faça dela um instrumento para semear o Bem.” 182


Entre becos, ruas e vielas “As dificuldades ensinam que a comunidade forma uma grande família. Vizinhos se ajudam, as tias aconselham, as crianças se entendem e todos acabam se dando as mãos porque os problemas geralmente são os mesmos, em todas os lares. Pode faltar arroz, feijão, leite, mas a amizade fala mais alto. Existe sempre um jeitinho de ajudar e ser ajudado. Um sorriso, uma palavra amiga, um olhar de ternura. Aqui em cima, as imposições da vida nos obrigam a ser solidários, seja num temporal ou no fogo cruzado. No fundo, somos todos irmãos. Se a comunidade pensa duas vezes em descer até o comércio, este é mais rápido e vai à comunidade. É um entra-e-sai de ambulantes oferecendo as mais diferentes mercadorias: roupas, comestíveis, panelas, produtos de limpeza, artigos de higiene, óculos escuros, óleo de bronzear, protetor solar, capas de celulares, cigarros a varejo e CDs para todos os gostos. Substituíram os ambulantes de antigamente, que vendiam aves, carne de porco, cestarias e fogareiros a querosene. São cenas que se misturam na memória, misturando passado e presente, sem que a gente dê conta de como o tempo voa. Aqui, existem vizinhos que são do Santo, os que pregam as Sagradas Escrituras, os que louvam o Senhor sobre todas as coisas. Se falta de tudo um pouco, sobra fé. Graças a Deus! É interessante quando a gente vê, bem cedinho, com o céu ainda escuro, os primeiros trabalhadores descerem para o batente. Quase todos fazem o sinal da cruz. Fico me perguntando: por que será? Talvez precisem de proteção para garantirem o sustento da família; ou, então, careçam de proteção especial para retornarem, no final do dia. A gente nunca sabe o que pode acontecer. É uma gente muito valente. Além das angústias que envolvem a comunidade, eles ainda enfrentam transportes lotados, horas de engarrafamento e quando chegam no trabalho se submetem a exigências que não são muito diferentes daquelas do tempo da escravidão. Sejam eles operários da construção civil, garis, diaristas, e empregadas domésticas, enfim. A distância entre o pão nosso de cada dia e o pão que o diabo amassou é muito curta. Mas o povo engole, digere e toca em frente. Segue o jogo!, como diz o outro. Nosso povo é tão bom que deixa as injustiças de lado, os esquecimentos e as promessas não cumpridas, mas continua acreditando no Brasil do futuro: forte, independente, próspero e amigo de sua gente. Renova as esperanças, arregaça as mangas e continua se empenhando para ajudar o Gigante a seguir o seu caminho.” A sorte está lançada 183


“Quando meus olhos tentam enxergar mais longe que os limites da cidade, fico triste. Penso em outros brasileiros espalhados por este país a fora. Assim como nós, eles também não têm motivos para acreditar em novas promessas. De vez em quando, recebemos visitas de gente que se diz bem-intencionada, preocupada com os problemas da comunidade. Falam da necessidade de diversas obras: rede de esgoto sanitário, abastecimento de água, contenção de encostas, e por aí vai. Prometem até bondinho, para poupar as pernas de nossos velhos. Deixam cartazes de campanha e santinhos de lembrança, sempre sorridentes e otimistas. Mas, afinal, eles estão rindo de quê? Ou de quem? Será da gente? Basta conseguirem o seu objetivo para esquecer de tudo o que prometeram. E de todos que lhes abriram as portas. E o pior: deixam de cuidar até do que é essencial. Não temos mais hospitais, nem postos de saúde que nos atendam. Nossas escolas estão fechando, uma a uma. O desemprego aumenta. A violência cresce como uma bola de neve, arrastando a todos que estão em seu caminho. Os problemas são tão graves que já não afetam apenas as camadas mais pobres da sociedade. Agora, corroem os calcanhares da classe média também. A tal pirâmide social está ruindo e os pedaços caem sobre nós. (Sempre que o bebê chuta a minha barriga chego a pensar que, mesmo lá dentro, ele consegue captar os meus pensamentos. Parece uma forma de protestar. Tento me distrair com outra coisa, mas é difícil. Tadinho...)” Salve-se quem puder! “Não é preciso ser muito inteligente para perceber que a maioria desses problemas que afetam os pobres, quase pobres e futuros pobres é provocado pela má divisão da economia. Quanto maiores a ganância e o egoísmo de uns, maiores serão também a miséria, a fome e o total abandono de outros. Isso é próprio do ser humano e a casta dos brasileiros também está se especializando nisso. Não tá nem aí... Essa gente privilegiada construiu um mundo particular para si. São milionários, moram em mansões, viajam para o mundo inteiro, são tratados por médicos renomados, enviam seus filhos para os melhores colégios e universidades, com a promessa de que, no futuro, serão eles que cuidarão do país. Fala sério, ô! Enquanto isso, o outro prato da balança da justiça social mergulha no abismo. Não há meio termo entre Paraíso e Inferno. São dois pesos e duas medidas, destruindo todos os valores que aprendemos na escola. “Criança, ama com fé e orgulho a terra em que nasceste!” – ainda me lembro do poema de 184


Olavo Bilac, que a professora obrigava a gente a decorar, na ponta da língua. “Criança, não verás nenhum país como este!” – e nós decorávamos tudo. Mais por respeito à professora do que pelas palavras de poeta. Tempos em que os professores eram considerados os nossos segundos pais, tratados como verdadeiros mestres. Hoje, coitados... São humilhados de todas as formas, dentro e fora das salas de aula. Assim como os médicos do serviço público, que não recebem salários e são obrigados a tirar do próprio bolso para tentar salvar os pacientes, abandonados pelos corredores. Os valores foram todos destruídos por quem deveria dar o exemplo. Perdemos a confiança, mas não a fé. Se não acreditarmos num futuro melhor, quem poderá? No entanto, meu Senhor, como conseguirei ensinar esta criança a sonhar?” O Dia da Comunidade “O que nos leva a ser tão solidários e procurar sempre uma forma de festejar alguma coisa? São batizados, aniversários, noivados, casamentos e, de vez em quando, rola até um pagode no velório de alguém – é um tal de “gurufim”, como fiquei sabendo. Se não existe um motivo oficial, procura-se outro. É a vitória no futebol, no samba, enfim, o importante é que a comunidade tenha a oportunidade de exercitar um convívio que é cada vez mais raro lá embaixo, naquele espaço que não nos pertence. Aqui, tudo é difícil, mas existe sempre uma solução. Se a praia é longe, inventou-se a laje, onde as meninas se bronzeiam com uma formosura digna de Ipanema. Se o clube é distante, o funk arma o batidão em qualquer viela, espalhando o som de suas caixas pelas redondezas. É Anita o dia inteiro... Assim como o cheirinho de churrasco, que invade portas e janelas, trazendo gente de todos os lados. A comunidade se pertence e acaba virando uma irmandade. E é exatamente isso que eu preciso ensinar a esta criança que carrego aqui dentro: mesmo com todos os revezes que povoam o nosso cotidiano, carregamos uma obrigação – que, assim como o Samba, não se aprende no colégio: “Amarás o próximo como a ti mesmo”. É por isso, Senhor, que viemos festejar: Na paz da criança, no amor da mulher, de gente humilde, que pede com fé. Senhor, eu sou a Ilha!” Rio de Janeiro, dezembro de 2019 185


Comissão de Carnaval: Coordenador: Luiz Fernando Ribeiro do Carmo, Laíla Carnavalescos: Fran Sérgio e Cahê Rodrigues Membros: Larissa Pereira, Allan Barbosa, Anderson Neto e Felipe Costa Textos: Cláudio Vieira

Justificativa do Enredo Acostumada a falar a linguagem do povo, a União da Ilha do Governador dedicará o desfile no Carnaval de 2020 a uma reflexão sobre os principais problemas que afetam a sociedade, notadamente a camada mais pobre da população, instalada nas comunidades da periferia – e outras que estão se formando nos espaços públicos, sejam parques, praças e prédios abandonados ou invadidos. Não se trata de uma questão exclusiva do Rio de Janeiro, pois os problemas enfrentados pelas comunidades cariocas não são diferentes dos que também afetam as de São Paulo, Belo Horizonte, Salvador e de outras grandes cidades onde, teoricamente, parques industriais poderiam sinalizar como esperança de trabalho e sobrevivência para milhões de brasileiros. Paralelamente a um desfile que se propõe a registrar um esquecimento cada vez maior dos compromissos assumidos pelo Estado (no mais amplo sentido da palavra) diante de obrigações básicas, a União da Ilha do Governador convida o público a fazer um passeio pelos becos, ruas e vielas dessas comunidades. Apesar de as encruzilhadas concentrarem problemas comuns a toda a sociedade, é ali na comunidade que os reflexos são mais nítidos e impactantes. Mesmo assim, essa brava gente aprendeu a superá-los de forma exemplar, através da solidariedade, da amizade, da força de vontade, determinação e de um contagiante mutirão de amor, capaz de superar os efeitos devastadores de um temporal; dos mais diferentes tipos de confrontos; e dos impactos causados pela impiedosa desigualdade social deflagrada por um sistema econômico. Apesar de tantos pesares, essa gente, a nossa gente, a brava gente brasileira aprendeu a ser feliz. É capaz de transformar pequenos momentos de alegria em grandes eventos, que descem a ladeira, invadem a cidade e abraçam o mundo com a euforia de um intenso Carnaval. Se a comunidade tanto fez pela União da Ilha do Governador, chegou o momento de a Escola retribuir, e fazer um pouco por ela. Estamos juntos! 186


Letra do samba-enredo Senhor, eu sou a Ilha! E no meu ventre essa verdade que impera Que é invisível entre becos e vielas De quem desperta, pra viver a mesma ilusão E vai trabalhar Antes do sol levantar de novo A voz do rancor não cala meu povo, não! Sou mãe! Dignidade é meu destino Rogo em prece meus meninos Ao longe, alguém ouviu Meus filhos são filhos dessa mãe gentil Inocentes, culpados, são todos irmãos Esse nó na garganta, vou desabafar O chumbo trocado, o lenço na mão Nessa terra de deus-dará... Eu sei o discurso oportunista É a ganância, hipocrisia O seu abraço é minha dor, seu doutor Eu sei que todo mal que vem do homem Traz a miséria e causa fome Será justiça de quem esperou O morro vem pro asfalto e dessa vez Esquece a tristeza agora... É hoje, o dia da comunidade Um novo amanhã, num canto de liberdade A nossa riqueza é ser feliz Por todos os cantos do País Na paz da criança, o amor da mulher De gente humilde que pede com fé

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G.R.E.S. UNIDOS DA TIJUCA, 2020

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Sinopse do enredo Onde moram os sonhos A Unidos da Tijuca escolheu, como tema para o enredo de 2020, a Arquitetura e o Urbanismo. Cenário do Carnaval carioca, que é um dos maiores espetáculos a céu aberto do planeta, o Rio de Janeiro é Patrimônio Cultural Mundial, na categoria paisagem urbana, desde 2012. A cidade recebeu, ainda, recentemente, o título de primeira Capital Mundial da Arquitetura, concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e pela União Internacional dos Arquitetos (UIA). No ano em que o Rio será a sede de importantes eventos internacionais, como o 27º Congresso Mundial de Arquitetos e o Fórum Mundial de Cidades, além de exposições e concursos públicos, a Tijuca projetou seu desfile para explorar o passado, entender o presente e arquitetar o futuro. O enredo vai mostrar a incrível capacidade do homem de criar espaços que possam servir de abrigo para diferentes atividades. Ao realizar o seu trabalho, os arquitetos deixam registros que nos ajudam a compreender a nossa história. Templos, monumentos, casas, prédios, conjuntos habitacionais, parques, praças, ruas e avenidas revelam a contribuição de uma das mais antigas profissões. Das edificações da Antiguidade às cidades modernas, cada espaço ensina a cultura de seu tempo. Mas muitos são os desafios. É preciso conservar o patrimônio cultural da humanidade, além de resolver os problemas gerados pelo crescimento injusto e desigual, que se agrava nos centros urbanos e afeta a existência de todo o planeta. A Tijuca percorre a Avenida da Capital Mundial da Arquitetura apresentando algumas de suas grandes realizações do passado até chegar às modernas metrópoles da atualidade e seus problemas. E convida o público a participar de um projeto de um futuro em que haja qualidade de vida e justiça social para todos. Que venham os arquitetos e urbanistas do mundo! Vamos planejar o amanhã... Porque os sonhos vivem dentro de nós e é possível torná-los realidade, se trabalharmos juntos. ABERTURA O que move homens e mulheres que se dedicam a pensar na arte de viver, projetar, organizar e produzir o lugar da moradia, do trabalho, da diversão, do lazer e da religião? A sensibilidade do artista procura e encontra soluções, ao erguer palácios, igrejas, casas, vilas, cidadelas, metrópoles e monumentos que desafiem o tempo e o espaço. Esse é um processo que acontece há milênios, todos os dias. EM BUSCA DA ETERNIDADE Na Antiguidade, os que governaram as primeiras civilizações construíram edifícios monumentais para cultuar suas divindades, abrigar seus sarcófagos, proteger suas cidades, 189


divertir seus povos. Maravilhas arquitetônicas do Mundo Antigo resistiram há milhares de anos, para que nos revelassem histórias perdidas no tempo, onde faraós e imperadores homenageavam os deuses e construíam templos que são testemunhos da avançada cultura das sociedades daquele período. O refinado conhecimento dos povos antigos, com suas construções harmoniosas, inspira, até hoje, a arquitetura mundial. ARQUITETANDO O BRASIL Muitos povos indígenas residem em construções que guardam um conhecimento ancestral. As ocas e malocas de madeira, folhas e fibras, habilidosamente encaixadas e trançadas com cipó, se integram à natureza e ao modo de vida das populações tradicionais. A chegada dos portugueses, no século XVI, dá início a uma nova forma de arquitetura e de construção, que, além do conhecimento indígena e dos colonizadores, recebe a influência dos negros africanos escravizados. Cada edifício da história guarda os registros do trabalho de seus arquitetos e da mão de obra que os construiu. Caminhar por algumas cidades históricas de Minas Gerais é conhecer a riqueza das igrejas barrocas do período colonial, que floresceu no ciclo do ouro, nos séculos XVII e XVIII, e, também, a genialidade do artesão Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. A vinda da família real, em 1808, e, tempos depois, da Missão Artística Francesa favoreceu o uso de materiais mais refinados, que chegavam das fábricas portuguesas para revestir as edificações do neoclássico carioca. A criação da Academia Imperial de Belas Artes e do primeiro curso de arquitetura civil aguça o gosto pelos traços europeus. Alguns artistas da era moderna avançam em novas formas, inspirados pelas curvas da natureza, ainda sob a influência francesa. No modernismo, a leveza do traço do genial arquiteto brasileiro projeta o Brasil para o mundo inteiro. A capital pousa no centro do país e se torna um uma referência de planejamento urbano modernista. O SONHO QUE SE PERDE TODOS OS DIAS

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No entanto, com o passar do tempo, crescem as cidades, de forma desigual, e, com isso, surgem os problemas que afetam a maioria da população das metrópoles. O desmatamento avança, sem nenhum controle, provocando o esgotamento dos solos, o desaparecimento das águas e o desequilíbrio climático, com graves consequências para todo o planeta. No lugar das florestas, surgem as cidades sem infraestrutura e serviços públicos, onde a violência se espalha e a desigualdade social expulsa e ameaça a vida de quem não tem sequer o direito à moradia. Os vazamentos de petróleo matam pássaros e peixes, destruindo ecossistemas sensíveis. O combustível poluente abastece um trânsito caótico, imobilizando as pessoas em seus milhares de automóveis, que poluem o ar e contribuem para o aquecimento global. A enorme quantidade de lixo, originado pelo consumo desenfreado, afeta os rios, os mares e a terra. São toneladas diárias de detritos contaminando tudo ao redor. Nas cidades de hoje, esquecemos o futuro todos os dias. E o mal, que produzimos para o ambiente em que vivemos, pode atingir o equilíbrio da


natureza em lugares que não podemos imaginar. A CIDADE PODE SER MARAVILHOSA Pense em uma cidade onde é possível abrir as janelas para contemplar o verde, passear nos parques, circular nas ruas, sentir a brisa quente que vem das praias e traz o cheiro da maresia... Respire o ar puro da floresta. Imagine um lugar onde os rios correm livremente para o mar e é possível mergulhar na baía e nadar na lagoa. Em que casas seguras e confortáveis, construídas em suas colinas, contemplam a paisagem e repousam tranquilas. Aqui, se pode acordar mais tarde e chegar do trabalho mais cedo, porque o trânsito flui e o transporte é acessível. O ar é puro, a vida é boa. Tem escola, universidade, teatro, cinema, hospital e moradia para todos. Essa cidade existe e está nos sonhos de milhares de pessoas. Ela também vem sendo construída no trabalho cotidiano de quem dedica sua existência a buscar soluções para criar uma cidade sustentável. Mas é preciso conquistá-la, alimentar os sonhos todos os dias. A Tijuca quer arquitetar o futuro na Avenida do Samba, provocando o encontro com aqueles que sabem que ele é possível. Conhecer o passado, reagir ao presente e tramar o futuro nos traz a certeza de que não devemos retroceder. Porque o sonho que se sonha junto é realidade e a cidade maravilhosa ainda precisa ser conquistada!

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Letra do samba-enredo O sonho nasce em minha alma Vai tomando o peito e ganhando jeito Se eternizando, traduzido em forma O mais imperfeito perfeição se torna Lá no meu quintal, eu vou fazer um bangalô Já foi tapera feita em palha e sapê E uma capela que a candeia alumiou A lua cheia... Vem, é lindo o anoitecer Vai, eu morro de saudade Todo mundo um dia sonha ter Seu cantinho na cidade Como é linda a vista lá do meu Borel Luzes na colina, meu arranha-céu Linhas do arquiteto, a vida é construção Curva-se o concreto, brilha a inspiração Lágrima desce o morro Serra que corta a mata Mata a pureza no olhar O rio pede socorro É terra que o homem maltrata E o meu clamor abraça o Redentor Pra construir um amanhã melhor O povo é o alicerce da esperança O verde beija o mar, a brisa vai soprar O medo de amar a vida Paz e alegria vão renascer Tijuca, faz esse meu sonho acontecer

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A minha felicidade mora nesse lugar Eu sou favela!!! O samba no compasso é mutirão de amor Dignidade não é luxo nem favor


G.R.E.S. MOCIDADE INDEPENDENTE DE PADRE MIGUEL, 2020

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Sinopse do enredo Elza Deusa Soares A menina magricela nascida no distante bairro de Padre Miguel, menos de 40 quilos de pura insistência em sobreviver, desembarca no badalado programa de calouros de Ary Barroso. Equilibrava bom punhado de alfinetes para conter os panos todos do conjunto que sobrava e sambava no corpo. O sonho de ser a moça bonita do rádio determinava as cantorias da pequena – lata d’água na cabeça – cuja infância havia sido subtraída pelo suor de sol a sol dos afazeres domésticos. Já em posição debutante no palco transmitido em ondas aos ouvintes, as lembranças de pueris duetos com o som do louva-a-deus e as espiadelas no pai violeiro garantiam relativa técnica. Mas a força para transcender o destino foi a autêntica locomotiva. O autor de “Aquarela do Brasil” fez as honras sem nenhum pingo de honra quando mirou o pedacinho de gente posicionado bem na boca de cena da História: “de que planeta você veio, minha filha?”. Gargalhadas histéricas na plateia, só que por breves segundos. Na aquarela de Ary, não havia destaque para a cor da resposta visceral, raio cósmico, cortina do passado dilacerada ante a metamorfose de uma divindade em flor: “eu vim do planeta fome”. Desvario. Apoteose. A primeira. Com o pedestal voltado à glória, soltou o talento até raspar o fundo do tacho d’alma para, ao fim, desabar nos braços daquele gênio letrado bem menos sabedor desse chão do que a sua humanidade supunha. Ora, o apresentador jamais imaginaria negra e pobre a arte-final esquecida pelo maior clássico que compusera. Próxima ao gongo em silêncio, e mergulhada na letra de “Lama”, estava, possivelmente, a imagem de Deus. Deusa – corrijamos – de joelhos e em adoração. Mulher. Que irrompeu a pergunta insensível, o direito que tinham para humilhá-la, as dificuldades do berço, o preconceito castrador e invasor do íntimo feminino, o racismo. A partir dali, nasceu uma estrela. Voz das vozes abafadas. Microfone de potente rouquidão rascante para os ais dos humildes. Água santa a revalidar existências e também as reminiscências ligadas à mãe lavadeira, ofício da roupa batida que faz marcar o ritmo de um futuro quase sempre estéril. Curiosa a sina de se inserir e a outras carnes pretas no mapa oligarca branco forjado na marra e na régua. Numa só frase, desvelou o fogo de realidade que intelectuais com canudos enrolados nas grandes universidades mal conseguiram reconhecer brasa. Sua música se tornou trono matriarcal para denunciar as contradições da gigante “mátria” pouco gentil. Obrigada a trocar alianças quando a companhia eram as bonecas, deu à luz muito cedo, mas leite também aos que não pariu: holofote sobre os brasis ancestralmente invisíveis. E foi, justamente, da ordem do invisível, ou etéreo, certa passagem marcante e definidora – ainda nos tempos da dureza primordial. Prestes a ser atacada por uma vaca que pastava no entorno de casa, tratou de encarar o bicho bravo olho no olho. A coragem intuitiva reconfigurou a quase tragédia: recebeu uma inacreditável lambida do queixo à testa, passeio lingual com o aparente tamanho da eternidade. Afogada na saliva e surpresa por estar viva, entendeu o banho viscoso como a unção 194


protetora que a conduziria adiante. Seguiu. Limite? O céu, é claro. Pitoresco batismo em religião própria, cuja tábua de mandamento único ostentava a interpretação pessoal dos segredos de cima, lá onde mora o Guerreiro. Bruxa, mandingueira, sacerdotisa de poderes e sentimentos indomados. Fada canção. Feiticeira a macerar folhas de inspiração e fé no eu iluminado. Unguento, incenso, veneno. Movimento. O real e a quimera em qualquer batuque – do terreiro ao bar, do culto ao cabaré, da intimidade do chatô ao infinito da nação profunda. Suingue de credo, cruz ou cura. E aí não tardou, monumento vocal velozmente consagrado, para brilhar mundo afora e país adentro. Ergueu-se samba sincopado de trejeito característico, o jazz agridoce banhado na pimenta da terra que tudo dá, nosso divã social, espelho e síntese no mesmo metro e meio de entidade. Bossa nossa. Sobre o palco de asfalto da folia, encontrou outra estrela, de milhares em cortejo e também filha de Padre Miguel – a Mocidade –, tão independente quanto ela. E mergulhou na bênção mística da percussão, que alforria os corpos domesticados e faz do festival do couro a alegria de uma cidade ao celebrar a dádiva do pertencimento. Mas foi a obsessão por cantar o amor sem pudores a sua forma categórica de pertencer. Amor à arte, às escolhas, à distância. Ao guri. Ao malandro. Ao Mané. Amou e foi amada. Sem medo e sem vergonha. Sem limites. Ou quase: apesar da vocação para inspirar gentes no embalo da natureza passional, pagou o preço ao escolher decolar no torrão que censura as asas dos filhos. Tombou. Cadente estrela. Solitária. Bailarina equilibrista que sempre teceu a vida a partir do fio da liberdade, experimentou o da navalha quando os malabares com os quais distribuiu encanto viraram pedras contra si. A redentora passou a algoz no picadeiro moral dos supostos bons costumes. Sentiu o tapa, a ferida, o esquecimento. E pedaços arrancados. De novo. Porém, o trapézio que lança ao Olimpo, e vê desabar se as mãos deslizam no voo em cego dos mistérios de existir, tem no final do abismo uma rede de proteção fraternal. Dura na queda, conseguiu ser devolvida do fosso da orquestra. Mais forte. Tal qual a língua – aqui, a humana – que roça a nuca e reacende o arrepio. Diva sensorial a nos ensinar sobre a delícia de cultuar a própria carne mal taxada e o espírito, na cruzada em desafio aos intolerantes. Pele e osso que sentem lava escorrer e exclamam política transgressora, para inferno e desnudar dos caretas. Cóccix, peito, nervos, coração, pescoço. Garganta. Ela, então, coloca desordem na preconceituosa ordem vigente, dando ré no apocalipse com o dito planeta fome completamente desgovernado. Pula o muro, alastra-se no proibido e perfuma a missão – herdada desde o show seminal – de fazer multidão frenética os carimbados como minoria. Eis a incendiária porta-estandarte de quem inclui, desafia, abraça, respeita, desatina, desata, transforma e se transforma. Do protagonismo feminino radicalmente contrário à mão levantada para a mulher. Dos amantes que, na embriaguez libertária, gozam sensualmente o afeto sem mordaça e constelam aflição pelo beijo ardente. O ato de transmutação do fazer 195


artístico em grito dos incontroláveis por todos os milênios. No altar do samba brasileiro, a Mocidade encontra o elo fundamental perdido e celebra a apoteose de uma estrela da canção ao reinventar o agora. O seu nome é agora – menina, senhora, doutora do tempo. A mensagem que deixamos para o próximo carnaval pinta o Black e tem o Power, traz a revolução de um abalo sísmico, a urgência explosiva de um novo Big Bang, põe Exu nas rodas, nas escolas, na prosa, é rua, nua e crua: Deus é mesmo mulher. Deus é negra. Ouçam a sua palavra que nos invade. Salve a Mulher do Fim do Mundo. Salve Elza Deusa Soares. Carnavalesco: Jack Vasconcelos Sinopse: Fábio Fabato Pesquisa e Colaboração: André Luís Junior

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Letra do samba-enredo La vai, menina... Lata d’água na cabeça Vencer a dor que esse mundo é todo seu Onde a “Água Santa” foi saliva Pra curar toda ferida que a história escreveu É sua voz que amordaça a opressão E embala o irmão Para a preta não chorar Se a vida é uma “Aquarela” Vi em ti a cor mais bela Pelos palcos a brilhar É hora de acender no peito a inspiração Sei que é preciso lutar Com as armas de uma canção A gente tem que acordar Da “Lama” nasce o amor Quebrar as “Agulhas” que vestem a dor Brasil, enfrenta o mal que te consome Que os filhos do planeta fome Não percam a esperança em seu cantar Ó, nega, “Sou eu que te falo em nome daquela” Da batida mais quente, o som da favela É resistência em nosso chão “Se acaso você chegar” com a mensagem do bem O mundo vai despertar, deusa da Vila Vintém Eis a estrela... Meu povo esperou tanto pra revê-la Laroyê ê Mojubá... Liberdade Abre os caminhos pra Elza passar... Salve a Mocidade! Essa nega tem poder, é luz que clareia É samba que corre na veia 197



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